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As cláusulas pétreas como instrumentos de

proteção dos direitos fundamentais

Fábio Martins de Andrade

Sumário
1. Introdução. 2. Cláusulas pétreas e direi-
tos fundamentais: apontamentos iniciais. 3. O
que são os direitos fundamentais? 4. Cláusulas
pétreas e direitos fundamentais: extensão da
proteção. 4.1. Doutrina. 4.2. Jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. 5. A cláusula pétrea
como limite material de reforma do Poder Cons-
tituinte Derivado. 6. As cláusulas pétreas e a
vinculação de gerações futuras. 7. Conclusão.

1. Introdução
O tema da teoria dos direitos funda-
mentais tem sido crescentemente explorado
pela doutrina. Significativo sinal desse au-
mento do interesse acadêmico e doutrinário
é a tentativa recorrente no sentido de criar
uma teoria geral dos direitos fundamentais.
O assunto é complexo e de inegável interes-
se prático, especialmente se considerada a
Constituição de 1988 que representou um
marco no caminho da redemocratização
Fábio Martins de Andrade é Advogado, que experimentava o País naquele relevante
Doutorando em Direito Público pela Universi- momento histórico.
dade do Estado do Rio de Janeiro, Mestre pela Não obstante, questão que remanesce
Universidade Candido Mendes em Ciências Pe- espinhosa é a delimitação do alcance da ex-
nais, Pós-graduado em Direito Penal Econômico pressão “direitos fundamentais”, isto é, que
na Universidad Castilha-La Mancha, Espanha,
direitos, liberdades e garantias encontram-
Pós-graduado em Criminologia na Universi-
dad de Salamanca, Espanha, Pós-graduado
se ali albergados. No meio-termo entre as
em Control Judicial de Constitucionalidad na visões mais estritas e amplas, encontra-se
Universidad de Buenos Aires, Especialização e uma variedade de óticas distintas.
Aperfeiçoamento em Direito Processual Cons- Embora as cláusulas pétreas possam
titucional na UERJ. ser conceituadas de maneira relativamente

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simples, a questão assume relevo ainda 4o dispõe que: “Não será objeto de deliberação
maior quando se trata de vinculá-las à a proposta de emenda tendente a abolir: I – a
proteção dos “direitos fundamentais”, tal forma federativa de Estado; II – o voto di-
como expresso no inciso IV do § 4o do art. reto, secreto, universal e periódico; III – a
60 da Constituição da República. Daí surge separação dos Poderes; IV – os direitos e
a indagação acerca de qual a extensão da garantias individuais”.
proteção dos direitos fundamentais pelas Verifica-se, preliminarmente, que a no-
cláusulas pétreas. ção de direitos fundamentais não se confun-
É que à condição de cláusula pétrea vem de com o conceito de cláusulas pétreas. Na
agregada uma série de relevantes restrições realidade, estas constituem gênero da qual
materiais à liberdade de conformação do aqueles são espécies. Embora o conceito de
legislador ordinário e ao poder de reforma cláusulas pétreas seja mais abrangente do
do Poder Constituinte Derivado. Além dis- que o de direitos fundamentais, eles pode-
so, acresça-se a complexa questão sobre a riam identificar-se na hipótese única em
relação das cláusulas pétreas e a vinculação que coincidissem, isto é, seriam cláusulas
de gerações futuras, isto é, como compati- pétreas só os direitos fundamentais. Não é
bilizar o enunciado aparentemente estático o que ocorre na Constituição vigente.
do texto constitucional com a dinâmica da Registre-se que a enumeração explícita
realidade subjacente em distintos momen- das cláusulas pétreas é escolha do Poder
tos históricos. Constituinte Originário que, em função do
Este breve estudo propõe-se a explicitar compromisso assumido em certo momento
essas e outras questões relevantes sobre a histórico, se perpetua através do tempo
relação entre as cláusulas pétreas e os direi- e não precisa necessária e explicitamente
tos fundamentais, especialmente como ins- contemplar no seu rol os direitos funda-
trumentos de sua proteção. Para este fim, mentais. Nas Constituições pretéritas, por
são trazidos aportes tanto da doutrina como exemplo, os direitos fundamentais sempre
também da jurisprudência nacionais. existiram como “Declaração de Direitos” de
Nos atuais tempos, em que se cogitam maneira semelhante ao elenco que temos
absurdamente sobre a eventual promul- hoje; contudo, nunca foram contemplados
gação de nova Constituição da República, como cláusulas pétreas expressas.
temas como a relação entre as cláusulas pé- De fato, na Constituição de 1967, o § 1o
treas e os direitos fundamentais assumem do art. 49 estabelecia como cláusula pétrea
relevo ainda maior para a reflexão profis- apenas a Federação e a República. Com a
sional e pessoal de tantos quanto militam modificação que sofreu pela Emenda Cons-
no foro ou são estudiosos desse apaixonante titucional no 1/1969, o dispositivo passou a
assunto. O País parece ainda não ter a matu- ser o § 1o do art. 47.
ridade institucional e cívica suficiente para A Constituição de 1946 continha a mes-
que se cogite de uma concepção teórica que, ma previsão no § 6o do art. 217 (contido nas
de qualquer maneira, limite o alcance das Disposições Gerais). Nos dispositivos da
cláusulas pétreas como instrumentos de Constituição de 1937 não constou qualquer
proteção dos direitos fundamentais. cláusula pétrea.
A Constituição de 1934 contemplava
2. Cláusulas pétreas e direitos como cláusula pétrea apenas “a forma
fundamentais: apontamentos iniciais republicana federativa”, consoante dispôs
o § 5o do art. 178 (também das Disposições
No ordenamento constitucional vigente, Gerais). Essa Constituição continha curioso
o art. 60 prevê o processo legislativo de dispositivo no caput do art. 178: “A Cons-
emenda à Constituição e o seu parágrafo tituição poderá ser emendada, quando as

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alterações propostas não modificarem a Na ordem constitucional em vigor,
estrutura política do Estado (arts. 1 a 14, verifica-se, por conseguinte, que os direitos
17 a 21); a organização ou a competência fundamentais são todos cláusulas pétreas.
dos poderes da soberania (capítulos II, III Estas, por seu turno, abrangem outros dis-
e IV, do Título I; o capítulo V, do Título I, positivos constitucionais além daqueles.
o Título II, o Título III; e os arts. 175, 177, Um breve parêntese se impõe. Com
181, e este mesmo art. 178); e revista, no a dicção da Emenda Constitucional no
caso contrário”. 45/2004, verificamos que, pela primeira vez
A Constituição de 1891 previu no § 4o desde a promulgação da Constituição de
do art. 90, como cláusulas pétreas, “a forma 1988, o art. 5o, considerado nuclear ao texto
republicana federativa, ou a igualdade da constitucional, foi modificado. Trata-se da
representação dos Estados no Senado”. modificação perpetrada no sentido de criar
A Constituição de 1824 não previu – em realidade, explicitar – mais um direito
qualquer cláusula pétrea,1 mas prescreveu fundamental, por meio da inclusão do inci-
enorme rigidez para a época na modificação so LXXVIII.3, 4 Essa modificação afigura-se
do texto quando versasse sobre os limites e perfeitamente constitucional.5
atribuições dos Poderes Políticos, dos direi- Se a situação fosse inversa, sabe-se que
tos políticos e individuais dos cidadãos, que não seria possível proposta de emenda
foram considerados temas constitucionais, tendente a abolir os direitos e garantias fun-
consoante dispôs o art. 178. Em contrapo- damentais individuais, vez que é cláusula
sição, previu-se que: “Tudo o que não é pétrea, consoante determina o art. 60, § 4o,
Constitucional pode ser alterado sem as inciso IV, como vimos.
formalidades referidas, pelas Legislaturas E as situações intermediárias, que se
ordinárias”. Trata-se da conhecida forma posicionam aparentemente no meio do ca-
semi-rígida ou semiflexível adotada pela minho entre estes dois extremos? Em outras
Constituição que, a um só tempo, exigia palavras, até que medida é possível mo-
enorme rigidez para o processo de modifica- dificar o art. 5o e até onde chega o alcance
ção constitucional (nas hipóteses apontadas) da limitação material do poder de reforma
e era bastante flexível quando se cuidasse do contido no § 4o do art. 60? Ou ainda: qual é
processo legislativo ordinário, mesmo que o alcance da expressão “tendente a abolir”,
modificativo do texto constitucional. contida nesse dispositivo constitucional?
Registre-se a curiosidade de que, ao (PEDRA, 2006, p. 138)
contrário das Constituições pretéritas, a Para explicitar ainda mais o enunciado
atual não elevou a forma republicana de existente ou ampliar o alcance ou abrangên-
governo ao patamar de cláusula pétrea.
Isso ocorreu porque, no dia 7 de setembro bilidade de reconhecimento de limitações materiais
de 1993, o eleitorado definiria, por meio de implícitas ao poder de reforma constitucional, como
foram, por exemplo, os direitos fundamentais nas
plebiscito, a forma (republicana ou monar- Constituições pretéritas, e hoje são outras, confira:
quia constitucional) e o sistema de governo SARLET, 2003, p. 373 e ss.
(parlamentarismo ou presidencialismo) 3
Este dispositivo introduziu no ordenamento
que deveriam vigorar no País, consoante jurídico nacional o direito à “razoável duração do
processo”, estabelecido nos seguintes termos: “a to-
estabelecera o art. 2o do ADCT da Consti- dos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados
tuição de 1988 (com a redação da Emenda a razoável duração do processo e os meios que garantam a
Constitucional no 2/1992).2 celeridade de sua tramitação”.
4
Para aprofundamento do exame deste novel
1
No mesmo sentido: PEDRA, 2006, p. 138. dispositivo constitucional, consultar: ANDRADE,
2
Para aprofundar o exame sobre esta questão e 2007, p. 178-181.
se depois da consulta popular passaram a integrar as 5
No mesmo sentido, ver: TAVARES, 2005, p.
cláusulas pétreas, relacionada também com a possi- 30-31.

