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Resumo
O presente artigo visa analisar o papel representado pelas Câmaras Municipais Ultrama-
rinas no interior do Império Colonial Português. Ele centra sua análise sobre a Câmara
do Rio de Janeiro ao longo dos séculos XVII e XVIII, no sentido de ilustrar a
composição das municipalidades, suas funções rotineiras, sua ação nos tempos de crise
e de guerra, e o tipo de suas demandas dirigidas aos representantes da Coroa nos dois
lados do Atlântico. Enquanto centro político-administrativo, de imposição de tributos,
de comércio e defesa, o Rio de Janeiro se tornou locus privilegiado do exercício do
domínio metropolitano sobre a vasta região do Atlântico-Sul. Este artigo pretende
discutir as tensões, negociações e compro-missos entre a política metropo-litana e o
papel de uma das mais importantes municipalidades no mundo luso-americano.
Palavras-Chave: Império Colonial Português; Câmaras Municipais; Rio de Janeiro.
Abstract
The present article analises the role played by the overseas municipal councils in
Portuguese Colonial Empire. It focus the Municipal Council of Rio de Janeiro during
the seventeenth and eighteenth centuries, in order to illustrate the composition of the
municipalities, their routine functions, their action in times of crisis and war, and the
kind of it's demands to the Crown representatives on both sides of the Atlantic. As the
center of political administration, tax collection, commerce, and defense, Rio de Janeiro
was the privileged stage for the exercise of metropolian dominance over the vast South-
Atlantic world. This article intends to discuss the tensions, negociations, and
compromises between metropolitan politics and the role of one of the most important
luso-american municipalities.
Isso não quer dizer, no entanto, que tenha havido uma simples transposição da
legislação ou das instituições peninsulares para as diferentes áreas do Império
Português. As municipalidades existentes nas mais remotas regiões ultramarinas, por
apresentarem problemas específicos, próprios de sua situação colonial, foram objeto de
uma política muitas vezes diferenciada e de uma legislação incessante por parte da
Metrópole, tanto no que se refere à sua constituição, quanto à regulamentação dos usos
e dos costumes da comunidade na qual se inseria.
Argumenta que o direito de cobrar as sisas fôra, no século XIV, concedido ao Rei pelas
Cortes por um período determinado. Durante a centúria posterior sofreram drástica
redução, compelindo o Estado a se transformar, ele próprio, em agente econômico ativo,
buscando "na navegação oceânica e respectivos tráficos, bem como em certas
actividades industriais novas, as rendas que a terra já não lhe dá[va]". De acordo com o
3
Nesse sentido o autor conclui que "as ações de prevenção, fortemente estimuladas pelo
Poder central, foram verdadeiramente assumidas pelas forças vivas da Cidade, embora
nem sempre dentro do melhor espírito de colaboração e de cordialidade." Identifica, a
partir do período de dominação castelhana, uma progressiva centralização do poder, e a
ingerência dos funcionários régios disputando com os vereadores as prerrogativas da
defesa, criando, a partir de então, conflitos e tensões entre estes e os oficiais militares
nomeados pelo poder central4.
4
Destes exemplos pode-se inferir que as Câmaras Coloniais foram pródigas não apenas
em administrar os tributos impostos pelo Reino, mas ainda em criar novos impostos.
Para Luciano Figueiredo, "a prática de lançar tributos `sobre si' conforme foi praticada
no Rio de Janeiro e Bahia para cobrir gastos com a defesa abriu um significativo
precedente na política fiscal ao possibilitar às Câmaras um direito apenas dos reis". A
seu ver, esta "experiência revela o conteúdo fortemente autônomo que alcançou a
fiscalidade voltada para a defesa", resvalando no risco "de se esvaziar a autoridade dos
administradores metropolitanos na colônia em detrimento da autonomia municipal"9.
O autor tem razão, e a importância deste dado talvez mereça uma breve incursão pelos
dogmas sobre os quais se constituíram as monarquias absolutistas no Antigo Regime,
especificamente a portuguesa. Em trabalho monumental sobre o assunto, Antônio
Manuel Hespanha afirma que os poderes do rei derivavam de um domínio geral e
eminente que, de acordo com os juristas da época, o mesmo possuía sobre todo o Reino
- e por conseqüência - sobre o território de suas colônias. Domínio - ou poder geral e
virtual de disposição - que lhe facultava o direito de impor tributos, configurando-se
estes, aliás, em uma das mais importantes prerrogativas régias10.
