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LUIZ FERNANDO DA SILVA NOGUEIRA

DARCY RIBEIRO E A DIMENSÃO CIVILIZATÓRIA DO DESENVOLVIMENTO:


ENTRE A ACELERAÇÃO EVOLUTIVA E A ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Campinas
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ECONOMIA

LUIZ FERNANDO DA SILVA NOGUEIRA

DARCY RIBEIRO E A DIMENSÃO CIVILIZATÓRIA DO DESENVOLVIMENTO:


ENTRE A ACELERAÇÃO EVOLUTIVA E A ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Instituto de Economia da Universidade Estadual de
Campinas, como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Bacharel em Ciências
Econômicas, sob orientação do Prof. Dr. Carlos
Alberto Cordovano Vieira.

Campinas
2021
“Para dizerem milho dizem mio
Para melhor dizem mió
Para pior pió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhados.”
(Vício na Fala, Oswald de Andrade)

“No presente, a mente, o corpo é diferente


E o passado é uma roupa que não nos serve
mais”
(Velha Roupa Colorida, Belchior)
RESUMO

O objetivo deste trabalho é expor, desenvolver e refletir acerca do que Darcy Ribeiro entende
por desenvolvimento. Para isto, propomos realizar um detalhamento de seu escopo teórico,
desenvolvido principalmente na obra O Processo Civilizatório (1968). Portanto, realizamos o
esforço de expor as principais categorias apropriadas, reformuladas e desenvolvidas pelo autor,
a fim de compreender a dinâmica do que ele chama de Evolução Sociocultural. Tratamos, então,
brevemente, de todas as Revoluções Tecnológicas categorizadas pelo autor, com ênfase na
Revolução Pastoril, na Revolução Mercantil e na Revolução Industrial, especialmente
importante para entendermos o que o autor chama de Civilizações Mundiais, principalmente
com a expansão europeia às Américas, região onde se desenvolverão boa parte dos povos
subdesenvolvidos. Neste escopo, demos centralidade a dois processos complementares
fundamentais na dinâmica do processo civilizatório – a aceleração evolutiva e a atualização
histórica -, responsáveis pela diferenciação e, ao mesmo tempo, a homogeneização do fazer
humano. Argumentamos, portanto, que o tema do desenvolvimento em Darcy Ribeiro assume
uma outra dimensão - uma dimensão civilizatória, que se encontra na própria raiz da dinâmica
de conformação das sociedades humanas – iniciada, aqui, com a Revolução Agrícola. Assim,
tentamos expor com rigor a proposta do autor de formular uma antropologia dialética, de base
evolucionista, visando enriquecer o que comumente se compreende por desenvolvimento.

Palavras-chave: Desenvolvimento. Antropologia. Evolucionismo.


ABSTRACT

The objective of this work is to expose, develop and reflect upon what Darcy Ribeiro means by
development. For this, we proposed a detailing of his theoretical scope, mainly developed in the work
O Processo Civilizatório (1968). Therefore, we made the effort of expose the main appropriate
categories, reformulated and developed by the author, to comprehend the dynamics of what he calls
Sociocultural Evolution. We covered, then, briefly, all the Technological Revolutions categorized by
the author, with emphasis on the Pastoral Revolution, the Mercantile Revolution and the Industrial
Revolution, especially important to understand what is the Worldwide Civilizations, mainly with the
European expansion to the Americas, region where will be developed a good part of the underdeveloped
people. In this scope, we gave centrality to two complementary and fundamental processes in the
dynamics of the civilizing process – the evolutionary acceleration and the historical actualization -,
responsible to the differentiation and, at the same time, the homogenization of the human way. We
argue, therefore, that the development theme in Darcy Ribeiro takes another dimension – a civilizing
dimension –, that is at the very root of the human society formation dynamics – started, here, with the
Agricultural Revolution. So, we tried to expose with rigor the author’s proposal of formulate
an evolutionary-based Dialectical Anthropology, aiming to flourish what is commonly
understood by development.

Keywords: Development. Anthropology. Evolutionism.


SUMÁRIO

1 APRESENTAÇÃO........................................................................................................6
2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO..............................................................................7
2.1 INTRODUÇÃO: UMA ANTROPOLOGIA DIALÉTICA............................................7
2.2 A EVOLUÇÃO SOCIOCULTURAL E O IMPERATIVO DA NATUREZA...............9
2.3 AS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS E SEUS CORRESPONDENTES
PROCESSOS CIVILIZATÓRIOS............................................................................................13
2.4 A ACELERAÇÃO EVOLUTIVA E A ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA.....................17
3 A CIVILIZAÇÃO MUNDIAL, AS AMÉRICAS E O DESENVOLVIMENTO NO
PROCESSO CIVILIZATÓRIO............................................................................................21
3.1 A REVOLUÇÃO PASTORIL E OS IMPÉRIOS DESPÓTICOS
SALVACIONISTAS.................................................................................................................21
3.2 A REVOLUÇÃO MERCANTIL..................................................................................24
3.3 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E OS POVOS SUBDESENVOLVIDOS................29
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................36
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................37
6

1 APRESENTAÇÃO
Logo na abertura do prefácio à primeira edição da obra O Processo Civilizatório (1968),
Darcy Ribeiro apresenta sua proposta ao elaborar este trabalho:

Iniciamos com este livro a publicação de uma série de estudos sobre o processo de
formação dos povos americanos, sobre as causas do seu desenvolvimento desigual e
sobre as perspectivas de autossuperação que se abem aos mais atrasados. O objetivo
deste primeiro estudo é proceder a uma revisão crítica das teorias da evolução
sociocultural e propor um novo esquema do desenvolvimento humano. (RIBEIRO,
1997, p. 7)

Desta introdução, destacaremos dois pontos que consideramos fundamentais para este
trabalho – primeiro, notar que o que é proposto é um esquema do desenvolvimento humano, ou
seja, logo já nos deparamos com a dimensão que o autor trata ao falar em desenvolvimento
neste trabalho. Segundo, é sua proposta de realizar uma revisão crítica nas ciências sociais
quanto ao tema da evolução sociocultural. A respeito de nosso primeiro destaque, já a partir
deste trecho do prefácio escrito pelo autor em questão que podemos pensar em uma dimensão
civilizatória do desenvolvimento – isto é, se buscamos compreender a amplitude que o conceito
adquire no trabalho de Darcy Ribeiro, partimos de suas próprias palavras para olharmos sobre
o processo de desenvolvimento das sociedades, isto é, do fazer humano.
Na realidade, este primeiro destaque vai de encontro com sua intenção de realizar uma
revisão crítica. Isto porque Darcy Ribeiro buscava compreender a verdadeira razão do
subdesenvolvimento dos povos latino-americanos – vendo-se, assim, na necessidade de
formular uma teoria geral da evolução, na qual o desenvolvimento cultural é fruto de uma ação
recíproca entre forças definidas, e que atuam sob condições específicas. Assim, este trabalho é
uma proposta de compreender estas forças definidas categorizadas por Darcy Ribeiro ao longo
de algumas obras. No fundo, então, nosso autor está confrontando dois esquemas conceituais,
ainda que distintos – e, talvez até opostos. -, no tocante aos estudos sobre o desenvolvimento
desigual dos povos americanos: a antropologia acadêmica e o marxismo.

O primeiro deles se baseia na ideia de descompassos num “processo natural” de


transição entre formações arcaicas e modernas, pela passagem de economias de base
agro-artesanal e economias de base industrial. E na ideia adicional de que neste
trânsito se configuram áreas e setores progressistas e retrógrados em cada sociedade,
cuja interação seria o fator dinâmico ulterior do processo. Sua expressão mais
elaborada são os chamados estudos de “dualidade estrutural”, “modernização
reflexa”, “mobilidade social” e de transição do “modo tradicional” ao “modo
industrial” das sociedades. (RIBEIRO, 1977, p. 15)
7

No fundo, então, a antropologia acadêmica, segundo Darcy Ribeiro, acaba por elaborar
uma espécie de “etapismo”, o que leva a interpretação de que o atraso de algumas sociedades
(a América Latina, por exemplo) se dá pela carência de atributos que se encontram na sociedade
norte-americana, por exemplo, como certos corpos de valores, estratos sociais, instituições ou,
até mesmo, tipos de personalidade. Isto é, os povos subdesenvolvidos assim o são por falta de
inserção em uma estrutura moderna e industrializada, o que os impediu de desenvolver corpos
de valores igualmente modernos, ou seja, mais avançados. Assim, omite-se o fato de que os
povos da América Latina receberam o impacto da Revolução Industrial condicionando-os a
consumidores destes produtos industrializados, “introduzidos até os limites necessários para
tornar suas economias mais eficazes como produtores de matérias-primas, mas sempre com a
preocupação de mantê-las dependentes” (RIBEIRO, 1977, p. 17).

Já no tocante ao segundo esquema conceitual, ao qual o autor chama de “marxismo


dogmático”, sua elaboração se encontra na ideia de que as diferenças de desenvolvimento das
sociedades modernas são explicadas a partir de etapas de um processo evolutivo unilinear e
irreversível, que seria comum a todas as sociedades humanas. Neste sentido, as sociedades
atrasadas seriam aquelas que possuem em maior quantidade elementos de etapas passadas da
evolução humana. O que Darcy Ribeiro propõe com seu estudo, então, é desmistificar estas
noções de desenvolvimento das sociedades, com a preocupação de compreender a fundo o
atraso latino-americano. Portanto, é sobre esta motivação que Darcy Ribeiro elabora uma série
de obras, cujo ponto de partida é o estudo sobre o processo civilizatório, no qual propõe elaborar
um novo esquema da evolução humana. Dito isso, nosso objetivo é compreender os passos
iniciais do autor, visando compreender o desenvolvimento pela dimensão civilizatória – o
desenvolvimento humano.

