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Revista Brasileira de História

versão impressa ISSN 0102-0188versão On-line ISSN 1806-9347


Rev. bras. Hist. v. 18 n. 36 São Paulo 1998
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01881998000200011

As Câmaras Municipais no Império Português: O Exemplo do Rio de


Janeiro

Maria Fernanda Bicalho


Universidade Federal Fluminense

Resumo

O presente artigo visa analisar o papel representado pelas Câmaras Municipais Ultrama-
rinas no interior do Império Colonial Português. Ele centra sua análise sobre a Câmara
do Rio de Janeiro ao longo dos séculos XVII e XVIII, no sentido de ilustrar a
composição das municipalidades, suas funções rotineiras, sua ação nos tempos de crise
e de guerra, e o tipo de suas demandas dirigidas aos representantes da Coroa nos dois
lados do Atlântico. Enquanto centro político-administrativo, de imposição de tributos,
de comércio e defesa, o Rio de Janeiro se tornou locus privilegiado do exercício do
domínio metropolitano sobre a vasta região do Atlântico-Sul. Este artigo pretende
discutir as tensões, negociações e compro-missos entre a política metropo-litana e o
papel de uma das mais importantes municipalidades no mundo luso-americano.
Palavras-Chave: Império Colonial Português; Câmaras Municipais; Rio de Janeiro.

Abstract

The present article analises the role played by the overseas municipal councils in
Portuguese Colonial Empire. It focus the Municipal Council of Rio de Janeiro during
the seventeenth and eighteenth centuries, in order to illustrate the composition of the
municipalities, their routine functions, their action in times of crisis and war, and the
kind of it's demands to the Crown representatives on both sides of the Atlantic. As the
center of political administration, tax collection, commerce, and defense, Rio de Janeiro
was the privileged stage for the exercise of metropolian dominance over the vast South-
Atlantic world. This article intends to discuss the tensions, negociations, and
compromises between metropolitan politics and the role of one of the most important
luso-american municipalities.

Key words: Portuguese Colonial Empire; Municipal Councils; Rio de Janeiro.


2

Em estudo amplamente divulgado e citado pela historiografia luso-brasileira, C. R.


Boxer afirma que "entre as instituições que foram carecterísticas do império marítimo
português e que ajudaram a manter unidas as suas diferentes colônias contavam-se o
Senado da Câmara e as irmandades de caridade e confrarias laicas." A seu ver, "a
Câmara e a Misericórdia podem ser descritas apenas com um ligeiro exagero, como os
pilares gêmeos da sociedade colonial portuguesa desde o Maranhão até Macau.
Garantiam uma continuidade que governadores, bispos e magistrados passageiros não
podiam assegurar". Conclui, portanto, que "uma descrição comparativa do seu
desenvolvimento e funções mostrará como os portugueses reagiram às diferentes
condições sociais que encontraram em África, na Ásia e na América, e até que ponto
conseguiram transplantar e adaptar com êxito estas instituições metropolitanas para
meios exóticos"1.

Elementos de unidade e de continuidade entre o Reino e seus domínios, pilares da


sociedade colonial portuguesa nos quatro cantos do mundo, as Câmaras Municipais
Ultramarinas foram igualmente órgãos fundamentais de representação dos interesses e
das demandas dos colonos. Partindo desse pressuposto, o presente artigo tem como
objetivo buscar nas instituições do Antigo Regime em Portugal, e sobretudo na
regulamentação e na dinâmica dos poderes concelhios no Reino, as raízes da
administração municipal ultramarina, tomando como estudo de caso a cidade do Rio de
Janeiro. Parece-nos fundamental enveredar pela análise destas instituições reinóis, na
medida em que uma série de mecanismos políticos, jurídicos e administrativos que as
distinguiram foram amplamente trasladados para o ultramar.

Isso não quer dizer, no entanto, que tenha havido uma simples transposição da
legislação ou das instituições peninsulares para as diferentes áreas do Império
Português. As municipalidades existentes nas mais remotas regiões ultramarinas, por
apresentarem problemas específicos, próprios de sua situação colonial, foram objeto de
uma política muitas vezes diferenciada e de uma legislação incessante por parte da
Metrópole, tanto no que se refere à sua constituição, quanto à regulamentação dos usos
e dos costumes da comunidade na qual se inseria.

As Câmaras Municipais no Reino e no Império

Vitorino Magalhães Godinho identifica na transformação das sisas em primeiro tributo


de âmbito nacional, um dos principais alicerces da constituição do Estado português.
Afirma terem sido as sisas - tributo que incidia sobre a compra e venda de toda a sorte
de bens - "um imposto de origem concelhia", que se transformara no "primeiro imposto
geral, definidor do Estado". Em vista disso conclui que "a concepção de `comunidade',
definidora do que é público, resultara de uma transposição à escala nacional de uma
maneira de encarar uma realidade social colectiva à escala local - é como que a noção
de `concelho' alargada a todo o reino"2.

Argumenta que o direito de cobrar as sisas fôra, no século XIV, concedido ao Rei pelas
Cortes por um período determinado. Durante a centúria posterior sofreram drástica
redução, compelindo o Estado a se transformar, ele próprio, em agente econômico ativo,
buscando "na navegação oceânica e respectivos tráficos, bem como em certas
actividades industriais novas, as rendas que a terra já não lhe dá[va]". De acordo com o
3

historiador português, através do movimento expansionista ultramarino, a ordem


jurídica emanada do poder central "organiza-se, precisa-se, codifica-se", levando ao, já
nas primeiras décadas dos quinhentos e sob nova mentalidade, surgimento acabado do
"Estado burocrático e mercantilista"3.

Se o comércio e o fisco, além da guerra, se constituíram em dois dos principais


elementos sobre os quais se formaram os Estados Modernos, dando vida à expansão
ultramarina, serão eles também as grandes chaves explicativas da relação entre colônias
e metrópoles, fundamentando toda a lógica do sistema colonial. E se, como afirma
Godinho, havia um elo de articulação entre a experiência comunitária - ou concelhia -
no Reino, e o exercício do poder régio numa escala nacional; nas colônias foram as
Câmaras, pelo menos nos dois primeiros séculos da colonização, os órgãos
fundamentais no gerenciamento de boa parcela senão do comércio, ao menos da defesa
e das rendas - tributos e donativos - impostos pela metrópole.

No ultramar, e especificamente no Brasil ao longo do século XVII, diante da dificuldade


da Metrópole em financiar as despesas militares da colônia, não raro se transferiu aos
colonos os custos de sua própria defesa. Dada a falta de recursos da Fazenda Real,
exausta de rendas devido ao ônus representado pelo movimento de Restauração -
seguida pela guerra e expulsão dos holandeses dos territórios coloniais - os habitantes
das praças marítimas da América assumiram, através de tributos e trabalhos, os altos
custos da manutenção do Império. Cabia-lhes administrar, através das Câmaras, o
pagamento de impostos perenes e temporários lançados pela metrópole em ocasiões
especiais, impor taxas ocasionais, arrendar contratos, arrecadar "contribuições
voluntárias" etc. Cabia também àqueles moradores arcar quase que inteiramente com os
custos da defesa, recaindo sobre suas rendas - ou sobre as rendas arrecadadas pelas
Câmaras - a obrigatoriedade do fardamento, sustento e pagamento dos soldos das tropas
e guarnições, a construção e o reparo das fortalezas, o apresto de naus guarda-costas
contra piratas e corsários, a manutenção de armadas em situações especiais e em
momentos de ameaças concretas, a execução de obras públicas e de outros
melhoramentos urbanos.

De posse destas atribuições, as Câmaras das cidades litorâneas na América seguiram de


perto o modelo de suas congêneres reinóis, às quais cabia igualmente velar pela
segurança das populações contra os ataques inimigos e a pirataria. Referindo-se às
funções do poder municipal do Porto, em Portugal, Francisco Ribeiro da Silva afirma
que a organização da defesa militar da Cidade e do Termo contra eventuais agressores
externos constituía um poder primacial da governança (...), [e que] os vereadores do
Porto reputavam de grande valia e honra o exercício de tais atribuições. (...) Mas tanto
como um direito, a organização da defesa militar foi olhada como uma obrigação e um
serviço.