O fato das Câmaras Coloniais, além da simples administração dos impostos criados pela
metrópole, lançarem por sua conta taxas e arrecadações, demonstra inegavelmente uma
certa tendência ao auto-governo. A Câmara do Rio de Janeiro, além de "lançar tributos
sobre si", gozou, durante todo o século XVII, de uma autonomia impensável para quem
se detém no estudo de suas funções na centúria seguinte. Reveladora desta auto-gestão
administrativa é a representação que os vereadores em exercício no ano de 1645
escreveram ao monarca, referindo-se às propostas que seus antecessores haviam feito,
acerca das inquietações que, com a morte do Governador Luis Barbalho Bezerra, se
ocasionaram entre Duarte Correa Vasqueanes, a quem a Câmara e Cidadãos elegeram
para governar a terra, e o Sargento Mór Simão Dias Salgado que pretendia preferir-lhe,
e, consequentemente, entre o povo, e o presídio.
Citavam a provisão régia de 26 de setembro de 1644, pela qual o Rei fizera mercê ao
Senado, concedendo-lhe a faculdade de no caso de morte do Governador, poder
nomear-lhe sucessor, contando apenas com a aprovação do Governador Geral na Bahia.
6
Três anos mais tarde, pelo decreto de 06 de julho de 1647, D. João IV concedia o título
de Leal à cidade do Rio de Janeiro, ampliando as prerrogativas da Câmara, dentre as
quais o direito - ou o poder - de, "em ausência do governador e do Alcaide-Mor daquela
praça, faça a Câmara da dita Cidade o ofício de Capitão-Mor e tenha as chaves dela"12.
Embora mais diretamente submetidos aos representantes do poder Real - quer na pessoa
do Governador-Geral, quer no Tribunal da Relação -, pode causar espanto a liberdade
com que os oficiais da Câmara de Salvador intrometiam-se em assuntos políticos da
capitania, disputando a jurisdição dos ministros régios, em particular daquele nobre
corpo de magistrados. Uma consulta do Conselho Ultramarino de 1678 admoestava-os a
esse respeito, lembrando-lhes que o Rei "não tinha repartido com eles o cuidado de
como há de governar a sua monarquia"13.
Não obstante, a partir de finais do século XVII e início do XVIII, o exacerbado poder
político e econômico das Câmaras Municipais Ultramarinas foi sendo progressivamente
cerceado pela metrópole. A primeira medida neste sentido foi a criação, nas principais
cidades coloniais do Império, do cargo de Juiz de Fora, aumentando desta forma o poder
de interferência dos funcionários régios a nível do governo local. Em algumas destas
cidades, como nos casos de Goa e de Salvador, a Coroa modificou o sistema sobre o
qual se baseavam as eleições municipais, substituindo os pelouros pelo escrutínio a
cargo dos Juízes da Relação. Estes eram encarregados de compor listas trienais com o
nome dos eleitos, cabendo ao Vice-Rei escolher os componentes das vereações
seguintes.
Só muito mais tarde as eleições municipais no Rio de Janeiro sofreriam essa ingerência
dos representantes do poder régio e metropolitano. Contudo, já nos últimos anos do
século XVII, a área de jurisdição de seus governadores foi sendo sensivelmente
alargada, superpondo-se às atribuições da Câmara. Artur de Sá e Meneses (1697-1702)
foi o primeiro a ser investido com a graduação de Capitão-General. Seu poder - e de
seus sucessores - se alastrou de forma muito mais significativa não só sobre os negócios
do Rio, mas sobre toda a região centro-sul da colônia, prenunciando, desta forma, a
importância e a indiscutível centralidade prestes a ser assumida por aquele porto e
cidade no seio do Atlântico-Sul e nos cálculos econômicos e políticos da metrópole.
O porto do Rio de Janeiro constituir-se-ia a partir de então - e por todo o século XVIII -
no principal receptor de escravos e mercadorias européias e asiáticas, assim como no
maior escoador das riquezas coloniais, transformando-se, como já dizia um membro do
Conselho Ultramarino, em "uma das pedras mais preciosas que ornam a coroa de Vossa
Majestade, de cuja conservação e bom governo depende a segurança das Minas, e ainda
de todo o Brasil"16. Será também, por esse mesmo motivo, o maior alvo do interesse e
da cobiça dos demais países europeus.
