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CC 27 – Título: Instituições e Grupos sociais na Bahia setecentista

Coordenadora: Avanete Pereira Sousa

A POSSIBILIDADE DE ASCENSÃO SOCIAL DO VAQUEIRO NO


SERTÃO DO SÃO FRANCISCO: UMA ANÁLISE
HISTORIOGRÁFICA.

Autor: TOLEDO, Maria Fátima de Melo

Alguns dos principais historiadores brasileiros ressaltam que, apesar de se constituir, no


período colonial, numa atividade acessória, a pecuária “teve um papel extraordinário no
desbravamento e na ocupação de vastas áreas do Brasil atual”1. Para Capistrano de Abreu,
um dos primeiros a chamar a atenção para o sertão, a criação do gado vacuum foi a solução
encontrada para o povoamento das zonas interiores, porque este “dispensava a proximidade
da praia, pois como as vítimas dos bandeirantes a si próprio transportava das maiores
distâncias”2. Considerada por Caio Prado Jr. uma atividade subsidiária, destinada a
amparar e permitir a realização das atividades que tinham por objetivo o comércio externo
− a agricultura, a mineração e o extrativismo − a pecuária é, apontada pelo historiador de
Formação do Brasil Contemporâneo como um dos principais fatores que determinaram a
penetração do povoamento pelo interior da colônia3.
Da mesma forma, Roberto Simonsen vê na criação do gado, um dos fatores econômicos
que permitiram a ocupação do sertão e a “manutenção de tão dilatadas áreas”4. Charles
Boxer, por sua vez, considera que, “embora menos espetacular” que a zona açucareira, a
contribuição da pecuária é igualmente importante, por ter provocado o avanço dos colonos

1 Teresa S. Petrone, op. cit., p. 218.

2 Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial, Belo Horizonte, Itatiaia, 1998, p. 151.

3 Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo, 23ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 124.

4 Roberto Simonsen, História Econômica do Brasil (1500/1820), 8ª ed., São Paulo, Nacional, 1978, p. 150.
para o oeste5. Esse fato se torna mais importante na medida em que, sob diversos aspectos,
a pecuária teve características diferentes da economia açucareira, como a divisão dos
rebanhos e das terras, e principalmente, a possibilidade de ascensão social do vaqueiro.
O reduzido número de estudos sobre essas questões quando comparados com os estudos
sobre a economia litorânea, realizados principalmente nas primitivas regiões pastoris e em
grande parte baseados na documentação impressa, deu espaço à cristalização de certos
temas que ainda não foram revistos ou problematizados pela historiografia atual.
Afirmados desde o relato de Antonil sobre os currais do São Francisco6, alguns desses
“mitos”, continuam sendo reproduzidos nas melhores análises sobre o sertão, sem uma
verificação crítica dos seus conteúdos, como a possibilidade de ascensão social dos
vaqueiros que trabalhavam nas fazendas.
Praticamente todos os historiadores são unânimes em afirmar que, depois de cinco anos de
trabalho sem qualquer tipo de remuneração por parte do fazendeiro, o vaqueiro tinha
direito a ¼ das crias, com as quais poderia se estabelecer por conta própria e se tornar
independente. Mulatos, mestiços e forros, segundo Capistrano de Abreu, tinham na
pecuária uma atividade satisfatória, pois alimentavam a esperança de um dia se tornarem
também fazendeiros e “tal esperança facilmente pode realizar-se, porque os vaqueiros são
pagos em gêneros, de modo que em poucos anos têm semente com que começar
vantajosamente a luta pela existência”7. “Depois de quatro ou cinco anos de serviço,
começava o vaqueiro a ser pago; de quatro crias cabia-lhe uma; podia assim fundar
fazendas por sua conta”8, escreve Simonsen. O vaqueiro ainda, segundo Boxer, levava
“existência laboriosa e saudável” e, em geral, nada ganhava pelos primeiros quatro ou
cinco anos em que ficava num sítio. Passava então a receber um de cada quatro bezerros
nascidos, “podendo nutrir a esperança de um dia iniciar o negócio por sua própria conta.
Costumava fazer isso, alugando um trato de terra do proprietário para o qual trabalhava”9.