Nesse sentido o autor conclui que "as ações de prevenção, fortemente estimuladas pelo
Poder central, foram verdadeiramente assumidas pelas forças vivas da Cidade, embora
nem sempre dentro do melhor espírito de colaboração e de cordialidade." Identifica, a
partir do período de dominação castelhana, uma progressiva centralização do poder, e a
ingerência dos funcionários régios disputando com os vereadores as prerrogativas da
defesa, criando, a partir de então, conflitos e tensões entre estes e os oficiais militares
nomeados pelo poder central4.
4

Da mesma forma, a contribuição das Câmaras Municipais Ultramarinas, seja para a


defesa das praças coloniais, seja para a conquista de novas oportunidades de comércio,
não foi exclusiva das municipalidades lusas na América. Também o Senado de Goa,
além de administrar fundos dirigidos à manutenção dos muros e fortificações da cidade
e à manutenção dos marinheiros e soldados das carreiras das Índias, mostrou-se
inúmeras vezes generoso - e interessado - nas expedições de conquista e de sustentação
de outras possessões portuguesas no Índico. Segundo Boxer, a Câmara de Goa
prontificou-se sempre a socorrer o erário régio permanentemente esgotado, e muitas das
armadas guarda-costas nunca se teriam feito ao mar sem as embarcações, os homens e
os cabedais fornecidos, na totalidade ou em parte, por aquele Senado. Conclui ter sido
ele, durante três séculos, uma das principais forças de sustentação do vulnerável Estado
da Índia, constituindo-se num poderoso elemento de governo e de continuidade frente à
grande mobilidade dos Vice-Reis e funcionários régios, substituídos a cada três anos5.

A situação da Câmara de Macau, devido à especificidade daquela colônia encravada no


seio do Império chinês, era bastante particular. Além de ser responsável pelo sustento da
guarnição da cidade, construção e reparo das fortalezas, e por financiar frotas para o
comércio com os diferentes entrepostos asiáticos e armadas de socorro às possessões
lusas no Oriente, arcava direta ou indiretamente com quase todos os gastos militares,
civis e eclesiásticos da colônia, com exceção apenas das despesas do colégio jesuítico.
A partir da segunda metade do século XVIII a Coroa transferiu-lhe todos os custos de
sustentação do bispado6.

Na América, por inúmeras vezes, frente a um perigo mais imediato ou a uma


necessidade mais urgente, as Câmaras das cidades coloniais se reuniram a fim de
estabelecer taxas, donativos ou contribuições voluntárias para subvencionar o reparo das
fortalezas, a construção de trincheiras ou o apresto de naus guarda-costas contra piratas
e corsários. Outras vezes, sobretudo no caso da longa permanência holandesa no
Nordeste, os mesmos vassalos eram sobrecarregados com os custos não só de sua
própria segurança, mas ainda das demais praças invadidas.

No caso do Rio de Janeiro, desde as primeiras investidas batavas ao Brasil, passando


pela conquista que fizeram dos portos de Angola, até a sua expulsão definitiva dos dois
lados do Atlântico, não raro seus moradores foram conclamados a contribuir para a
defesa de praças e territórios onde não eram "assistentes", ou ainda para despesas com
armadas destinadas a reconquistar e expulsar os invasores de outros pontos da colônia e
do Império. Esse "desvio de verbas" - baseado em impostos arrecadados em uma cidade
para que seu produto fosse aplicado em outras - inevitavelmente gerava insatisfação nos
colonos. Eram, no entanto, pródigos em contribuir quando o que estava em jogo era a
segurança de suas terras e negócios, de suas vidas, famílias e cabedais.

Em 2 de novembro de 1641, diante da reiterada ameaça holandesa àqueles mares do sul


- logo após a tomada de Luanda -reuniram-se na casa da Câmara do Rio de Janeiro os
vereadores, o então governador Salvador Correa de Sá, e mais "pessoas principais". A
razão era deliberar sobre a forma de contribuição destinada ao reparo e municionamento
das fortalezas "para opor resistência ao inimigo holandês". Decidiu-se então pelo
lançamento, através da Câmara, de uma subscrição voluntária e pela venda em hasta
pública dos chãos que ela administrava, fronteiriços ao mar cujo produto seria destinado
à construção de uma fortaleza na laje situada na entrada da baía, entre os dois fortes da
barra7.
5

Em 1648 aqueles mesmos moradores seriam novamente convocados, pelo mesmo


Salvador de Sá, a contribuir com um donativo, não para sua própria defesa e segurança,
mas para a organização de uma expedição cujo objetivo era a reconquista de Angola aos
holandeses. De acordo com Boxer, foram arrecadados - com grande "fervor patriótico" -
60.000 cruzados. Segundo Luiz Felipe de Alencastro, 70% do financiamento da
expedição comandada por Salvador de Sá era proveniente de fundos coletados junto aos
negreiros e senhores rurais do Rio de Janeiro. O fervor patriótico mencionado por Boxer
devia-se, portanto, ao interesse de comerciantes e plantadores fluminenses no
restabelecimento do tráfico negreiro e de um fornecimento regular de mão-de-obra,
senão exclusivamente para as plantações locais, ao menos em grande parte para a
revitalização do comércio com o Prata, que havia sido interrompido com a tomada pelos
batavos do entreposto africano. Assim sendo, a força naval que reconquistaria Angola -
composta de 11 naus e 04 patachos (barco à vela de dois mastros), com 1.200 homens
entre portugueses, colonos e índios - partira da baía da Guanabara a 12 de março de
1648, graças aos esforços e contribuições dos fluminenses, sem as quais, como
escreveria Salvador ao Rei, sua armada nunca se teria feito ao mar8.

Destes exemplos pode-se inferir que as Câmaras Coloniais foram pródigas não apenas
em administrar os tributos impostos pelo Reino, mas ainda em criar novos impostos.
Para Luciano Figueiredo, "a prática de lançar tributos `sobre si' conforme foi praticada
no Rio de Janeiro e Bahia para cobrir gastos com a defesa abriu um significativo
precedente na política fiscal ao possibilitar às Câmaras um direito apenas dos reis". A
seu ver, esta "experiência revela o conteúdo fortemente autônomo que alcançou a
fiscalidade voltada para a defesa", resvalando no risco "de se esvaziar a autoridade dos
administradores metropolitanos na colônia em detrimento da autonomia municipal"9.

O autor tem razão, e a importância deste dado talvez mereça uma breve incursão pelos
dogmas sobre os quais se constituíram as monarquias absolutistas no Antigo Regime,
especificamente a portuguesa. Em trabalho monumental sobre o assunto, Antônio
Manuel Hespanha afirma que os poderes do rei derivavam de um domínio geral e
eminente que, de acordo com os juristas da época, o mesmo possuía sobre todo o Reino
- e por conseqüência - sobre o território de suas colônias. Domínio - ou poder geral e
virtual de disposição - que lhe facultava o direito de impor tributos, configurando-se
estes, aliás, em uma das mais importantes prerrogativas régias10.

O fato das Câmaras Coloniais, além da simples administração dos impostos criados pela
metrópole, lançarem por sua conta taxas e arrecadações, demonstra inegavelmente uma
certa tendência ao auto-governo. A Câmara do Rio de Janeiro, além de "lançar tributos
sobre si", gozou, durante todo o século XVII, de uma autonomia impensável para quem
se detém no estudo de suas funções na centúria seguinte. Reveladora desta auto-gestão
administrativa é a representação que os vereadores em exercício no ano de 1645
escreveram ao monarca, referindo-se às propostas que seus antecessores haviam feito,
acerca das inquietações que, com a morte do Governador Luis Barbalho Bezerra, se
ocasionaram entre Duarte Correa Vasqueanes, a quem a Câmara e Cidadãos elegeram
para governar a terra, e o Sargento Mór Simão Dias Salgado que pretendia preferir-lhe,
e, consequentemente, entre o povo, e o presídio.

Citavam a provisão régia de 26 de setembro de 1644, pela qual o Rei fizera mercê ao
Senado, concedendo-lhe a faculdade de no caso de morte do Governador, poder
nomear-lhe sucessor, contando apenas com a aprovação do Governador Geral na Bahia.
6

Em vista disso e frente às "parcialidades e intentos particulares" surgidos entre os


responsáveis pelo governo político e aqueles a quem cabia a administração militar da
cidade, os vereadores postulavam o direito adquirido de "que a mesma Câmara sem
outra alguma intervenção governe o político, e o Sargento Mór, que sendo pessoa
habilitada para este posto por Vossa Majestade se há de considerar idônea e com toda a
suficiência para o governo das armas"11.

Três anos mais tarde, pelo decreto de 06 de julho de 1647, D. João IV concedia o título
de Leal à cidade do Rio de Janeiro, ampliando as prerrogativas da Câmara, dentre as
quais o direito - ou o poder - de, "em ausência do governador e do Alcaide-Mor daquela
praça, faça a Câmara da dita Cidade o ofício de Capitão-Mor e tenha as chaves dela"12.