2 O PROCESSO CIVILIZATÓRIO

2.1 INTRODUÇÃO: UMA ANTROPOLOGIA DIALÉTICA

Introjetar-se na obra de Darcy Ribeiro consiste em entrar em contato com uma gama de
conceitos elaborados, ou até mesmo reelaborados, a fim de compreender a formação dos povos.
No conjunto de seu trabalho que parte de O Processo Civilizatório (1968) até a elaboração de
As Américas e a Civilização (1969), analisaremos como o autor elabora uma teoria geral de
formação dos povos e de sua relação entre si e com a natureza, para, posteriormente,
verificarmos como os povos se formam a partir desse escopo teórico que analisaremos aqui —
sendo o processo civilizatório “uma primeira esquematização dos passos da evolução
tecnológica, social e ideológica das sociedades humanas” (RIBEIRO, 1997, p. 9).
Para isso, porém, é preciso ter em mente sua intenção ao propor um esquema teórico
sobre as etapas da evolução sociocultural. Na verdade, Darcy Ribeiro pretendia preencher uma
lacuna significativa nas Ciências Sociais, a seu ver, fugindo tanto das microanálises
antropológicas no tocante à dinâmica cultural, carecendo de formular uma explicação teórica
complexa nos termos da interação entre os diversos conteúdos presentes em cada cultura ao
8

longo do movimento da história. Assim, critica os estudos funcionalistas, afirmando serem


insuficientes principalmente para se compreender o modo de ser das sociedades
contemporâneas. Em segundo lugar, se revela um grande crítico de uma certa interpretação
dogmática do marxismo, isto é, daqueles que seguem à risca a palavra de Marx sem considerar
não apenas as particularidades históricas e culturais dos diversos povos, mas também por
negarem o papel fundamental dos meios de produção, isto é, da tecnologia nas sucessões das
formações econômico-sociais — tal como seriam, segundo ele, os esquemas evolutivos de
Marx.
Darcy Ribeiro, então, ao ser um brasileiro etnólogo de índios, “nem sequer marxista”,
acusado de querer inventar o moto-contínuo da história, lhe resta afirmar: “O diabo é o que eu
pretendia mesmo!” (Ibid., p. 23). Para isso, fez uso de duas grandes contribuições teóricas — a
obra Ancient Society, de Lewis H. Morgan (1877 apud RIBEIRO, 1997), organizando a história
humana em três etapas de evolução gerais: a selvageria, a barbárie e a civilização. Com a
contribuição antropológica vinda do evolucionismo de Morgan, admirado por Marx e Engels,
Darcy Ribeiro coloca, na realidade, como principal base da elaboração suas obras, o estudo de
Karl Marx (1985) acerca das formações econômicas pré-capitalistas, escrito em torno de 1857–
1858, porém publicado apenas em meados do século XX. A importância de ter como pedra
angular essa contribuição específica de Marx entra em choque com a abordagem evolucionista
que se tinha dentro do marxismo a partir da obra A Origem da Família, da Propriedade Privada
e do Estado (1884), de Friedrich Engels (2019). De fato, a contribuição de Engels abriu
possibilidade para a difusão de uma visão unilinear da evolução humana, na qual todas as
sociedades se realizariam em etapas determinadas e comuns, segundo o esquema: sociedades
primitivas, escravismo, feudalismo, capitalismo, socialismo e comunismo. O estudo de Marx,
porém, vai justamente colocar em cheque essa forma de argumentar a evolução das sociedades
ao introduzir o fato de que uma mesma revolução tecnológica deu origem a mais de um processo
civilizatório, ou seja, a relação entre ser humano e natureza, ainda que possa se dar a partir de
uma mesma relação tecnológica e de apropriações semelhantes dos recursos naturais,
construiria multilinearidades evolutivas — determinadas principalmente, para Darcy Ribeiro,
pela diferenciação étnica.
Portanto, é a partir dessa bagagem teórica que sua intenção pode ser resumida em uma
carta enviada à Florestan Fernandes, em outubro de 1971:

[...] refazer o materialismo histórico como uma antropologia dialética. Não pense que
desejo fazer um ecletismo. Isso foi o que tentaram muitos no esforço por melhorar a
sociologia e antropologia com pequenas doses de marxismo. Ou outros que queriam
9

incorporar o marxismo às ciências sociais para domesticá-lo. (RIBEIRO, 1971 apud


VASCONCELLOS, 2015, p. 32)

Desta maneira, o teórico brasileiro pretendia, principalmente a partir do materialismo


histórico, elaborar um esquema teórico da evolução sociocultural, tendo a relação do homem
com a natureza — isto é, a produção tecnológica — como base para se compreender a evolução
das culturas. Porém, com isso, seu objetivo era explicitar as razões pelas quais os povos latino-
americanos permanecem subdesenvolvidos, analisando a partir de sua formação civilizatória.
Ou seja, é para se compreender da maneira mais profunda os desafios colocados à América
Latina frente a seu subdesenvolvimento que Darcy Ribeiro elabora um esquema conceitual
abrangendo o homem na história nos últimos 10.000 anos.
Nesse sentido, a teoria de Darcy Ribeiro mostra-se importante para que possamos
entender o significado por trás da formação das Américas, isto é, o significado, do ponto de
vista civilizatório, da expansão europeia de acordo com o instrumental proposto para se
compreender as etapas da evolução sociocultural. A partir disso, lança-se um questionamento
fundamental: qual a razão para o suposto atraso de alguns povos? A saída para o
desenvolvimento das Américas é pura e simplesmente a intensificação da industrialização?
A hipótese do autor é a de que o processo de formação da civilização americana,
sobretudo se tratando da América Latina, foi um empreendimento que garantiu o
desenvolvimento de outras nações — ou seja, determinada parte do processo civilizatório só
prosperou por conta da exploração de outras regiões, às custas de outros povos e etnias, que
passaram a ser desconfigurados, dando origem a novas configurações culturais, fruto da
expansão civilizatória, realizada principalmente pela dinâmica de dois processos
complementares: a aceleração evolutiva e a atualização histórica.
Consideramos, desse modo, o trabalho de Darcy Ribeiro de suma importância para que
possamos ter um outro olhar sobre a problemática do desenvolvimento, tomado aqui, em
resumo, pela sua dimensão civilizatória — e que parte do processo geral de formação dos povos
nos últimos dez milênios, a partir das sucessivas Revoluções Tecnológicas. Para isto,
precisaremos analisar o método de teorização proposto pelo autor para que possamos avançar
na compreensão de sua linha argumentativa e pensarmos o desenvolvimento sob outra ótica.
Portanto, aqui, a questão do desenvolvimento está inserida diretamente na configuração étnica
dentro de etapas evolutivas do processo civilizatório.

2.2 A EVOLUÇÃO SOCIOCULTURAL E O IMPERATIVO DA NATUREZA


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Darcy Ribeiro, logo na introdução, abre sua obra inaugural de antropologia, datada de
1968, com o seguinte parágrafo:

Nos últimos anos, praticamente todos os antropólogos retomaram a perspectiva


evolucionista, reformulada, agora, em termos explicitamente multilineares e
descomprometida do caráter conjectural de muitos dos antigos ensaios sobre a origem
de costumes e instituições. Entretanto, não se conta ainda com um esquema global das
etapas da evolução sociocultural formulado com base nas contribuições mais recentes
da arqueologia, da etnologia e da história, que permita situar qualquer sociedade,
extinta ou atual, dentro do continuum do desenvolvimento sociocultural. (RIBEIRO,
1997, p. 33)

Com isso, fica evidente sua crítica à antropologia de então e seus esquemas conceituais
muito baseados, segundo ele, em microanálises, sendo então insuficientes para se compreender
os processos pelos quais as transformações culturais se plasmam, dando origem às diversas
etnias. Isto é, os estudos do desenvolvimento e da modernização exigiriam um esquema teórico
mais amplo e que não privilegie apenas a interação entre os conteúdos verificados em cada
cultura a fim de evitar o risco de conceituações genéricas e equivocadas tanto do ponto de vista
evolutivo como do ponto de vista histórico. Darcy Ribeiro se propõe, dessa forma, a suprir a
carência de um desenvolvimento teórico mais amplo e sofisticado, elaborando uma
reformulação das concepções de evolução sociocultural a fim de se debruçar sobre o processo
de formação étnica e de desenvolvimento geral da civilização compreendido em etapas, dentro
de suas múltiplas possibilidades, mas que são marcadas principalmente pelo que o autor chama
de Revolução Tecnológica.
Assim, o autor estabelece como pressuposto três ordens de imperativos em que se
enquadram as variações da organização da vida social. Para ele, a organização do homem na
sociedade não se dá de forma arbitrária, por isso é possível se estabelecer caracteres evolutivos
gerais a partir destas três ordens: (i) o caráter acumulativo do progresso tecnológico, que se
desenvolve numa sequência evolutiva irreversível, ainda que diferenciada nos processos
civilizatórios; (ii) as relações geradas e difundidas a partir desse progresso tecnológico, seja
entre os membros de uma mesma sociedade, seja em relação a outras sociedades; (iii) a
interação entre os esforços de controle da natureza e a difusão na sociedade expressos pela
conduta social, revelando-se no conjunto de valores e de corpos de saber.

Essas três ordens de imperativos – tecnológico, social e ideológico – e o caráter


necessário de suas respectivas conexões fazem com que a uma classificação de etapas
evolutivas de base tecnológica devam corresponder classificações complementares
fundadas nos padrões de organização social e nos moldes de configuração ideológica.
Se isso é verdade, torna-se possível elaborar uma tipologia evolutiva geral, válida para
as três esferas, ainda que fundada na primeira delas, e em cujos termos possam situar
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as sociedades humanas em um número limitado de modelos estruturais seriados numa


sequência de etapas evolutivas. (Ibid., p. 40)

Colocados os três contingenciamentos básicos enquanto pressupostos, é a partir deles


que se realizam os processos civilizatórios, dando origem a sociedades humanas através da
operação de processos simultâneos de autotransformação que se complementam — um deles
sendo responsável pela diversificação das culturas, o outro por sua homogeneização. Graças ao
primeiro, os contingentes populacionais são multiplicados e desdobrados em multiplicidades
étnicas que correspondem às suas particularidades culturais. Enquanto isso, o segundo processo
é o que garante que, mesmo com as diferenciações dos grupos humanos, haja uma certa
homogeneização em seus modos de vida por meio da fusão dessas entidades étnicas de maneira
inclusiva, gerando novos patrimônios culturais que, em paralelo, apresentam traços uniformes.
Ou seja, no desenvolvimento evolutivo das sociedades corre um movimento simultâneo de
homogeneização e de diferenciação, dando origem a contingentes humanos que se reconhecem
de uma maneira geral, mas diferenciam-se de acordo com suas vicissitudes históricas, dentro
de múltiplas configurações étnicas, desdobrando-se em expressões culturais e simbólicas
específicas, ainda que evoluam dentro do processo evolutivo geral formador das sociedades
humanas.
O que garante, em certa medida, uma homogeneidade presente na evolução dos diversos
processos civilizatórios ao longo da história é justamente a uniformidade da natureza sobre a
qual se atua — aquilo que, em última instância, define o caráter da formação resultante da ação
humana. Ou seja, é a natureza quem primeiramente dá os requisitos para que a transformem de
acordo com as possibilidades tecnológicas desenvolvidas a partir desses requisitos próprios. E
é esse requisito que garante um mínimo corpo de conhecimentos objetivos entre as culturas na
medida em que todas estão sujeitas a ele e às suas determinações — é daí que se dá um
reconhecimento geral entre a humanidade, ainda que as alterações se realizem de diversas
formas.
Assim, entendemos que o processo de caráter diversificador é resultado das diferentes
formas de adaptação ecológica (mediante a relação com a natureza), garantindo qualidades
culturais particulares às diversas formações de grupos humanos em virtude da especificidade
histórica. No entanto, há algo que garante formas gerais de adaptação humana, ainda que
respeite a diversificação de caracteres — esse processo homogeneizador da formação humana
é precisamente o que nos permite falar em evolução sociocultural. As possibilidades humanas
se encontram, então, limitadas a responder aos mesmos imperativos fundamentais, estando
sujeitas à criação de estruturas mais ou menos uniformes, que se encaixam dentro dos mesmos
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enquadramentos condicionadores, por conta do imperativo de sua relação com a natureza —


constituindo, dessa maneira, uma “tipologia genética universal” (Ibid., p. 43).