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cia de qualquer direito fundamental – como busca-se trazer pontualmente uma ligeira
ocorreu com a inclusão do inciso LXXVIII definição pinçada exemplificativamente
–, a resposta impõe-se categoricamente da doutrina.
afirmativa. Tratar-se-ia, por conseguinte, Guilherme Peña de Moraes (2008, p.
de uma inclusão legítima. No entanto, sabe- 499 e ss.) define da seguinte maneira: “Os
se que, quando obstaculizar os direitos e direitos fundamentais são conceituados
garantias ali previstas, a resposta impõe-se como direitos subjetivos, assentes no direito
veementemente negativa. objetivo, positivados no texto constitucional,
Outro problema seria quanto à proposta ou não, com aplicação nas relações das pessoas
que meramente dificultasse ou reduzisse o com o Estado ou na sociedade”.7
alcance ou abrangência de qualquer enun- Cuidando da classificação dos direitos
ciado previsto no art. 5o, eis que não neces- fundamentais, Ingo Wolfgang Sarlet distin-
sariamente seria “tendente a abolir”. Nesse gue as seguintes categorias:
caso, a expressão abrange obrigatoriamente 1. Direitos fundamentais como direitos
tais hipóteses e a resposta conduz necessa- de defesa8
riamente ao repúdio de tais propostas. 2. Direitos fundamentais como direitos
Esse é o real sentido de se posicionar os a prestações9
direitos fundamentais consagrados como a. Direitos a prestações em sentido
cláusulas pétreas, portanto, imutável para amplo10
pior em qualquer hipótese. O entendimento i. Direitos à proteção11
em sentido contrário certamente ignoraria 7
Em seguida, o autor explica cada uma das carac-
a sistemática constitucional engendrada terísticas que envolvem o conceito.
para a proteção dos direitos fundamentais 8
Dirigem-se a “uma obrigação de abstenção por
e tampouco levaria em consideração a cir- parte dos poderes públicos, implicando para estes
cunstância histórica de que esses direitos um dever de respeito a determinados interesses indi-
viduais, por meio da omissão de ingerências ou pela
foram, pela primeira vez na história cons- intervenção na esfera de liberdade pessoal apenas
titucional brasileira, elevados à categoria em determinadas hipóteses e sob certas condições”
de cláusulas pétreas explícitas por opção (SARLET, 2003, p. 176).
do Poder Constituinte Originário. 9
Relacionam-se com os direitos de defesa, assegu-
rando os meios necessários àquela proteção: “Vincu-
lados à concepção de que ao Estado incumbe, além da
3. O que são os direitos fundamentais? não-intervenção na esfera de liberdade pessoal dos in-
divíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de
A questão não é fácil. A Professora colocar à disposição os meios materiais e implementar
as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício
Jane Reis explica que: “Quando se fala em
das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais
direito fundamental, aborda-se uma categoria a prestações objetivam, em última análise, a garantia
jurídica complexa, que pode ser analisada não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante
a partir de múltiplos enfoques”.6 o Estado), mas também da liberdade por intermédio
do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo,
Dada a multiplicidade de conceitos
no que concerne à conquista e manutenção de sua
possíveis acerca dos direitos fundamentais, liberdade, depende em muito de uma postura ativa
dos poderes públicos” (SARLET, 2003, p. 195).
6
De fato, os enfoques doutrinários da teoria geral 10
O autor coloca nesta categoria “todos os direi-
dos direitos fundamentais podem contemplar a sua tos fundamentais de natureza tipicamente (ou, no
noção como: em sentido formal, em sentido material, mínimo, predominantemente) prestacional que não
do ponto de vista funcional (planos subjetivo e obje- se enquadram na categoria dos direitos de defesa” e
tivo), ou ainda, sob o viés estrutural (distinção entre atribui-lhe natureza residual, vez que abrange “todas
regras e princípios). A Professora discorre que: “(...) as posições fundamentais prestacionais não-fáticas”
há certa tendência em utilizar a referida expressão (SARLET, 2003, p. 201).
para designar os direitos humanos reconhecidos e 11
Compreendidos, a partir de Alexy, como “po-
positivados em determinada ordem constitucional” sições jurídicas fundamentais que outorgam ao indi-
(PEREIRA, 2006, p. 75-78). víduo o direito de exigir do Estado que este o proteja

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ii. Direitos à participação na organização 60, § 4o, inc. IV, suscitando dúvidas
e procedimento12 até mesmo no que diz com a abran-
b. Direitos a prestações em sentido gência da proteção outorgada. Assim,
estrito13. indaga-se, por exemplo, se além dos
direitos e garantias individuais (art.
4. Cláusulas pétreas e direitos 5o da CF) também os demais direitos
fundamentais: extensão da proteção fundamentais (coletivos, políticos
e sociais) podem ser considerados
4.1. Doutrina ‘cláusula pétrea’. Para além disso,
controverte-se a respeito do alcance
Inicialmente, impende notar que o tema
da proteção, já que discutível se esta
da extensão da proteção aos direitos funda-
apenas objetiva inviabilizar uma ero-
mentais conferida pelas cláusulas pétreas
são dos direitos fundamentais, ou se
tem como pano de fundo uma complexa,
os torna imunes contra qualquer tipo
e até mesmo paradoxal, tensão entre o
de restrição, resultando numa virtual
constitucionalismo e a democracia. Tal
intangibilidade. Também não há
tensão verifica-se nos sistemas jurídicos dos
como desconsiderar a necessidade de
principais países ocidentais do mundo con-
traçar uma distinção entre os direitos
temporâneo e consiste na perquirição sobre
fundamentais enunciados em normas
como conciliar compromissos colidentes: “o
de eficácia plena e limitada, assim
ideal de um governo limitado pelo direito
como a diversidade das funções
(constitucionalismo em sentido estrito) e o
precípuas exercidas pelos direitos
de um governo do povo (democracia)”.14
fundamentais (direitos de defesa ou
Ingo Wolfgang Sarlet (2003, p. 363-364)
direitos a prestações)”.
coloca outras perquirições igualmente
Grosso modo, pode-se dizer que: “As
complexas na compreensão da extensão da
cláusulas pétreas são consideradas classica-
proteção aos direitos fundamentais assegu-
mente como obstáculos intransponíveis em
rada como cláusulas pétreas, verbis:
uma reforma constitucional, que só podem
“Dentre os diversos aspectos a se-
ser superados com o rompimento da ordem
rem destacados, assume relevo, por
constitucional vigente, mediante a elabo-
exemplo, a própria terminologia
ração de uma nova Constituição”. Nesse
empregada pelo Constituinte no art.
sentido, as cláusulas pétreas definem-se
contra ingerências de terceiros em determinados bens
como “um núcleo intangível que se presta
pessoais” (SARLET, 2003, p. 201). a garantir a estabilidade da Constituição e
12
Aqui, “os direitos fundamentais podem ser conservá-la contra alterações que aniquilem
considerados como parâmetro para a formatação o seu núcleo essencial, ou causem ruptura
das estruturas organizatórias e dos procedimentos,
servindo, para além disso, como diretrizes para a ou eliminação do próprio ordenamento
aplicação e interpretação das normas procedimentais” constitucional, sendo a garantia da perma-
(SARLET, 2003, p. 203).
13
Esta categoria pode ser identificada com “os di- democrático à sua fonte (quem deve estabelecer tais
reitos fundamentais sociais de natureza prestacional” normas?), de maneira que, enquanto o primeiro se
(SARLET, 2003, p. 208). volta à limitação do poder político, o segundo redun-
14
Rodrigo Brandão (2007, p. 6), em artigo doutri- da no seu fortalecimento”. Adiante, o autor assinala
nário que contém as principais idéias desenvolvidas ainda que: “Ocorre que a efetiva retirada dos direitos
na sua dissertação de mestrado sobre o tema, expõe individuais do alcance das maiorias políticas ocasio-
que: “Assim, poder-se-ia dizer que, embora ambos os nais, especialmente do Poder Legislativo, somente se
conceitos se vinculem à exigência de legitimidade no tornou factível com a universalização das noções de
exercício do poder político, o ideário constitucionalista rigidez constitucional e de controle de constitucionali-
se atém à extensão deste poder (até que ponto podem dade, algo que se verificou apenas na segunda metade
os governos dispor sobre a vida dos cidadãos?), e o do século passado”.

