Você está na página 1de 89

Governo do Estado do Amazonas

Wilson Miranda Lima


Governador

Universidade do Estado do Amazonas

André Luiz Nunes Zogahib


Reitor

Kátia do Nascimento Couceiro


Vice-Reitora

Secretaria de Estado de Educação e Desporto

Maria Josepha Penella Pêgas Chaves


Secretária de Estado de Educação e Desporto

Curso de Especialização Saberes e Práticas

Maristela Barbosa Silveira e Silva - Coordenadora Geral


Alcides de Castro Amorim Neto - Coordenador Pedagógico
Cláudio Barros Vitor - Coordenador Pedagógico
Carlos Renato Rosário de Jesus - Coordenador Pedagógico
Jorge de Menezes Rodrigues - Coordenador Pedagógico
Jeiviane dos Santos Justiniano - Coordenadora Pedagógica
Kelly Christiane Silva de Souza - Coordenadora Pedagógica
Meire Terezinha Silva Botelho de Oliveira - Coordenadora Pedagógica
Otávio Rios Portela - Coordenador Pedagógico
Roberto Sanches Mubarac Sobrinho - Coordenador Pedagógico

Anni Marcelli Santos de Jesus Samara Nina


Jamerson Eduardo Reis Projeto gráfico e diagramação
Sindia Siqueira
Revisão
Alfabetização,
Letramento e Práticas
Interdisciplinares
nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental

Caroline Barroncas de Oliveira


Mônica de Oliveira Costa

Universidade do Estado do Amazonas


Escola Normal Superior
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação

Curso de Especialização Saberes e Práticas para a


Docência nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental:
Língua Portuguesa e Matemática
Sumário

4 A-present(e)-ação

7 Plano de ensino

10 Orientações gerais sobre as atividades avaliativas

Unidade 1
12 A língua do Ser alfabetizador
13 Texto base
37 Textos complementares

Unidade 2
38 A língua do (des)alfabetizador
39 Texto base
60 Texto complementar

Unidade 3
61 A língua do Alfabetizador Artístico
62 Texto base
83 Textos complementares

84 Apêndices
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 4

A-PRESENT(E)-AÇÃO

A LÍNGUA DA (DES)ALFABETIZAÇÃO

"despalavreação: é um ensinamento, uma desaprendizagem,


um desmomento e, tem outros nomes: guimarães rosa,
manoel de barros, luandino vieira, mia couto ou qualquer
outro ser humano que sorria no gigantesco significado das
coisas insignificantes" (ONDJAKI, 2011, p. 62).1

O que vem a ser uma a-present(e)-ação? Ela pressupõe uma ação


presente, pois apresentar uma disciplina significa agir, um inter-agir entre

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


leitores e autores. Aqui nesse caso, entre professores(as) que alfabetizam e
professores(as) que (des)formam com o desejo de se ocupar das fronteiras
da Alfabetização e do Letramento.
O nosso interesse é tornar visível e concreto um estranhamento sobre o
que já aprendemos e fazemos ao alfabetizar/letrar os estudantes. Suspeitar
das supostas verdades e modos corretos de como fazê-lo e acolher a ideia
de que toda leitura e escrita é sempre uma ação que se dá em dois sentidos:
de fora para dentro e de dentro para fora. Toda leitura/escrita é inscrição
de si, mesmo que o gênero textual exija, por convenções, um (im)possível
afastamento, uma proclamada objetividade. Os processos alfabetizadores,
os textos, os métodos, as atividades carregam em si traços daqueles que os
propõem, por isso nos inscrevemos naquilo que produzimos e ensinamos.
Sendo assim, o processo de alfabetizar/letrar também diz de nós,
daquilo que nos tornamos, das escolhas que fazemos. A disciplina
“Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais
do Ensino Fundamental” foi organizada não para ser um amontoado de
conceitos e conhecimentos sobre o que é e como alfabetizar, mas sim
possibilitar questionamentos sobre aquilo que se tornou natural pelo hábito,
pela cultura, pelo cotidiano, pela universidade, pela escola e que produz
verdades universais sobre o ser criança e de formas, tempos e espaços
ditos corretos para alfabetizar/letrar.
Dessa maneira, não temos a pretensão ou a intenção de fornecer
“receitas” ou “soluções aos problemas”, sempre novos e diferentes, das
1 ONDJAKI. Há prendisajens com o xão: O segredo húmido da lesma & outras descoisas.
Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 5

salas de aula, mas abrir sendas para que cada um, ao perseguir o caminho
que escolher, se sinta responsável, responda por seus gestos pedagógicos,
por sua ação educativa, pelo futuro da sua escola, da sua cidade... Essa,
a nosso ver, é a atitude ética que (im)põe o respeito ao outro, à sua
criatividade, ao cuidado de si, ao seu esforço de problematizar o seu ato de
alfabetizar e buscar brechas criativas para as suas exigências: rasgar uma
certa disciplina no professorar alfabetizador que institui o que é permitido
ou não, o certo e o errado, o produtivo e o improdutivo nos processos de
alfabetização. Como diria Telles2, “sempre se percebe alguma forma de
método: nas repetições, na precisão lexical, nos rituais, na rotina. Mas,
rasgando esse método por dentro, corroendo-o, algo nessa escrita está
sempre se desfazendo, perguntando. Há uma intriga no ar: a indisciplina
rondando” (2010, p. 206).