A "Nobreza da Terra"
Uma primeira observação a se fazer acerca deles é o fato de serem concedidos aos
"cidadãos" e não a todos os habitantes das cidades contempladas. Por cidadãos
entendia-se aqueles que por eleição desempenhavam ou tinham desempenhado cargos
administrativos nas Câmaras Municipais - vereadores, procuradores, juízes locais,
almotacéis etc - bem como seus descendentes.
Por outro lado, o ato régio de conferir honras e privilégios pode ser analisado como
elemento instituidor de uma "economia moral do dom"21, de acordo com a qual aqueles
beneficiados passariam a estar ligados ao monarca através de uma rede baseada em
relações assimétricas de troca de favores e serviços. Os historiadores que desenvolvem
este argumento são Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, ao afirmarem
que a comunicação pelo dom introduzia o benfeitor e o beneficiado numa economia de
favores. Estes eram de natureza diversa e variavam consoante a posição dos actores nos
vários planos do espaço social (e correlativa posse de capital econômico, político,
simbólico), (...) o que provocava um contínuo reforço económico e afectivo dos laços
que uniam, no início, os actores, numa crescente espiral de poder, subordinada a uma
estratégia de ganhos simbólicos, que se estruturava sobre os actos de gratidão e
serviço22.
Forjava-se assim o conceito de nobreza civil ou política, abarcando aqueles que, embora
de nascimento humilde, conquistaram um grau de enobrecimento devido às ações
valorosas que obraram em nome do Rei, ou a cargos honrados que ocuparam a serviço
da República; diferenciando-se, portanto, da verdadeira nobreza derivada do sangue e
herdada dos antepassados. Segundo Nuno Monteiro, este novo conceito, já largamente
incorporado à literatura jurídica do século XVII, acabaria por se impor à prática de
muitas instituições portuguesas do Antigo Regime, "contribuindo não apenas para a
distinção entre nobreza e fidalguia (mais restrita), mas ainda para a efetiva `banalização'
das fronteiras da nobreza portuguesa, tornadas das mais difusas da Europa"25.
Desde o século XVII, quase todas as intervenções legislativas da Coroa, bem como a
atuação dos seus magistrados, encaminharam-se no sentido de garantir que os ofícios
nas vereações e os cargos nas Ordenanças fossem de fato ocupados pelos "principais"
das terras. Nesse sentido, a cristalização das oligarquias locais deveu-se, em parte, às
restrições à elegibilidade para os ofícios municipais verificadas ao longo do século
XVII. De acordo com o Alvará régio de 12 de Novembro de 1611 - que servia tanto
para o Reino quanto para as colônias - os eleitores deveriam ser selecionados entre "os
mais nobres e da governança da terra", prevendo-se que a escolha recaísse sobre a gente
da governança ou filhos e netos de quem o fosse, e que provassem ser "sem raça
alguma"26.
Por volta de 1730, o Senado da Câmara do Rio de Janeiro escrevia ao monarca, por
intermédio de seu procurador na Corte Julião Rangel de Souza Coutinho, sobre as
contendas e distúrbios que vinham geralmente ocorrendo nos momentos de eleição de
seus oficiais. Afirmava crescer "cada vez mais a ambição de se meterem no exercício
dos cargos honrosos da República pessoas indignas de semelhante emprego; pelos
interesses com que estas subornam os que fazem as eleições". Disso se teria originado
"um geral escândalo do Povo", sobretudo pelo fato de terem sido eleitos "homens de
vara e covado e outros semelhantes comerciadores". O documento referia-se ao Alvará e
Regimento de 12 de novembro de 1611, dando forma ao procedimento das eleições
municipais, e ainda ao Alvará de 29 de julho de 1643, através do qual o monarca
ordenara que nas eleições que se fizessem na Câmara daquela cidade não fossem
indicadas pessoas mecânicas e "de nação" para servirem nos cargos da governança, e
10
Por algum tempo, as coisas voltaram a uma relativa tranqüilidade, impedindo-se com
muita eficácia que dali por diante entrassem na Câmara pessoas que não fossem "da
principal e conhecida nobreza dela".
Anos mais tarde, uma carta régia de 23 de janeiro de 1709, dirigida aos vereadores em
exercício naquele ano, referia-se a uma representação dos "homens de negócio
moradores no Rio de Janeiro e naturais do reino", solicitando serem admitidos nas
eleições do Senado e nos cargos da República. Nela, o Rei reafirmava que as eleições
deveriam ser pautadas no que determinava a Ordenação e as Provisões sobre o assunto,
advertindo que o fato de serem alguns colonos oriundos do Reino, não constituía
impedimento para que entrassem nos honrosos cargos da governança da terra - caso
possuíssem as qualidades requeridas pela legislação31.
