AS CARACTERÍSTICAS GERAIS DA LITERATURA MERCANTILISTA
A era do capitalismo primitivo também assistiu ao nascimento da ciência econômica
moderna. É verdade que, entre os pensadores da Antiguidade e da Idade Média, podem se encontrar reflexões sobre uma série de questões econômicas. Mas as considerações econômicas. Mas as considerações econômicas de filósofos antigos como Platão ou Aristóteles são elas mesmas um reflexo da antiga economia escravista, assim como aquelas dos escolásticos medievais refletiram a economia do feudalismo. Para ambas, o ideal econômico era uma economia auto suficiente de consumidores, em que a troca estava confinada ao excedente produzido por economias individuais é vendido in natura. Para Aristóteles, o comércio profissional, voltado à obtenção do lucro, era algo “contra a natureza”; para os escolásticos medievais, ele era “imoral”. São Tomás de Aquino, o conhecido escritor canonista do século XIII, cita as palavras de Graciano sobre o absurdo do comércio: “Quem quer que compre uma coisa [...] visando obter um ganho vendendo-a tal como a comprou está entre aqueles compradores e vendedores que foram expulsos do templo do Senhor”. Assim, era com grande aversão que os pensadores antigos e medievais viam o capital usurário, sob cujo impacto o processo de dissolução da economia natural se tornaria cada vez mais acelerado. Durante a segunda metade da Idade Média, a igreja promulgou uma série de decretos que abolia a obtenção de juros sobre empréstimos e ameaçava os agiotas com a excomunhão. À medida que o capitalismo se desenvolveu, essas atitudes medievais em relação à atividade econômica se tornaram obsoletas. o ideal primitivo fora a economia natural autossuficiente; agora, a burguesia nascente e a cora eram tomadas por uma apaixonada sede de dinheiro. Antes, o comércio profissional fora considerado um pecado; agora, o comércio exterior era visto como a principal fonte de riqueza da nação, e todas as medidas eram aplicadas no esforço para expandi-lo. Em tempos anteriores, a cobrança de juros fora banida; agora, a necessidade de desenvolver o comércio e o crescimento da economia monetária significava que, ou se encontravam meios para suprimir essas proibições, ou a economia inteira sucumbiria com elas. As novas concepções econômicas, que correspondiam aos interesses de um capital emergente e de uma burguesia comercial, encontraram seus proponentes nos mercantilistas. Essa designação é aplicada a um vasto número de escritores do século XVI ao século XVIII que viveram nos diversos países da europa e trataram de temas econômicos. O volume de seus escritos é enorme, embora muitos tenham tido apenas uma importância localizada e não sejam mais lembrados. Tampouco se pode dizer que todos os mercantilistas tenham professado uma “teoria mercantilista”: em primeiro lugar, porque eles não concordam de modo algum em todas as questões e, em segundo lugar, porque em parte alguma de suas obras se pode encontrar uma “teoria” unificada que abarque todos os fenômenos econômicos. O caráter geral da literatura mercantilista era mais prático do que teórico, estando ela preponderantemente devotada às específicas questões que haviam surgido com o desenvolvimento do capitalismo primitivo e que demandavam urgentemente uma solução prática. O cerco às terras comuns e a exportação de lã; os privilégios dos comerciantes estrangeiros e os monopólios garantidos às companhias de comércio; as proibições à exportação de metais preciosos e os limites impostos às taxas de juros; a estabilidade da moeda inglesa em relação às flutuações das taxas de câmbio das moedas dos outros países - todas essas questões eram de vital importância prática para a