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Nesse sentido, a feitura desta disciplina está pautada em três unidades,
uma divisão meramente pedagógica para tornar visível a língua da (des)
alfabetização:

UNIDADE I – A LÍNGUA DO SER ALFABETIZADOR


Análise das teorias do Construtivismo e do Sociointeracionismo,
bem como da leitura e da escrita no processo de alfabetização.
Bibliografia básica
CALDEIRA, Maria Carolina da Silva. Dispositivo de antecipação da alfabetização e políticas
curriculares contemporâneas: governando crianças e docentes. LES – Linguagens,
Educação, Sociedade, Teresina, Ano 24, n. 43, set./dez. 2019.
Bibliografia complementar
BRASIL. Ministério da Educação. Plano nacional de Alfabetização – PNA. DECRETO Nº
9.765, de 11 de abril de 2019. Brasília, 2019. Disponível em: D9765 (planalto.gov.
br). Acesso em: 31 ago. 2022.
KLEIN, Juliana Mottini; GUIZZO, Bianca Salazar. Problematizando representações docentes nos
Cadernos de formação do Programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC). Rev. bras. Estud. pedagog., Brasília, v. 98, n. 249, p. 311-331, maio/ago. 2017.
MACHADO, Rosimar Isidoro; LOCKMANN, Kamila. A tríade ciclo de alfabetização-PNAIC-
ANA como um fluxo biopolítico circular que gerencia a alfabetização no Brasil.
Cadernos de Educação, n. 62, jul./dez. 2019.

UNIDADE II – A LÍNGUA DO (DES)ALFABETIZADOR


Análise das hipóteses da escrita. Alfabetizar letrando e a formação
de alunos leitores.
2 TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do Amor: Memória e Ficção. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 6

Bibliografia básica
PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo, Desejo e Experiência. Educação & Realidade, v. 34,
n. 2, p. 277-293, maio/ago. 2009.
Bibliografia complementar
PEREIRA, Reginaldo Santos; INIS, Nilson Fernandes. O pacto com a leitura e escrita no
estado da Bahia: normalização, disciplina e controle para governar a infância. Teoria
e Prática da Educação, v. 22, n. 2, p. 91-108, maio/ago. 2019.

UNIDADE III – A LÍNGUA DO ALFABETIZADOR ARTÍSTICO


Práticas interdisciplinares e currículo integrado nos anos iniciais,
com ênfase no uso de novas tecnologias educacionais.
Bibliografia básica
SCHWANTZ, Josimara Wikboldt. ABCriador: da escrita às escrituras. In: SCHAWANTZ,
Josimara Wikboldt. Biografemário de um aprender: escrileituras em meio à vida.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Pelotas: Ed. UFPel, 2017.
Bibliografia complementar
REDON, Valéria Lopes. Alfabetização pós-construtivista em tempo de pandemia. Cadernos
de Gênero e Diversidade. v. 6, n. 2, abr./jun. 2020.
SCHWANTZ, Josimara Wikboldt. Sobre os Métodos... um aprender. In: SCHAWANTZ,
Josimara Wikboldt. Biografemário de um aprender: escrileituras em meio à vida.
Pelotas: Ed. UFPel, 2017.

É possível ensinar a ler e escrever? Como se começa a ler a e escrever?


É necessário ler e escrever? A escola impõe essa necessidade. A sociedade
letrada exige que saibamos ler e escrever. Os discursos escolares, culturais
e econômicos insistem em ensinar a argumentar, a controlar os efeitos de
sentido do que se lê e escreve, a fazer da leitura e da escrita a obediência
a regras, a convenções, a modelos.
É nesse sentido que as unidades nos convidam a viver novas
experiências, que irão passar pelo ato de criação, de inventar novos modos
de alfabetizar/letrar. Para isso, é necessário negar, destruir, subverter, pelo
menos em parte, o que foi produzido antes. A cada momento, ouvimos
ou lemos algo, pensamos e nos modificamos. Somos sempre outros,
diferentes. Eis o convite.