O exame das variedades do modo de ser das sociedades humanas, a respeito das quais
contamos com documentação adequada, revela que elas são classificáveis em
diferentes categorias, de acordo com o grau de eficácia que alcançaram no domínio
da natureza. Demonstra, também, que elas são ativadas por um processo de
desenvolvimento que, embora não opere simultaneamente com o mesmo vigor sobre
cada uma delas, não atua arbitrariamente, mas de forma regulada e direcional. Tal se
dá em virtude da atuação de uma série de forças causais uniformizadoras entre as quais
devemos incluir um imperativo geral e três condicionamentos básicos, de caráter
extracultural, bem como uma série de fatores causais de natureza propriamente
cultural (RIBEIRO, 1997, p. 43).

Sendo assim, pensar em evolução sociocultural é analisar o grau de eficácia com que
um grupo humano interage com a natureza, desenvolvendo e, simultaneamente, utilizando-se
dessas tecnologias desenvolvidas para tornar mais complexa essa interação, fazendo com que
ela se difunda não só entre o grupo, mas entre gerações, universalizando fazeres humanos
através da história de acordo com especificidades definidas por contingenciamentos culturais e
extraculturais.
Dentre esses últimos, Darcy Ribeiro aponta três principais: (i) a estrutura biológica do
ser humano, garantindo atributos uniformes do ponto de vista evolutivo, como inteligência,
socialização, individualização e flexibilidade; (ii) a vida associativa, consistindo em exigências
necessárias para a manutenção da convivência e da organização cultural — como a proibição
do incesto e a organização familiar —, e também elementos de organização socioeconômica,
como a divisão do trabalho e uma espécie de estratificação; (iii) os contingenciamentos de
natureza psicológica, responsáveis por uma unidade essencial na estrutura neuropsicológica,
dando aos seres humanos a possibilidade de encontrar as mesmas soluções mediante iguais
desafios causais.
A esses contingenciamentos extraculturais citados acresce um imperativo cultural
fundamental: a capacidade de comunicação simbólica, ou seja, a linguagem humana que se
universaliza, sendo a principal responsável pela transmissão de saberes entre gerações,
garantindo o enquadramento da vida social e a construção do patrimônio histórico dos grupos.
Portanto, ao se olhar para a evolução sociocultural, deve-se ter em conta, ao mesmo tempo, a
unidade e a diferenciação do ser humano com a natureza de acordo com uma série de categorias,
baseadas principalmente na relação tecnológica que se constrói com a natureza, sua difusão e
associação, e suas consequências culturais, éticas e ideológicas, garantindo, nesse sentido,
etapas evolutivas do fazer humano.
13

Enquanto a natureza, evoluindo por mutação genética, não pode voltar atrás e é regida
por um ritmo lento de transformação, a cultura, evoluindo por adições de corpos de
significado e de normas de ação e difundindo-se por meio da aprendizagem, pode
experimentar mudanças rápidas, propaga-las sem grandes limitações espaciais ou
temporais, e redefinir-se permanentemente, compondo configurações cada vez mais
inclusivas e uniformes. (Ibid., p. 45)

O Processo Civilizatório, portanto, acontece a partir da interação mútua entre os diversos


fatores mencionados e, além disso, entre as diferentes culturas e grupos, o que pode se dar de
diversas formas, seja ela pacífica, respeitando um desenvolvimento evolutivo de interação
contínua com as bases tecnológicas até então desenvolvidas, permitindo sua difusão de maneira
mais complexa e autêntica; ou então de formas violentas de subjugação de um povo a outro,
forçando uma nova organização cultural baseada na exploração direta entre grupos diferentes
— normalmente encabeçada pelos povos que puderam desenvolver maior eficácia no processo
de evolução sociocultural. Nesse sentido, a dimensão étnica adquire um papel central na própria
formação do contingente humano, pois uma relação tecnológica pode ser assimilada de
múltiplas maneiras pelos grupos humanos por conta de uma gama de fatores de diversas origens.
Assim, ocorre uma diferenciação desses grupos em configurações culturais, de linguagem, de
práticas, saberes e valores, que os caracterizam, dentro da totalidade do processo civilizatório,
em sua singularidade. É esse sentido que a palavra etnia assume aqui, relacionando-se
diretamente com a identidade coletiva permitida pelos múltiplos processos civilizatórios — e a
história acontece a partir dos conflitos entre as etnias, determinados pela capacidade de difusão
do domínio da natureza entre os membros de um mesmo grupo, que virão a entrar em choque
com outros grupos étnicos, transformando a civilização.

2.3 AS REVOLUÇÕES TECNOLÓGICAS E SEUS CORRESPONDENTES PROCESSOS


CIVILIZATÓRIOS

Se a vida humana só se organiza dadas as suas condições atuais somadas àquelas


acumuladas de gerações anteriores e é limitada por uma série de imperativos — sendo o mais
importante e determinante deles a natureza —, devemos ter em conta que, portanto, a base de
toda essa organização se dá por meio do resultado da ação que se realiza na transformação da
natureza. Isto é, o que estaria por trás de todo o acúmulo de saber e fazer humano passado por
gerações e se alterando através da história é uma série de tecnologias desenvolvidas na interação
entre homem e natureza. Assim é que Darcy Ribeiro define o que seria a base de todo o processo
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civilizatório, possibilitando diferenciar os povos dentro das diversas etapas da evolução


sociocultural: a Revolução Tecnológica.
Portanto, o conceito de Revolução Tecnológica é empregado no sentido de mostrar
como certas transformações tecnológicas — que se mostraram prodigiosas no tocante à ação na
natureza — correspondem a alterações qualitativas em todo o ethos e em toda a organização
social das sociedades no continuum da evolução sociocultural, fazendo emergir, então, novas
formações socioculturais, caracterizadas por seu domínio tecnológico e pelas formas de
associação e difusão dentro de sua população, configurando suas relações culturais específicas.
Dessa forma, uma Revolução Tecnológica pode ser mais de um processo civilizatório,
desdobrando diferentes potencialidades de transformação da natureza e, portanto, de
organização da vida material. Assim, listaremos todas as Revoluções Tecnológicas expostas na
obra e seus correspondentes processos civilizatórios, originando diferentes formações
socioculturais:

(i) A Revolução Agrícola é o motor do primeiro processo civilizatório, permitindo a ruptura


com a condição tribal de coletores nômades e caçadores, e corresponde a duas formações
socioculturais: as aldeias agrícolas indiferenciadas e as hordas pastoris nômades. Esta última
é resultado de um segundo processo civilizatório, caracterizando a domesticação de animais e
maior especialização humana nas atividades produtivas;

(ii) A Revolução Urbana desdobrou os processos civilizatórios, que até então eram dois, em
mais quatro. O terceiro corresponde ao surgimento das cidades e estados, estratificando as
sociedades em classes sociais. Além disso, vemos os primeiros passos da agricultura de regadio,
da metalurgia (cobre e bronze), do calendário e da numeração; temos então os estados rurais
artesanais. Esse conjunto de elementos permite o amadurecimento do quarto processo
civilizatório: a escravização da força de trabalho e o nascimento da propriedade privada em
alguns dos estados rurais artesanais, estabelecendo uma oposição com aqueles que
estabeleceram a propriedade estatal da terra. Aqui, diferente daqueles anteriores, a estratificação
social é baseada na exploração econômica e não na função para a organização social. Assim, os
estados rurais artesanais acabam por se desdobrar em dois modelos diferentes: o coletivista e o
privatista. Com o desenvolvimento da utilização do cobre, principalmente nas atividades
pastoris, temos o quinto processo civilizatório, dando origem às chefias pastoris nômades.
15

O amadurecimento da mesma tecnologia básica da Revolução Urbana, principalmente


a das grandes obras de irrigação, provoca o desencadeamento da Revolução do
Regadio e, com ela, o sexto processo civilizatório, que dará lugar ao aparecimento das
primeiras civilizações regionais como uma nova formação sociocultural: os impérios
teocráticos de regadio. (Ibid., p. 62-63)

Nesse sentido, torna-se mais evidente a metodologia utilizada pelo autor para a
exposição do movimento das etapas da evolução sociocultural. A mesma tecnologia
desenvolvida em uma Revolução Tecnológica específica pode ser apropriada, utilizada e
melhorada de diversas formas e em mais de uma etapa evolutiva, de acordo com as condições
já estabelecidas por um determinado grupo no que concerne a ação na natureza — isto dá origem
a diversas formações socioculturais por meio de diversos processos civilizatórios;

(iii) A Revolução do Regadio foi capaz de constituir as primeiras civilizações regionais,


provendo as bases tecnológicas para a constituição dos impérios teocráticos de regadio,
surgindo inicialmente na Mesopotâmia, com os impérios Acádio (2350 a.C.) e Babilônico (1800
a.C.). Deu-se também em outras regiões como o Egito, com os impérios Médio (2070 a.C.) e
Novo (1750 a.C.), na Índia e China, até mais tarde se estruturarem nas Américas com os maias
(300 E.C.) e os incas e astecas, esmagados posteriormente pelo conquistador espanhol;

(iv) A Revolução Metalúrgica se assenta em tecnologias como o ferro forjado, permitindo o


desenvolvimento de uma agricultura mais produtiva em áreas florestais e a fabricação de
diversas ferramentas de trabalho, além do aprimoramento dos veleiros. Ainda mais, temos a
cunhagem de moedas, viabilizando o comércio externo, o desenvolvimento da notação decimal
e do alfabeto fonético. Temos então o sétimo processo civilizatório, dando origem aos impérios
mercantis escravistas;

(v) A Revolução Pastoril corresponde ao oitavo processo civilizatório, que se funda na


utilização da mesma tecnologia, principalmente o ferro fundido, no entanto, o aplica em outros
setores de produção e de guerra. Isso permite a generalização do uso de selas e estribos,
ferraduras, espadas e do arnês rígido, multiplicando a eficiência dos animais de montaria e
tração. É com base nessa tecnologia que se desencadeia um movimento de expansionismo
messiânico de povos que atacam áreas feudalizadas de antigas civilizações, cristalizando-as
como Impérios Despóticos Salvacionistas;
16

(vi) A Revolução Mercantil é o nono processo civilizatório, com o qual se expandem


civilizações na forma de impérios mercantis salvacionistas, que encontrarão áreas de
dominação conformadas principalmente como colonizações escravistas. Além disso, nesta
mesma revolução tecnológica teremos o décimo processo civilizatório, configurando as
primeiras formações socioculturais capitalistas mercantis e suas colônias escravistas mercantis
e de povoamento;

(vii) Na Revolução Industrial se dá o décimo primeiro e o décimo segundo processos


civilizatórios, configurando as primeiras formações socioculturais implantadas mediante uma
“intervenção racional na ordem social” (Ibid., p. 64): as socialistas revolucionárias, socialistas
evolutivas e nacionalistas modernizadoras;

(viii) A Revolução Termonuclear, que, de acordo com a hipótese de Darcy Ribeiro, esta
revolução tecnológica viria transformar a vida material de “todos os povos da Terra” com suas
potencialidades imensas de transformação da vida social. Ela deverá, dessa forma, agir como
“um acelerador da evolução dos povos atrasados na história e como o configurador de novas
formações socioculturais que designamos como sociedades futuras [...]” (RIBEIRO, 1997, p.
64). Aqui, para o autor, a estratificação da sociedade em classes e a guerra enquanto
configurador de relação entre as nações já devem ser superados.