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nência da identidade da Constituição e dos Oscar Vilhena Vieira (1999) sustenta
seus princípios fundamentais”.15 que há uma hierarquia entre os princípios
Mais especificamente, pode-se dizer que e normas constitucionais, já que o caráter de
as cláusulas pétreas (ou “superconstitucio- superconstitucionalidade mencionado atri-
nais”, como sugere Oscar Vilhena Vieira) bui maior rigidez e proteção em relação aos
prestam-se a proteger “a estrutura central demais princípios e normas constitucionais,
do poder contra uma total ruptura”, “bus- modificáveis de maneira relativamente sim-
cam impedir que mudanças constitucionais ples pelo Poder Constituinte Derivado.17
‘normais’ gerem uma erosão dos princípios Quais os “direitos fundamentais” que são
e valores básicos da Constituição” e “tam- protegidos como cláusulas pétreas na Cons-
bém servem como princípios que auxiliam tituição? Uma primeira interpretação literal
a interpretação constitucional”.16 ou gramatical do inciso IV do § 4o do art. 60
Entre esses relevantes papéis desempe- levaria à absurda conclusão de que apenas
nhados pelas cláusulas pétreas na ordem aqueles inseridos na “Declaração de Direi-
constitucional, impende afirmar a mais sutil tos” constante no art. 5o estariam abrangidos
e, por isso mesmo, preocupante. Trata-se de pela referida proteção. Essa interpretação
sua função protetiva dos princípios e valo- não deve prevalecer, já que coloca categorias
res constitucionais básicos, em oposição à equivalentes de direitos fundamentais em
sua erosão pelos mecanismos permissivos patamares distintos de proteção.
de modificações consideradas “normais” Por outro lado, a partir de uma in-
no texto, que geralmente ocorrem por meio terpretação sistemática, é perfeitamente
da edição de emendas à Constituição. possível atribuir maior alcance à proteção
dos direitos fundamentais pelas cláusulas
15
Em contraposição entre a rigidez e a evolução pétreas, que devem necessariamente abran-
constitucional, releva notar que: “Mas a Constituição ger também os direitos políticos, sociais e
deve estar em harmonia com a realidade, e deve
manter-se aberta e dinâmica através dos tempos. Isso
dos contribuintes, entre outros.18
porque uma Constituição não é feita em um momento 17
Nas suas palavras: “Portanto, mais do que o
determinado, mas se realiza e efetiva-se constantemen-
estabelecimento de cláusulas pétreas ou, mesmo, de
te. As mudanças constitucionais são necessárias como
um pequeno núcleo constitucional irreformável, o
meio de preservação e conservação da própria Cons-
constituinte concedeu caráter de superconstitucio-
tituição, visando ao seu aperfeiçoamento, buscando,
nalidade a diversos setores da Constituição, ou seja,
em um processo dialético, alcançar a harmonia com
um conjunto de princípios e normas constitucionais
a sociedade”. Em síntese: “Nesse sentido, se, por um hierarquicamente superiores aos demais dispositivos
lado, a rigidez constitucional é imprescindível para da Constituição. Superconstitucionalidade, e não su-
manter a estabilidade constitucional, por outro, essa praconstitucionalidade, pois, embora superiores, esses
rigidez deve permitir que a evolução da sociedade dispositivos ainda se encontram dentro da órbita da
seja acompanhada pela evolução da Constituição”. Constituição: direito positivo, e não transcendente”
Adiante o autor ressalta que “várias são as tentativas (VIEIRA, 1999, p. 135).
de se elaborar propostas sustentando que as cláusulas 18
Em perfunctório exame da Constituição, veri-
pétreas não podem ser compreendidas como limites fica-se que: “Já no preâmbulo de nossa Constituição
absolutos à reforma constitucional, eis que é impres- encontramos referência expressa no sentido de que a
cindível um certo equilíbrio entre a indispensável garantia dos direitos individuais e sociais, da igual-
estabilidade constitucional e a necessária adaptabi- dade e da justiça constitui objetivo permanente do
lidade da Constituição à realidade social” (PEDRA, nosso Estado. Além disso, não há como negligenciar
2006, p. 135-137). o fato de que nossa Constituição consagra a idéia de
16
Em outras palavras, elas voltam-se “à proteção que constituímos um Estado democrático e social de
das instituições básicas da Constituição, entre as Direito, o que transparece claramente em boa parte
quais seus princípios substantivos e procedimentais dos princípios fundamentais, especialmente no art. 1o,
de justiça”; bem como “podem funcionar como prin- incs. I a III, e art. 3o, incs. I, III e IV. Com base nestas
cípios fundamentais de interpretação constitucional”, breves considerações, verifica-se, desde já, a íntima
buscando com isso superar o quadro de fragmentação, vinculação dos direitos fundamentais sociais com a
ambigüidade e assistematicidade da Constituição concepção de estado da nossa Constituição. Não resta
(VIEIRA, 1999, p. 24, 29 e 139-140). qualquer dúvida de que o princípio do Estado Social,

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Ingo Wolfgang Sarlet entende que a materialmente fundamentais, explícitos ou
proteção assegurada pelas cláusulas pé- implícitos.20
treas não se dirige de maneira absoluta ao Oscar Vilhena Vieira entende que, por
dispositivo constitucional próprio, mas ao meio da “textura aberta” dos preceitos
chamado “núcleo essencial do princípio em constitucionais e da justificativa racional-
questão”, isto é, a “essência do princípio mente fundamentada, é possível encontrar
ou direito” que delineia o seu conteúdo e o ponto de equilíbrio legítimo na tensão
estrutura, pouco importando os seus ele- dialética entre a perenidade da Constitui-
mentos circunstanciais.19 ção e sua necessidade de compatibilização à
Parte da doutrina distingue entre direi- realidade social subjacente, no concernente
tos formal e materialmente fundamentais às cláusulas pétreas.21
para, ao final, (i) incluir tanto os direitos Reconhece, no entanto, como cláusulas
formalmente fundamentais explícitos e superconstitucionais as seguintes pre-
os direitos materialmente fundamentais, determinações que buscam preservar a
mesmo que implícitos, no rol de proteção dignidade humana e a igualdade de cada
pelas cláusulas pétreas; ou (ii) excluir os indivíduo em relação aos demais: a) “dos
direitos formalmente fundamentais ex- direitos que conferem autonomia privada
plícitos e manter, no âmbito de proteção a cada indivíduo (...) bem como as garan-
pelas cláusulas pétreas, apenas os direitos
20
De qualquer maneira, é importante não ampliar
bem como os direitos fundamentais sociais, integram demasiadamente o rol de direitos fundamentais prote-
os elementos essenciais, isto é, a identidade de nossa gidos pelas cláusulas pétreas. Nesse sentido, Rodrigo
Constituição, razão pela qual já se sustentou que os Brandão explica que: “Da vinculação dos direitos
direitos sociais (assim como os princípios fundamen- fundamentais a bens jurídicos primários e à dignida-
tais) poderiam ser considerados – mesmo não estando de da pessoa humana (art. 1o, III, CF/88) é possível
expressamente previstos no rol das ‘cláusulas pétreas’ concluir que nem todo direito subjetivo do indivíduo
– autênticos limites materiais implícitos à reforma contra o Estado, previsto constitucionalmente, tem a
constitucional”. O autor defende, adiante, que: “Os natureza de direito fundamental. Ora, se a atribuição
direitos e garantias individuais referidos no art. 60, § da condição de cláusula pétrea a preceito normativo
4o, inc. IV, da nossa Lei Fundamental incluem, portan- está condicionada à demonstração de que o mesmo
to, os direitos sociais e os direitos da nacionalidade e se reconduz a direito materialmente fundamental, ou,
cidadania (direitos políticos)” (SARLET, 2003, p. 385 e então, que se consubstancia em garantia fundamental
386). Em sentido semelhante: VIEIRA, 1999, p. 245. à sua preservação, faz-se mister esboçar uma proposta
19
Consoante explicação de Ingo Wolfgang Sarlet de balizamento da atividade judicial de identificação e
(2003, p. 381-382): “No âmbito da doutrina pátria, tutela destes direitos” (BRANDÃO, 2007, p. 25-30).
revelando uma nítida tendência de adesão à doutrina 21
Nas palavras do autor: “Após as críticas ao
alemã, já há quem sustente que uma emenda constitu- utilitarismo, à idéia meramente procedimental de
cional apenas tende a abolir um bem protegido pelas democracia e ao positivismo jurídico e sociológico,
‘cláusulas pétreas’ na hipótese de vir a ser atingido o que reduziam a normatividade ou a legitimidade
núcleo essencial do princípio em questão, não ficando do direito à sua própria força, não mais é possível
obstaculizada a sua regulamentação, alteração ou pensar a Constituição – e mais ainda as suas cláusulas
mesmo a sua restrição (desde que não afetado o núcleo constitucionais intangíveis – sem levar em conta suas
essencial). O núcleo do bem constitucional protegido qualidades intrínsecas, seu valor ético. Para que certas
é, de acordo com este ponto de vista, constituído cláusulas constitucionais possam ser aceitas como
pela essência do princípio ou direito, não por seus limitadoras do poder de cada geração de alterar suas
elementos circunstanciais, cuidando-se, neste sentido, próprias Constituições é necessário que seu conteúdo
daqueles elementos que não podem ser suprimidos possa ser justificado e aceito racionalmente. O fato de
sem acarretar alteração substancial no seu conteúdo e terem sido estabelecidas por um poder constituinte
estrutura. Neste contexto, afirmou-se acertadamente anterior, ou de se compatibilizarem com um con-
que a constatação de uma efetiva agressão ao núcleo junto predeterminado de direitos, não é suficiente
essencial do princípio protegido depende de uma pon- para garantir sua legitimidade”. Adiante, o autor
deração tópica, mediante a qual se deverá verificar se a explicita ainda mais seu ponto de vista: “Assim, ao
alteração constitucional afeta apenas aspectos ou posi- buscar dar a melhor interpretação possível aos dis-
ções marginais da norma, ou se, pelo contrário, investe positivos especialmente protegidos, como cláusulas
contra o próprio núcleo do princípio em questão”. superconstitucionais, subsidiado por um processo

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tias necessárias para que essas liberdades serão obrigados a utilizar métodos
sejam preservadas”; b) “da instituição do jurídicos e argumentativos de inter-
Estado de Direito, que garanta o princípio pretação toda vez que se virem frente
da legalidade (...). Isso certamente exige um a um caso regido por princípios não
Estado organizado com base no princípio plenamente densificados pelo pro-
da separação de Poderes (...)”; c) “de um rol cesso de positivação constituinte,
de direitos essenciais para que a igualdade toda vez que tiverem que decidir se
e a dignidade dos cidadãos, enquanto seres uma determinada reforma favorece
racionais e autônomos, sejam mantidas. ou desfavorece a realização do prin-
Esse rol é composto pelos direitos de par- cípio da separação dos Poderes ou
ticipação na tomada de decisões públicas dos direitos fundamentais. Assim,
(...)”; d) “por fim, os direitos sociais básicos após levar em consideração a Cons-
não devem ficar vulneráveis simplesmente tituição como lei, por intermédio dos
por serem instrumentais à realização dos diversos métodos de interpretação
direitos civis e políticos, mas pelo seu que auxiliam na redução da discri-
próprio status de direitos morais, como os cionariedade judicial, a doutrina e os
direitos civis e políticos básicos. (...). Assim, precedentes, deve o intérprete cons-
os direitos básicos à alimentação, moradia, titucional recorrer aos princípios da
educação e saúde também compõem o rol argumentação racional para alcançar
de direitos essenciais à realização da igual- a devida compreensão do conteúdo
dade e da dignidade entre os cidadãos”.22 aberto das cláusulas superconstitu-
O autor discorre ainda sobre os momen- cionais, que constituem aspirações a
tos distintos no processo de implementação uma ordem justa incorporadas pela
dos preceitos de justiça na compreensão própria Constituição”.23
da idéia da Constituição como “reserva
de justiça”: 23
Melhor explicando estes momentos, o autor dis-
corre que: “Têm-se, assim, quatro momentos distintos
“Caso se aceite a idéia da Constitui-
no processo de implementação dos preceitos de justiça.
ção como ‘reserva de justiça’, como À sociedade civil e à filosofia ou teoria política cumpre
ponto de encontro entre a morali- formular princípios como paradigmas que possam
dade política e o direito positivo, auxiliar na construção de uma ordem justa. Trata-se,
porém, de instâncias racionalizadoras, e não decisórias.
então seus intérpretes e aplicadores Ao legislador constitucional, por sua vez, cabe a função
de decidir politicamente, por intermédio do procedi-
de argumentação racional em que os componentes mento democrático, a positivação dos princípios de
da Corte se encontrem em posição de igualdade e justiça que julgar adequados – ou seja, transformar
liberdade argumentativa, o tribunal constitucional princípios morais em preceitos jurídicos vinculantes.
poderá decidir quais emendas ferem e quais não ferem Esta positivação, no entanto, não reduz por completo a
as cláusulas superconstitucionais, de maneira mais abstração e abertura desses princípios, para que possam
legítima. Isto não significa que a Corte não esteja en- ser imediatamente aplicados. Cabe à doutrina e à dog-
gajada em um processo antimajoritário. Porém, se for mática jurídica agir argumentativamente, racionalizan-
capaz de impedir a abolição ou erosão dos princípios do e reduzindo a abertura desses princípios, no sentido
fundantes da ordem constitucional, entendida como de viabilizar sua aplicação concreta. Tem-se novamente
reserva de justiça, e de seus elementos que habitam a uma atividade argumentativa, e não decisória, porém
perpetuação do processo político democrático, a Corte mais limitada do que a do filósofo e do teórico político,
estará, paradoxalmente, favorecendo a democracia” pois o jurista age sob os parâmetros estabelecidos pelo
(VIEIRA, 1999, p. 224-225 e 239). legislador. A dogmática estabelece, assim, num campo
22
Sob a ótica do autor: “Protegidas essas cláusulas, de batalha ideologicamente impregnado, distintas con-
que constituem uma verdadeira reserva constitucional seqüências do Direito, posto que limitam ainda mais
de Justiça, as Constituições podem ser reformadas sem a possibilidade de escolha do magistrado. Finalmente,
colocar em risco os elementos essenciais à perpetuação ao magistrado cabe decidir, numa situação concreta, a
de um sistema que garanta autonomia privada e polí- aplicação desses princípios, positivados pelo legislador
tica, numa esfera de igualdade e dignidade” (VIEIRA, e racionalizados pela doutrina. Porém, por mais que
1999, p. 230-232). tenham existido essas etapas de redução de complexi-