Embora mais diretamente submetidos aos representantes do poder Real - quer na pessoa
do Governador-Geral, quer no Tribunal da Relação -, pode causar espanto a liberdade
com que os oficiais da Câmara de Salvador intrometiam-se em assuntos políticos da
capitania, disputando a jurisdição dos ministros régios, em particular daquele nobre
corpo de magistrados. Uma consulta do Conselho Ultramarino de 1678 admoestava-os a
esse respeito, lembrando-lhes que o Rei "não tinha repartido com eles o cuidado de
como há de governar a sua monarquia"13.

Não obstante, a partir de finais do século XVII e início do XVIII, o exacerbado poder
político e econômico das Câmaras Municipais Ultramarinas foi sendo progressivamente
cerceado pela metrópole. A primeira medida neste sentido foi a criação, nas principais
cidades coloniais do Império, do cargo de Juiz de Fora, aumentando desta forma o poder
de interferência dos funcionários régios a nível do governo local. Em algumas destas
cidades, como nos casos de Goa e de Salvador, a Coroa modificou o sistema sobre o
qual se baseavam as eleições municipais, substituindo os pelouros pelo escrutínio a
cargo dos Juízes da Relação. Estes eram encarregados de compor listas trienais com o
nome dos eleitos, cabendo ao Vice-Rei escolher os componentes das vereações
seguintes.

Só muito mais tarde as eleições municipais no Rio de Janeiro sofreriam essa ingerência
dos representantes do poder régio e metropolitano. Contudo, já nos últimos anos do
século XVII, a área de jurisdição de seus governadores foi sendo sensivelmente
alargada, superpondo-se às atribuições da Câmara. Artur de Sá e Meneses (1697-1702)
foi o primeiro a ser investido com a graduação de Capitão-General. Seu poder - e de
seus sucessores - se alastrou de forma muito mais significativa não só sobre os negócios
do Rio, mas sobre toda a região centro-sul da colônia, prenunciando, desta forma, a
importância e a indiscutível centralidade prestes a ser assumida por aquele porto e
cidade no seio do Atlântico-Sul e nos cálculos econômicos e políticos da metrópole.

(AMPLIAÇÃO DOS PODERES DOS GOVERNADORES E DIMINUIÇÃO DO


PODER DAS CÃMARAS) Já a 02 de março de 1689 o monarca ampliou os poderes
dos governadores do Rio, determinando que pudessem prover os postos de oficiais da
milícia e das Ordenanças, tornando-os, sob esse aspecto, independentes do governo-
geral da Bahia. Antonio Pais de Sande, instituído no governo daquela capitania em
1693, fôra investido da mais ampla jurisdição em todos os assuntos relativos às minas
do Sul, pois já começavam a chegar à Corte notícias dos novos descobrimentos
efetuados pelos paulistas.
7

A 12 de janeiro de 1697, ao nomear Artur de Sá e Meneses Governador e Capitão-


General do Rio, o Rei lhe ordenara que incentivasse a exploração aurífera nas capitanias
do Sul. A fim de facilitar aos capitães-generais do Rio o desempenho da missão de
administradores das minas, a carta régia de 27 de dezembro de 1697 ampliou-lhes as
atribuições, tornando-os nessa matéria independentes da jurisdição do governo-geral,
submetendo-os apenas às deliberações da metrópole. Em novembro de 1698, nova carta
régia desligou a capitania de São Paulo do governo da Bahia, colocando-a sob a
dependência imediata do Rio de Janeiro. Por fim, em 1699, a ordem de 09 de novembro
colocou sob a jurisdição dos governadores do Rio a Colônia do Sacramento14.

Armava-se assim o tripé Rio de Janeiro-Minas-Colônia do Sacramento, que viria se


somar, em novos moldes - e com uma importância geo-política jamais vivida por aquela
capitania anteriormente -, ao triângulo negreiro Luanda-Rio de Janeiro-Buenos Aires
que marcou, segundo Luiz Felipe de Alencastro, a centúria precedente 15. A mesma
peculiaridade que dotara o Rio de Janeiro de uma grande autonomia no século XVII -
mormente sobre o Atlântico-Sul, exercendo um tráfico constante entre as costas da
África e a região platina - iria fazer com que, a partir de inícios do XVIII, os
fluminenses adentrassem os sertões auríferos, e povoassem, à custa de suas vidas e
cabedais, o litoral meridional da colônia.

O porto do Rio de Janeiro constituir-se-ia a partir de então - e por todo o século XVIII -
no principal receptor de escravos e mercadorias européias e asiáticas, assim como no
maior escoador das riquezas coloniais, transformando-se, como já dizia um membro do
Conselho Ultramarino, em "uma das pedras mais preciosas que ornam a coroa de Vossa
Majestade, de cuja conservação e bom governo depende a segurança das Minas, e ainda
de todo o Brasil"16. Será também, por esse mesmo motivo, o maior alvo do interesse e
da cobiça dos demais países europeus.

(MOMENTO E ÁREAS EM QUE A CAMARA PERDE PODER) Sucessivamente os


impostos arrecadados e os contratos administrados pela Câmara foram pouco a pouco
passando para a gestão da Fazenda Real. Após a invasão francesa de 1711, os cofres
régios passaram a arcar com a maior parcela dos custos referentes à defesa da cidade e
da capitania, assim como com a construção das principais obras públicas urbanas, como
trapiches, armazéns, alfândega, palácios, quartéis, aquedutos e fontes. O resultado deste
processo foi, para além do enfraquecimento econômico, político e administrativo da
Câmara, o fortalecimento da capacidade de intervenção dos funcionários régios -
governadores, oficiais militares e provedores da Fazenda - no espaço urbano e o
aumento de seu poder de governo sobre seus "cidadãos".

A "Nobreza da Terra"

Em 1642, os cidadãos da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro recebiam os


mesmos privilégios, honras e liberdades conferidos por carta régia de 1º de junho de
1490 aos cidadãos do Porto. Quanto a estes últimos, D. João justificaria tal graça,
devido aos "muitos e extremados serviços, que sempre os Reis passados receberam, e
nós recebido temos, da nossa mui nobre e leal Cidade do Porto e cidadãos dela, com
muita lealdade e fidelidade"17. Estendidos em meados do século XVII aos vassalos
8

ultramarinos, tais privilégios atribuíam-lhes certas prerrogativas de fidalguia18; e à


cidade, o título de "Leal".

Uma primeira observação a se fazer acerca deles é o fato de serem concedidos aos
"cidadãos" e não a todos os habitantes das cidades contempladas. Por cidadãos
entendia-se aqueles que por eleição desempenhavam ou tinham desempenhado cargos
administrativos nas Câmaras Municipais - vereadores, procuradores, juízes locais,
almotacéis etc - bem como seus descendentes.

A outra questão diz respeito ao significado da posse de tais privilégios no Antigo


Regime e na sociedade portuguesa - reinol e ultramarina - em especial. Poder-se-ia
começar a discuti-lo a partir da lógica da "sociedade de corte" e do "fetiche do
prestígio", tendo como parâmetro o magistral estudo de Norbert Elias para o caso
francês19. Mas seria enveredar por uma análise por demais extensa e que foge de certo
modo aos propósitos delineados aqui. De qualquer forma, também em Portugal a
concessão de honras e privilégios pelo Rei denotava um esforço da monarquia para
controlar a representação dos indivíduos e das ordens na sociedade, delimitando as
hierarquias, estruturando uma configuração peculiar da sociabilidade cortesã definida
pela máxima institucionalização das distinções, consagradas em títulos, tratamentos etc.
A exclusividade de conferição de títulos e mercês atribuía ao monarca o monopólio de
graduar e qualificar por seu próprio arbítrio, regulando as ordens, arbitrando sobre seus
conflitos, manipulando o antagonismo e a competitividade entre os súditos20.

Por outro lado, o ato régio de conferir honras e privilégios pode ser analisado como
elemento instituidor de uma "economia moral do dom"21, de acordo com a qual aqueles
beneficiados passariam a estar ligados ao monarca através de uma rede baseada em
relações assimétricas de troca de favores e serviços. Os historiadores que desenvolvem
este argumento são Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, ao afirmarem
que a comunicação pelo dom introduzia o benfeitor e o beneficiado numa economia de
favores. Estes eram de natureza diversa e variavam consoante a posição dos actores nos
vários planos do espaço social (e correlativa posse de capital econômico, político,
simbólico), (...) o que provocava um contínuo reforço económico e afectivo dos laços
que uniam, no início, os actores, numa crescente espiral de poder, subordinada a uma
estratégia de ganhos simbólicos, que se estruturava sobre os actos de gratidão e
serviço22.