Com base na conceituação exposta, será possível falar tanto de um processo


civilizatório global, que se confunde com a própria evolução sociocultural, como a
visão de conjunto dos dez últimos milênios da história humana, quanto de processos
civilizatórios gerais e singulares, ocorridos dentro do global e que, contribuindo para
conformá-lo, modelaram diversas civilizações. A visão global é-nos oferecida pela
perspectiva tomada desde agora sobre o passado. Ela permite apreciar como diversas
tradições culturais particulares, desenvolvidas por diferentes povos em épocas e
lugares distintos, se concatenam umas com as outras, interfecundando-se ou
destruindo-se reciprocamente, mas conduzindo sempre adiante uma grande tradição
cultural e contribuindo, assim, para conformar a civilização humana comum que
começa a plasmar-se no mundo de nossos dias. (Ibid., p. 64)

Nesse sentido, Darcy Ribeiro pensa alguns conceitos com significados novos. Por
exemplo, se pensarmos que as civilizações se plasmam e se cristalizam a partir da singularidade
de cada processo civilizatório, constituindo diferentes complexos socioculturais através da
história por meio da expansão e da dominação político-econômica, influenciando e moldando
diversas culturas de diferentes maneiras, pode-se dizer que as etnias são “unidades operativas
do processo civilizatório” (Ibid., p. 65). Isto é, sua exclusividade em relação às demais etnias
se dá de forma unificada através do convívio de determinados membros, universalizando
17

caracteres culturais e organizativos através de gerações por meio da linguagem comum. Assim,
se essa identidade se constitui organizada politicamente dentro de um território — em um
Estado, por exemplo — podemos caracterizá-la como etnia nacional. Se essa organização se
expande a ponto de absorver características multiétnicas por meio da dominação, realizando o
que Darcy Ribeiro chama de transfiguração cultural, podemos caracterizá-la como uma
macroetnia.

Uma horda caçadora, composta de grupos familiais que se movem sobre um território,
ou uma minoria nacional unificada pela língua e pela tradição e aspirante à autonomia,
são etnias. Ou, ainda, uma coletividade que cultiva certas tradições comuns
integradoras, cujos membros se unificam pelo desenvolvimento de lealdades grupais
exclusivistas, como os ciganos ou os judeus. Um povo estruturado em nacionalidade,
com seu território e governo próprio, é uma etnia nacional. Um complexo multiétnico
unificado por uma dominação imperial que se exerça sobre seus povos, com propensão
a transfigurá-los culturalmente e a fundi-los em uma entidade mais inclusiva, é uma
macroetnia (macroetnia romana, incaica, colonial-hispânica etc.). (Ibid., p. 66)

Assim, Darcy Ribeiro coloca que a expansão de altas tradições culturais sobre
complexos mais atrasados culturalmente, estando mais avançadas na escala evolutiva, ocasiona
tanto a formação quanto a transfiguração (ou transformação) de etnias — a isto se dá o nome
de aculturação. Tal processo faz com que apenas após um longo período seja possível a
combinação de elementos culturais a ponto de se realizar uma homogeneização dentro da
sociedade formada a partir dele, enxugando as contradições particulares até gerar um complexo
cultural novo, ainda que sobre o processo de deculturação, que se caracteriza pela perda de
elementos culturais de um grupo étnico por conta da dominação sofrida no processo
civilizatório. Dessa maneira, aculturação e deculturação são dois processos conjugados que,
por fim, se realizam na transfiguração cultural. Isso faz com que se alterem tanto o sistema
adaptativo quanto o associativo e o ideológico das sociedades, expressando, em muitos casos,
uma relação de dependência e/ou inferioridade étnica, ainda que o processo se dê de maneira
integrada.

2.4 A ACELERAÇÃO EVOLUTIVA E A ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Na dinâmica civilizatória, a interação de povos com um domínio tecnológico mais


assimilado e complexificado com outros cuja difusão tecnológica se deu de maneira menos
intensa na escala evolutiva não se realiza de forma homogênea no âmbito cultural. Isto é,
civilizações com amplo domínio tecnológico aumentaram seu domínio e suas áreas de expansão
pelo globo às custas de violentas interações com outros povos, causando sua extinção ou uma
18

reconfiguração cultural tamanha a ponto de eliminar as características daquela cultura original.


Para explicar a dinâmica de interação entre diferentes culturas, nesse sentido, Darcy Ribeiro
nos expõe duas categorias fundamentais: a aceleração evolutiva e a atualização histórica, para
compreendermos o desenvolvimento dos povos.

Por aceleração evolutiva, designamos os processos de desenvolvimento de sociedades


que renovam autonomamente seu sistema produtivo e reformam suas instituições
sociais no sentido de transição de um a outro modelo de formação sociocultural, como
povos que existem para si mesmos. (Ibid., p. 69)

Tal é o processo de aceleração evolutiva, quando uma organização cultural — uma


etnia, enquanto possuidora de exclusividade de relações culturais em relação a outros grupos
— realiza amplo domínio tecnológico a ponto de construir suas relações sociais e culturais de
maneira autônoma, isto é, a partir da experimentação da revolução tecnológica mediante sua
própria criatividade, construindo sua capacidade de evolução tanto de técnicas quanto de formas
de associação dos saberes entre os membros do grupo. Além disso, são considerados enquanto
aceleração evolutiva os processos de reconstituição étnica de povos antes avassalados e
forçados à assimilação de outras culturas. Isso acontece quando tais povos conseguem
reconstruir seu próprio ethos a fim de conquistar independência política em direção à
reconquista da autonomia perdida, tal como ocorreu na América do Norte em alguns
movimentos de emancipação. Ao contrário, entende-se por atualização histórica ou atraso
histórico a inserção subordinada de povos com baixo grau de complexidade no domínio
tecnológico a partir de sua relação com a natureza. Sendo assim, são passíveis de sofrerem um
processo de atualização de sua cultura na história ao serem subjugados por povos mais
avançados na escala evolutiva, o que os força a absorver uma cultura que não lhe é autêntica
ou, como ocorre em alguns casos, os leva à extinção étnica.

O conceito de atualização retrata, por isso mesmo, tanto situações de caráter


regressivo – do ponto de vista das entidades étnicas avassaladas – como conteúdos
progressistas, enquanto procedimento de incorporação de povos atrasados a sistemas
socioeconômicos mais avançados. (RIBEIRO, 1997, p. 69)

Nesse sentido, a atualização histórica contém um elemento de modernização reflexa, ou


seja, a capacidade de inserir povos dentro de sistemas tecnologicamente mais complexos. No
entanto, o que está em jogo aqui é a autonomia. A grande diferença entre um povo que evolui
por aceleração evolutiva e um que sofre o processo de atualização histórica está na autonomia
com que eles podem conduzir sua difusão tecnológica e, a partir disso, toda a organização
19

cultural de forma a possuírem um sistema de relações mais integrado, complexo e homogêneo.


Portanto, ao serem conduzidos na história mediante atualização, os povos subjugados não
apenas correm o risco de extinção completa de seus contingentes culturais, mas, caso não
ocorra, necessariamente se desenvolverão a partir de uma relação de dependência com esses
povos mais avançados, comprometendo suas estruturas ideológicas para si mesmos, fazendo-
se, então, espúrios.

Dentro dessa concepção, os povos desenvolvidos e subdesenvolvidos do mundo


moderno não se explicam como representações de etapas distintas e defasadas da
evolução humana. Explicam-se, isto sim, como componentes interativos e mutuamente
complementares de amplos sistemas de dominação tendentes a perpetuar suas posições
relativas e suas relações simbióticas como polos do atraso e do progresso de uma mesma
civilização. (Ibid., p. 71)

Aqui fica mais claro como o processo de evolução sociocultural é entendido por Darcy
Ribeiro enquanto não apenas uma sucessão de etapas evolutivas expressas numa sequência de
formações culturais, mas também como um movimento interativo de atualizações históricas e
acelerações evolutivas. Assim, a explicação da dinâmica social não deve ser buscada em meras
interações entre conteúdos arcaicos e modernos, pressupondo uma suposta modernização
tecnológica enquanto saída para condições de subdesenvolvimento ou dependência de um povo.
Na verdade, o que está em jogo ao se pensar o desenvolvimento a partir desse escopo teórico
não é o nível de modernização que uma cultura atinge dentro de uma linha evolutiva estrita, que
parte do mais arcaico e termina no mais complexo com o nível tecnológico mais avançado. O
que está por trás aqui é a própria forma de realização dessa cultura a partir dos conflitos étnicos
que se dão no processo civilizatório, e suas possibilidades de realização autônoma. No fundo,
o problema não é ser mais atrasado — se fosse o caso, a resolução do problema seria avançar
tecnologicamente apenas —, mas sim a própria dinâmica de transfiguração étnica, impondo a
algumas culturas a posição de espúrias. É necessário buscar nas raízes históricas do processo
de formação sociocultural daquele povo, ou seja, em sua dinâmica de formação e sua mediação,
seja ela por aceleração evolutiva, seja por atualização histórica. Somente assim é possível
compreender as formas de perpetuação de atraso e progresso entre os povos, a partir das
possibilidades de uma etnia se fazer autônoma ou de sobreviver frente ao domínio de outra
macroetnia.
Portanto, o problema do desenvolvimento não é meramente de atraso tecnológico, ainda
que a formação das sociedades tenha como base esse fator, necessitando a inserção dos povos
em formas mais avançadas de domínio da natureza, mas sim da forma como sua configuração
20

se insere no próprio processo civilizatório, ditando as possibilidades de autonomia cultural.


Dessa forma, ao se considerar a dinâmica do desenvolvimento, Darcy Ribeiro procura atentar
para a totalidade social, desde sua inserção naquilo que chamamos de civilização,
compreendendo os elementos de atraso e de progresso em todos os âmbitos da formação e
organização de um povo.

A compreensão da vida social e dos fatores dinâmicos que nela operam exige,
portanto, que as análises em abstrato de cada um desses fatores se refiram sempre aos
complexos integrados em que eles coexistem e atuam conjugadamente. Estes
complexos, porém, não apenas combinam, mas também opõem, em cada momento,
certos conteúdos da tecnologia produtiva com determinadas formas de organização
social e com dados corpos de crenças e valores. Dentro deste campo de forças se geram
e se acumulam tensões pela introdução de inovações tecnológicas, pela oposição de
interesses de grupos e pelos efeitos das transformações ocorridas em um setor sobre
os demais. Estas inovações, oposições e redefinições são os fatores causais da
dinâmica social que atuam conjuntamente dentro de complexos que eles acionam mas
que, por sua vez, os condicionam (RIBEIRO, 1977, p. 32).