burguesia mercantil inglesa da época e constituía a preocupação central da literatura mercantilista inglesa, a mais avançada na Europa. Assim como as próprias questões, também as conclusões a que se chegava nos escritos mercantilistas eram fundamentalmente práticas em sua orientação; Seus autores não eram eruditos de cátedra, divorciados da vida real e dedicados à discussão de problemas teóricos abstratos. Muitos deles participavam ativamente dos negócios práticos, como mercadores, membros de associações e companhias de comércio (por exemplo, a Companhia das Índias Orientais), ou como oficiais de comércio ou de alfândega. Abordaram os problemas que lhes interessavam, não como teóricos buscando desvelar as leis dos fenômenos econômicos, mas como homens práticos que tinham como objetivo influenciar o curso da vida econômica com a reivindicação da assistência ativa do Estado. Muitos dos escritos mercantilistas consistiam em panfletos militantes, defendendo ou refutando com urgência medidas estatais do ponto de vista dos interesses da burguesia mercantil. Mas para poder justificar uma política prática particular, eles tinham de provar que o que defendiam era uma causa de interesse da economia em geral, o que os compelia a estabelecer o nexo casual entre diferentes fenômenos econômicos. E foi assim, desse modo gradual e hesitante, que se produziam - na forma de ferramentas auxiliares na resolução de questões relativas à política econômica - as primeiras manifestações daquilo que viria a se tornar a ciência contemporânea da economia política. Notamos anteriormente que a política mercantilista era a expressão da união entre a Coroa e a burguesia mercantil em desenvolvimento, e que saber se o mercantilismo assumiria um caráter burocrático ou burguês-capitalista era algo que dependia das forças relativas das duas forças sociais envolvidas nesse bloco temporário. Em países atrasados como a Alemanha, onde a burguesia era fraca, era o lado burocrático que predominava; em países avançados, dos quais a Inglaterra era o mais notável, preponderava o lado capitalista. Em correspondência a esse estado de coisas, a literatura mercantilista alemã assumiu basicamente a perspectiva do oficialismo burocrático, ao passo que na Inglaterra ela refletia a visão do comércio e dos negócios. Para usar a descrição altamente apropriada dada por um economista, as obras mercantilistas alemãs eram essencialmente escritas por oficiais e para oficiais; as inglesas, escritas por negociantes e para negociantes.Na atrasada Alemanha, onde o sistema de guildas ainda subsistem tenazmente, deu-se um esplêndido florescimento da literatura “cameralista”, dedicada principalmente a questões relativas ao gerenciamento financeiro e ao controle administrativo da vida econômica. Já na Inglaterra surgiram, a partir de discussões sobre problemas de política econômica, os precursores daquelas ideias que mais tarde seriam apropriadas e desenvolvidas pela escola clássica. Ao tratarmos da literatura mercantilista, teremos sempre em mente essa escola comercial-mercantil que constitui seu corpo mais avançado e característico. Recebendo sua mais clara formulação na Inglaterra, ela exerceu a mais profunda influência sobre a evolução futura do pensamento econômico. O caráter “mercantil” da literatura mercantilista se manifesta em sua consistente defesa do capital mercantil ascendente, cujos interesses são identificados com aquele do Estado como um todo. Os mercantilistas enfatizam firmemente que o crescimento do comércio se dá em benefício de todos os setores da população. “Quando o comércio floresce, aumenta a receita da Coroa, melhoram as propriedades rurais e as rendas, cresce a navegação e o povo