Um terceiro ponto a frisar é que a concessão de honras e privilégios às Câmaras


Municipais, fosse no Reino, fosse especificamente no ultramar, correspondeu a um
processo de nobilitação de seus componentes, tornando-se mais um traço distintivo da
chamada "nobreza da terra". Embora todo o Império português tenha se construído
sobre a faina comercial, a eleição do corpo governativo da maioria das municipalidades
coloniais, como no caso da América, respeitavam dentro do possível o postulado
vigente no Reino de que os cargos concelhios deveriam ser preenchidos pela "nobreza
da terra". Isso não significava necessariamente que os oficiais concelhios, quer em
Portugal, quer nas colônias, fossem todos nobres na concepção estamental vigente no
Antigo Regime. Referindo-se às "oligarquias camarárias", Joaquim Romero Magalhães
e Maria Helena Coelho chamam a atenção para a cristalização de "um grupo social da
gente nobre da governança", afirmando que "o novo homem nobre é o antigo homem do
meio e cidadão". Argumentam que "este estrato de nobres, junto com o dos fidalgos
residentes nos núcleos urbanos sedes de concelhos, vai dominar completamente os
9

governos municipais ou senados: são os `vereadores homens de capa e espada'"23. Em


diferente estudo, Romero Magalhães considera a nobreza constitutiva das Câmaras
Municipais Portuguesas, "uma classe social formada dentro da Ordem ou estado popular
e que, pela sua conduta, modo de vida e exercício do governo concelhio, conseguiu ficar
nas bordas da Ordem da nobreza"24.

Forjava-se assim o conceito de nobreza civil ou política, abarcando aqueles que, embora
de nascimento humilde, conquistaram um grau de enobrecimento devido às ações
valorosas que obraram em nome do Rei, ou a cargos honrados que ocuparam a serviço
da República; diferenciando-se, portanto, da verdadeira nobreza derivada do sangue e
herdada dos antepassados. Segundo Nuno Monteiro, este novo conceito, já largamente
incorporado à literatura jurídica do século XVII, acabaria por se impor à prática de
muitas instituições portuguesas do Antigo Regime, "contribuindo não apenas para a
distinção entre nobreza e fidalguia (mais restrita), mas ainda para a efetiva `banalização'
das fronteiras da nobreza portuguesa, tornadas das mais difusas da Europa"25.

Desde o século XVII, quase todas as intervenções legislativas da Coroa, bem como a
atuação dos seus magistrados, encaminharam-se no sentido de garantir que os ofícios
nas vereações e os cargos nas Ordenanças fossem de fato ocupados pelos "principais"
das terras. Nesse sentido, a cristalização das oligarquias locais deveu-se, em parte, às
restrições à elegibilidade para os ofícios municipais verificadas ao longo do século
XVII. De acordo com o Alvará régio de 12 de Novembro de 1611 - que servia tanto
para o Reino quanto para as colônias - os eleitores deveriam ser selecionados entre "os
mais nobres e da governança da terra", prevendo-se que a escolha recaísse sobre a gente
da governança ou filhos e netos de quem o fosse, e que provassem ser "sem raça
alguma"26.

(SOBRE PERFIL DOS CAMARISTAS)Nem sempre no Brasil, como em Goa e Macau,


a eleição de pessoas para os cargos concelhios seguiu de perto as determinações desta
legislação. A composição das Câmaras da região mineradora se constituiu numa dessas
exceções27. Seja como for, no caso das Câmaras das principais cidades marítimas
coloniais - e do Rio de Janeiro em particular - os postulados da legislação de 1611
serviram para dar respaldo às intenções das oligarquias locais de afastar oficiais
mecânicos, pessoas impuras, comerciantes, ou quaisquer reinóis dos cargos concelhios.
A interferência de letrados e funcionários da Coroa - sobretudo ouvidores e
governadores - nas eleições municipais criou ainda um amplo campo de conflitos entre
os integrantes da nobreza local e os representantes do poder central.

Por volta de 1730, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro escrevia ao monarca, por
intermédio de seu procurador na Corte Julião Rangel de Souza Coutinho, sobre as
contendas e distúrbios que vinham geralmente ocorrendo nos momentos de eleição de
seus oficiais. Afirmava crescer "cada vez mais a ambição de se meterem no exercício
dos cargos honrosos da República pessoas indignas de semelhante emprego; pelos
interesses com que estas subornam os que fazem as eleições". Disso se teria originado
"um geral escândalo do Povo", sobretudo pelo fato de terem sido eleitos "homens de
vara e covado e outros semelhantes comerciadores". O documento referia-se ao Alvará e
Regimento de 12 de novembro de 1611, dando forma ao procedimento das eleições
municipais, e ainda ao Alvará de 29 de julho de 1643, através do qual o monarca
ordenara que nas eleições que se fizessem na Câmara daquela cidade não fossem
indicadas pessoas mecânicas e "de nação" para servirem nos cargos da governança, e
10

sobretudo que os governadores não se intrometessem nas mesmas eleições, excedendo


desta forma o seu regimento, que tal não lhes permitia28.

(MOTIVO DE TENSOES) Duas eram portanto as queixas que norteavam esta


representação do Senado ao Rei: por um lado, o conflito entre os oficiais da Câmara e
os representantes do poder central na colônia, causado pela intromissão destes últimos
nas eleições dos vereadores. Por outro, a qualidade das pessoas passíveis de serem
eleitas. Mas vamos por partes, percorrendo inicialmente o primeiro problema.

Aproveitavam os oficiais da Câmara, no mesmo requerimento, para tecer uma espécie


de histórico das antigas queixas daquele senado acerca de episódios semelhantes,
citando também as resoluções e ordens régias emitidas no sentido de evitar aquele tipo
de perturbação da ordem político-administrativa da cidade.

Referiam-se a uma representação feita pelos vereadores em exercício em 1664,


requerendo à Sua Majestade a preservação da autonomia da Câmara frente à
interferência dos ministros régios - ouvidores, governadores e provedores da Fazenda -
nas eleições de seus vereadores, intervenção que inevitavelmente resultava na escolha
de "homens de baixa sorte para a governança, de que nasce o desacerto no serviço de
Vossa Majestade e bem comum da República". Respaldavam sua queixa no fato de que
a legislação a respeito só admitia "homens fidalgos"29.

Algumas décadas depois, em fins do século XVII, os novos vereadores acusavam o


ouvidor de ter provocado a eleição de pessoas "de infecta nação", e outras "de baixa
limpeza", afirmando ter sido a primeira vez que se viu entrar naquele Senado "pessoas
hebréias". Em função disso a Câmara enviara um Procurador à Corte para requerer a
observância das leis régias e a expulsão dos ditos hebreus e de algumas pessoas
mecânicas dos cargos da governança. Informavam que naquela ocasião o Rei expedira
ordem mandando sindicar a matéria, pela gravidade das circunstâncias. Anulara-se por
fim a dita eleição30.

Por algum tempo, as coisas voltaram a uma relativa tranqüilidade, impedindo-se com
muita eficácia que dali por diante entrassem na Câmara pessoas que não fossem "da
principal e conhecida nobreza dela".

Anos mais tarde, uma carta régia de 23 de janeiro de 1709, dirigida aos vereadores em
exercício naquele ano, referia-se a uma representação dos "homens de negócio
moradores no Rio de Janeiro e naturais do reino", solicitando serem admitidos nas
eleições do Senado e nos cargos da República. Nela, o Rei reafirmava que as eleições
deveriam ser pautadas no que determinava a Ordenação e as Provisões sobre o assunto,
advertindo que o fato de serem alguns colonos oriundos do Reino, não constituía
impedimento para que entrassem nos honrosos cargos da governança da terra - caso
possuíssem as qualidades requeridas pela legislação31.

Baseados nesta última ordem régia, os vereadores de 1730 advertiam ao monarca que no
Brasil não há pessoa que se persuada não tem nobreza, em tal forma, que ainda os
homens que nesse Reino são jornaleiros, caixeiros, trabalhadores, oficiais e outros
semelhantes, em passando à América, de tal sorte se esquecem da sua vileza, que
querem ter igualdade com as pessoas de maior distinção, e o mesmo acontece (...)
também com os sujeitos oriundos do Brasil, (...) querendo uns e outros naturais e
11

forasteiros de inferior condição, atropelar a nobreza principal da terra e servirem os


cargos honrosos da República.

Acusavam os governadores de contribuírem para esta pretensão ao concederem a


pessoas de baixo calão patentes de capitães, sargentos-maiores e coronéis das
Ordenanças, beneficiando ainda os seus filhos, dentre os quais aqueles que se formavam
pela Universidade de Coimbra, "porque uns, com as tais patentes, e outros com as cartas
de formatura, ficam entendendo que cada um deles é benemérito para o cargo, emprego
ou lugar da maior suposição que haja naquela capitania". Afirmavam que "esta
suposição fantástica" fazia com que tivessem a simpatia e a cumplicidade dos ministros
régios e das pessoas que controlavam as eleições.