Baseados nesta última ordem régia, os vereadores de 1730 advertiam ao monarca que no
Brasil não há pessoa que se persuada não tem nobreza, em tal forma, que ainda os
homens que nesse Reino são jornaleiros, caixeiros, trabalhadores, oficiais e outros
semelhantes, em passando à América, de tal sorte se esquecem da sua vileza, que
querem ter igualdade com as pessoas de maior distinção, e o mesmo acontece (...)
também com os sujeitos oriundos do Brasil, (...) querendo uns e outros naturais e
11
Embora sistematicamente alijados dos cargos da governança pela surda defesa dos
critérios de fidalguia por parte da "nobreza da terra", os homens de negócio naturais do
Reino, embora radicados na colônia, eram também por sua vez incansáveis nas
representações que faziam ao Rei a este respeito. Em 1746 alguns comerciantes do Rio
de Janeiro denunciavam a desusada forma com que a maior parte dos naturais da dita
Cidade procedem [sic] nas faturas dos Pelouros, fazendo todo o excesso para que não
sirvam na Câmara os filhos deste Reino, não obstante acharem-se aparentados por
alianças com os principais da terra. Segundo os mercadores, aqueles que eram em geral
eleitos para o Senado, além de morarem distante da Cidade, e residirem em outro
distrito, são tão pobres, que chegam a vender, para comprar vestido de corte, o único
negrinho que lhes serve de plantar o sustento de suas famílias, e esta falta de meios para
se tratarem os faz menos freqüentes nas funções públicas, e viverem entranhados pelas
roças.
Alegavam serem dois os principais motivos que se requerem nas pessoas que devem
servir nas Câmaras: que tenham bens, e que sejam civilizadas no trato das gentes; que
tenham bens para que sirvam desinteressadamente, e que sejam civis para perceberem
mais facilmente as matérias que dizem respeito à utilidade econômica dos Povos.
12
Essa "economia moral do dom", como bem lembraram Xavier e Hespanha, era prática
institucionalizada pelas monarquias européias do Antigo Regime. Integrava toda uma
série de poderes informais que agiam paralelamente às normas do direito oficial e às
rotinas das instituições jurídicas, servindo igualmente como mecanismo de instauração
da ordem e instrumento no jogo das relações políticas. Uma de suas manifestações mais
usuais era a concessão de mercês por parte do Rei, em troca de serviços prestados por
seus vassalos37.
Outra estratégia comum de enobrecimento por parte dos comerciantes fluminenses foi
certamente o investimento na aquisição de terras. Fragoso e Florentino argumentam que
fôra expressivo no Rio de Janeiro de finais do século XVIII o número de grandes
empresas comerciais cuja existência se restringiu a, no máximo, duas gerações. Embora
construíssem suas fortunas no Brasil, grande parte desta elite era formada por
imigrantes portugueses desembarcados na colônia na segunda metade do século:
Tudo indica que depois de trinta anos de funcionamento contínuo, seus responsáveis
acabam por abandonar os misteres mercantis, transformando-se, em particular, em
rentistas urbanos e/ou senhores de terras39.
13
Invocado de começo ora para fundamentar a pretensão de reserva dos cargos locais para
os moradores da capitania, ora para reforçar uma reivindicação de natureza fiscal, o
tema da restauração como empresa histórica da `nobreza da terra' passou a constituir, à
medida que se aguçava o conflito entre mazombos e mascates, a justificação do direito
que ela se arrogava de dominar politicamente a capitania44.
Não restritas à larga franja litorânea da colônia, as representações baseadas nos feitos e
bravatas dos colonos na conquista e colonização do Brasil ultrapassaram em muito o
limitado termo das aglomerações urbanas, extrapolando as sessões de vereança das
Câmaras Municipais das cidades marítimas, abrangendo os longínquos sertões e sua
população móvel e fluida. O bandeirantismo e a descoberta das minas desempenhou,
nos sertões paulistas, a mesma função legitimadora para reivindicar ao Monarca
privilégios e vantagens por parte da Câmara de São Paulo. Prova disto é a representação
que enviara à Metrópole, em 07 de abril de 1700, solicitando não fossem doadas datas
nas minas senão aos moradores daquela vila e anexas, por terem sido eles, "os
descobridores e conquistadores das ditas minas, à custa de suas vidas e gasto de sua
fazenda sem dispêndio da fazenda real"46.
