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2 Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, Belo Horizonte, Itatiaia, 1998, p. 151.
3 Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, 23ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 124.
4 Roberto Simonsen, História Econômica do Brasil (1500/1820), 8ª ed., São Paulo, Nacional, 1978, p. 150.
para o oeste5. Esse fato se torna mais importante na medida em que, sob diversos aspectos,
a pecuária teve características diferentes da economia açucareira, como a divisão dos
rebanhos e das terras, e principalmente, a possibilidade de ascensão social do vaqueiro.
O reduzido número de estudos sobre essas questões quando comparados com os estudos
sobre a economia litorânea, realizados principalmente nas primitivas regiões pastoris e em
grande parte baseados na documentação impressa, deu espaço à cristalização de certos
temas que ainda não foram revistos ou problematizados pela historiografia atual.
Afirmados desde o relato de Antonil sobre os currais do São Francisco6, alguns desses
“mitos”, continuam sendo reproduzidos nas melhores análises sobre o sertão, sem uma
verificação crítica dos seus conteúdos, como a possibilidade de ascensão social dos
vaqueiros que trabalhavam nas fazendas.
Praticamente todos os historiadores são unânimes em afirmar que, depois de cinco anos de
trabalho sem qualquer tipo de remuneração por parte do fazendeiro, o vaqueiro tinha
direito a ¼ das crias, com as quais poderia se estabelecer por conta própria e se tornar
independente. Mulatos, mestiços e forros, segundo Capistrano de Abreu, tinham na
pecuária uma atividade satisfatória, pois alimentavam a esperança de um dia se tornarem
também fazendeiros e “tal esperança facilmente pode realizar-se, porque os vaqueiros são
pagos em gêneros, de modo que em poucos anos têm semente com que começar
vantajosamente a luta pela existência”7. “Depois de quatro ou cinco anos de serviço,
começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar
fazendas por sua conta”8, escreve Simonsen. O vaqueiro ainda, segundo Boxer, levava
“existência laboriosa e saudável” e, em geral, nada ganhava pelos primeiros quatro ou
cinco anos em que ficava num sítio. Passava então a receber um de cada quatro bezerros
nascidos, “podendo nutrir a esperança de um dia iniciar o negócio por sua própria conta.
Costumava fazer isso, alugando um trato de terra do proprietário para o qual trabalhava”9.
5 Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil. Dores de crescimento de uma sociedade colonial. 3ª ed., RJ, Nova
7 Capistrano de Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, RJ, Livraria Briguiet,1960, p. 115.
13 Pedro Puntoni, A Guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão. Nordeste do Brasil, 1650-1720.
20 Oliveira Viana, Populações meridionais do Brasil, em Intérpretes do Brasil, coordenação, seleção de livros e prefácio
de Silvano Santiago. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A. , 2000, p. 1029.
21 Cf. Censo Agropecuário 1995-1996, Bahia, IBGE, 1996, p. 32.
Com exceção dos estudos que apontamos acima e alguns mais recentes, que se concentram
em aspectos específicos do povoamento do sertão, como as missões catequéticas no vale
do São Francisco22, temas como a possibilidade de ascensão social no sertão e a presença
dos pequenos proprietários na economia sertaneja. Do período da expansão colonial em
direção ao sertão, a historiografia reteve, sobretudo, a idéia de que eram possíveis, ao
vaqueiro, o enriquecimento e a ascensão social e a noção de adaptabilidade natural da mão-
de-obra indígena à pecuária.
Isto é mais importante na medida em que, enquanto representação da realidade com o
objetivo de manter uma determinada ordem estabelecida, a possibilidade de ascensão
social do vaqueiro pode ser, antes, uma das causas da situação de miséria e marginalidade
no sertão da Bahia, em meados do século XVIII. Conforme relato do Pe. Januário de Sousa
Pereira, do Arcebispado da Bahia, que visita Jeremoabo, em 1757, existiam na região 152
fazendas ou povoações na freguesia, a maior parte habitada apenas pelo “curraleiro”, com
dois ou mais escravos do senhorio para cuidar do gado. Quase todas pertenciam à Casa da
Torre, apenas 12 fazendeiros eram donos do gado e somente um era “dono” das próprias
terras cerca de 1.400 habitantes. Desses, a maioria vivia em choupanas de palha, “sendo
essa gente a mais pobre”. Alguns eram vaqueiros, “tudo o mais é gente ociosa, sem
ocupação alguma, malfeitores e foragidos [...] não poucos vivem como bandoleiros, porque
não tem casa...”23.
Pouco mais de cem anos após o relato do Pe. Pereira, a pobreza de inúmeros povoados do
sertão do São Francisco ainda impressionava os que visitavam a região, como o engenheiro
baiano Teodoro Sampaio, em 187924. Acompanhando a Comissão Hidráulica, que tinha
por objetivo estudar e propor o melhoramento dos portos do Brasil e a navegação interior
dos grandes rios, Sampaio viaja pelo Rio São Francisco e a chapada diamantina
descrevendo aspectos topográficos e geológicos da região e fornecendo informações
22 Nesse sentido, ver Maria Cristina Pompa, op. cit. e Bartira F. Barbosa, Índios e missões. A colonização do
médio São Francisco pernambucano nos séculos XVII e XVIII. Recife, dissertação de Mestrado, UFPE, 1991.
23 Relação da Freguezia de S. João Baptista do Jerimuabo do Certão de Cima, do Arcebispado da Bahia, pelo Padre
Januário José de Sousa Pereira, 1757, in Almeida, Eduardo C., Inventário dos Documentos relativos ao Brasil existentes
no Arquivo de Marinha e Ultramar, Anais da Biblioteca Nacional, vol. 31, doc. 2.171, p. 228/233.
24 Teodoro Sampaio, O Rio São Francisco e a chapada diamantina, 2ª ed., Salvador, Progresso Ed., 1955
preciosas sobre a diversidade econômica do sertão. Apesar de verificar a existência de um
comércio intenso de vários produtos com o litoral e outras regiões do sertão, o que
predominava era a presença de povoados voltados para uma economia de subsistência,
conforme analisada por Celso Furtado, destinada apenas à alimentação local e à produção
artesanal.
Qual a causa disso? São muitas, sem dúvida, mas parece claro que a pobreza de certas
regiões do sertão deve ser associada ao domínio secular das terras e da mão-de-obra pelos
“senhores da terra”. É necessário, portanto, confrontar as informações contemporâneas
sobre a estrutura social sertaneja que chegaram até nós a partir de relatos de viagens,
memórias, etc., com outros tipos de documentos contemporâneos, como “censos”
econômicos e demográficos, mapas com a localização das fazendas, etc., buscando os
indícios que confirmem a possibilidade de ascensão social dos antigos vaqueiros, ou que,
ao contrário, contradigam essas afirmações, revelando uma estrutura profundamente
desigual e um mecanismo de conservação da ordem estabelecida.
Maria Fátima de Melo Toledo é Mestre em História Social pela USP e doutoranda na
mesma instituição.
e-mail: fmtoledo@uol.com.br