Solicitavam, enfim, ao monarca, que mandasse observar as leis, provisões e alvarás a


esse respeito, evitando desta forma "errôneas interpretações" por parte dos seus
funcionários, por serem prejudiciais aos "naturais, os filhos e netos de cidadãos
descendentes dos conquistadores daquela capitania, de conhecida e antiga nobreza"32.

Quanto ao segundo ponto da representação do senado do Rio de Janeiro, ou seja, o de


impedir a entrada de comerciantes nos cargos de vereação, longo e tortuoso também
fôra o debate dos contemporâneos acerca deste conflito.

Embora generosa na contribuição pecuniária para o serviço d'El Rei e da República,


durante todo o século XVII e grande parte do XVIII, a casta de comerciantes reinóis das
principais cidades marítimas da colônia foi sistematicamente rechaçada pela "nobreza
da terra" dos serviços nos postos da governança, sob a alegação de não possuírem os
requisitos necessários de status exigidos pelas leis metropolitanas. Assim, foi comum
nas cidades marítimas brasileiras a existência de uma profunda tensão entre a defesa
aguerrida das prerrogativas ligadas ao status dos proprietários de terra - mesmo que
empobrecidos e crescentemente endividados - e a afirmação econômica do segmento de
comerciantes portugueses que lutavam por um lugar nos códigos estamentais da época e
nos cargos políticos da colônia33.

Embora sistematicamente alijados dos cargos da governança pela surda defesa dos
critérios de fidalguia por parte da "nobreza da terra", os homens de negócio naturais do
Reino, embora radicados na colônia, eram também por sua vez incansáveis nas
representações que faziam ao Rei a este respeito. Em 1746 alguns comerciantes do Rio
de Janeiro denunciavam a desusada forma com que a maior parte dos naturais da dita
Cidade procedem [sic] nas faturas dos Pelouros, fazendo todo o excesso para que não
sirvam na Câmara os filhos deste Reino, não obstante acharem-se aparentados por
alianças com os principais da terra. Segundo os mercadores, aqueles que eram em geral
eleitos para o Senado, além de morarem distante da Cidade, e residirem em outro
distrito, são tão pobres, que chegam a vender, para comprar vestido de corte, o único
negrinho que lhes serve de plantar o sustento de suas famílias, e esta falta de meios para
se tratarem os faz menos freqüentes nas funções públicas, e viverem entranhados pelas
roças.

Alegavam serem dois os principais motivos que se requerem nas pessoas que devem
servir nas Câmaras: que tenham bens, e que sejam civilizadas no trato das gentes; que
tenham bens para que sirvam desinteressadamente, e que sejam civis para perceberem
mais facilmente as matérias que dizem respeito à utilidade econômica dos Povos.
12

Em defesa própria se diziam "homens de Negócio com meios, e mais cientes na


economia que se deve administrar aos povos"34. E a prova cabal de estarem sempre
dispostos a investir seus capitais no serviço de Sua Majestade e no interesse de sua Real
Fazenda foi o fato de "haverem contribuído com a maior quantia dos seiscentos mil
cruzados, por que foi resgatada aos Franceses a Cidade, e suas Fortalezas"35.

(COMERCIANTES) De fato, desde o século XVII, os mercadores do Rio de Janeiro -


dada a constante falta de recursos dos cofres régios - contribuíram com grossos cabedais
no serviço de Sua Majestade, sobretudo no que se refere à defesa da Capitania.
Almejando participar dos cargos de governança, desenvolviam estratégias de
enobrecimento, quer casando-se com as filhas da "nobreza da terra", quer ingressando
na carreira militar e mesmo eclesiástica, e ainda nas irmandades e confrarias religiosas.
Outra forma muito comum de ascensão por parte dos mercadores baseava-se na
expectativa de recebimento de honras e mercês da Coroa, em troca do investimento
pecuniário no serviço real, mormente nos negócios da defesa e acrescentamento do
Império, e ainda em obras públicas de saneamento e embelezamento das cidades. Em
troca de tais serviços não raro demandavam à Coroa recompensas em status - como era
prática institucionalizada no Antigo Regime -, pedindo mercês e mais especificamente
hábitos das Ordens militares36.

Essa "economia moral do dom", como bem lembraram Xavier e Hespanha, era prática
institucionalizada pelas monarquias européias do Antigo Regime. Integrava toda uma
série de poderes informais que agiam paralelamente às normas do direito oficial e às
rotinas das instituições jurídicas, servindo igualmente como mecanismo de instauração
da ordem e instrumento no jogo das relações políticas. Uma de suas manifestações mais
usuais era a concessão de mercês por parte do Rei, em troca de serviços prestados por
seus vassalos37.

Amplamente atualizada pelos monarcas portugueses desde a Restauração, a concessão


de ofícios e bens da Coroa a membros da nobreza que ajudaram a restaurar e consolidar
o poderio da Casa de Bragança estendeu-se, em fins do século XVIII, mormente a partir
do ministério pombalino, àqueles não tão próximos ao círculo de nobres e das redes
clientelares ligadas à realeza.(POMBAL) É consenso na historiografia que a política
pombalina consagrou definitivamente a compatibilidade entre os negociantes de grosso
trato e a nobreza, acenando com o atrativo da nobilitação, conferindo certas isenções
que eram prerrogativas dos segmentos privilegiados e retribuindo com a mercê de
hábitos das Ordens militares a todos aqueles dispostos a investirem nas companhias
monopolistas e no financiamento dos projetos econômicos do Estado. No mesmo
sentido fôra abolida a distinção jurídica entre cristãos novos e cristãos velhos38.

Outra estratégia comum de enobrecimento por parte dos comerciantes fluminenses foi
certamente o investimento na aquisição de terras. Fragoso e Florentino argumentam que
fôra expressivo no Rio de Janeiro de finais do século XVIII o número de grandes
empresas comerciais cuja existência se restringiu a, no máximo, duas gerações. Embora
construíssem suas fortunas no Brasil, grande parte desta elite era formada por
imigrantes portugueses desembarcados na colônia na segunda metade do século:

Tudo indica que depois de trinta anos de funcionamento contínuo, seus responsáveis
acabam por abandonar os misteres mercantis, transformando-se, em particular, em
rentistas urbanos e/ou senhores de terras39.
13

O fato daqueles comerciantes desviarem seus cabedais do comércio para o mercado


imobiliário urbano e para a aquisição de terras nos arredores da cidade - "um setor que
não multiplica a riqueza, mas sim a esteriliza" - devia-se em parte a que esse tipo de
investimento calcava-se em outros valores - que não os pecuniários -, conferindo-lhes
um status reconhecido pelos códigos estamentais da sociedade luso-brasileira:

Na verdade (...) a transformação do grande comerciante carioca em rentista e/ou senhor


de homens e terras denotava a presença de um forte ideal aristocratizante, identificado
ao controle de homens e à afirmação de certa distância frente ao mundo do trabalho.

Desta forma, a busca da nobilitação através da auto-transmutação de grandes


negociantes em rentistas e senhores rurais - traço que marcou o Antigo Regime não
apenas luso, mas europeu de um modo geral - contribuiria, no caso específico do Brasil,
para a montagem e perpetuação da aristocracia pós-independência40.

As Demandas dos Vassalos

No requerimento que os homens de negócios do Rio de Janeiro fizeram ao Rei em 1746,


solicitando serem admitidos nos cargos municipais, concorrendo "em igual número aos
naturais da mesma cidade", acusavam estes últimos - por serem "descendentes dos
primeiros povoadores" - de estarem convencidos "de que a América é Conquista, e não
Colônia, e que os filhos de Portugal não podem ser admitidos aos cargos públicos"41.

Anos antes, Antônio Rodrigues da Costa, então membro do Conselho Ultramarino,


escrevia que "a maior parte da nobreza de Pernambuco" tinha-se na conta de "únicos
conquistadores daquelas capitanias", proclamando que devido ao fato de tê-las
restaurado do domínio holandês, elas ficaram-lhe pertencendo "por direito de
conquista", não devendo por sua posse "nada, nem ao Reino nem ao Rei"42.