214 Revista de Informação Legislativa


O autor conclui no sentido de que “não Em conclusão, o autor assinala que:
se deve aderir a uma fórmula mecânica a “À vista do exposto, pode-se concluir
respeito dos direitos que devem constituir que uma tal concepção não incide no
o núcleo intangível da Constituição, sob o reducionismo a que está fadado um
risco de se incluir direitos absolutamente procedimentalismo puro como o de
secundários e deixar sem proteção super- Ely, vez que não restringe as con-
constitucional direitos cruciais à democra- dições da democracia aos direitos e
cia e à preservação da dignidade humana”. liberdades que cumpram uma função
(VIEIRA, 1999, p. 246) imediata no processo democrático.
Rodrigo Brandão (2007, p. 10 e ss.) Ao revés, na esteira do que se depre-
assinala o papel das cláusulas pétreas ende da leitura sistemática do texto
na relação necessária entre o controle de constitucional, abrange também to-
constitucionalidade e o constitucionalismo. das as condições fundamentais para
Nesse sentido, destaca duas correntes de a garantia de que os indivíduos sejam
pensamento antagônicas. Pela primeira, tratados com igual consideração e
a revisão judicial “redundaria em lesão à respeito, como agentes morais livres
democracia, de maneira que, na prática, e iguais, independentemente da posi-
as cláusulas pétreas veiculariam limites ção ou da função que desempenham
meramente políticos, isto é, despidos de
eficácia jurídica efetiva, na medida em que do art. 60, § 4o, IV, da CF/88, que restrinja a atuação do
dirigidos exclusivamente ao constituinte- Judiciário à hipótese de emenda que atente contra as
condições da democracia, promovendo, via de conse-
reformador, mas não ao Judiciário”. Por qüência, a elevação do nível deliberativo dos processos
meio da segunda, ao contrário, as cláusu- políticos (em cujo cerne será colocada a discussão sobre
las pétreas teriam a natureza de “limites os melhores meios para a implementação dos elemen-
jurídicos efetivos ao poder de reforma tos constitucionais essenciais), e a desobstrução dos
canais de deliberação democrática, visto que caberá
constitucional, de modo que, verificando-se ao Judiciário impedir que elites se utilizem de sua
a incompatibilidade entre emenda consti- posição privilegiada para a obtenção de benesses, i.e.,
tucional e cláusula pétrea, seria dever do do entricheiramento constitucional de privilégios. Este
Judiciário, em sistemas dotados de judicial ‘ativismo’ restrito à tutela das condições da democracia
permitirá que a atribuição de força jurídica efetiva à
review, a declaração da inconstitucionalida-
cláusula superconstitucional dos ‘direitos e garantias
de de emenda constitucional”. individuais’ não implique excessiva judicialização da
Sob a ótica do autor, dado o caráter con- política, com a usurpação de competências de entes
tramajoritário do Poder Judiciário no exer- democraticamente legitimados pelo Judiciário”. Em
cício da jurisdição constitucional, incumbe seguida, ele aduz duas questões: “o reconhecimento
da competência e da legitimidade democrática de o
ao Supremo Tribunal Federal promover o Judiciário invalidar emenda constitucional por violação
ideal de autogoverno do povo, por meio às condições da continuidade da jornada democrática
de sua limitação “aos pressupostos da não significa que tais elementos hajam sido retirados
continuidade da jornada democrática” no do debate público e ‘delegados’ aos juízes que, encas-
telados em torres de marfim, definiriam o seu teor”; e
exame da invalidação de emendas consti-
“uma definição mais concreta das alvitradas condições
tucionais violadoras ao art. 60, § 4o, inciso da democracia”, como “os princípios fundamentais
IV, da Constituição da República.24 que estruturam o Estado (prerrogativas dos ‘poderes’
e alcance da regra da maioria), os direitos ao voto e à
dade, os princípios constitucionais e os direitos fun- participação política (nos quais se pode inferir o direito
damentais continuam a possuir caráter muito abstrato à nacionalidade, como verdadeiro direito a ter direitos),
e aberto à argumentação moral, à qual o magistrado a um mínimo existencial e as liberdades fundamentais,
responsável por decidir casos constitucionais difíceis sejam as diretamente vinculadas ao processo democrá-
não pode fugir” (VIEIRA, 1999, p. 237-239). tico (v.g.: liberdade de expressão, de reunião, direito à
24
Em explicação, o autor disserta que: “A aplicação informação), sejam as que não guardem relação imediata
da noção de razão pública ao objeto da presente dis- com a democracia (v.g.: liberdade de religião, de ir e vir e
sertação redunda em uma proposta de interpretação de escolha de profissão)” (BRANDÃO, 2007, p. 39-41).

Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 215


na sociedade. Consideram-se, nesta de quais direitos fundamentais são consi-
perspectiva, inseridos, no âmbito de derados como cláusulas pétreas.
proteção superconstitucional do art. Tratando-se, inicialmente, da teoria ge-
60, p. 4, IV, da CF/88, as liberdades ral dos direitos fundamentais, importa des-
fundamentais ligadas direta ou indi- tacar relevante precedente jurisprudencial
retamente à regularidade do processo do Tribunal que reconheceu expressamente
democrático, o mínimo existencial, os a impossibilidade de declaração de incons-
direitos políticos e nacionalidades, e titucionalidade de normas constitucionais
os direitos difusos e coletivos”.25 originárias em razão de suposta hierarquia
Assim, o autor explicita sua orientação no entre elas.
sentido de que o Supremo Tribunal Federal Pela clareza didática da decisão, per-
privilegie, nos seus julgados, o respeito pela mite-se trazer a transcrição da ementa
manutenção dos pressupostos da continui- pertinente, que constitui verdadeira lição
dade da jornada democrática e, por con- sobre o papel do Tribunal como guardião
seguinte, promova por meio da jurisdição da Constituição:
constitucional sobre emendas constitucio- “Ação direta de inconstitucionali-
nais o ideal de autogoverno do povo. dade. Parágrafos 1. e 2. do art. 45 da
Constituição Federal. – A tese de que há
4.2. Jurisprudência do Supremo hierarquia entre normas constitucionais
Tribunal Federal originárias dando azo a declaração de
No âmbito da jurisprudência do Su- inconstitucionalidade de umas em face
premo Tribunal Federal, é possível colher de outras é incompossível com o sistema
algumas indicações claras sobre a extensão de Constituição rígida. – Na atual Carta
Magna ‘compete ao Supremo Tribu-
25
Logo antes de chegar à conclusão transcrita, o nal Federal, precipuamente, a guarda
autor justificava que: “Assim, preconiza-se no presente
trabalho que um liberalismo político que enfatize a sua
da Constituição’ (artigo 102, ‘caput’),
dimensão igualitária fornece parâmetros fundamen- o que implica dizer que essa jurisdição
tais para a interpretação do art. 60, § 4o, inciso IV, da lhe é atribuída para impedir que se desres-
Constituição de 1988, em consonância a uma leitura peite a Constituição como um todo, e não
sistemática do texto constitucional. Isto porque, por
um lado, logra-se obter modelo em que o Judiciário
para, com relação a ela, exercer o papel de
preserva elementos constitucionais essenciais de pre- fiscal do Poder Constituinte originário, a
tensões supressivas do constituinte derivado, visto fim de verificar se este teria, ou não, vio-
que a noção de que os indivíduos, independentemente lado os princípios de direito suprapositivo
de sua função social, são um fim em si mesmo, cujos
direitos fundamentais gozam de uma prioridade prima
que ele próprio havia incluído no texto
facie em relação à satisfação de necessidades coletivas, da mesma Constituição. – Por outro
coíbe, por exemplo, desvios autoritários a que estaria lado, as cláusulas pétreas não podem ser
sujeita uma visão totalizante do Estado de Bem-Estar invocadas para sustentação da tese da
Social”. “Por outro lado, a enfatização de sua dimensão
igualitária permite que se veja a premissa fundamental
inconstitucionalidade de normas cons-
do tratamento dos indivíduos pelo Estado com ‘igual titucionais inferiores em face de normas
consideração e respeito’ segundo uma perspectiva mais constitucionais superiores, porquanto a
apropriada a sociedades em vias de desenvolvimento, Constituição as prevê apenas como li-
que escapa das insuficiências inerentes à restrição dos
direitos fundamentais aos direitos de defesa. A referida
mites ao Poder Constituinte derivado
proposta, conforme salientado, parece-se amoldar a ao rever ou ao emendar a Constitui-
uma interpretação sistêmica da Carta de 1988, pois se ção elaborada pelo Poder Constituinte
cuida de Constituição que, nitidamente, se preocupou originário, e não como abarcando
em proteger o indivíduo do eventual exercício abusivo
do poder estatal, sem haver, contudo, descurado do pa-
normas cuja observância se impôs ao
pel de o Estado promover a satisfação de necessidades próprio Poder Constituinte originário
básicas do indivíduo” (BRANDÃO, 2007, p. 42-43). com relação as outras que não sejam