5 Charles R. Boxer, A idade de ouro do Brasil. Dores de crescimento de uma sociedade colonial. 3ª ed., RJ, Nova

Fronteira, 2000, p. 247.


6 André João Antonil– Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711), São Paulo, Nacional, 1967.

7 Capistrano de Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, RJ, Livraria Briguiet,1960, p. 115.

8 Roberto Simonsen, op. cit., p. 154.

9 Charles Boxer, op. cit., p. 251.


Caio Prado Jr., igualmente, afirma que “o vaqueiro recebe assim, de uma só vez, um
grande número de cabeças que bastam para ir-se estabelecer por conta própria. Fá-lo em
terras que adquire, ou mais comumente, arrendando-as dos grandes senhores de sesmarias
do sertão. Forma-se com isto um tipo de fazenda em mão de proprietários modestos, que
habitam ordinariamente nas suas propriedades e participam inteiramente do trabalho e a
vida do sertão”10. A atividade pecuária representava, assim, para o colono sem recursos,
uma possibilidade de enriquecimento e ascensão social. Aquele que não dispunha de
recursos para iniciar por conta própria a criação, “tinha possibilidade de efetuar a
acumulação inicial trabalhando na fazenda de gado”, escreve Celso Furtado11. O vaqueiro
seria uma espécie de “sócio menor do proprietário”, como escreve Jacob Gorender,
parceiro nos resultados da produção. “Como tal, tinha a oportunidade de acumular certo
capital e benefício próprio e, eventualmente, converter-se em sitiante ou fazendeiro”12.
Somente na última década essa historiografia começou a ser questionada. Em 1998, Pedro
Puntoni sugeriu que o costume do “retalhamento” dos currais “não era a norma” e a
possibilidade do vaqueiro estabelecer-se por conta própria existia apenas “em teoria”13.
Duas são as principais fontes para estas afirmações, nas quais praticamente todos os
historiadores se baseiam: a primeira, de 1711, é o capitulo sobre a pecuária presente em
Cultura e Opulência do Brasil, do jesuíta Antonil, na qual o autor reconhece a enorme
concentração de terras no sertão da Bahia, em passagem célebre de sua crônica: “sendo o
sertão da Bahia tão dilatado...quase todo pertence a duas das principais famílias da mesma
cidade...”, os Garcia d’Ávila e Guedes de Brito.
A segunda, escrita por volta do final do século XVIII, é o Roteiro do Maranhão a Goiaz
pela Capitania do Piauhi. Segundo o autor anônimo, merecer um dia o nome de vaqueiro
era “toda a maior felicidade” que mulatos, mestiços e pretos forros podiam almejar.
“Vaqueiro, creador, ou homem de fazenda, são títulos honoríficos entre elles”14, afirmava.

10 Caio Prado Jr., op. cit., p. 191

11 Celso Furtado, op. cit., p. 59.

12 Jacob Gorender, O Escravismo Colonial, 5ª ed., SP, Ática, 1988, p. 439.

13 Pedro Puntoni, A Guerra dos Bárbaros. Povos indígenas e a colonização do sertão. Nordeste do Brasil, 1650-1720.

São Paulo, tese de doutoramento, FFLCH/USP, 1998, p. 24.