A reação das oligarquias locais à intromissão dos comerciantes nos cargos de


governança nas principais cidades marítimas brasileiras baseava-se no argumento de
que(DEFINIÇÃO DE NOBREZA DA TERRA) a categoria de "principais da terra" ou
"homens principais", como se autodenominavam, ligava-se não apenas às qualidades
inatas - como a ascendência familiar ou a "pureza de sangue" -, ou mesmo adquiridas
por via econômica e política - o ser senhor de terras e escravos e ter acesso às funções
concelhias - mas incorporava ainda os méritos provenientes da conquista, povoamento e
defesa da colônia. Em outras palavras, em cidades como o Rio de Janeiro, Olinda ou
Salvador, as pessoas que se arrogavam o título de "nobres" ou "principais",
justificavam-no não enquanto uma categoria "natural" ou jurídica, de acordo com o
direito do Antigo Regime, mas através de um discurso que valorizava, como numa gesta
medieval, sua condição de heróis e mártires na aventura conquistadora e colonizadora
da América.

Em Pernambuco, o empenho dos naturais na expulsão dos holandeses conferiu maior


legitimidade e força a esse imaginário. No capítulo intitulado "À custa de nosso sangue,
vidas e fazendas" de Rubro Veio43, Evaldo Cabral tece as primeiras considerações a esse
respeito, afirmando ter sido na segunda metade do século XVII, "na esteira da
restauração e a ela referido, que se articulou o discurso político do primeiro nativismo
14

pernambucano", denotador de uma "crítica ao poder colonial", através da qual "a


açucarocracia confiscava a restauração":

Invocado de começo ora para fundamentar a pretensão de reserva dos cargos locais para
os moradores da capitania, ora para reforçar uma reivindicação de natureza fiscal, o
tema da restauração como empresa histórica da `nobreza da terra' passou a constituir, à
medida que se aguçava o conflito entre mazombos e mascates, a justificação do direito
que ela se arrogava de dominar politicamente a capitania44.

A seu ver, através - e em nome - do papel exercido pelos naturais de Pernambuco na


expulsão dos holandeses da capitania, redefiniam-se os vínculos entre aqueles colonos e
a metrópole. A partir de então a Câmara Municipal de Olinda passou a justificar suas
solicitações de reserva dos cargos públicos para os "filhos e moradores da terra" em
argumentos tais como: "à custa de nosso sangue, vidas e despesas de nossas fazendas
pugnamos há mais de cinco anos por as libertar [as terras coloniais] da possessão injusta
do holandês"45.

Não restritas à larga franja litorânea da colônia, as representações baseadas nos feitos e
bravatas dos colonos na conquista e colonização do Brasil ultrapassaram em muito o
limitado termo das aglomerações urbanas, extrapolando as sessões de vereança das
Câmaras Municipais das cidades marítimas, abrangendo os longínquos sertões e sua
população móvel e fluida. O bandeirantismo e a descoberta das minas desempenhou,
nos sertões paulistas, a mesma função legitimadora para reivindicar ao Monarca
privilégios e vantagens por parte da Câmara de São Paulo. Prova disto é a representação
que enviara à Metrópole, em 07 de abril de 1700, solicitando não fossem doadas datas
nas minas senão aos moradores daquela vila e anexas, por terem sido eles, "os
descobridores e conquistadores das ditas minas, à custa de suas vidas e gasto de sua
fazenda sem dispêndio da fazenda real"46.

No Rio de Janeiro, a participação dos moradores na defesa da cidade - ainda que


inglória - por ocasião da invasão francesa de 1711, marcou toda uma série de
representações do senado da Câmara, pedindo ao Rei privilégios e mercês em troca da
demonstração de empenho e de fidelidade. Mas antes mesmo de sofrerem a investida
dos corsários franceses, em 1678, os oficiais da Câmara do Rio redigiam petição ao
Monarca, solicitando serem os "naturais" e "principais" da terra preferidos aos
elementos reinóis nos postos de guerra, ofícios, conezias e dignidades que vagassem no
Estado do Brasil. Referiam-se à "dor com que os naturais desta cidade do Rio de Janeiro
estamos, vendo-nos inabilitados, sendo por nossas pessoas e procedimentos
merecedores dos tais lugares". Argumentavam em favor da pertinência e da
legitimidade de sua demanda, que nossos pais e avós naturais, que foram desse Reino,
Vossa Alteza os mandou em seu serviço à povoação deste Estado, [e que] depois de o
conquistarmos, de justiça deve Vossa Alteza preferir para o servirmos em os lugares
dele". Lembravam ainda, em tom um tanto desafiador, que "este maior merecimento
não deve ser a causa de nossa pena; nem estorvo para deixarmos de mandar a nossos
filhos com tantos riscos e dispêndios a servirem a Vossa Alteza nesse Reino e neste
Estado, como vassalos naturais de Vossa Alteza47.

Provando ser o requerimento justo e principalmente ajustar-se à prática das trocas


concretas e simbólicas que ligavam vassalos e soberanos em Portugal do Antigo
Regime - e que deveriam também prevalecer entre o Rei e seus súditos ultramarinos - o
15

despacho em resposta à representação acima foi favorável ao pedido dos colonos


fluminenses. Nele vem argumentado, provavelmente por um dos conselheiros, que em
quarenta anos de guerra continuada padeceram os ditos moradores muitas misérias e
infinitas hostilidades na defensa daquele Estado, aonde a maior parte deles se
assinalaram [sic] em muitas ocasiões com singular valor, e com grande despesa de suas
fazendas, com que a este respeito deve Vossa Majestade ser servido mandar que nos
postos de milícia que vagarem no dito Estado, sejam somente providos os que nele têm
servido a Vossa Majestade, e da mesma maneira nos ditos moradores os ofícios de
Justiça e Fazenda, como também em seus filhos as igrejas, conezias e dignidades, pois é
justo que despendendo seus avós e seus pais as fazendas, derramando seu sangue, e
perdendo muitos as vidas, sejam os postos, os cargos e honras do dito Estado
concedidas a estes sujeitos em que concorrerem as partes e qualidades necessárias48.

Discutindo estas mesmas representações e as justificativas nas quais se baseavam,


embora privilegiando o viéis do fiscalismo no sentido de analisar a construção de uma
certa "identidade colonial", Luciano Figueiredo afirma que as demandas dos colonos
ancoravam-se num "patrimônio memorialístico" - de enfrentamentos, privações, perdas
e empenho de suas vidas e cabedais; em suma, de absoluta vassalagem - que se calcava
por sua vez em duas raízes: a primeira, derivada da natureza do contrato entre soberanos
e súditos; a outra, derivada da condição colonial, "onde o passado de lutas contra as
adversidades forjara uma noção de direitos que sustentaria as demandas à Metrópole".
Conclui que o `imaginário social' do colono, um vasto acervo de experiências nas lutas
contra invasores e índios, elaborou os termos de uma identidade e situou-os num plano
diferenciado nas suas relações com Portugal49.

Quanto ao primeiro ponto, a versão contratualista, o autor compartilha a visão de


Evaldo Cabral que também descobre vínculos constitucionais - baseados em noções
contratuais - entre metrópole e colônia nesse tipo de barganha, que expõe a memória de
um passado permeado por lutas e adversidades, no qual os colonos foram sempre
pródigos em demonstrar a dedicação e a lealdade que os ligava à Coroa portuguesa,
requerendo em troca o reconhecimento do Soberano, através da premiação por meio de
títulos, privilégios, mercês e isenções. O historiador pernambucano, ao se referir à
representação da Câmara de Olinda na qual solicitava a nomeação dos naturais da terra
para os cargos públicos da capitania - alegando a sua indiscutível participação na guerra
de expulsão dos holandeses, "à custa de nosso sangue, vidas e despesas de nossas
fazendas" - afirma que tal argumento continha uma útil ambigüidade que traduzia duas
vertentes: uma "conservadora", calcada na proclamação da fidelidade dos
pernambucanos à Coroa; e outra "sediciosa", fundada numa concepção contratual.
Conclui que, ao contrário dos demais vassalos da América portuguesa, `súditos
naturais', os pernambucanos se haviam constituído em `súditos políticos' ao haverem, de
sua livre e espontânea iniciativa, restituído ao domínio português uma terra que haviam
duplamente conquistado mercê do seu braço, primeiro no século XVI, aos índios, depois
no século XVII, aos holandeses.