216 Revista de Informação Legislativa


consideradas como cláusulas pétreas, não se pode voltar contra a emenda
e, portanto, possam ser emendadas. já promulgada, o que equivaleria
Ação não conhecida por impossibilidade a emprestar-se-lhe efeito, de todo
jurídica do pedido” (grifos nossos).26 descabido, de ação direta de incons-
Situação diversa é a possibilidade de titucionalidade, para a qual, ademais,
declaração de inconstitucionalidade de não está o Impetrante legitimado”.27
emenda constitucional, oriunda, portanto, Posteriormente, o IPMF foi considerado
do Poder Constituinte Derivado, hipótese já inconstitucional para o ano de 1993, em
expressamente reconhecida pelo Supremo razão da violação aos princípios da ante-
Tribunal Federal em matéria tributária no rioridade tributária (considerada cláusula
caso do IPMF. pétrea como garantia individual dos con-
Inicialmente, a criação desse novo tribu- tribuintes) e da imunidade tributária recí-
to foi questionada por meio do Mandado proca (considerada cláusula pétrea como
de Segurança no 21.648-4/DF, impetrado garantia da Federação), bem como aquele
pelo Deputado Federal José Maria Eymael previsto no inciso III do art. 150, verbis:
em face do Presidente da Mesa da Câmara “Direito Constitucional e Tributário.
dos Deputados e do Presidente da Mesa do Ação Direta de Inconstitucionalida-
Senado Federal, quando ainda tramitava o de de Emenda Constitucional e de
Projeto de Emenda Constitucional-PEC cor- Lei Complementar. IPMF – Imposto
respondente à criação daquele imposto. Provisório sobre a Movimentação ou
Embora o referido writ pleiteasse a a Transmissão de Valores e de Crédi-
incompatibilidade da PEC, no particular tos e Direitos de Natureza Financeira
aspecto da criação do IPMF, com o princí- – IPMF Artigos 5, par. 2., 60, par. 4,
pio da anualidade da lei tributária (cláusula incisos I e IV, 150, incisos III, ‘b’, e VI,
pétrea), em decorrência de certo lapso tem- ‘a’, ‘b’, ‘c’ e ‘d’, da Constituição Fede-
poral entre a sua impetração e a decisão da ral. 1. Uma Emenda Constitucional,
Suprema Corte, ele perdeu objeto em razão emanada, portanto, de Constituinte
da conversão da referida PEC na Emenda derivada, incidindo em violação a
Constitucional no 3/1993: Constituição originária, pode ser
“Mandado de Segurança. Projeto de declarada inconstitucional, pelo Su-
Emenda Constitucional n o 48/91, premo Tribunal Federal, cuja função
que autoriza a União a instituir novo precípua é de guarda da Constituição
imposto (IPMF) para ser exigido no (art. 102, I, ‘a’, da CF). 2. A Emenda
mesmo exercício de sua criação. Pre- Constitucional no 3, de 17.03.1993, que,
tensão de Deputado Federal a que no art. 2, autorizou a União a instituir o
lhe seja reconhecido o direito de não IPMF, incidiu em vício de inconstitucio-
ter de manifestar-se sobre o referido nalidade, ao dispor, no parágrafo 2 desse
projeto, que considera violador do dispositivo, que, quanto a tal tributo,
princípio da anualidade tributária. não se aplica ‘o art. 150, III, ‘b’ e VI’, da
Perda da legitimidade do Impetrante, Constituição, porque, desse modo, violou
por modificação da situação jurídica os seguintes princípios e normas imu-
no curso do processo, decorrente da táveis (somente eles, não outros): 1. – o
superveniente aprovação do projeto, princípio da anterioridade, que é garantia
que já se acha em vigor. individual do contribuinte (art. 5, par. 2,
Hipótese em que o mandado de segu- art. 60, par. 4, inciso IV e art. 150, III,
rança, que tinha caráter preventivo, ‘b’ da Constituição); 2. – o princípio da
26
ADI n. 815 – STF – Pleno – Rel. Min. Moreira 27
MS no 21.648-4/DF – STF – Pleno – Rel. p/ ac.
Alves – j. 28.03.1996 – DJU 10.05.1996. Min. Ilmar Galvão – j. 05.05.1993 – DJU 19.09.1997.

Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 217


imunidade tributária recíproca (que Senado Federal, da expressão ‘obser-
veda à União, aos Estados, ao Distrito vado o disposto no § 6o do art. 195 da
Federal e aos Municípios a institui- Constituição Federal’, que constava
ção de impostos sobre o patrimônio, do texto aprovado pela Câmara dos
rendas ou serviços uns dos outros) e Deputados em 2 (dois) turnos de vota-
que é garantia da Federação (art. 60, ção, tendo em vista que essa alteração
par. 4, inciso I, e art. 150, VI, ‘a’, da não importou em mudança substan-
C.F.); 3 – a norma que, estabelecendo cial do sentido do texto (Precedente:
outras imunidades impede a criação ADC no 3, rel. Min. Nelson Jobim).
de impostos (art. 150, III) sobre: (...). 4. Ocorrência de mera prorrogação da
Ação Direta de Inconstitucionalidade Lei no 9.311/96, modificada pela Lei
julgada procedente, em parte, para no 9.539/97, não tendo aplicação ao
tais fins, por maioria, nos termos do caso o disposto no § 6o do art. 195 da
voto do Relator, mantida, com relação Constituição Federal. O princípio da
a todos os contribuintes, em caráter anterioridade nonagesimal aplica-se
definitivo, a medida cautelar, que somente aos casos de instituição ou
suspendera a cobrança do tributo no modificação da contribuição social, e
ano de 1993” (grifos nossos).28 não ao caso de simples prorrogação
Ainda cuidando-se da seara tributária, da lei que a houver instituído ou
o princípio da anterioridade nonagesimal modificado. 3 – Ausência de inconstitu-
das contribuições sociais, previsto no § 6o cionalidade material. O § 4o, inciso IV do
do art. 195 da Constituição, foi reconhecido art. 60 da Constituição veda a deliberação
expressamente como cláusula pétrea pela quanto a proposta de emenda tendente a
Suprema Corte em verdadeiro obiter dictum abolir os direitos e garantias individuais.
na solução de controvérsia que cuidava da Proibida, assim, estaria a deliberação de
prorrogação da CPMF.29 Eis o teor do trecho emenda que se destinasse a suprimir do
da ementa que interessa destacar: texto constitucional o § 6o do art. 195, ou
“(...). 2 – Proposta de emenda que, que excluísse a aplicação desse preceito
votada e aprovada na Câmara dos De- a uma hipótese em que, pela vontade do
putados, sofreu alteração no Senado constituinte originário, devesse ele ser
Federal, tendo sido promulgada sem aplicado. A presente hipótese, no entan-
que tivesse retornado à Casa iniciado- to, versa sobre a incidência ou não desse
ra para nova votação quanto à parte dispositivo, que se mantém incólume no
objeto de modificação. Inexistência de corpo da Carta, a um caso concreto. Não
ofensa ao art. 60, § 2o, da Constituição houve, no texto promulgado da emenda
Federal no tocante à supressão, no em debate, qualquer negativa explícita ou
implícita de aplicação do princípio contido
28
ADI n. 939/DF – STF – Pleno – Rel. Min. Sydney no § 6o do art. 195 da Constituição. 4 –
Sanches – j. 15.12.1993 – DJU 18.03.1994. Para uma
Ação direta julgada improcedente”
síntese comparativa entre as principais dificuldades
enfrentadas pela jurisprudência brasileira, norte- (grifos nossos).30
americana e alemã no trato de casos que envolveram No campo previdenciário, a instituição
a apreciação da constitucionalidade de emendas aos de bases de cálculo diferenciadas para a
seus respectivos textos constitucionais, confira: VIEI- contribuição previdenciária incidente sobre
RA, 1999, p. 178-183.
29
Note que, neste caso, a ação foi julgada improce- vencimentos e pensões de servidores e pen-
dente porque cuidou da mera aplicação ou não do prin- sionistas da União de um lado, e de servido-
cípio da anterioridade nonagesimal ao caso concreto res e pensionistas dos Estados, do DF e dos
(prorrogação da CPMF), isto é, não tratou da tentativa
de abolir o referido princípio, hipótese em que, aí sim, 30
ADI no 2.666 – STF – Pleno – Rel. Min. Ellen
estaria configurada a violação à cláusula pétrea. Gracie – j. 03.10.2002 – DJU 06.12.2002.