É essa dialética civilizatória, considerando processos que condicionam a dinâmica social


e ao mesmo tempo são modificados por ela, que devemos ter em mente ao nos atentarmos para
a interação entre os povos resultante da forma de seus processos civilizatórios, orientados por
suas correspondentes Revoluções Tecnológicas. Dessa forma, passaremos a analisar, a partir
dessa ótica, as consequências civilizatórias da Revolução Mercantil e da Revolução Industrial,
no tocante à forma de incorporação de culturas na região das Américas enquanto mero acidente
em um processo de conquista territorial, expansão comercial e consolidação de domínio
civilizatório pelo globo.
21

3 A CIVILIZAÇÃO MUNDIAL, AS AMÉRICAS E O DESENVOLVIMENTO NO


PROCESSO CIVILIZATÓRIO

3.1 A REVOLUÇÃO PASTORIL E OS IMPÉRIOS DESPÓTICOS SALVACIONISTAS

Detalharemos melhor os processos civilizatórios permitidos a partir da revolução


pastoril, uma vez que é nessa revolução tecnológica que começam a nascer os traços das
civilizações que viriam a buscar riquezas no além-mar, expandindo consideravelmente a
evolução sociocultural por novas regiões a seus moldes. Assim, faz-se necessário tratar sobre
um tema caro ao autor em questão: a região das Américas.
A inserção das Américas no processo civilizatório acontece com a expansão europeia.
Esse grande evento, no qual nos aprofundaremos mais adiante, acontece sob a égide da
Revolução Comercial. No entanto, para compreendermos a formação sociocultural que viria a
reorganizar a estrutura dos povos em terras americanas, optamos por analisar, antes disso, a
Revolução Tecnológica anterior na escala evolutiva. Julgamos importante tratar da revolução
pastoril, pois uma civilização se faz a partir do desenvolvimento de recursos e tecnologias
desenvolvidas em épocas passadas. Trataremos, então, da Revolução Pastoril e de sua formação
sociocultural correspondente, os Impérios Despóticos Salvacionistas, que viriam a configurar a
região da Ibéria e que dariam a ela características específicas que influiriam no caráter das
Grandes Navegações e, portanto, em seu resultado do ponto de vista civilizatório.
A Revolução Pastoril é de suma importância para o desenvolvimento de uma nova
tecnologia militar, o que permitiria o ataque a áreas feudalizadas de altas civilizações e,
simultaneamente, a resistência por parte de alguns povos a tentativas de assimilação ou até
mesmo de conquista. Essa expansão sobre áreas feudalizadas permitiu uma dinâmica e
integração de povos bastante distinta das anteriores.

Dentre esses progressos tiveram caráter crucial, na etapa expansiva, os que


revolucionaram a cavalaria de guerra e armaram os guerreiros de espadas e lanças
mais eficientes, e, na etapa de construção das novas formações socioculturais, a
propagação das novas formas de utilização da energia muscular animal com atafonas
e almanjarras aperfeiçoadas para as tarefas de aração da terra e de transporte e de
aplicação da energia dos ventos e das correntes de água a serviço do homem.
(RIBEIRO, 1997, p. 153)

Foi por conta da apropriação e difusão dessa tecnologia que puderam atacar áreas
feudalizadas, passando a desenvolver uma organização humana segundo novos princípios
ordenadores, em que um conjunto de crenças religiosas de caráter messiânico representava um
22

papel crucial em sua expansão e dominação de outros povos. Ou seja, foi a necessidade de
impor ao mundo a vontade divina sob a qual agiam que supostamente destinou, em geral, os
Impérios Despóticos Salvacionistas à expansão e conquista de novas áreas a partir de um
domínio técnico mais sofisticado.

Aquela tecnologia nova de cavalaria de guerra e esta armadura ideológica os


transformaria, de simples saqueadores da riqueza entesourada por outros povos ou
exploradores de sociedades rurais artesanais sedentarizadas, em guerreiros
invencíveis e em reformadores incandescidos de fúria sagrada. Nessas circunstâncias,
o inimigo deixava de ser visto como o objeto de saque do guerreiro vitorioso para ser
tido como o ímpio, cuja só existência ofendia a Deus. Os povos pastoris, dinamizados
por esse novo processo civilizatório, lançam-se, assim, sobre o mundo circundante,
com todo o seu antigo vigor de guerreiros, que adestravam seus cavalos e a si próprios
para as façanhas mais ousadas, robustecidos pela missão de salvadores, destinados a
erradicar do mundo a impiedade e a heresia. (Ibid., p. 154)

A primeira grande expansão salvacionista, ainda que não fosse capaz de elaborar um
culto universalista de conquista, dinamizou um conjunto de povos irânicos, os persas
sassânidas, permitindo que instaurassem um vasto império que, por séculos, dominou o Irã e a
Mesopotâmia e, posteriormente, viria a se estender até Índia e em propagadores da religião
masdeísta, se alastrando até a China.

O masdeísmo, fundado nos ensinamentos de Zaratustra (Zoroastro dos gregos), cuja


doutrina fora compendiada no Avesta ao tempo da dominação aquemêndia, só
alcançou o caráter de religião do Estado e de movimento messiânico salvacionista
com os sassândias. A partir do primeiro quartel do século III E.C., eles se expandem
pela Ásia Menor com extraordinário vigor, num movimento de restauração de antigas
tradições irânicas, de erradicação da influência helenística então dominante na região
e de imposição do masdeísmo missionário. Estruturam o Império Sassânico com base
num Estado sacerdotal, numa burocracia que executava a exação fiscal sobre as
populações subjugadas, ao mesmo tempo que combatia as heresias, e num sistema
agrícola assentado na concessão provisória de terras e de aldeias camponesas a uma
nobreza guerreira que permanecia, assim, na dependência do poder central.
(RIBEIRO, 1997, p. 154)

Posteriormente, no século VII, se configuraria de maneira mais madura, com o


islamismo, um novo expansionismo salvacionista. Tal movimento mobilizou os povos pastoris
da Arábia e do Irã para lançá-los em favor do maior movimento de conquista religiosa registrado
na história. Sua destinação sagrada, formulada por Maomé, viria a promover um amplo saque
de terras e de bens de diversas hordas pastoris. Nesse sentido, a doutrina sintetizava tradições
judaicas, helênicas e iranianas, redefinindo-as para formar uma nova religião universalista,
orientada “mais do que qualquer outra para o salvacionismo de conquista, como expansão da
glória divina” (Ibid., p. 155). Por conta desse espírito de religiosidade universalista, fundado na
23

conquista militar típica dos Impérios Despóticos Salvacionistas, em poucas décadas o domínio
muçulmano se alastrou pelo globo, se expandindo por boa parte do Oriente Médio em direção
a Oeste, ao Norte da África, às ilhas mediterrâneas e à Península Ibérica. No Leste, atingiu a
Alta Ásia, a Índia, a Indonésia e a Indochina. Mais tarde, seu domínio viria a penetrar a África
Tropical, a Eurásia e outras regiões do Oriente — conquistas, agora, conduzidas por povos
islamizados, como por exemplo os turco-mongólicos.

Através de ondas sucessivas implanta-se o Islã (isto é, submissão incondicional) sobre


uma área muito mais extensa que a de qualquer civilização imperial anterior, com uma
capacidade de permanência também muito maior e com um poder de assimilação de
povos e de aculturação compulsória jamais atingido antes. Seu domínio sobre a Ibéria,
como Califado de Córdoba, se estendeu de 750 a 1350; sobre a Índia se prolongou por
seis séculos, primeiro como Sultanato de Delhi (1300 a 1526), depois como Império
Timúrida (1530 a 1705). (Ibid., p. 156)

Dentre os mecanismos de dominação de tal formação sociocultural por meio do Islã se


encontravam, como justificação de sua conquista, a doutrinação religiosa, com o intuito de
espalhar seu domínio pelo mundo, a conquista através da dominação despótica, a colonização
escravista e a miscigenação racial. Dessa forma, atuavam nas sociedades subjugadas
eliminando seus estratos dominantes e os substituindo por uma camada social de caráter
burocrático. Assim, utilizaram sua experiência com adestramento de animais para aplicá-la a
humanos, visando os escravizar em prol de uma organização burocrática. Era comum a captura
de crianças nos territórios conquistados e seu encaminhamento, de acordo com seu vigor físico,
para as chamadas casas-criatórios, onde um intenso treinamento baseado em um sistema de
premiação e sujeito a punições explorava suas potencialidades, difundindo ideias de ambição e
de competição ao longo do processo de adestramento.
Esse quadro militar organizado por um sistema administrativo para garantir não só a
conquista territorial, mas a religiosa, era o que caracterizava a formação despótica e
salvacionista. Tendo claros esses exemplos de como foi movida, em geral, a expansão
salvacionista, Darcy Ribeiro enumera sete características gerais encontradas basicamente em
todas as áreas de dominação desses povos:

1. A concessão do usufruto vitalício da terra — porém não transmissível — aos vencedores


das guerras de conquista. Posteriormente, a terra seria transformada em propriedade
livremente alienável;
2. A concessão a essas mesmas camadas da função de exatores dos impostos imperiais
sobre a terra e as pessoas;
24

3. A adoção e difusão do escravismo e da servidão, que variava em formas de acordo com


a organização da comunidade;
4. Comércio externo livre, porém os mercadores estavam sujeitos a confiscos e controles
estatais (sistema burocrático);
5. Desenvolvimento de um artesanato que produzia armas de guerra e artigos de luxo por
meio da criação de grandes manufaturas, geralmente estatizadas;
6. Empresas monopolistas oficiais mediante concessões imperiais a fim de explorar
determinados ramos produtivos;
7. Vasto sistema cartorial de recenseamento e controle da população das áreas dominadas,
arrecadação de tributos e cobrança de impostos.

Portanto, vê-se que a importância de caracterizar os Impérios Despóticos Salvacionistas


é crucial para se compreender a tecnologia desenvolvida em seu interior, e a motivação religiosa
de sua expansão militar, que viria a reconfigurar as sociedades de uma maneira nunca antes
vista. Porém, mais do que isso, devemos ter em mente a difusão de núcleos populacionais
islâmicos nesse processo, que se instalariam na região ibérica, e que serviriam para impor à
região seu caráter religioso e burocrático, que viria a ter profunda influência na posterior
expansão da região para o além-mar.

3.2 A REVOLUÇÃO MERCANTIL

No bojo dos Impérios Despóticos Salvacionistas, o desenvolvimento das tecnologias


produtiva e militar permitiram a emergência de uma nova revolução tecnológica, no século
XVI: a Revolução Mercantil. Tal processo originou duas formações socioculturais: os Impérios
Mercantis Salvacionistas e o Capitalismo Mercantil. O nível alcançado pela tecnologia nesse
período, cuja ampla difusão foi permitida, grande parte, pela configuração e formas de expansão
dos Impérios Despóticos Salvacionistas, possibilitou, por exemplo, a expansão marítima da
Ibéria.