Em contrapartida, a Coroa teria pactuado com o poder local, concedendo-lhe uma série
de regalias. O próprio autor assinala que essa noção contratualista não era nova, pelo
menos na teoria do Direito português, não tendo, portando, um conteúdo ou caráter
revolucionário50.
16

De fato, difundida em Portugal do Antigo Regime, a noção de pacto não era estranha à
concepção corporativa da sociedade, embora não emanasse dos mesmos princípios
defendidos pelo paradigma individualista que iria triunfar em países como França e
Inglaterra no século XVIII51. Subjacente a ela não reinava soberano o conceito de
indivíduo, abstrato e igual, livre e sujeito a impulsos naturais, tal como apregoavam os
defensores das doutrinas voluntaristas ou contratualistas da origem do Poder. No
pequeno Reino luso, aquela noção, herdada da Idade Média, não pressupunha um pacto
primitivo ou mesmo histórico, estabelecido, por exemplo, em Cortes, ou entre súditos e
soberanos. Segundo António Manuel Hespanha, o pacto implícito na versão do direito
natural português, em vez de constituir o Poder, se sobrepunha a ele:

para a doutrina política corporativa, não é o pacto que fundamenta o direito, mas é
antes este que funda a obrigatoriedade dos pactos. Como não é o pacto que limita o
Poder, mas a limitação originária dos poderes que obriga a pactuar52.

Não obstante, o autor afirma que apesar da idéia de pacto não poder ser invocável pelos
súditos para obter satisfação dos deveres do rei, era-lhes atribuído o direito de exigirem
do rei o respeito às leis ou privilégios estabelecidos na sociedade. Em casos extremos
poderiam denunciar o não cumprimento pelo monarca de seus deveres, resistindo e
privando-o de seu poder. Ligava-se a isso o princípio de que o bem comum
desempenhava um importante papel na legitimação da Monarquia, permitindo o
afastamento do rei que fosse um mau governante.

Cita o Assento feito em Cortes por ocasião da aclamação de D. João IV, logo após a
Restauração, segundo o qual, conforme as regras do direito natural, e humano, ainda
que os Reinos transferissem nos Reis todo o seu poder e império, para os governar, foi
debaixo de uma tácita condição, de os regerem e mandarem, com justiça e sem tirania. E
tanto que no modo de governar, usarem dela, podem os Povos privá-los dos Reinos, em
sua legítima e natural defensão53.

Esse "parlamentarismo" teve algumas oportunidades de ser exercido ainda no século


XVII, como por exemplo, quando o infante D. Pedro substituiu seu irmão, em razão de
seu "mau governo", cabendo às Cortes deliberarem sobre o assunto. Estas decidiram em
1668 - baseando-se no que reivindicavam ser um "direito das gentes" - que a tirania ou
incapacidade do Rei eram causas legítimas para "privar dos reinos, ou pelo menos da
administração deles os reis incapazes de governar"54.

Não custa lembrar que durante o século XVII procuradores enviados pelas "cidades e
vilas com assento em Cortes" "no braço do povo" eram provenientes do Brasil, assim
como de Goa, e ligavam-se aos interesses das oligarquias locais55. De acordo com
Evaldo Cabral, em 1656, Antônio de Albuquerque, Procurador das Capitanias do norte
do Brasil, argumentava que a restauração do nordeste fôra lograda "à custa do sangue,
vidas e fazendas" dos seus habitantes, que conseguiram "por suas próprias mãos e com
seu invencível valor a expulsão de seus inimigos"56. Mais uma vez, em 1668, o
Procurador não só das capitanias de cima, mas de todo o Estado do Brasil, recorreria a
esse mesmo "mote" no sentido de reiterar o pedido de reserva dos cargos locais para os
habitantes do conjunto da América portuguesa, "como se todas as capitanias" - segundo
o historiador - "houvessem participado indistintamente do esforço de guerra"57.
17

De fato, embora não indistintamente, todas deram sua contribuição, armando esquadras,
enviando homens e mantimentos, submetendo-se a tributos e recolhendo donativos para
aquele fim; e, no caso dos fluminenses em particular, reconquistando Angola aos
batavos, cientes de que, expulsos do entreposto africano, mais cedo ou mais tarde os
mesmos capitulariam neste lado do Atlântico.

Por outro lado, e como já foi discutido acima, para além da visão contratualista ou
pactícia que informava as petições dos vassalos reinóis e coloniais - e igualmente a
concessão de privilégios e mercês por parte do monarca -, fazia parte do imaginário e da
prática social das monarquias do Antigo Regime uma "economia moral do dom",
segundo a qual o grupo de indivíduos que requeria um bem ao rei, reafirmava a
obediência "devida", alertando para a legitimidade da "troca de favores", e portanto, da
obrigatoriedade de sua retribuição. Hespanha refere-se ao pedido que alguns nobres
fizeram a Afonso VI para que este tomasse o governo em 1662:

por todo o documento perpassa a idéia de serviço, terminando com aquilo que pode ser
designado como uma verdadeira `fórmula-tipo': `Há de V. Magestade de achar todos
estes, que aqui se lhe offerecem cõ as vidas, e fazendas promptas, pera seguir obedecer,
e servir V. Magestade como a seo Rey, e Senhor, que amão tanto'58.

Embora isenta de conteúdo revolucionário, durante todo o século XVII e primeira


metade do XVIII, essa noção contratualista, já largamente difundida em Portugal, serviu
ao menos para, se não redefinir, sobretudo reafirmar os laços que ligavam os súditos
coloniais ao monarca português. Em contrarpartida de inegáveis mostras de lealdade e
vassalagem, a nobreza da terra das diferentes cidades e vilas coloniais reivindicavam
para si um acesso privilegiado ao poder local na colônia, além de honras, foros, isenções
e franquias que figuravam num "mercado de expectativas"59 de reconhecimento e
premiação por parte do Soberano - plenamente justificado pelas práticas
consuetudinárias e legais do Antigo Regime.

Notas
1
BOXER, C. R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa, Edições 70,
1981. [ Links ]
2
GODINHO, Vitorino Magalhães. "Finanças Públicas e Estrutura do Estado" In
Ensaios II. Sobre História de Portugal. 2ª ed., Lisboa, Liv. Sá da Costa Ed., 1978, pp.
51-52. [ Links ]
3
Idem, p. 53.
4
SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e o Seu Termo (1580-1640). Os Homens, as
Instituições e o Poder. 2 vol., Porto, Arquivo Histórico/Câmara Municipal do Porto,
vol. II, 1888, pp. 769-788. [ Links ]
5
BOXER, C. R. Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa,
Macao, Bahia, and Luanda (1510-1800). Madison and Milwaukee, The University of
Wisconsin Press, 1965, pp. 40-41. [ Links ]
18

6
Idem, pp. 47-48 e 54-55.
7
"Treslado do assento que se fez para as fortificações". In O Rio de Janeiro no Século
XVII. Acordãos e Vereanças do Senado da Câmara, copiados do Livro Original
existente no Archivo do Distrito Federal, e relativos aos anos de 1635 até 1650.
(Mandados publicar pelo Sr. Prefeito Dr. Pedro Ernesto), Rio de Janeiro, Of. Gráficas
do Jornal do Brasil, 1935, pp. 49-51. [ Links ]
8
Cf., a este respeito, BOXER, C. R. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola
(1602-1686). São Paulo, Editora Nacional, 1973, pp. 267-271; [ Links ]e
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Os Luso-Brasileiros em Angola: Constituição do
Espaço Econômico Brasileiro no Atlântico-Sul. 1500-1700. Tese de Livre-Docência
Campinas, Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, agosto de
1994, pp. 123-124.
9
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na
América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1761). Tese de
Doutoramento São Paulo, FFLCH-USP, 1996, (mimeo), pp. 446-451. [ Links ]
10
HESPANHA. As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal -
Século XVII. Coimbra, Livraria Almedina, 1994, p. 491. [ Links ]
11
Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Documentos Avulsos, Cx. 2, doc.
55. [ Links ]
12
Apud: COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1965, p. 130. [ Links ]
13
Consulta do Conselho Ultramarino, de 12 de Dezembro de 1678, Apud. BOXER, op.
cit., p. 85; igualmente citada por SCHWARTZ. Burocracia e Sociedade no Brasil
Colonial. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 212. [ Links ]
14
Cf. COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. 2ª ed., Rio de Janeiro,
José Olympio, 1965, pp. 219, 227, 240 e 244. [ Links ]
15
ALENCASTRO, op. cit., p. 45.
16
Parecer de Antônio Rodrigues da Costa, Consulta do Conselho Ultramarino de 21 de
abril de 1712. (AHU, Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 9, doc. 47). [ Links ]
17
Cf. Privilégios dos Cidadãos da Cidade do Porto (Introdução de Armando de Castro).
Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987. [ Links ]
18
Dentre as quais, a distinção de não serem "metidos a tormentos por nenhuns
malefícios que tenham feito, cometido e cometerem e fizerem daí por diante, salvo nos
feitos e daquelas qualidades e nos modos em que o devem ser e são os fidalgos destes
Reinos, e que (...) não possam ser presos por nenhuns crimes, somente sobre suas
homenagens, e assim como o são e devem ser os ditos fidalgos, e que possam trazer e
tragam quais e quantas armas lhes prouver de noite e de dia, assim ofensivas como
defensivas, posto que em algumas cidades e vilas especialmente se tenha defeso ou
19