Em contrapartida, a Coroa teria pactuado com o poder local, concedendo-lhe uma série
de regalias. O próprio autor assinala que essa noção contratualista não era nova, pelo
menos na teoria do Direito português, não tendo, portando, um conteúdo ou caráter
revolucionário50.
16
De fato, difundida em Portugal do Antigo Regime, a noção de pacto não era estranha à
concepção corporativa da sociedade, embora não emanasse dos mesmos princípios
defendidos pelo paradigma individualista que iria triunfar em países como França e
Inglaterra no século XVIII51. Subjacente a ela não reinava soberano o conceito de
indivíduo, abstrato e igual, livre e sujeito a impulsos naturais, tal como apregoavam os
defensores das doutrinas voluntaristas ou contratualistas da origem do Poder. No
pequeno Reino luso, aquela noção, herdada da Idade Média, não pressupunha um pacto
primitivo ou mesmo histórico, estabelecido, por exemplo, em Cortes, ou entre súditos e
soberanos. Segundo António Manuel Hespanha, o pacto implícito na versão do direito
natural português, em vez de constituir o Poder, se sobrepunha a ele:
para a doutrina política corporativa, não é o pacto que fundamenta o direito, mas é
antes este que funda a obrigatoriedade dos pactos. Como não é o pacto que limita o
Poder, mas a limitação originária dos poderes que obriga a pactuar52.
Não obstante, o autor afirma que apesar da idéia de pacto não poder ser invocável pelos
súditos para obter satisfação dos deveres do rei, era-lhes atribuído o direito de exigirem
do rei o respeito às leis ou privilégios estabelecidos na sociedade. Em casos extremos
poderiam denunciar o não cumprimento pelo monarca de seus deveres, resistindo e
privando-o de seu poder. Ligava-se a isso o princípio de que o bem comum
desempenhava um importante papel na legitimação da Monarquia, permitindo o
afastamento do rei que fosse um mau governante.
Cita o Assento feito em Cortes por ocasião da aclamação de D. João IV, logo após a
Restauração, segundo o qual, conforme as regras do direito natural, e humano, ainda
que os Reinos transferissem nos Reis todo o seu poder e império, para os governar, foi
debaixo de uma tácita condição, de os regerem e mandarem, com justiça e sem tirania. E
tanto que no modo de governar, usarem dela, podem os Povos privá-los dos Reinos, em
sua legítima e natural defensão53.
Não custa lembrar que durante o século XVII procuradores enviados pelas "cidades e
vilas com assento em Cortes" "no braço do povo" eram provenientes do Brasil, assim
como de Goa, e ligavam-se aos interesses das oligarquias locais55. De acordo com
Evaldo Cabral, em 1656, Antônio de Albuquerque, Procurador das Capitanias do norte
do Brasil, argumentava que a restauração do nordeste fôra lograda "à custa do sangue,
vidas e fazendas" dos seus habitantes, que conseguiram "por suas próprias mãos e com
seu invencível valor a expulsão de seus inimigos"56. Mais uma vez, em 1668, o
Procurador não só das capitanias de cima, mas de todo o Estado do Brasil, recorreria a
esse mesmo "mote" no sentido de reiterar o pedido de reserva dos cargos locais para os
habitantes do conjunto da América portuguesa, "como se todas as capitanias" - segundo
o historiador - "houvessem participado indistintamente do esforço de guerra"57.
17
De fato, embora não indistintamente, todas deram sua contribuição, armando esquadras,
enviando homens e mantimentos, submetendo-se a tributos e recolhendo donativos para
aquele fim; e, no caso dos fluminenses em particular, reconquistando Angola aos
batavos, cientes de que, expulsos do entreposto africano, mais cedo ou mais tarde os
mesmos capitulariam neste lado do Atlântico.