14 Anônimo, Roteiro do Maranhão a Goiaz pela Capitania do Piauhi, RIHGB, 1900, t.62, p. I, p. 88.
Com o gado que lucravam depois de quatro ou cinco anos de trabalho, os vaqueiros se
instalavam com seus rebanhos em novas fazendas no Maranhão, Pará e Piauí. O autor,
assim como Antonil, não faz, no entanto, nenhuma referência ao número de fazendas cujos
donos tivessem sidos originalmente vaqueiros.
Ao contrário, o que o autor registra é a grande extensão de terras ainda incultas, áridas,
desoladas, que havia nos sertões entre o rio São Francisco e a capitania do Piauí ou nos
sertões de Pernambuco, desde Cabrobó, ao norte, até a Barra do Rio Grande do Sul15. O
próprio relato do autor é no sentido de mostrar as possibilidades de povoamento e
exploração econômica dessas regiões que continuavam despovoadas, apesar da
oportunidade que a organização da pecuária oferecia, àqueles que não tinham recursos, de
se instalarem depois de cinco anos como fazendeiros.
Caio Prado também advertia que “este tipo [o pequeno fazendeiro] está longe de ser o
predominante”. Apesar de todas as vantagens que o sistema oferecia, o que prevalecia no
sertão era o grande proprietário absenteísta, senhor de inúmeras fazendas que vivia nos
centros do litoral e “cujo contato único com as propriedades consiste em receber-lhes o
rendimentos”16 das terras arrendadas ao antigos vaqueiros.
É bastante conhecido, no entanto, o estudo de Luiz Mott em relação ao Piauí, mostrando
que esse cenário caracterizado pelo fazendeiro absenteísta marcou somente os primórdios
da colonização daquela região. Segundo o autor, “um século após a conquista [do sertão
aos índios] − e daí por diante − a situação se revela completamente diversa daqueles
tempos pioneiros”17. Conforme quadro exposto pelo historiador, através de documentos
que mostram o movimento populacional no sertão do Piauí no final do século XVIII, as
propriedades rurais (fazendas e sítios) “cresceram na razão de 2,6, crescimento que se
explica pela conquista de novas áreas territoriais ao ‘gentio bravo’ e pelo retalhamento de
antigos latifúndios através da partilha por herança ou venda”18, ou seja, conforme a análise

15 Idem, pp. 80/81.

16 Caio Prado Jr., op. cit., p. 191.

17Luiz Mott, Piauí colonial: população, economia e sociedade, Teresina, Projeto


Petrônio Portela, 1985, p. 99.
18Idem, p. 100.
do autor, nesse período houve diminuição da concentração da terra no sertão do Piauí e
aumento do número de estabelecimentos rurais.
Esse cenário, porém, parece constituir uma exceção, pois em relação às demais regiões
pastoris, sobretudo no Médio São Francisco, os dados apontam para o domínio da
economia pecuária concentrado em mãos de um alguns poucos criadores, proprietários de
grandes extensões de terra, como mostrou Gorender19. A impossibilidade do surgimento de
pequenas fazendas de gado foi apontada por Oliveira Viana que, concentrando sua análise
no latifúndio e nas conseqüências que este trouxe para a estrutura da sociedade nacional,
mostrou que o regime pastoril era, na verdade, o “grande inimigo da pequena propriedade”.
Onde o grande criador aparece, os pequenos proprietários recuam e desaparecem. Além do
mais, observa o autor, a criação do gado só é rentável em grande escala; em pequena
escala, “é insuficiente como fonte de renda”20. Logo, a conseqüência das grandes fazendas
de gado do sertão nordestino pode ter sido a mesma dos grandes latifúndios do litoral:
impediram o surgimento de uma classe média rural de pequenos proprietários
independentes e manteve as grandes extensões de terra nas mãos de poucos.
De fato, ainda hoje no sertão da Bahia é bastante concentrada a distribuição de
estabelecimentos agropecuários. Segundo o Censo Agropecuário de 1970, 92,3% dos
estabelecimentos, com menos de 100 hectares, ocupavam cerca de 34% da área total de
estabelecimentos, enquanto apenas os 7,7% dos estabelecimentos restantes controlavam
66% dessa área. Nas últimas décadas, esse quadro se agravou, como mostram os números
do Censo de 1995-1996. Enquanto a porcentagem de estabelecimentos agropecuários com
menos de 100 hectares aumentou em pouco mais de 1%, passando para 93,5% do total de
estabelecimentos, a área ocupada pelos mesmos reduziu para 29,8%. No outro extremo, as
grandes unidades e latifúndios passaram a ocupar uma porcentagem de 70,2% da área total,
mostrando ainda que houve aumento da concentração fundiária nos últimos vinte e cinco
anos21.