defensa que as não tragam (...); reservando que não possam andar em bestas muares, e
que todos os seus caseiros, amos, mordomos, lavradores que estiverem e lavrarem suas
próprias herdades e casas e todos os outros que com eles continuadamente viverem, não
sejam constrangidos para haverem de servir em guerras, nem outras idas por mar, nem
por terra e que somente irão com os ditos cidadãos quando suas pessoas forem servir; e
quando pousem com eles nem lhes tomem suas casas de moradas, adegas, nem
cavalariças, nem suas bestas de sela nem de albarda, nem outra nenhuma cousa do seu
contra suas vontades e lhes catem e guardem inteiramente suas casas e hajam em elas e
fora delas todas as liberdades que antigamente haviam os Infanções e ricos homens(...)",
AHU, Rio de Janeiro, Documentos Catalogados por Castro e Almeida, N. 334.
19
Cf. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Trad. Ana Maria Alves. Lisboa, Editorial
Estampa, 1987. [ Links ]
20
Ver a este respeito MONTEIRO, Nuno Gonçalo. "Poder Senhorial, Estatuto
Nobiliárquico e Aristocracia". In HESPANHA, António Manuel (coord.). História de
Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa, Editorial Estampa, vol. 04, 1993, pp.
333-379. [ Links ]
21
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a Dádiva". In Sociologia e Antropologia. São Paulo,
EPU/EDUSP, vol. II, 1974, pp. 37-184. [ Links ]
22
XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. "As Redes Clientelares".
In HESPANHA, op. cit., p. 382. [ Links ]
23
COELHO, Maria Helena da C. e MAGALHÃES, Joaquim R. O Poder Concelhio:
das Origens às Cortes Constituintes. Coimbra, Centro de Estudos e Formação
Autárquica, 1986, p. 43. [ Links ]
24
MAGALHÃES, Joaquim Romero. O Algarve Econômico (1600-1773). Lisboa,
Editorial Estampa, 1988, p. 348. [ Links ]
25
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. "Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e
Aristocracia". In HESPANHA, A. M. (coord).op. cit., p. 335. [ Links ]
26
É talvez necessário explicitar aqui que a expressão "sem raça alguma" referia-se ao
estigma que pesava sobre os cristãos-novos, também chamados "gente de nação". A
política geral discriminatória, ainda que esboçada no século XVI dos Avis, ganhou
fôlego novo com a ascensão dos Felipes em Portugal e assim ficaria, quase inabalável,
até Pombal. No caso do clero, o Breve De Puritate, anterior a 1598 e várias vezes
reiterado posteriormente, autorizou a exigência de pureza de sangue para o provimento
de sinecuras com benefícios (direito de cobrar rendimentos eclesiásticos). Na legislação
civil, o primeiro grande passo foi uma carta régia de 1604, proibindo o acesso de
cristãos-novos às Ordens Militares do Reino. Com o tempo isso foi se generalizando,
cunhando-se a noção de "sangue infecto", denominador comum entre judeus, mouros,
índios, negros, mulatos e outras "raças infectas".
27
Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. "Local Government in Portuguese America: A Study.
in Cultural Divergence". In Comparative Studies in Society and History. vol. 16, nº 02,
march 1974, pp. 187-231. [ Links ]
20

28
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 8, doc. 42. [ Links ]
29
Citada pela representação do Senado ao Rei, de 1730, contida no AHU. Rio de
Janeiro, Avulsos, Cx. 8, doc. 42.
30
Idem.
31
Idem.
32
Idem.
33
No caso de Pernambuco, ver a esse respeito o magistral estudo de MELLO, Evaldo
Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra Mascates. Pernambuco (1666-
1715). São Paulo, Companhia das Letras, 1995, [ Links ]especialmente o capítulo
intitulado "Loja x Engenho".
34
Embora excluídos dos cargos da governança, os comerciantes mais abastados
postulavam - e muitas vezes de fato exerciam - funções públicas ligadas à administração
fazendária, como as de almoxarife, feitor ou escrivão da Alfândega, escrivão da
Fazenda, tesoureiro da Junta de Comércio etc.
35
AHU. Rio de Janeiro, Cx. 46, doc. 51.
36
Ver a respeito FRAGOSO, João L. R. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e
Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional, 1992; [ Links ]e FRAGOSO, João e Manolo FLORENTINO. O
Arcaísmo como Projeto. Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil no
Rio de Janeiro (c.1790-c.1840). Rio de Janeiro, Diadorim, 1993.
37
XAVIER, A. B. e HESPANHA, A. M. "As Redes Clientelares". In HESPANHA
(coord.). op. cit., p. 381. [ Links ]
38
Ver a respeito MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Paradoxo do Iluminismo.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 77. [ Links ]
39
FRAGOSO e FLORENTINO, op. cit., p. 105.
40
Idem, p. 107.
41
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 46, doc. 51.
42
Documentos Históricos, v. 98, p. 230, apud: MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio.
O Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986,
p.124. [ Links ]
43
MELLO, Evaldo Cabral de. op. cit., 1986.
44
Idem, pp. 100-101.
45
Idem, p. 101. Citada também em MELLO, E. C. de. op. cit., 1995, p. 138.
21

46
Citado por MATTOS, Odilon Nogueira de. "A Guerra dos Emboabas". In
HOLANDA, S. B. de. História Geral da Civilização Brasileira. 2ª ed., São Paulo/Rio
de Janeiro, tomo I, vol. 01, 1963, p. 297, [ Links ]apud: MELLO. op. cit., 1995, p.
142.
47
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 4, doc. 105. Carta de 05 da agosto de
1678. [ Links ]
48
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 4, doc. 106. (sem data). [ Links ]
49
FIGUEIREDO. op. cit., p. 472.
50
MELLO. op. cit, 1995, pp. 138-139. Ver também à respeito, MELLO. op. cit., 1986,
cap. 03.
51
Analisando a Monarquia Absolutista na França, Le Roy Ladurie afirma que, também
naquele país, "a idéia de um laço da instituição monárquica com o povo, a `nação', com
o reino, em todo caso, permanece viva, mesmo que não adquire ainda o esplendor
contratual que lhe dará tardiamente Jean-Jacques Rousseau." Cf. LE ROY LADURIE,
Emmanuel. O Estado Monárquico. França (1460-1610). São Paulo, Companhia das
Letras, 1994, p. 12. [ Links ]
52
HESPANHA, A. M. e XAVIER, A. B. "A Representação da Sociedade e do Poder",
In HESPANHA. op. cit., p. 124. [ Links ]O autor remete à "teoria" política de
Francisco Suarez (1548-1617), fundamental para o confronto entre o pensamento
político da "segunda escolástica", predominante em Portugal, e o pensamento político
quer do absolutismo clássico, quer do "paradigma" individualista (p. 127).
53
Idem, p. 128. Também Evaldo Cabral refere-se ao ressurgimento em Portugal - "sob o
estímulo do movimento que liquidara o jugo castelhano" - das "noções consensuais da
origem do poder público", presentes nas Cortes de 1641 e justificativas dos direitos de
D. João IV à Coroa. Cf. MELLO. op. cit., 1986, p. 125.
54
XAVIER e HESPANHA, op. cit., p. 128. Porém, em 1698 - data da última reunião
das Cortes portuguesas - foi alterada a lei sucessória, esvaziando boa parte da
capacidade eletiva daquelas assembléias. A partir de então passou a haver apenas o
juramento do rei ante os altos dignitários do reino e destes ante o rei - dispensando
qualquer convocatória dos três estados - ao que se seguia a aclamação popular. Para
alguns juristas, a partir do funcionamento dos "tribunais palatinos", não havia porque se
convocar as Cortes, pois as suas funções de garantia - e também de comunicação com o
reino - eram desempenhadas pelos Conselhos. Assim, aquele "direito das gentes"
incorporado à prática política portuguesa seiscentista foi sendo gradativamente
restringido, num processo contínuo coroado pela administração pombalina, quando
então toda essa concepção política sofreu mudanças profundas. Idem, pp. 130 e 140-
141.
55
BOXER. op. cit., p. 24.
56
MELLO. op. cit., p. 101.
22

57
Idem, p. 202.
58
XAVIER e HESPANHA, op. cit., p. 390. Os autores alertam ainda para o fato de que
nos finais do Antigo Regime o direito dos sujeitos à remuneração dos serviços era um
dos poucos que estes possuíam frente ao Rei (p. 391).
59
A expressão "mercado de expectativas" é aqui tomada de empréstimo do trabalho de
FIGUEIREDO, op. cit., p. 482.

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