218 Revista de Informação Legislativa


Municípios de outro, foi reconhecida como burla afrontaria os “direitos individuais da
arbitrária e inconstitucional pela Suprema segurança jurídica (CF, art. 5o, caput) e do
Corte, dado o tratamento discriminatório devido processo legal (CF, art. 5o, LIV)”. Eis
que afronta os princípios da capacidade o trecho da ementa que melhor esclarece a
contributiva e da isonomia tributária, este questão posta naqueles autos:
conjugado com o art. 5o, caput e § 1o, todos “(...). 2. A inovação trazida pela EC
considerados cláusulas pétreas. 52/06 conferiu status constitucional
A ementa desse caso contempla ainda à matéria até então integralmente re-
outras duas situações que foram decididas gulamentada por legislação ordinária
como constitucionais pelo Supremo Tribu- federal, provocando, assim, a perda
nal Federal. Contudo, na terceira situação da validade de qualquer restrição à
foi reconhecida a inconstitucionalidade, plena autonomia das coligações par-
verbis: tidárias no plano federal, estadual,
“(...) 3. Inconstitucionalidade. Ação distrital e municipal. 3. Todavia, a
direta. Emenda Constitucional (EC utilização da nova regra às eleições
no 41/2003, art. 4o, § único, I e II). gerais que se realizarão a menos de
Servidor público. Vencimentos. Pro- sete meses colide com o princípio
ventos de aposentadoria e pensões. da anterioridade eleitoral, disposto
Sujeição à incidência de contribui- no art. 16 da CF, que busca evitar a
ção previdenciária. Bases de cálculo utilização abusiva ou casuística do
diferenciadas. Arbitrariedade. Trata- processo legislativo como instrumen-
mento discriminatório entre servidores to de manipulação e de deformação
e pensionistas da União, de um lado, e do processo eleitoral (ADI 354, rel.
servidores e pensionistas dos Estados, Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93). 4.
do Distrito Federal e dos Municípios, de Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra
outro. Ofensa ao princípio constitucional garantia individual do contribuinte (ADI
da isonomia tributária, que é particu- 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ
larização do princípio fundamental da 18.03.94), o art. 16 representa garantia
igualdade. Ação julgada procedente individual do cidadão-eleitor, detentor
para declarar inconstitucionalidade originário do poder exercido pelos re-
das expressões ‘cinqüenta por cento presentantes eleitos e ‘a quem assiste o
do’ e ‘sessenta por cento do’, cons- direito de receber, do Estado, o necessário
tante do art. 4o, § único, I e II, da EC grau de segurança e de certeza jurídicas
n. 41/2003. Aplicação dos arts. 145, § contra alterações abruptas das regras
1o, e 150, II, cc. art. 5o, caput e § 1o, e 60, inerentes à disputa eleitoral’ (ADI 3.345,
§ 4o, IV, da CF, com restabelecimento rel. Min. Celso de Mello). 5. Além
do caráter geral da regra do art. 40, de o referido princípio conter, em si
§ 18. (...)”.31 mesmo, elementos que o caracteri-
Na seara eleitoral, o art. 16 da Consti- zam como uma garantia fundamental
tuição já foi reconhecido como “garantia oponível até mesmo à atividade do legis-
individual do cidadão-eleitor” e, como lador constituinte derivado, nos termos
tal, oponível “até mesmo à atividade do dos arts. 5, § 2o, e 60, § 4º, IV, a burla
legislador constituinte derivado”, cuja ao que contido no art. 16 ainda afronta
os direitos individuais da segurança
31
ADI no 3.105 – STF – Pleno – Rel. Min. Ellen jurídica (CF, art. 5o, caput) e do devido
Gracie, Rel. p/ ac. Cezar Peluso – j. 18.08.2004 – DJU
18.02.2005. No mesmo sentido: ADI no 3.128 – STF –
processo legal (CF, art. 5o, LIV). 6. A
Pleno – Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ ac. Cezar Peluso modificação no texto do art. 16 pela
– j. 18.08.2004 – DJU 18.02.2005. EC 4/93 em nada alterou seu con-

Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 219


teúdo principiológico fundamental. acepção mais abrangente do que o Título
Tratou-se de mero aperfeiçoamento I);34 ou outra noção ainda mais ampla?35
técnico levado a efeito para facilitar Em uma breve amostragem doutrinária
a regulamentação do processo eleito- acerca do conceito do que sejam os preceitos
ral. 7. Pedido que se julga procedente fundamentais passíveis de serem argüidos
para dar interpretação conforme no perante o Supremo Tribunal Federal nesta
sentido de que a inovação do art. 1o novel ação, impõe-se reconhecer que: 1)
da EC 52/06 somente seja aplicada tais hipóteses não foram previstas em lei; 2)
após decorrido um ano da data de caso sejam preceituadas em legislação ain-
sua vigência”.32 da a ser publicada, então caberá apreciá-la e
Como fecho desse tópico, traz-se in- verificar se está dentro dos limites impostos
teressante questão em torno da relação pela sistemática contida na Constituição; 3)
dos direitos fundamentais como cláusulas diante dessa omissão, conclui-se que vem
pétreas e dos “preceitos fundamentais” cabendo ao Supremo Tribunal Federal a
da ADPF, estabelecida no § 1o do art. 102 tarefa de afirmar em quais hipóteses será
da Constituição e regulamentada pela Lei possível o ajuizamento da ação.
no 9.882/99. Atualmente, a jurisprudência da Supre-
Qual é precisamente a definição sobre o ma Corte começa a oferecer certa “massa
que sejam os chamados “preceitos funda- crítica” para que se alcancem os principais
mentais”? Seriam eles somente os princí- contornos dessa definição. Por extrapolar o
pios fundamentais contidos no Título I da objeto de pesquisa neste estudo, opta-se em
Constituição da República?33 Ou seriam pinçar apenas uma decisão que relaciona de
os direitos e garantias fundamentais (em maneira interessante os temas ora estuda-
dos e os tais “preceitos fundamentais”.
32
ADI no 3.685/DF – STF – Pleno – Rel. Min. Ellen Trata-se de trecho do voto do Ministro
Gracie – j. 22.03.2006 – DJU 10.08.2006.
33
Paulo Napoleão Nogueira da Silva, já em 1992,
Gilmar Mendes na ADPF n o 33-MC, j.
sustentou que: “em primeiro lugar, cumpre dizer 29.10.03, DJU 06.08.04, cujo teor é o se-
que, por preceito fundamental, não parece adequado guinte:
entender-se todo o rol de direitos individuais contidos “É muito difícil indicar, a priori, os
no art. 5o, e menos ainda o dos direitos sociais contidos
no art. 7o”, sustentando que, para tais hipóteses, a pró-
preceitos fundamentais da Constitui-
pria Constituição previu remédios e vias processuais ção passíveis de lesão tão grave que
adequadas. E lançou a seguinte definição: “(...) parece justifique o processo e o julgamento
adequado identificar como preceitos fundamentais da argüição de descumprimento. Não
todos aqueles assim definidos pelo próprio consti-
tuinte, mas por inteiro no Título I, e não somente os
há dúvida de que alguns desses precei-
que se incluem no art. 1o do atual texto constitucional;
e, quanto às denominadas ‘cláusulas pétreas’ na sede
34
No entender de José Afonso da Silva (1995, p.
de que ora se trata, identificá-las como uma espécie 530): “Preceitos fundamentais’ não é expressão sinô-
de garantia material, implementadora de integridade nima de ‘princípios fundamentais’. É mais ampla,
mesma dos preceitos contidos no Título I, à exceção abrange a este e todas prescrições que dão o sentido
do próprio regime republicano, por não incluído entre básico do regime constitucional, como são, por exem-
elas. Mais precisamente, os princípios insculpidos nos plo, as que apontam para a autonomia dos Estados,
incisos I a IV do § 4o do art. 60 atuam como os instru- do Distrito Federal e especialmente as designativas
mentos materiais que têm por finalidade implementar de direitos e garantias fundamentais”.
os princípios fundamentais contidos no Título I; e, 35
Celso Ribeiro Bastos (2000) afirma que: “não
a vedação contida no caput do § 4o, como garantia deixam dúvidas quanto à caracterização de funda-
dessa instrumentalidade material”. Naquela oportu- mentais: a soberania, a cidadania, a dignidade da
nidade, o autor ainda escreveu que: “será necessário pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da
que venham classificadas e delimitadas as hipóteses livre iniciativa, o pluralismo político, a forma fede-
em que será possível identificar concretamente o rativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e
descumprimento argüível de preceito fundamental” periódico, a separação dos poderes e os direitos e
(SILVA, 1992, p. 117). garantias individuais”.

220 Revista de Informação Legislativa


tos estão enunciados, de forma explícita, efetividade das “garantias de eternidade”
no texto constitucional. (...) não se po- será obtida mediante a hermenêutica, que
derá deixar de atribuir essa qualifi- será capaz de revelar os princípios consti-
cação aos demais princípios protegidos tucionais que guardam estreita vinculação
pela cláusula pétrea do art. 60, § 4o, da com os princípios protegidos pelas cláusu-
Constituição (...). É fácil ver que a am- las pétreas, ainda que não expressamente
plitude conferida às cláusulas pétreas contemplados por elas.36
e a idéia de unidade da Constituição
(...) acabam por colocar parte signifi- 5. A cláusula pétrea como limite
cativa da Constituição sob a proteção material de reforma do Poder
dessas garantias. Tal tendência não Constituinte Derivado
exclui a possibilidade de um ‘enges-
samento’ da ordem constitucional, Inicialmente, impõe-se esclarecer uma
obstando à introdução de qualquer breve distinção terminológica, na qual en-
mudança de maior significado (...). dossamos a conclusão de Ingo Wolfgang
Daí afirmar-se, correntemente, que Sarlet: “Assim, reputamos como correta a
tais cláusulas hão de ser interpretadas posição que, à luz de nosso direito consti-
de forma restritiva. Essa afirmação tucional positivo, considera que o Consti-
simplista, ao invés de solver o proble- tuinte distinguiu as ‘emendas à Constitui-
ma, pode agravá-lo, pois a tendência ção’ e a ‘revisão’ como duas modalidades
detectada atua no sentido não de uma específicas de reforma constitucional”, tida
interpretação restritiva das cláusulas como gênero daquelas.37
pétreas, mas de uma interpretação 36
No mesmo sentido: “A garantia de determina-
restritiva dos próprios princípios por dos conteúdos da Constituição por meio da previsão
elas protegidos. Essa via, em lugar das assim denominadas ‘cláusulas pétreas’ assume,
de permitir fortalecimento dos prin- desde logo, uma dúplice função, já que protege os
conteúdos que compõem a identidade e estrutura
cípios constitucionais contemplados
essenciais da Constituição, proteção esta que, todavia,
nas ‘garantias de eternidade’, como assegura estes conteúdos apenas na sua essência, não
pretendido pelo constituinte, acar- se opondo a desenvolvimentos ou modificações que
reta, efetivamente, seu enfraqueci- preservem os princípios naqueles contidos. Com efei-
to, de acordo com a lição da doutrina majoritária, as
mento. Assim, parece recomendável ‘cláusulas pétreas’ de uma Constituição não objetivam
que eventual interpretação restritiva se a proteção dos dispositivos constitucionais em si, mas,
refira à própria garantia de eternidade sim, dos princípios neles plasmados, não podendo
sem afetar os princípios por elas protegi- estes ser esvaziados por uma reforma constitucional.
Neste sentido, é possível sustentar que as ‘cláusulas
dos. Essas assertivas têm a virtude de pétreas’ contêm, em verdade, uma proibição de rup-
demonstrar que o efetivo conteúdo das tura de determinados princípios constitucionais. Mera
‘garantias de eternidade’ somente será modificação no enunciado do dispositivo não conduz,
obtido mediante esforço hermenêutico. portanto, necessariamente a uma inconstitucionalida-
de, desde que preservado o sentido do preceito e não
Apenas essa atividade poderá revelar afetada a essência do princípio objeto da proteção. De
os princípios constitucionais que, ainda qualquer modo, é possível comungar o entendimento
que não contemplados expressamente de que a proteção imprimida pelas ‘cláusulas pétreas’
nas cláusulas pétreas, guardam estreita não implica a absoluta intangibilidade do bem consti-
tucional protegido” (SARLET, 2003, p. 380).
vinculação com os princípios por elas 37
Tratando-se da realidade brasileira, o autor pro-
protegidos e então, por isso, cobertos move a distinção daquelas duas espécies pelo aspecto
pela garantia de imutabilidade que delas prático: “Mesmo não havendo limitação quanto ao
número de emendas à Constituição, não nos parece
dimana” (grifos nossos).
que estas possam ser utilizadas como sucedâneo de
No trecho pertinente ao presente estudo, uma revisão de caráter mais abrangente do texto
o Ministro Gilmar Mendes ressalta que a constitucional. A revisão, modalidade excepcional