Tal foi a Revolução Mercantil, fundada numa nova tecnologia da navegação oceânica,
baseada no aperfeiçoamento dos instrumentos de orientação (bússola magnética
montada em balancins, o quadrante, a balhestilha, o astrolábio, cartas celestes e
portolanos, cronômetros e outros) e de navegação (as naus e caravelas, a vela latina,
o leme fixo, as carretilhas e os barcos de guerra). Baseava-se, por igual, na descoberta
de procedimentos mecânicos, como as bielas-manivelas, os eixos-cardan etc., e numa
nova metalurgia revolucionada com a descoberta de processos industriais de fundição
do ferro, de laminação do aço, de trefilação de arames, de fusão de novas ligas
25

metálicas e de produção de artefatos com tornos de rosca e mandril e com máquinas


de talandrar, afiar e polir metais. Baseava-se, também, na renovação das artes de
guerra com armas de fogo aperfeiçoadas – canhões, morteiros, espingardas – que em
terra permitiram enfrentar a mobilidade das cavalarias armadas de arcos e lanças que
haviam prevalecido no último milênio e, no mar, criavam a artilharia naval. Baseava-
se, por igual, na generalização de outras técnicas, como modelos aperfeiçoados de
moinhos de vento de cabeça móvel e de rodas hidráulicas horizontais impulsionadas
pela força da gravidade, aplicáveis para acionar foles siderúrgicos, marteletes, serras,
afiadoras e outras máquinas. Baseava-se, ainda, na instalação de fábricas de papel, de
tipografias para a impressão de livros com tipos móveis, bem como na produção de
instrumentos óticos. Algumas combinações dessas técnicas, como a do veleiro com
canhões, tiveram efeitos extraordinários, permitindo o domínio da terra a partir do mar
e abrindo, desse modo, amplas perspectivas para a estruturação de talassocracias de
novo tipo. (Ibid., p. 165-166)

Essa nova tecnologia, desenvolvida em grande parte nas áreas de domínio dos Impérios
Despóticos Salvacionistas, possibilitou a primeira ruptura real com o feudalismo, não mais por
ataques a regiões pastoris, mas dentro das próprias áreas feudalizadas se realizaram
potencialidades de domínio tecnológico para mudar sua condição organizacional. Esse
processo, como já mencionado, deu origem a duas novas formações socioculturais, que viriam
a ser as primeiras de base mundial.
A primeira, os Impérios Mercantis Salvacionistas, surge em duas áreas marginais não
apenas geograficamente quanto culturalmente, entre os séculos XV e XVI: a Ibéria e a Rússia.
O surgimento dessas novas formações se deu pela reconquista de territórios ocupados por árabes
e tártaro-mongóis, uma vez que a base tecnológica nesse momento se difundiu a ponto desses
povos terem condições de partirem para um conflito com os conquistadores. Por um lado, o
domínio técnico da Ibéria permite sua partida à conquista no além-mar. Portugal avança em
Cabo Verde e na Costa do Ouro e, além disso, realiza a façanha de contornar o Cabo da Boa
Esperança, estabelecendo a rota marítima em direção à Índia. Se apodera também do
arquipélago de Sonda, da Indochina e do Brasil. A Espanha chega às Antilhas, se expandindo
por todo o continente americano, além de estabelecer domínios coloniais no Extremo Oriente.
Por outro lado, a Rússia se estende sobre a Eurásia Continental e sobre parte da América,
ocupando o Alasca. Com esse conjunto de expansões da região europeia, lança-se as bases da
primeira civilização mundial, com um amplo espaço de conquista devido, principalmente, ao
desenvolvimento da tecnologia marítima. No entanto, essa mesma Europa é herdeira do
patrimônio islâmico — tanto com relação às inovações tecnológicas, quanto aos princípios
institucionais e religiosos.

A Ibéria, bastião ocidental do domínio mouro, vinha intensificando as lutas pela


Reconquista desde o século XIV, mas só a completou no ano da descoberta da
América. Essa guerra de emancipação, extremamente destruidora, conduzida sob a
26

direção do papa e do rei, custou-lhe tantos sacrifícios que no seu decorrer toda a
sociedade se transfigurou para servir a esse propósito, tornado obsessivo. As ordens
religiosas se tornaram mais ricas e mais poderosas do que as da nobreza, diferenciaram
corpos especiais de sacerdotes guerreiros, e a Igreja Católica se fez herdeira de boa
parte da terra reconquistada aos infiéis. A associação das monarquias ibéricas com o
papado alcançou um nível de quase fusão quando se juntaram os recursos econômicos
e o salvacionismo de Madri com o empenho antirreformista de Roma. (Ibid., p. 168)

Com isso, se estabelece uma estrutura aristocrático-clerical de poder que passaria a reger
o destino dos povos ibéricos. No entanto, a guerra com os núcleos islâmicos destrói o sistema
agrário que havia, com base numa agricultura de regadio de alta tecnologia, permitindo manter
populações densas até mesmo em zonas extremamente áridas. Com a nova ocupação das terras
pelos novos senhores aristocrático-clericais, foram-se formando grandes áreas de pastagens
para a criação de ovelhas, o que não viria a permitir a fartura do antigo sistema agrário. A
população diminui no campo e nas cidades, e muitos camponeses foram reduzidos à
mendicância. A guerra de reconquista produziu, então, um enorme retrocesso tecnológico e,
portanto, sociocultural na Ibéria. Isso fez com que a região, apesar de se instrumentalizar e
absorver todo o arcabouço técnico da Revolução Mercantil, não conseguisse se configurar ela
própria como uma formação capitalista-mercantil — muito por conta da herança tecnológica e
burocrático-institucional dos Impérios Despóticos Salvacionistas e da devastação da Guerra de
Reconquista.
A Rússia moscovita, sob a pressão do império tártaro-mongólico, amadurece seu perfil
étnico-nacional em torno de um estágio de estado rural artesanal. Sua classe dominante
amadurece e enriquece pelo exercício de coleta de tributos para a Horda do Ouro. Após décadas
de luta, quando consegue a emancipação, configura-se de forma defasada por conta dos esforços
de guerra, impedida, também, de realizar um desenvolvimento plenamente capitalista. Portanto,
esses dois povos que foram configurados como impérios mercantis se viram profundamente
impregnados de tradições despóticas salvacionistas, que dominaram seus povos ao longo de
séculos. Nesse sentido, apresentam um fanatismo religioso comparável aos primeiros impulsos
muçulmanos.

A Rússia, ao expandir-se, assume uma feição mais despótica que salvacionista. Mas
é movida, igualmente, pelo elã cristalizador, expresso na assunção do papel de terceira
Roma, na integração do patriarcado de Moscou no czarismo, no esforço secular de
cristianização das populações do seu território, no caráter místico da religiosidade
russa, na expansão numérica do seu clero – só comparável ao da Ibéria -, na
intolerância religiosa que explodiria, mais tarde, nos pogroms1. (Ibid., p. 170)

1
Palavra russa que significa destruição maciça, destruir violentamente, referente aos violentos ataques contra a
população judia por conta da intolerância religiosa desenvolvida na formação russa.
27

Com relação à Ibéria, nessas condições, apesar de não se configurar internamente como
um capitalismo mercantil pleno, pôde se lançar ao mar para estabelecer o novo colonialismo
escravista. Isto é, através do mecanismo de atualização histórica, o colonialismo nesse
momento estabeleceu partes complementares a seu processo de formação sociocultural por
meio da dominação militar e econômica de outras regiões, estabelecendo o trabalho escravo.

Os procedimentos fundamentais de dominação das colônias escravistas das Américas


foram: a erradicação da antiga classe dominante local, a concessão de terras como
propriedade latifundiária aos conquistadores, a adoção de formas escravistas de
conscrição da mão-de-obra e a implantação de patriciados burocráticos, representantes
do poder real, como exatores de impostos. (Ibid., p. 171-172)

Esse processo de colonização realizado por Espanha e Portugal foi, segundo Darcy
Ribeiro (1997), o maior movimento de atualização histórica de povos, ocasionando a
deculturação — contingentes humanos desgarrados de sua sociedade — de uma enorme
população de negros e índios, forçados a se engajar em novos sistemas econômicos e, portanto,
a uma nova organização social que viria a se configurar de maneira extremamente violenta, no
geral. Dessa forma, através da destruição de etnias, do desgaste de uma mão de obra escravizada
e da desqualificação de um sistema técnico e especializado — bastante determinado pelas
consequências da reconquista na Ibéria e pelos resquícios da formação sociocultural anterior —
, os neoamericanos foram incorporados às etnias hispânica e lusitana. Soma-se a isso a enorme
influência da igreja no processo civilizatório, dificultando a formação de uma classe capitalista
estritamente dominante e a configuração de um capitalismo mercantil propriamente dito.
O novo colonialismo escravista, através da dinâmica da atualização histórica, configura
um sistema econômico unificado e interativo, fazendo das colônias partes complementares de
um mesmo complexo, tendo como centro dinâmico as potências ibéricas. Aqui, pode-se ver
mais claramente as razões pelas quais Darcy Ribeiro menciona o termo civilizações mundiais,
uma vez que a própria civilização ibérica vai sendo desenvolvida junto da complementaridade
de seus núcleos coloniais externos. Através da colonização escravista e do despotismo
salvacionista enraizado nos povos ibéricos, criaram um sistema opressivo de compulsão
aculturativa, destruindo milhares de etnias na incorporação dos neoamericanos às macroetnias
hispânica e lusitana enquanto meros trabalhadores braçais, destituídos de suas raízes
socioculturais.
Assim avança o capitalismo mercantil, com a expansão de diversas regiões da Europa a
núcleos coloniais escravistas — principalmente em núcleos que não foram intensamente
28

dominados por Impérios Despóticos Salvacionistas que puderam desenvolver em suas classes
dominantes uma estrutura mais apropriada para a organização dessa nova formação
sociocultural. No entanto, a expansão ibérica foi pioneira nesse processo de configuração da
civilização mundial, ainda que com fortes resquícios de sua formação despótica.