Por outro lado, e como já foi discutido acima, para além da visão contratualista ou
pactícia que informava as petições dos vassalos reinóis e coloniais - e igualmente a
concessão de privilégios e mercês por parte do monarca -, fazia parte do imaginário e da
prática social das monarquias do Antigo Regime uma "economia moral do dom",
segundo a qual o grupo de indivíduos que requeria um bem ao rei, reafirmava a
obediência "devida", alertando para a legitimidade da "troca de favores", e portanto, da
obrigatoriedade de sua retribuição. Hespanha refere-se ao pedido que alguns nobres
fizeram a Afonso VI para que este tomasse o governo em 1662:
por todo o documento perpassa a idéia de serviço, terminando com aquilo que pode ser
designado como uma verdadeira `fórmula-tipo': `Há de V. Magestade de achar todos
estes, que aqui se lhe offerecem cõ as vidas, e fazendas promptas, pera seguir obedecer,
e servir V. Magestade como a seo Rey, e Senhor, que amão tanto'58.
Notas
1
BOXER, C. R. O Império Colonial Português (1415-1825). Lisboa, Edições 70,
1981. [ Links ]
2
GODINHO, Vitorino Magalhães. "Finanças Públicas e Estrutura do Estado" In
Ensaios II. Sobre História de Portugal. 2ª ed., Lisboa, Liv. Sá da Costa Ed., 1978, pp.
51-52. [ Links ]
3
Idem, p. 53.
4
SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e o Seu Termo (1580-1640). Os Homens, as
Instituições e o Poder. 2 vol., Porto, Arquivo Histórico/Câmara Municipal do Porto,
vol. II, 1888, pp. 769-788. [ Links ]
5
BOXER, C. R. Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa,
Macao, Bahia, and Luanda (1510-1800). Madison and Milwaukee, The University of
Wisconsin Press, 1965, pp. 40-41. [ Links ]
18
6
Idem, pp. 47-48 e 54-55.
7
"Treslado do assento que se fez para as fortificações". In O Rio de Janeiro no Século
XVII. Acordãos e Vereanças do Senado da Câmara, copiados do Livro Original
existente no Archivo do Distrito Federal, e relativos aos anos de 1635 até 1650.
(Mandados publicar pelo Sr. Prefeito Dr. Pedro Ernesto), Rio de Janeiro, Of. Gráficas
do Jornal do Brasil, 1935, pp. 49-51. [ Links ]
8
Cf., a este respeito, BOXER, C. R. Salvador de Sá e a Luta pelo Brasil e Angola
(1602-1686). São Paulo, Editora Nacional, 1973, pp. 267-271; [ Links ]e
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Os Luso-Brasileiros em Angola: Constituição do
Espaço Econômico Brasileiro no Atlântico-Sul. 1500-1700. Tese de Livre-Docência
Campinas, Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, agosto de
1994, pp. 123-124.
9
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na
América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais (1640-1761). Tese de
Doutoramento São Paulo, FFLCH-USP, 1996, (mimeo), pp. 446-451. [ Links ]
10
HESPANHA. As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal -
Século XVII. Coimbra, Livraria Almedina, 1994, p. 491. [ Links ]
11
Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, Documentos Avulsos, Cx. 2, doc.
55. [ Links ]
12
Apud: COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1965, p. 130. [ Links ]
13
Consulta do Conselho Ultramarino, de 12 de Dezembro de 1678, Apud. BOXER, op.
cit., p. 85; igualmente citada por SCHWARTZ. Burocracia e Sociedade no Brasil
Colonial. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 212. [ Links ]
14
Cf. COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no Século XVII. 2ª ed., Rio de Janeiro,
José Olympio, 1965, pp. 219, 227, 240 e 244. [ Links ]
15
ALENCASTRO, op. cit., p. 45.
16
Parecer de Antônio Rodrigues da Costa, Consulta do Conselho Ultramarino de 21 de
abril de 1712. (AHU, Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 9, doc. 47). [ Links ]
17
Cf. Privilégios dos Cidadãos da Cidade do Porto (Introdução de Armando de Castro).
Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1987. [ Links ]
18
Dentre as quais, a distinção de não serem "metidos a tormentos por nenhuns
malefícios que tenham feito, cometido e cometerem e fizerem daí por diante, salvo nos
feitos e daquelas qualidades e nos modos em que o devem ser e são os fidalgos destes
Reinos, e que (...) não possam ser presos por nenhuns crimes, somente sobre suas
homenagens, e assim como o são e devem ser os ditos fidalgos, e que possam trazer e
tragam quais e quantas armas lhes prouver de noite e de dia, assim ofensivas como
defensivas, posto que em algumas cidades e vilas especialmente se tenha defeso ou
19
defensa que as não tragam (...); reservando que não possam andar em bestas muares, e
que todos os seus caseiros, amos, mordomos, lavradores que estiverem e lavrarem suas
próprias herdades e casas e todos os outros que com eles continuadamente viverem, não
sejam constrangidos para haverem de servir em guerras, nem outras idas por mar, nem
por terra e que somente irão com os ditos cidadãos quando suas pessoas forem servir; e
quando pousem com eles nem lhes tomem suas casas de moradas, adegas, nem
cavalariças, nem suas bestas de sela nem de albarda, nem outra nenhuma cousa do seu
contra suas vontades e lhes catem e guardem inteiramente suas casas e hajam em elas e
fora delas todas as liberdades que antigamente haviam os Infanções e ricos homens(...)",
AHU, Rio de Janeiro, Documentos Catalogados por Castro e Almeida, N. 334.