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A liberdade de conformação da Consti- pretação das cláusulas superconstitu-
tuição pelo legislador reformador é restrita, cionais [pétreas] capaz de assegurar
já que se submete às limitações que o impe- a proteção dos procedimentos demo-
de de modificar a identidade da Constitui- cráticos de tomada de decisão, das
ção (núcleo essencial) e o obriga a mantê-la instituições que asseguram o Estado
com a supremacia que lhe cabe na ordem de Direito e, fundamentalmente, de
jurídica nacional.38 De fato, grosso modo, todos aqueles direitos essenciais à
pode-se dizer que os limites ao poder de realização da dignidade humana, sem
reforma constitucional são de três catego- desautorizar o direito de cada gera-
rias: temporais (como aqueles previstos ção de realizar sua autonomia”.
nos §§ 1o e 5o do art. 61 da Constituição), A esse respeito, o autor identifica e
formais (exemplificados no art. 60, incisos distingue duas orientações “bastante
I a III, §§ 2o e 3o) e materiais (previstos no § antagônicas”: “Uma primeira neoliberali-
4o do art. 60).39 zante, e uma segunda que busca assegu-
Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 134) colo- rar os avanços sociais reconhecidos pela
ca com precisão o desafio de uma teoria das Constituição”.40
limitações materiais ao poder de reforma no Vários outros preceitos constitucionais
contexto constitucional brasileiro: poderiam ser considerados como limitações
“O grande desafio de uma teoria materiais implícitas ao poder de reforma,
das limitações materiais ao poder de como, por exemplo, destaca Adriano
reforma, dentro do quadro constitu- Sant’Anna Pedra (2006, p. 139-140): as nor-
cional brasileiro, é alcançar uma inter- mas que contêm os próprios limites explíci-
tos ao poder de reforma constitucional, ou
de alteração da Constituição, esgotou-se e pertence seja, o próprio § 4o do art. 60; a diminuição
ao nosso passado, remanescendo tão-somente as
emendas como instrumento de reformas da nossa
da competência dos Estados-membros, por
Constituição formal” (SARLET, 2003, p. 365-367). violar o princípio federativo; a eventual
38
Em outras palavras, convém ressaltar que: “Im- permissão da perpetuidade de mandatos;
porta ter sempre presente a noção de que também no as normas concernentes ao titular do poder
direito constitucional pátrio o Legislador, ao proceder
constituinte, do poder reformador e as re-
à reforma da Constituição, não dispõe de liberdade de
conformação irrestrita, encontrando-se sujeito a um lativas ao processo da própria emenda; os
sistema de limitações que objetiva não apenas a ma- fundamentos do Estado Democrático de
nutenção da identidade da Constituição, mas também Direito; o povo como fonte do poder; os
a preservação da sua posição hierárquica decorrente
objetivos fundamentais da nação; os princí-
de sua supremacia no âmbito da ordem jurídica, de
modo especial para evitar a elaboração de uma nova 40
Em explicação, discorre que: “Por um lado, vê-se
Constituição pela via da reforma constitucional”
a necessidade de amplas reformas como uma maneira
(SARLET, 2003, p. 368).
de permitir o ingresso do Brasil numa economia glo-
39
São precisamente os limites materiais explícitos
balizada e altamente competitiva. Para esses setores
que nos interessam neste momento: “A existência há diversos aspectos referentes aos direitos sociais,
de limites materiais justifica-se, portanto, em face da previdenciários e ao papel do Estado, assegurados
necessidade de preservar as decisões fundamentais pela Constituição de 1988, que criam obstáculos à
do Constituinte, evitando que uma reforma ampla e liberalização e ao conseqüente desenvolvimento
ilimitada possa desembocar na destruição da ordem econômico do País. Para esses reformistas os limites
constitucional, de tal sorte que, por detrás da previsão traçados pelas cláusulas superconstitucionais devem
destes limites materiais, se encontra a tensão dialética e ser interpretados de maneira bastante restrita, prin-
dinâmica que caracteriza a relação entre a necessidade cipalmente no que se refere à admissibilidade de
de preservação da Constituição e os reclamos no sentido limitação de direitos trabalhistas e previdenciários”.
de sua alteração”. Em síntese: “Verifica-se, portanto, Em distinção, ressalta que: “Por outro lado, uma in-
que o problema dos limites materiais à reforma cons- terpretação extensiva da superconstitucionalidade é
titucional passa inexoravelmente pelo equacionamento defendida como forma de bloquear reformas capazes
de duas variáveis, quais sejam, a permanência e a mu- de suprimir o cerne social-democrata da Constituição”
dança da Constituição” (SARLET, 2003, p. 368 e ss.). (VIEIRA, 1999, p. 137-138).

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pios das relações internacionais; os direitos Apesar de aparentemente opor-se aos
sociais; a definição da nacionalidade brasi- trechos anteriormente destacados, verifica-
leira; a autonomia dos Estados Federados e se, pela conclusão da articulista, que ela
Municípios; a organização bicameral do Po- pugna apenas por uma mudança na com-
der Congresso Nacional; a inviolabilidade preensão da própria noção de cláusula pé-
dos parlamentares; as garantias dos juízes; trea exatamente como destacamos no curso
a permanência institucional do Ministério deste trabalho. Nesse sentido, ela pugna
Público; as limitações do poder de tributar; que “as cláusulas serão pétreas por inte-
e os princípios da ordem econômica. grarem o núcleo essencial e imodificável
Em sentido aparentemente oposto, há da Constituição, e não por uma disposição
quem sustente uma maior flexibilização das formal” (NOGUEIRA, 2005, p. 92).
cláusulas pétreas, em razão da permanente É importante observar que eventual
tensão com o regime democrático, das rápi- decisão do Supremo Tribunal Federal
das transformações da Economia no cenário no exercício da jurisdição constitucional,
mundial atual, ou ainda, pela vinculação proferida no sentido da inconstituciona-
das gerações futuras, verbis: lidade de determinado dispositivo, pode
“Não é difícil ver como o poten- ser superada pelo Congresso Nacional,
cial de eficácia das Constituições “desde que a decisão do STF se baseie em
extensas e programáticas, como a norma constitucional que não ostente o
constituição brasileira de 1988, vem status de cláusula pétrea”. Nesse caso, a
diminuindo, à luz da intensificação decisão há de prevalecer justamente por
dos fluxos econômicos transnacionais se fundamentar na limitação material ao
e da desterritorialização das novas poder de reforma desrespeitado pelo Poder
formas de produção. Ao exigir for- Constituinte Derivado.42
mas e procedimentos jurídicos mais
poderia recusar-se a vincular suas decisões aos impe-
flexíveis, a integração dos mercados rativos dos mercados globalizados, para preservar a
e a formação de blocos comerciais independência na definição de sua agenda política.
reduziram o alcance dos poderes Porém, isso levaria a um isolamento financeiro, tec-
legislativo, administrativo e judicial, nológico e comercial, em face da crescente mobilidade
dos fatores de produção, dos riscos de fuga em massa
antes considerados exclusivos dos Es- de capitais e das dificuldades de acesso a fontes de
tados, e diluíram a soberania nacional crédito” (NOGUEIRA, 2005, p. 87-88).
numa rede de foros internacionais e 42
Nas palavras do autor: “Note-se que, se o art.
organismos multilateriais. Com isso, 60 da CF/88 confere, claramente, ao Congresso Na-
cional, o poder de alterar as normas constitucionais
as regras daí advindas passaram a co- (poder constituinte derivado), compete-lhe atualizar
existir com as normas constitucionais, a Constituição, dispondo sobre a melhor configuração
competindo entre si em diferentes do direito constitucional positivo em dado momento
âmbitos de validez material, espacial histórico. Assim, não há óbice a que o Congresso apro-
ve emenda constitucional que, através da alteração da
e temporal e obrigando os governos norma constitucional que fundamentou decisão do
a rever seus ordenamentos jurídicos, STF sobre a inconstitucionalidade de uma lei, dispo-
para harmonizá-las”.41 nha de modo contrário à jurisprudência deste Excelso
Tribunal, desde que a decisão do STF se baseie em
41
Registre-se, ademais, que: “A globalização, com norma constitucional que não ostente status de cláu-
conseqüente internacionalização da oferta de crédito sula pétrea. A possibilidade de o Congresso Nacional
e aumento da volatilidade dos capitais, levou os superar jurisprudência constitucional do STF não se
mercados a substituírem a política como instância de verifica, todavia, quando o Supremo vislumbra a in-
regulação social. Assim, a exclusividade das estruturas compatibilidade de emenda constitucional com o teor
jurídicas do Estado foi posta em xeque, as margens de de cláusula pétrea. Isto porque, nesta hipótese, sendo o
autonomia das políticas macroeconômicas nacionais fundamento normativo da decisão judicial limite ma-
foram reduzidas e as políticas monetárias independen- terial imposto pelo constituinte originário ao derivado,
tes foram esvaziadas. Em princípio, qualquer governo restará aos insubmissos tão-somente a aprovação de