A expansão oceânica europeia, iniciada pelos ibéricos, torna-se, nesse passo, uma
empresa coletiva que multiplica colônias escravistas, mercantis e de povoamento por
todo o mundo, acelerando a ação do processo civilizatório capitalista mercantil, já
agora como o mais vasto dos movimentos de atualização histórica. Com o seu
desencadeamento, milhões de homens foram transladados de um continente a outro.
As matrizes raciais mais díspares foram caldeadas e os patrimônios culturais mais
divergentes foram afetados e remodelados. As conquistas culturais, principalmente
tecnológicas, de todos esses povos começaram a confluir, lançando as primeiras bases
de uma reordenação unificadora do patrimônio cultural humano. Nesse processo,
milhares de povos atados a formações tribais, aldeãs, pastoris, rural-artesanais, bem
como antigas civilizações, tanto as vigorosas como as já estagnadas em regressões
feudais, foram integrados num sistema econômico de base mundial, como sociedades
subalternas e culturas espúrias. Sua razão de existência deixara de constituir a natural
reprodução do seu modo de ser, para se converter no fator de existência e no
instrumento de prosperidade dos centros metropolitanos que geriam os seus destinos.
(Ibid., p. 184)

Com a espoliação desses povos, a Europa retoma seu brilho comparável ao Império
Romano, configurando metrópoles suntuosas e opulentas. Além disso, possibilitou aos
nórdicos, que até então eram marginais no processo civilizatório, um sentimento generalizado
de superioridade e de destinação civilizatória, justificando toda a devastação colonial enquanto
um exercício civilizatório necessário, convictos de que representavam uma ordem moral
superior, agindo como suposto motor do progresso humano. Cada vez mais, as massas são
lançadas ao mercado de trabalho e as antigas camadas patronais conservadoras vão se
substituindo por um empresariado de mentalidade capitalista. Assim, a Europa pós-medieval
redescobriu o mundo grego assumindo sua postura mercantil e sua atitude especulativa,
podendo ampliar o saber das artes e a política da democracia, enquanto empreendia modelos
mercantis escravistas de destruição étnica nas colônias.

As ciências e as artes experimentam um desenvolvimento sem paralelo, lançando-se


as bases para uma nova revolução no plano da tecnologia. Uma onda de criatividade
renova as velhas ordenações medievais através de uma geração de livres-pensadores
que se ocupam da regulamentação racional das relações humanas, com base nos
conceitos mais generosos de liberdade e de igualdade e com uma atitude de plena
confiança no progresso humano. Opera-se, desse modo, uma primeira transição saint-
simoniana do governo das pessoas, que prevalecera no mundo feudal, para um
governo das coisas, que regeria o capitalismo. Mas só se consegue efetivar essa
renovação coisificando as pessoas, a fim de trata-las juridicamente como coisas. (Ibid.,
p. 186-187)
29

A Revolução Mercantil, portanto, gera o maior movimento expansionista da história


humana, tendendo a unificar o mundo inteiro em um único sistema de intercâmbio econômico.
No entanto, se vê diante de um movimento oposto de segmentação dos povos em entidades
étnico-nacionais hostis umas com as outras, sem a capacidade de um intercâmbio humano que
não tenha como base a violência. Nesse sentido, temos que o mesmo processo que coloca o
mundo em contato realiza uma ampla homogeneização das atividades técnicas e produtivas,
expande seus domínios de maneira unificadora, encontra seu termo nas fronteiras nacionais de
povos que foram privados de seu desenvolvimento evolutivo autônomo. Aquelas regiões que
conseguem se configurar precocemente como Estado alcançam maior desenvolvimento como
economias capitalistas, porém às custas do avassalamento e da assimilação forçada de outras
regiões às suas normas, o que não se daria sem conflitos. Temos, então, um enorme contingente
de povos dependentes, subalternos, subdesenvolvidos, que se configuram em favor da
prosperidade europeia, que garante a possibilidade tecnológica da realização da Revolução
Industrial.

3.3 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E OS POVOS SUBDESENVOLVIDOS

A Revolução Industrial atingiu uma capacidade de reordenação das sociedades humanas


comparável somente à Revolução Agrícola. Sua tecnologia reorganizou civilizações em todo o
globo com sua enorme capacidade de promover atualizações históricas no desenvolvimento de
diversos povos, enquanto revelava um grande salto na aceleração evolutiva das regiões com um
amplo domínio tecnológico. Seus efeitos foram tantos que criaram uma tendência de
homogeneização dos povos, forçando-os à integração no sistema industrial, ainda que de
maneira expressamente exploratória, gerando uma massa de proletariados externos em todo o
globo, ou seja, mão de obra periférica que produz sob uma organização técnica arcaica, porém
organizada para alimentar todo o sistema industrial de algumas regiões centrais com uma maior
capacidade de desenvolvimento e inovação no bojo da Revolução Industrial.

O efeito crucial da nova revolução tecnológica consistiria, porém, no lançamento das


primeiras bases de uma futura civilização humana, afinal unificada pelo acesso de
todos os povos à mesma tecnologia básica, pela sua incorporação às mesmas formas
de ordenação da vida social e pela sua integração aos mesmos corpos de valores. Essa
civilização humana unificada não se cristalizaria, contudo, no curso dessa revolução,
que apenas conseguiria torna-la uma aspiração generalizada de todos os povos. (Ibid.,
p. 191)
30

A tecnologia dessa revolução tecnológica se expande situando os povos que viriam a ser
pioneiros na industrialização, se consolidando em posição de riqueza e domínio, conduzindo
todos os demais à exploração dentro de sistemas de relações dependentes. Na realidade, os
processos civilizatórios que emergem da Revolução Industrial estruturam-se, desde os
primeiros passos — ainda definidos pela consolidada Revolução Mercantil — dentro de um
sistema econômico universal, com uma capacidade de realização de atualizações históricas que
viria a atingir todos os povos da Terra, “envolvendo cada nação e até mesmo cada indivíduo
em suas formas compulsórias de integração” (RIBEIRO, 1997, p. 191). Dessa maneira, como
já mencionado, os povos que ainda não haviam sido atualizados historicamente com a
Revolução Mercantil foram forçados a engajar-se na nova ordem econômica e social como
proletariados externos, cuja função principal seria a de provedores de matérias-primas agrícolas
e, simultaneamente, consumidores de produtos industriais de povos tecnologicamente
autônomos. A estrutura específica de domínio dessa etapa da história humana vinha se
fortalecendo desde a Revolução Mercantil, com a apropriação dos bens eclesiásticos tornada
possível pela Reforma, além do confisco dos baronatos feudais e da retirada dos direitos
comunitários do campesinato. A isso se acrescentaria a riqueza acumulada com o saque colonial
permitido pelo escravismo. Estaria se formando, então, uma burguesia urbana que, com a
tecnologia industrial, poderia garantir enormes taxas de lucro com um risco muito menor do
que a expansão marítima do capitalismo mercantil. O desenvolvimento de sistemas fabris de
produção em massa e a intensificação da proletarização da força de trabalho viria a produzir
uma transformação radical na estrutura social dos povos.

Com a nova tecnologia tornara-se possível e vantajosa a conversão de toda mão-de-


obra, inclusive a escrava, em força de trabalho assalariado, e fizera-se necessário
operar urgentemente essa conversão para liquidar as formas de produção artesanal,
ainda sobreviventes em todo o mundo, afim de atribuir novas funções aos
trabalhadores. Impunha-se, também, elevar seu nível de produtividade e de consumo
com o objetivo de alargar o mercado dos produtos industriais para dar lugar a uma
expansão continuada do sistema fabril. Dessa forma, em seus primeiros impulsos, a
nova revolução tecnológica torna obsoletas as formações mercantis salvacionistas,
destrói as já combalidas bases do capitalismo mercantil, absorvendo,
progressivamente, seu contexto colonial e dele erradicando o escravismo. (Ibid., p.
193)

Ou seja, toda a organização do trabalho anterior passava a ser incorporada em fábricas


para que desse origem a operadores de engenhos mecânicos movidos por novas fontes
energéticas a partir da difusão da máquina a vapor, permitida pelo acúmulo técnico e produtivo,
principalmente da Inglaterra, desde princípios do século XVIII.
31

A partir disso, o desenvolvimento da organização econômica e de sua capacidade


produtiva aceleraram intensamente a produtividade do trabalho humano, organizado junto de
uma intensa urbanização que acompanharia o surgimento de cada vez mais fábricas que
passariam a ser o berço da força de trabalho humana. Tendo isso em mente, podemos dizer que
o primeiro processo civilizatório que se funda com a Revolução Industrial teve a capacidade de
integrar as sociedades humanas num único sistema interativo. No entanto, todo esse processo
operava a partir da aceleração evolutiva e da atualização histórica. Desse modo, surge uma nova
forma de dependência entre povos: o neocolonialismo.

No curso desse processo civilizatório, superam-se algumas das formas mais


despóticas de subjugação colonial, como a escravidão, mas permanecem e até se
aprofundam os vínculos econômicos de subalternidade. O caráter espoliativo das
relações simbióticas entre as estruturas cêntricas e as periféricas assenta-se, agora,
principalmente, na exploração das vantagens que usufruem os sistemas grandemente
evoluídos no intercâmbio comercial com áreas atrasadas. (Ibid., p. 196)

Na realidade, o processo de modernização nos territórios que passaram pelo processo


de atualização histórica é meramente reflexo, impondo condições de alta penúria aos povos que
mal conseguiram se desvincular de seu estatuto colonial. Dessa maneira, o antigo escravo se vê
agora produzindo matérias-primas para regiões de fato industrializadas. Em suma, o mesmo
processo que desenvolve altíssima tecnologia industrial promove a expansão de áreas de
plantação e pastoreio comerciais, de extrativismo florestal e de subjugação dos povos
atualizados historicamente, consolidando uma estrutura sempre dominada por fatores exógenos
a eles. Dito isso, segundo Darcy Ribeiro, a implantação imperialista, com a Revolução
Industrial, se dá em três etapas. Primeiramente, busca fontes privatistas de fornecimento de
matérias-primas, impondo em regiões atualizadas historicamente um estatuto colonial ou
neocolonial. Tais regiões, além disso, seriam foco de exportação de produtos manufaturados
pelas regiões industrializadas. Após isso, busca a fusão das empresas em grandes monopólios,
em suma controlados por agências financeiras, passando a exportar capitais sob a forma de
infraestrutura e equipamentos modernos. Desse modo, se intensifica a exploração de povos que
se encontram em posição subalterna no sistema, uma vez que a exploração se fomenta através
da própria industrialização, por meio de construção de ferrovias, portos ou sistemas modernos
de comunicação especializada para a melhoria das atividades produtivas. Por último, grandes
corporações monopolistas são instaladas nos países dependentes, como dispositivos de
exploração de riquezas industriais e de produção para o mercado interno, a fim de drenar ainda
32

mais os capitais gerados em nações pobres, uma vez que detêm o controle inclusive do mercado
interno.

Aparentemente, nessa última etapa, trata-se de uma aceleração evolutiva que atua
através da difusão da tecnologia industrial. Processando-se, porém, como uma
atualização histórica, essa implantação de indústrias, em lugar de gerar os efeitos de
progresso que produziria nas nações autonomamente industrializadas, dá lugar a uma
crescente dependência das nações periféricas e um processo de modernização reflexa
gerador de deformações tão profundas que, na realizada representam sua condenação
ao atraso e a penúria. Nessas condições de industrialização recolonizadora, as
populações crescem para marginalizar-se, porque não se lhes oferecem perspectivas
de integrar-se no sistema produtivo modernizado. Tampouco surge uma cultura
erudita capaz de dominar os princípios científicos da nova tecnologia produtiva e
muito menos uma elite dominante autonomista, empenhada em estancar a espoliação
externa e em reformar a ordenação social arcaica. (Ibid., p. 201)

Ou seja, no próprio bojo do processo de industrialização há uma espécie de bipartição,


pois enquanto acelera a evolução social, criando sociedades de novo tipo, qualitativamente
diferente de todas as anteriores nas áreas cêntricas e no território periférico, agindo através do
processo de atualização histórica, impõe transformações igualmente profundas. No entanto, as
próprias transformações intensificam a condenação dessas regiões ao atraso. Tal processo é tão
intenso pois, como descrito acima, a própria atualização histórica da periferia se realiza, ao
mesmo tempo, no centro, uma expressão de aceleração evolutiva que intensifica suas áreas
industriais e controla novos mercados internos.
A intensificação da atualização histórica com a difusão tecnológica e da dominação
permitidas pela Revolução Industrial impediram que os povos periféricos conduzissem um
processo de desenvolvimento autônomo. É através dessa forma de atuação imperialista
mediante a industrialização que se consolida a condição subdesenvolvida dos países atualizados
historicamente, uma vez que a própria modernização de tais países pressupõe a ausência de
controle do processo e, além disso, a intensificação de elementos coloniais em favor da
civilização no centro do sistema.