19
Cf. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte. Trad. Ana Maria Alves. Lisboa, Editorial
Estampa, 1987. [ Links ]
20
Ver a este respeito MONTEIRO, Nuno Gonçalo. "Poder Senhorial, Estatuto
Nobiliárquico e Aristocracia". In HESPANHA, António Manuel (coord.). História de
Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa, Editorial Estampa, vol. 04, 1993, pp.
333-379. [ Links ]
21
MAUSS, Marcel. "Ensaio sobre a Dádiva". In Sociologia e Antropologia. São Paulo,
EPU/EDUSP, vol. II, 1974, pp. 37-184. [ Links ]
22
XAVIER, Ângela Barreto e HESPANHA, António Manuel. "As Redes Clientelares".
In HESPANHA, op. cit., p. 382. [ Links ]
23
COELHO, Maria Helena da C. e MAGALHÃES, Joaquim R. O Poder Concelhio:
das Origens às Cortes Constituintes. Coimbra, Centro de Estudos e Formação
Autárquica, 1986, p. 43. [ Links ]
24
MAGALHÃES, Joaquim Romero. O Algarve Econômico (1600-1773). Lisboa,
Editorial Estampa, 1988, p. 348. [ Links ]
25
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. "Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e
Aristocracia". In HESPANHA, A. M. (coord).op. cit., p. 335. [ Links ]
26
É talvez necessário explicitar aqui que a expressão "sem raça alguma" referia-se ao
estigma que pesava sobre os cristãos-novos, também chamados "gente de nação". A
política geral discriminatória, ainda que esboçada no século XVI dos Avis, ganhou
fôlego novo com a ascensão dos Felipes em Portugal e assim ficaria, quase inabalável,
até Pombal. No caso do clero, o Breve De Puritate, anterior a 1598 e várias vezes
reiterado posteriormente, autorizou a exigência de pureza de sangue para o provimento
de sinecuras com benefícios (direito de cobrar rendimentos eclesiásticos). Na legislação
civil, o primeiro grande passo foi uma carta régia de 1604, proibindo o acesso de
cristãos-novos às Ordens Militares do Reino. Com o tempo isso foi se generalizando,
cunhando-se a noção de "sangue infecto", denominador comum entre judeus, mouros,
índios, negros, mulatos e outras "raças infectas".
27
Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. "Local Government in Portuguese America: A Study.
in Cultural Divergence". In Comparative Studies in Society and History. vol. 16, nº 02,
march 1974, pp. 187-231. [ Links ]
20
28
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 8, doc. 42. [ Links ]
29
Citada pela representação do Senado ao Rei, de 1730, contida no AHU. Rio de
Janeiro, Avulsos, Cx. 8, doc. 42.
30
Idem.
31
Idem.
32
Idem.
33
No caso de Pernambuco, ver a esse respeito o magistral estudo de MELLO, Evaldo
Cabral de. A Fronda dos Mazombos. Nobres contra Mascates. Pernambuco (1666-
1715). São Paulo, Companhia das Letras, 1995, [ Links ]especialmente o capítulo
intitulado "Loja x Engenho".
34
Embora excluídos dos cargos da governança, os comerciantes mais abastados
postulavam - e muitas vezes de fato exerciam - funções públicas ligadas à administração
fazendária, como as de almoxarife, feitor ou escrivão da Alfândega, escrivão da
Fazenda, tesoureiro da Junta de Comércio etc.
35
AHU. Rio de Janeiro, Cx. 46, doc. 51.
36
Ver a respeito FRAGOSO, João L. R. Homens de Grossa Aventura: Acumulação e
Hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro, Arquivo
Nacional, 1992; [ Links ]e FRAGOSO, João e Manolo FLORENTINO. O
Arcaísmo como Projeto. Mercado Atlântico, Sociedade Agrária e Elite Mercantil no
Rio de Janeiro (c.1790-c.1840). Rio de Janeiro, Diadorim, 1993.