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6. As cláusulas pétreas e a vinculação Ingo Wolfgang Sarlet (2003, p. 378)
de gerações futuras coloca o problema da necessária tensão
entre a permanência da Constituição e sua
Interessante questão jurídica que se co- adaptabilidade à realidade nos seguintes
loca em torno dessa temática relaciona-se à termos:
vinculação (geralmente tida por ilegítima) “De concreto, resta, contudo, a perti-
de gerações futuras aos preceitos eleitos nente preocupação com a petrificação
como imutáveis (ou petrificados) pelas da ordem constitucional, justificando
cláusulas pétreas ou superconstitucionais. a elaboração de propostas de cunho
A questão que se coloca é saber até que conciliatório, sustentando que as
ponto pode a orientação adotada por de- ‘cláusulas pétreas’ não podem ser
terminados cidadãos, reunidos em Assem- compreendidas como limites abso-
bléia Nacional Constituinte – e, portanto, no lutos à reforma da Constituição, já
exercício do Poder Constituinte Originário que é necessário alcançar-se certo
–, influenciados por certo momento histó- equilíbrio entre a indispensável esta-
rico que vivenciaram, vincular o elevado bilidade constitucional e a necessária
poder de autogoverno do povo pelas ge- adaptabilidade da Constituição à
rações futuras. realidade, não sendo exigível que as
A premissa básica desse questiona- gerações futuras fiquem eternamente
mento surge com a verificação de que a vinculadas a determinados princípios
realidade dinâmica subjacente ao texto e valores consagrados pelo Cons-
constitucional pode modificar-se através tituinte em determinado momento
dos tempos e, como decorrência disso, histórico, o que, em outras palavras,
incumbe à Constituição adequar-se a essas significaria chancelar os temores de T.
evoluções sociais, culturais e políticas. Jefferson no sentido de que os mortos
Rodrigo Brandão explica que “as cláu- pudessem, de certa forma, impor sua
sulas pétreas consistem apenas em um dos vontade aos vivos”.44
fatores que aumentam o grau de rigidez Sob outra perspectiva, Oscar Vilhena
constitucional de um sistema, não se reve- Vieira destaca que: “Através das limitações
lando, necessariamente, incompatíveis com constitucionais, as gerações futuras terão
a democracia”. De fato, variados outros
fatores atuam nessa equação, como o autor de reforma, (iii) mais ativista for a jurisprudência
demonstra.43 constitucional da Suprema Corte, e (iv) mais abran-
gente, específico, e ‘amoral’ for o elenco de cláusulas
nova Constituição, restando vedada a via da emenda pétreas, mais amplamente a vontade da geração atual
constitucional” (BRANDÃO, 2007, p. 8-9). estará vinculada às deliberações dos constituintes, e,
43
Ele critica a visão reducionista de entender a via de conseqüência, mais se restringe a democracia”
previsão de cláusulas pétreas como o governo dos (BRANDÃO, 2007, p. 18)
mortos sobre os vivos: “Por fim, convém ressaltar o 44
O autor prossegue ainda asseverando que: “Nes-
caráter reducionista de afirmar-se que o só-fato da te contexto, houve quem se posicionasse a favor da
previsão de cláusulas pétreas implicaria um governo revisibilidade das cláusulas sobre os limites à reforma
dos mortos sobre os vivos. Com efeito, a aferição do constitucional, desde que fosse viabilizada a partici-
grau de rigidez de um sistema constitucional concreto pação direta do povo, na condição de titular do Poder
depende da análise conjunta de um amplo espectro de Constituinte, neste processo, outorgando às reformas
fatores, dentre os quais (i) a extensão e o detalhamento certo grau de legitimação. Todavia, cremos que tam-
do texto constitucional, (ii) o grau de dificuldade do bém esta alternativa seja questionável, isto sem falar
processo de reforma, (iii) a concepção de hermenêu- na ausência de previsão expressa a respeito na nossa
tica constitucional prevalecente na Suprema Corte, Constituição, a despeito das sugestões formuladas
e (iv) a amplitude, a forma de descrição (regras e por ocasião da discussão da revisão constitucional”
princípios) e a carga axiológica do rol de cláusulas (SARLET, 2003, p. 378). No mesmo sentido, embora
pétreas, já que quanto (i) mais extenso e detalhado mais bem explicado: VIEIRA, 1999, p. 66-68. Confira
for o texto constitucional, (ii) mais difícil o processo ainda: BRANDÃO, 2007, p. 7.

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resguardados os seus direitos de se autogo- dois palpitantes temas jurídicos. Embora
vernarem, frente às ameaças das gerações essas questões remanesçam controvertidas
presentes de impor idéias absolutas que tanto na doutrina como também na juris-
vinculem o futuro”.45 prudência, releva notar como o seu cerne
Concluindo sua obra sobre o tema, o posiciona-se principalmente no campo da
autor discorre que: definição dos direitos fundamentais.
“Intepretadas adequadamente, as Com efeito, a noção de cláusula pétrea
cláusulas superconstitucionais não é relativamente simples, se comparada ao
constituirão obstáculo à democracia, conceito variável de “direito fundamental”.
mas servirão como mecanismos que, É precisamente aqui, nesta compreensão,
num momento de reformulação da que reside a controvérsia maior em torno da
ordem constitucional, permitirão a extensão e alcance da proteção dos direitos
continuidade e o aperfeiçoamento do e garantias constitucionais como cláusulas
sistema constitucional democrático, pétreas.
habilitando cada geração a escolher Acresça-se a toda essa controvérsia a re-
seu próprio destino sem, no entanto, alidade cultural, política e social atualmen-
estar constitucionalmente autorizada te experimentada pelo País, que remanesce
a furtar esse mesmo direito às gera- prisioneiro de interesses minoritários e
ções futuras”. (VIEIRA, 1999, p. 247) opressivos. É verdade que, no longo per-
A escolha do próprio destino de cada curso de civilização do País, importantes
geração deve ser precedida pela necessária passos foram conquistados desde o advento
vinculação à permissão da continuidade e da promulgação da Constituição “Cidadã”.
ao aperfeiçoamento do sistema constitucio- Todavia, beirando os vinte anos de idade,
nal democrático nos eventuais momentos esses mesmos compromissos assumidos
de reformulação da ordem constitucional. naquela ocasião foram, em grande parte,
Nesse sentido, a interpretação adequada flexibilizados e reconfigurados pelas (qua-
das cláusulas pétreas conduz ao aprimo- se) sessenta emendas constitucionais que
ramento do sistema democrático, e não à lhe modificaram o texto.
sua limitação ou restrição. Diante do exposto, sustenta-se aqui
a posição de que as cláusulas pétreas
7. Conclusão referidas no inciso IV do § 4o do art. 60
da Constituição Federal deve abranger
Ao longo deste breve trabalho, logra- todos os possíveis e imagináveis “direitos
mos destacar a complexidade do tema fundamentais” assegurados na Lei Maior.
relacionado à abrangência dos chamados Possivelmente esse maior grau de rigidez
“direitos fundamentais” e sua imbricada tenha sido responsável pela manutenção
correlação com as cláusulas pétreas que os do conteúdo essencial do texto constitu-
protegem. cional. De fato, apesar do elevado número
Por meio de lições doutrinárias e consa- de modificações que sofreu, a Constituição
grados precedentes jurisprudenciais, desta- permanece com o mesmo espírito dirigente,
caram-se relevantes aspectos acerca desses garantista e programático, no tocante às
45
Em seguida, o autor complementa que: “O
principais questões de relevo nacional, de
absolutismo das cláusulas superconstitucionais so- quando foi promulgada. Nesse sentido, o
mente se justifica se for um absolutismo em torno das cerne mantém-se preservado.
condições essenciais à autonomia presente e futura. Expandir o âmbito de proteção das
Nesse sentido, devem ser habilitadoras das gerações
futuras, favorecendo a perpétua possibilidade de es-
cláusulas pétreas – pela elasticidade da
colha da melhor forma de organização constitucional” noção de “direitos fundamentais” –, longe
(VIEIRA, 1999, p. 226). de criar embaraços ao desenvolvimento,

Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 225


à adaptação da Constituição a realidade Eletrônica de Direito do Estado (REDE). , n. 10. Salvador:
subjacente e petrificar o autogoverno das Instituto Brasileiro de Direito Público, abr./maio/jun.
2007. Disponível em: <http://www.direitodoestado.
gerações futuras, garante que a Lei Maior com.br/rede.asp>. Acesso em: abr. 2008.
tenha realmente a centralidade merecida
no ordenamento nacional, seja respeitada MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito consti-
tucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
pelos demais ramos políticos e tenha os
frequentes excessos e arbítrios restringidos NOGUEIRA, Cláudia de Góes. A impossibilidade de
as cláusulas pétreas vincularem as gerações futuras.
pelo Poder Judiciário no exercício da juris-
Revista de Informação Legislativa. ano 42, n. 166, p. 79-
dição constitucional. 93. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições
Com efeito, enquanto o restante do ca- Técnicas, abr./jun. 2005.
minho civilizatório não for percorrido e o
PEDRA, Adriano Sant’Anna. Reflexões sobre a teoria
funcionamento das instituições nacionais das cláusulas pétreas. Revista de Informação Legislativa.
não for regido pela efetiva preocupação ano 43, n. 172, p. 135-148. Brasília: Senado Federal,
com a res publica, impõe-se que, em con- Subsecretaria de Edições Técnicas, out./dez. 2006.
trapartida, as limitações constitucionais ao PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação consti-
Poder Público sejam cada vez mais obser- tucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao
vadas e respeitadas. estudo das restrições aos direitos fundamentais na
perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006.

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ANDRADE, Fábio Martins de. Ensaio sobre o inciso 2003.
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32, n. 147, p. 175-198. São Paulo: Revista dos Tribunais,
positivo. 10 ed. São Paulo: Malheiros, 1995.
maio 2007.
SILVA, Paulo Napoleão Nogueira da. A evolução do
BASTOS, Celso Ribeiro; VARGAS, Alexis Galiás de
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las pétreas e democracia: uma proposta de justificação justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder
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