O subdesenvolvimento não corresponde, pois, a uma crise de crescimento, mas a um


trauma em que submergem sociedades subordinadas a centros industriais, que se veem
ativadas por intensos processos de modernização reflexa e de degradação cultural.
Somam-se a isso a explosão demográfica e a urbanização acelerada e caótica,
agravando ao extremo as tensões sociais, que essas sociedades não têm meios de
superar ou mesmo de abrandar, porque não poderão exportar seus excedentes
populacionais, como o fez a Europa no mesmo passo. (Ibid., p. 204)

Dentro dessa ótica, ao mencionar o termo subdesenvolvimento é que temos de maneira


um pouco mais clara o ponto visado por Darcy Ribeiro: desmistificar a relação direta entre
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industrialização e desenvolvimento, tornando obscuros os processos-chave de organização das


sociedades humanas, guiados pelos movimentos de aceleração evolutiva e atualização histórica.
Assim, o autor nos elenca as categorias de povos subdesenvolvidos, uma vez que o
subdesenvolvimento se realiza na consolidação da condição de povos enquanto incapazes de
romper com suas sucessivas atualizações históricas, organizando-se enquanto povo, agora já a
partir da Revolução Industrial, de maneira forçada, impedidos de realizar sua autonomia não
apenas tecnológica, mas civilizatória. Assim, dentre os povos subdesenvolvidos, temos quatro
grandes configurações histórico-culturais, que correspondem a seus processos específicos de
configuração étnica, e que, por sua vez, orientam os problemas de desenvolvimento com que se
deparam esses povos:

1. Os povos emergentes, que ascendem da condição tribal à nacional, através de processos


de atualização histórica que tenderam a situá-los na categoria de neocolônias. Tais povos
se encontram, principalmente, na África Tropical, caracterizados pela dominação
colonialista por parte da Inglaterra, França, Bélgica e Portugal, entre outros. Sua
organização econômica é composta, no melhor dos casos, por “enclaves estrangeiros
implantados como quistos dentro de seus territórios na forma de empresas mineradoras”
(Ibid., p. 207), vistas principalmente em regiões como Congo, Nigéria, Rodésia,
Catanga e Camarões. Além disso, temos regiões de grandes plantações tropicais de
exportação (Libéria, Gana, Nigéria, Guiné, Somália, Quênia, Sudão, entre outros) e a
presença de exploração pastoril e florestal, guiando a estrutura desses povos em torno
de uma finalidade externa;
2. Os povos novos, surgidos na América Latina como “subprodutos exógenos de projetos
europeus de colonização escravista” (RIBEIRO, 1997, p. 207). Aqui, se reúnem
matrizes étnicas extremamente diversificadas — entre eles, negros, indígenas e
europeus —, e sua organização realizaram uma espécie de fusão mediante a
miscigenação racial e a aculturação, o que gerou figuras étnicas inteiramente novas.
Essa população perdeu a maior parte de seus patrimônios culturais originais e só
puderam dar origem a elementos novos quando estes não os retiravam de sua função
produtiva dentro do sistema colonial. Nesse sentido, o autor argumenta que, por conta
de sua configuração forçada a algo novo, estão sempre abertos à renovação, uma vez
que seu futuro depende da integração nos modos de ser das sociedades industriais
modernas. Dentre as regiões que deram origem aos povos novos, se encontram Brasil,
Venezuela, Colômbia, Chile, Paraguai, alguns países da América Central e os povos rio-
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platenses. O que, em última instância, os dá um caráter comum é o fato de nenhum


desses povos ter alcançado um nível pleno de desenvolvimento com o avanço da
industrialização, configurando-se como povos dependentes de caráter neocolonial;
3. Os povos-testemunho, que se resultaram da expansão europeia com as revoluções
Mercantil e Industrial sobre civilizações antigas, como a chinesa, a indiana, a coreana,
a indochinesa, a incaica, a egípcia e a mexicana. Alguns desses povos conseguiram
alcançar uma relativa integração na civilização industrial — seja pela via capitalista,
seja pela socialista, tal como a China. Outros, no entanto, ainda se classificam, tais como
os povos novos, enquanto economias neocoloniais, com exceção, por exemplo, do
México e do Egito, que se estruturam como uma nova formação, caracterizada como
nacionalismo modernizador;
4. Os povos transplantados, constituídos nas colônias de povoamento através da
transladação para espaços do além-mar de europeus “desalojados principalmente de
áreas rurais por efeito dos processos civilizatórios que plasmaram as formações
capitalistas mercantis e as imperialistas industriais” (Ibid., p. 208). Tais povos foram
forjados como extensões de nações europeias, conseguindo atingir um nível mais
complexo de renovação tecnológica com uma maior integração de suas matrizes. Dessa
forma, apresentam maior ímpeto e facilidade para a integração na civilização industrial.
Tais povos se encontram na Nova Zelândia, América do Norte (com exceção do
México) e na Austrália, principalmente. Além disso, o processo migratório contribuiu
para a formação desses povos no Uruguai e na Argentina, ainda que sejam menos
desenvolvidos pela influência de uma organização oligárquica, fundada no monopólio
da terra — que se apresenta como um traço da herança salvacionista ibérica. Sobre os
povos transplantados, Darcy Ribeiro (1997, p. 209) ainda acrescenta:

São, na verdade, intrusões europeias implantadas em áreas de populações


majoritariamente estranhas que, não tendo sido dizimadas ou absorvidas pela
miscigenação, amadurecem como novas etnias nacionais que, mais cedo ou mais
tarde, tenderão a repelir os intrusos inassimiláveis.

Portanto, na própria formação do que o autor chama de povos subdesenvolvidos,


principalmente com sua interação forçada no sistema industrial, pode-se perceber uma íntima
relação entre os processos de aceleração evolutiva e de atualização histórica, no sentido de que,
com o avanço da técnica industrial, a dinâmica civilizatória — que ocorre pela interação entre
esses dois processos — se aprofunda. Na realidade, se aprofunda não apenas pela difusão global
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da industrialização, mas pelo controle que umas nações passam a exercer sobre outras com a
breve menção que o autor faz ao imperialismo.
A aceleração evolutiva avança nas regiões industrializadas justamente pela realização
da aceleração histórica de povos que se constituem, na dinâmica civilizatória, enquanto
subdesenvolvidos. E é nesse sentido que a noção de desenvolvimento aqui não se realizaria por
uma mera modernização técnica. Na verdade, a modernização técnica de todas as revoluções
tecnológicas promoveu uma dinâmica civilizatória contraditória na interação entre os povos —
na qual a evolução de uns se realiza ao mesmo tempo que a atualização de outros. Ou seja, o
próprio desenvolvimento cultural, técnico e, portanto, civilizatório de algumas nações
pressupõe a dizimação de matrizes étnicas e culturais de outras, subjugando-as à condição de
subdesenvolvimento, que alguns países possuem melhores condições de superar, enquanto
outros são mais intensamente fundados nela.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A elaboração deste trabalho nasceu do esforço de compreender como Darcy Ribeiro


compreende o processo de desenvolvimento. Apesar de não ser economista, consideramos de
enorme importância sua contribuição para pensarmos um conceito importante dentro da ciência
econômica, para que possamos ter contato com uma outra dimensão que o autor traz para
enriquecê-lo: a dimensão civilizatória. Nesse sentido, compreendemos quão diversa é sua obra
e suas realizações. No entanto, procuramos nos ater apenas a uma parte de seu trabalho, o que
por si só já se revelou extremamente complexo.
Ao buscarmos compreender como nosso autor enxerga o desenvolvimento, voltamos ao
bojo do processo civilizatório, buscando expor a maneira com que seu método se realiza, isto
é, na própria civilização que se forma a partir de sucessivas revoluções tecnológicas,
modificando a interação entre ser humano e natureza. Uma vez exposta a dinâmica civilizatória,
passando por todas as revoluções e os domínios da técnica, podemos compreender o que é o
processo de desenvolvimento e o quão profundamente ele está presente na organização humana.
Ainda que se detenha ao termo desenvolvimento de fato ao tratar da Revolução Industrial, ele
se realiza ao longo do caminho evolutivo do fazer humano determinado por imperativos
culturais, mas também naturais.
Por conta disso, tentamos expor a importância fundamental dos processos de aceleração
evolutiva e de atualização histórica na dinâmica das etapas da Evolução Sociocultural,
tentando, a nosso ver, revelar a natureza profunda presente na formação e no desenvolvimento
dos povos. Nesse sentido, consideramos que Darcy Ribeiro propõe uma leitura que toca nas
bases humanas a fim de compreender os problemas fundamentais com que se deparam as
sociedades em relação ao tema do desenvolvimento, desmascarando, assim, as obviedades em
torno do tema. Para isto, volta 10.000 anos na civilização e nos apresenta a profunda
complexidade com que se formou a sociedade humana. Por fim, terminamos este trabalho
citando o próprio autor tratado aqui, sempre muito dedicado intelectualmente, mas sempre com
uma dedicação humana — para os povos humanos —, buscando desmistificar as obviedades
que tanto os oprimem. Terminamos, então, com um trecho em que Darcy Ribeiro trata do óbvio:

Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham é com o óbvio.
Aparentemente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de forma tão recôndita e
disfarçada que se precisa desta categoria de gente – os cientistas – para ir tirando os
véus, desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento
é que parece um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar as obviedades
para descobrir outras, mais óbvias ainda. (RIBEIRO, 2019, p. 31)
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 2

ENGELS, Friederich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São


Paulo: Boitempo, 2019.

MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. 4. ed. Tradução João Maia. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.

RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização: estudos de antropologia da civilização. Rio


de Janeiro: Vozes, 1977.

RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório: etapas da evolução sociocultural. São Paulo:


Companhia das Letras, 1997.

RIBEIRO, Darcy. Sobre o óbvio. Marília: Lutas anticapital, 2019.

VASCONCELLOS, Gilberto F. Darcy Ribeiro: a razão iracunda. Santa Catarina: UFSC,


2015.

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Revisão gramatical, formatação ABNT e organização de referências bibliográficas feitas por Paula Garcia e
Lucas Bernardes (contato@dezenove.org).

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