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O inglês, o português e a ciência


Margarita Correia. 20 Julho 2020 — 20:47. TÓPICOS; Opinião; Margarita Correia

A ideia de que existem línguas mais aptas ou eficazes para determinados tipos de comunicação é um
mito que importa desfazer. Todas as línguas são à partida igualmente aptas para qualquer tipo de
comunicação em qualquer âmbito de experiência ou de conhecimento. Aquilo que as diferencia é a
quantidade de âmbitos e funções para que os seus falantes as usam. É tão insensato dizer que o inglês é uma
língua mais mais apta ou mais eficaz para a comunicação científica, (e.g. porque é mais lógica), como é
achar que o português é a melhor língua para escrever poesia (e.g. porque é mais musical), ou que é mais
rica ou mais traiçoeira do que as outras.
Do ponto de vista científico, Portugal desenvolveu-se enormemente nas três últimas décadas, ou seja,
os portugueses passaram a produzir ciência nas mais diferentes áreas. Hoje já não surpreende ver equipas e
cientistas portugueses envolvidos ou a liderar grandes projetos internacionais, ou premiados pela excelência
do seu trabalho. Ora, se uma língua reflete e se adapta à sociedade que a fala, seria de esperar que este
desenvolvimento científico se observasse na mesma proporção nos registos especializados da língua e em
particular das suas terminologias científicas e técnicas. Porém, a proporcionalidade entre o desenvolvimento
da produção científica e a língua portuguesa não tem ocorrido.
Com exceção da produção na área das ciências sociais e humanidades, grande parte da produção
científica portuguesa (artigos em revistas, participação em eventos científicos, dissertações, teses) é feita em
língua inglesa, verdadeira "lingua franca" da ciência e da tecnologia na atualidade, tal como foi o latim na
Europa durante a Idade Média e parte da Idade Moderna.
O predomínio do inglês na ciência resulta da convergência de múltiplos fatores políticos,
económicos, históricos, expostos de forma clara e acessível por David Crystal, na sua obra English as a
Global Language, com primeira edição de 1997. No nosso caso, esse predomínio acontece, também, porque
muito do financiamento da investigação levada a cabo em Portugal provém direta ou indiretamente de
fundos internacionais, sobretudo a partir da adesão do país à UE, adesão que foi, junto com a visão inspirada
de Mariano Gago, grandemente responsável pelo "boom" científico a que assistimos a partir, sobretudo, dos
anos 90 do século XX. Por outro lado, a maioria das revistas mais bem cotadas e os mais importantes
eventos científicos, mesmo portugueses, têm como língua de trabalho exclusiva o inglês, de forma que um
investigador ou um professor universitário tem maiores probabilidades de ver o seu trabalho e o da sua
unidade mais bem avaliados se escrever em inglês. Além disso, começa a ser frequente em algumas áreas
(e.g. a economia e a gestão nas "business schools") o próprio ensino universitário pós-graduado em Portugal
ser ministrado em inglês, o que pode ser justificado quer como forma de atrair estudantes estrangeiros, quer
como garantia de formação de quadros altamente qualificados e aptos a competir num mundo cada vez mais
global e competitivo.
Se esta prática é incontestavelmente benéfica para a internacionalização do país e traz claras
vantagens aos investigadores e à ciência portugueses em termos de (re)conhecimento além-fronteiras, não se
pode descurar os impactos negativos que ela tem, e.g. sobre a extensa comunidade de falantes de língua
portuguesa, para quem o português é a língua de ensino, o veículo de acesso ao conhecimento e o passaporte
para a comunicação internacional. Se muitas outras razões não houvesse para produzir e divulgar ciência em
português, bastaria pensar que a maioria dos falantes de português não domina o inglês. Teremos o direito
de deixar milhões de concidadãos para trás?

As relações entre língua, ciência, educação, sociedade e cidadania são tantas e tão fortes que merecem
seguramente outras reflexões.

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