pobre encontra trabalho. Se o comércio declina, isso tudo declina junto com ele.” Essa formulação de Misselden (do início do século XVII) visava afirmar que os interesses da burguesia comercial coincidiam com aqueles das outras forças sociais da época: a Coroa, os senhores rurais e a classe trabalhadora. A atitude tomada pela literatura mercantilista em relação a esses diferentes grupos sociais revela claramente o quão íntima era sua ligação com os interesses de classes da burguesia mercantil. Desse modo, os mercantilistas se revelaram como advogados de uma íntima aliança entre a burguesia comercial e a Coroa. O objetivo de sua preocupação era aumentar “a riqueza do rei e do Estado” e incrementar o “comércio, a navegação, os estoques de metais preciosos e os tributos reais”; afirmavam que, se o país tivesse uma balança favorável de comércio, isso possibilitaria ao tesouro real acumular somas maiores de moeda. Paralelamente a isso, eles repetiam insistentemente que a Coroa só podia aumentar sua receita onde o comércio exterior crescia - isto é onde se dava um crescimento das receitas da burguesia. A moeda acumulada pelo tesouro estatal não deve exceder aquele nível que corresponde ao volume do comércio exterior e da renda nacional. De outro modo, “toda a moeda num tal Estado seria subitamente açambarcar pelo tesouro do príncipe, o que destruiria o cultivo da terra e as técnicas manuais e levaria à ruína, tanto da riqueza pública como da privada”. Um colapso econômico privalia a Coroa da habilidade de uma proveitosa “tosquia de seus súditos”, Assim a própria Coroa tem todo interesse em empregar ativamente medidas para promover o crescimento do comércio, mesmo onde tais medidas possam agir temporariamente contra seus interesses fiscais, como, por exemplo, no caso da redução de tarifas alfandegárias. “Faz-se necessário não sobrecarregar as mercadorias nativas com taxas demais, encarecendo-as para o mercado estrangeiro e, assim, dificultando sua venda.” Se os mercantilistas queriam fazer da Coroa um ativo aliado da burguesia mercantil, eles não podiam manter tais esperanças em relação aos proprietários de terra. Sabiam que, ao defender tais medidas, provocaram a insatisfação dos senhores rurais; no entanto, eles tentavam aplacar esse descontentamento argumentando que o crescimento do comércio traz consigo um aumento nos preços dos produtos agrícolas e, assim, também um aumento das rendas e do preço da terra.
Pois quando o mercador recebe uma boa encomenda ultramarina de
seu tecido ou outras mercadorias, ele imediatamente retorna para comprar uma quantidade maior, o que eleva o preço de nossa lã e outras mercadorias e, consequentemente, aumenta as rendas dos senhores rurais [...]. E como, também por esse meio, mais dinheiro é ganho e trazido para o Reino, muitos homens passam a ter condições de comprar terras, o que acaba por encarecer seu preço.
Com argumentos assim, esses plenipotenciários da jovem burguesia tentavam
atrair a classe dos senhores rurais para os sucessos do comércio; mas isso não significava que eles faziam vista grossa ao conflito de interesses que havia entre eles. Os mercantilistas já haviam advertido os proprietários de terra de que os interesses do comércio e das indústrias de exportação teriam prioridade sobre os da agricultura e da produção de matérias-primas.
E considerando-se que as pessoas que vivem do trabalho manual são
em número muito maior do que aquelas que vivem da agricultura, deveríamos apoiar com o máximo de zelo aquelas atividades de multidão que constituem a força e a riqueza tanto do rei como do reino: pois onde quer que o povo seja numeroso os ofícios bons, as trocas têm de ser grandes e o país, rico.