37
XAVIER, A. B. e HESPANHA, A. M. "As Redes Clientelares". In HESPANHA
(coord.). op. cit., p. 381. [ Links ]
38
Ver a respeito MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal. Paradoxo do Iluminismo.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 77. [ Links ]
39
FRAGOSO e FLORENTINO, op. cit., p. 105.
40
Idem, p. 107.
41
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 46, doc. 51.
42
Documentos Históricos, v. 98, p. 230, apud: MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio.
O Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986,
p.124. [ Links ]
43
MELLO, Evaldo Cabral de. op. cit., 1986.
44
Idem, pp. 100-101.
45
Idem, p. 101. Citada também em MELLO, E. C. de. op. cit., 1995, p. 138.
21
46
Citado por MATTOS, Odilon Nogueira de. "A Guerra dos Emboabas". In
HOLANDA, S. B. de. História Geral da Civilização Brasileira. 2ª ed., São Paulo/Rio
de Janeiro, tomo I, vol. 01, 1963, p. 297, [ Links ]apud: MELLO. op. cit., 1995, p.
142.
47
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 4, doc. 105. Carta de 05 da agosto de
1678. [ Links ]
48
AHU. Rio de Janeiro, Avulsos, Cx. 4, doc. 106. (sem data). [ Links ]
49
FIGUEIREDO. op. cit., p. 472.
50
MELLO. op. cit, 1995, pp. 138-139. Ver também à respeito, MELLO. op. cit., 1986,
cap. 03.
51
Analisando a Monarquia Absolutista na França, Le Roy Ladurie afirma que, também
naquele país, "a idéia de um laço da instituição monárquica com o povo, a `nação', com
o reino, em todo caso, permanece viva, mesmo que não adquire ainda o esplendor
contratual que lhe dará tardiamente Jean-Jacques Rousseau." Cf. LE ROY LADURIE,
Emmanuel. O Estado Monárquico. França (1460-1610). São Paulo, Companhia das
Letras, 1994, p. 12. [ Links ]
52
HESPANHA, A. M. e XAVIER, A. B. "A Representação da Sociedade e do Poder",
In HESPANHA. op. cit., p. 124. [ Links ]O autor remete à "teoria" política de
Francisco Suarez (1548-1617), fundamental para o confronto entre o pensamento
político da "segunda escolástica", predominante em Portugal, e o pensamento político
quer do absolutismo clássico, quer do "paradigma" individualista (p. 127).
53
Idem, p. 128. Também Evaldo Cabral refere-se ao ressurgimento em Portugal - "sob o
estímulo do movimento que liquidara o jugo castelhano" - das "noções consensuais da
origem do poder público", presentes nas Cortes de 1641 e justificativas dos direitos de
D. João IV à Coroa. Cf. MELLO. op. cit., 1986, p. 125.
54
XAVIER e HESPANHA, op. cit., p. 128. Porém, em 1698 - data da última reunião
das Cortes portuguesas - foi alterada a lei sucessória, esvaziando boa parte da
capacidade eletiva daquelas assembléias. A partir de então passou a haver apenas o
juramento do rei ante os altos dignitários do reino e destes ante o rei - dispensando
qualquer convocatória dos três estados - ao que se seguia a aclamação popular. Para
alguns juristas, a partir do funcionamento dos "tribunais palatinos", não havia porque se
convocar as Cortes, pois as suas funções de garantia - e também de comunicação com o
reino - eram desempenhadas pelos Conselhos. Assim, aquele "direito das gentes"
incorporado à prática política portuguesa seiscentista foi sendo gradativamente
restringido, num processo contínuo coroado pela administração pombalina, quando
então toda essa concepção política sofreu mudanças profundas. Idem, pp. 130 e 140-
141.
55
BOXER. op. cit., p. 24.
56
MELLO. op. cit., p. 101.
22
57
Idem, p. 202.
58
XAVIER e HESPANHA, op. cit., p. 390. Os autores alertam ainda para o fato de que
nos finais do Antigo Regime o direito dos sujeitos à remuneração dos serviços era um
dos poucos que estes possuíam frente ao Rei (p. 391).
59
A expressão "mercado de expectativas" é aqui tomada de empréstimo do trabalho de
FIGUEIREDO, op. cit., p. 482.