19 Jacob Gorender, op. cit., p. 426.

20 Oliveira Viana, Populações meridionais do Brasil, em Intérpretes do Brasil, coordenação, seleção de livros e prefácio

de Silvano Santiago. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S.A. , 2000, p. 1029.
21 Cf. Censo Agropecuário 1995-1996, Bahia, IBGE, 1996, p. 32.
Com exceção dos estudos que apontamos acima e alguns mais recentes, que se concentram
em aspectos específicos do povoamento do sertão, como as missões catequéticas no vale
do São Francisco22, temas como a possibilidade de ascensão social no sertão e a presença
dos pequenos proprietários na economia sertaneja. Do período da expansão colonial em
direção ao sertão, a historiografia reteve, sobretudo, a idéia de que eram possíveis, ao
vaqueiro, o enriquecimento e a ascensão social e a noção de adaptabilidade natural da mão-
de-obra indígena à pecuária.
Isto é mais importante na medida em que, enquanto representação da realidade com o
objetivo de manter uma determinada ordem estabelecida, a possibilidade de ascensão
social do vaqueiro pode ser, antes, uma das causas da situação de miséria e marginalidade
no sertão da Bahia, em meados do século XVIII. Conforme relato do Pe. Januário de Sousa
Pereira, do Arcebispado da Bahia, que visita Jeremoabo, em 1757, existiam na região 152
fazendas ou povoações na freguesia, a maior parte habitada apenas pelo “curraleiro”, com
dois ou mais escravos do senhorio para cuidar do gado. Quase todas pertenciam à Casa da
Torre, apenas 12 fazendeiros eram donos do gado e somente um era “dono” das próprias
terras cerca de 1.400 habitantes. Desses, a maioria vivia em choupanas de palha, “sendo
essa gente a mais pobre”. Alguns eram vaqueiros, “tudo o mais é gente ociosa, sem
ocupação alguma, malfeitores e foragidos [...] não poucos vivem como bandoleiros, porque
não tem casa...”23.
Pouco mais de cem anos após o relato do Pe. Pereira, a pobreza de inúmeros povoados do
sertão do São Francisco ainda impressionava os que visitavam a região, como o engenheiro
baiano Teodoro Sampaio, em 187924. Acompanhando a Comissão Hidráulica, que tinha
por objetivo estudar e propor o melhoramento dos portos do Brasil e a navegação interior
dos grandes rios, Sampaio viaja pelo Rio São Francisco e a chapada diamantina
descrevendo aspectos topográficos e geológicos da região e fornecendo informações

22 Nesse sentido, ver Maria Cristina Pompa, op. cit. e Bartira F. Barbosa, Índios e missões. A colonização do

médio São Francisco pernambucano nos séculos XVII e XVIII. Recife, dissertação de Mestrado, UFPE, 1991.

23 Relação da Freguezia de S. João Baptista do Jerimuabo do Certão de Cima, do Arcebispado da Bahia, pelo Padre

Januário José de Sousa Pereira, 1757, in Almeida, Eduardo C., Inventário dos Documentos relativos ao Brasil existentes
no Arquivo de Marinha e Ultramar, Anais da Biblioteca Nacional, vol. 31, doc. 2.171, p. 228/233.
24 Teodoro Sampaio, O Rio São Francisco e a chapada diamantina, 2ª ed., Salvador, Progresso Ed., 1955
preciosas sobre a diversidade econômica do sertão. Apesar de verificar a existência de um
comércio intenso de vários produtos com o litoral e outras regiões do sertão, o que
predominava era a presença de povoados voltados para uma economia de subsistência,
conforme analisada por Celso Furtado, destinada apenas à alimentação local e à produção
artesanal.
Qual a causa disso? São muitas, sem dúvida, mas parece claro que a pobreza de certas
regiões do sertão deve ser associada ao domínio secular das terras e da mão-de-obra pelos
“senhores da terra”. É necessário, portanto, confrontar as informações contemporâneas
sobre a estrutura social sertaneja que chegaram até nós a partir de relatos de viagens,
memórias, etc., com outros tipos de documentos contemporâneos, como “censos”
econômicos e demográficos, mapas com a localização das fazendas, etc., buscando os
indícios que confirmem a possibilidade de ascensão social dos antigos vaqueiros, ou que,
ao contrário, contradigam essas afirmações, revelando uma estrutura profundamente
desigual e um mecanismo de conservação da ordem estabelecida.

PALAVRAS CHAVES: sertão, pecuária, representação

Maria Fátima de Melo Toledo é Mestre em História Social pela USP e doutoranda na
mesma instituição.
e-mail: fmtoledo@uol.com.br

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