Na literatura mercantilista posterior, pode-se encontrar uma intensa polêmica
entre representantes da burguesia financeira e dos proprietários de terra acerca da taxa de juros que deveria ser cobrada sobre os empréstimos. Havia, porém, uma questão sobre a qual os interesses de ambas as classes coincidiam e nçao mostravam o mínimo sinal de divergência: a exploração da classe trabalhadora. As multidões de camponeses sem-terra e de arruinados artesãos, os vagabundos desclassificados e os mendigos sem-teto descartados pelo colapso da economia rural e das guildas foram um objeto bem-vindo de exploração para a indústria, assim como para a agricultura. O limite legal estabelecido para os salários obteve, em geral, a viva aprovação, tanto do senhor rural quanto do burguês. os mercantilistas nunca deixaram de se queixar da “indolência” dos trabalhadores ou de sua falta de disciplina e baixa adaptação à rotina do trabalho industrial. Se o pão está barato, o operário trabalha apenas dois dias na semana, ou o que for necessário para assegurar as necessidades da vida, e o resto do tempo é livre para diversão e embriaguez. Para fazê-lo trabalhar numa base constante, sem interrupções, ele tem de ser submetido, mais do que à coerção estatal, ao duro flagelo da escassez e da necessidade - em suma, à coerção exercida pelo alto preço dos cereais. No início do século XIX, a burguesia inglesa confrontaria os proprietários rurais pela redução do preço dos cereais e, consequentemente, redução do preço da força de trabalho. Mas no século XVII, muitos mercantilistas ingleses estavam em pleno acordo com os proprietários rurais na defesa dos altos preços dos cereais como um meio de forçar os trabalhadores à labuta. Chegavam até mesmo à afirmação paradoxal de que cereais caros tornam o trabalho barato e vice-versa, uma vez que o alto preço dos cereais faz o trabalhador empregar à sua atividade um esforço maior. De acordo com Petty, escrevendo na segunda metade do século XVII: “observado por Clothiers, e por outros que empregam um grande número de pessoas pobres, que quando os cereais são abundantes, o trabalho dos pobres é proporcionalmente caro e difícil de conseguir (pois são tão licenciosos que trabalham apenas para comer ou, mais ainda, para beber)”. Disso se segue que “a lei que estabelece tais salários [...] deveria conceder ao trabalhador apenas o estritamente necessário para viver; pois se ela lhe concede o dobro, ele trabalha apenas a metade do que poderia ter trabalhado; o que, para o público, representa uma perda dos frutos de tanto trabalho”. Para Petty, não há nada injusto em “limitar os salários dos pobres, de modo que eles não tirem nenhuma vantagem de seu tempo ocioso e queiram trabalhar”. O público, na visão de Petty, tem de se encarregar desses indivíduos inaptos ao trabalho; do mesmo modo que os desempregados, eles deveriam ser encaminhados ao trabalho nas minas, na construção de estradas e edifícios, etc. - uma política recomendável porque é capaz de “forças suas mentes à disciplina e a obediência e seus corpos à paciência para aguardar o surgimento de um trabalho mais rentável quando a necessidade assim o exigir”. Em sua defesa dos interesses do jovem capitalismo e sua preocupação pela conquista de mercados estrangeiros para os comerciantes e exportadores ingleses, os mercantilistas estavam naturalmente preocupados com a mobilização de uma base adequada de mão de obra disciplinada e barata. Os mercantilistas defendiam algo semelhante à lei de ferro dos salários - embora apenas em forma embrionária. Todavia, de acordo com a natureza geral de sua doutrina, tal lei ainda não aparece como proposição teórica, mas como prescrição prática: a visão mercantilista é a de que o salário do trabalhador não deva exceder os meios mínimos necessários para a subsistência. O ponto de vista comercial-mercantil da literatura mercantilista inglesa, que emerge tão claramente em sua atitude com as diferentes classes sociais, também deixou suas marcas no conjunto de problemas - e suas soluções - que constituíam seu objeto de interesse. É muito frequente a afirmação de que a doutrina mercantilista seria redutível à ideia de que os metais preciosos são a única forma de riqueza. Adam Smith critica duramente “a noção absurda dos mercantilistas de que a riqueza consiste na moeda”. E, no entanto, tal caracterização é bastante injusta. Os mercantilistas consideravam o aumento na quantidade de metais preciosos não como uma fonte de riqueza da nação, mas como um dos sinais de que essa riqueza estava crescendo, apenas os mercantilistas primitivos permaneciam intelectualmente confinados na esfera da circulação monetária. Os teóricos do mercantilismo desenvolvido, com a doutrina do “equilíbrio comercial”, desvelam a conexão entre o movimento dos metais preciosos e o desenvolvimento geral do comércio e da indústria. Muita coisa ainda restava superficial nessa análise da interconexão entre diferentes fenômenos econômicos, mas ela estava livre das noções ingênuas de seus predecessores e , desse modo, abria o caminho para o futuro desenvolvimento científico. Devemos, agora, passar à descrição do conteúdo e da evolução das visões mercantilistas.