As professoras
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 7

Plano de ensino

Curso:
Especialização Saberes e Práticas para a Docência nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental: Língua Portuguesa e Matemática

Datas: 10, 17 e 24 de setembro | Ano: 2022

Componente curricular:
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais
do ensino fundamental

Professoras:
Dra. Caroline Barroncas de Oliveira e Dra. Mônica de Oliveira Costa

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Carga horária total: 30h | Teórica: 20h | Prática: 10h

Ementa:
Análise das teorias do Construtivismo e do Sociointeracionismo, bem como
da leitura e escrita no processo de alfabetização. Análise das hipóteses
da escrita. Alfabetizar letrando e a formação de alunos leitores. Práticas
Interdisciplinares e currículo integrado nos anos iniciais, com ênfase no
uso de novas tecnologias educacionais.

Objetivos:
Analisar as teorias do Construtivismo, do Sociointeracionismo, da leitura
e escrita, a partir da ideia de (com)posições do Ser alfabetizador no Brasil;
Problematizar a leitura e escrita no processo de alfabetização, com análise
das hipóteses da escrita e a ideia de alfabetizar letrando na formação de
alunos leitores, a partir da constituição de uma língua do des-alfabetizador;
Experimentar práticas interdisciplinares em uma perspectiva do currículo
integrado nos anos iniciais, com ênfase nas novas tecnologias educacionais,
a partir da língua do Alfabetizador Artístico.

Conteúdo programático:
Apresentação do componente curricular, o qual
denominamos “A língua da (Des)alfabetização”:
ementa, objetivos, metodologia, avaliação e
Caroline Barroncas
Aula 01 bibliografia.
de Oliveira e Mônica
10/09
de Oliveira Costa
UNIDADE I – A LÍNGUA DO SER ALFABETIZADOR
(Com)posições do Ser alfabetizador no Brasil:
análises teóricas
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 8

UNIDADE II – A LÍNGUA DO (DES)ALFABETIZADOR Caroline Barroncas


Aula 02
perspectivas de leitura e escrita no processo de de Oliveira e Mônica
17/09
alfabetização de Oliveira Costa
UNIDADE III – A LÍNGUA DO ALFABETIZADOR
Caroline Barroncas
Aula 03 ARTÍSTICO
de Oliveira e Mônica
24/09 A língua do Alfabetizador Artístico: experimentações
de Oliveira Costa
integradas/integradoras nos Anos Iniciais

Procedimentos metodológicos:
As atividades deste componente curricular serão desenvolvidas pelo
Sistema Presencial Mediado por Tecnologia (aulas ao vivo transmitidas do
estúdio da UEA para as turmas nos municípios do Estado). Essas atividades
envolverão leitura analítica de textos; diálogos problematizadores;
apresentação de dinâmica local; produção escrita individual e coletiva;
interatividade com as turmas para esclarecimento de dúvidas e orientações

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


sobre o estudo dos textos, além de explanação do roteiro para produção
dos trabalhos a serem desenvolvidos pelos(as) professores(as) cursistas.

Avaliação:
A avaliação, baseada em uma metodologia formativa, será realizada
no decorrer do processo, enfatizando-se o estudo do material didático
como pré-requisito para: participação nas aulas por meio de debates,
questionamentos durante a interatividade; outras atividades individuais/
coletivas em sua turma local e produção do trabalho escrito final.
A avaliação das atividades individuais e coletivas atenderá aos seguintes
critérios: fundamentação teórica, clareza, coerência e correção gramatical,
bem como a criatividade no envolvimento da experimentação docente.

• Primeira atividade: No primeiro momento, realizar a leitura de um


texto complementar, indicado na bibliografia da unidade I. Após isso,
em um segundo momento, fazer uma produção escrita individual,
que será a composição de uma carta (apêndice A) para o seu Ser
alfabetizador, problematizando as ideias de alfabetização e alfabetizador
que constituem o Ser alfabetizador do(a) professor(a) cursista. E em um
terceiro momento, finalizando com uma roda de conversa, compartilhar
as escritas com todos da turma (valor 0,0 a 5,0 pontos);
• Segunda atividade: Trabalho individual ou em dupla: assitir ao filme
“Buda caiu de vergonha” e produzir uma biocolagem a partir do roteiro
de análise (apêndice B) (valor: 0,0 a 5,0 pontos);
• Trabalho final: Produção escrita individual ou em dupla de um
Plano de Atuação Docente, a partir do roteiro (apêndice C), com o
foco em práticas interdisciplinares e integradoras nos anos iniciais
na perspectiva do Alfabetizador Artístico (valor 0,0 a 10,0 pontos).
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 9

Bibliografia:

Bibliografia básica
CALDEIRA, Maria Carolina da Silva. Dispositivo de antecipação da alfabetização e políticas
curriculares contemporâneas: governando crianças e docentes. LES – Linguagens,
Educação, Sociedade, Teresina, Ano 24, n. 43, set./dez. 2019.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Currículo, Desejo e Experiência. Educação & Realidade, v. 34,
n. 2, p. 277-293, maio/ago. 2009.

SCHWANTZ, Josimara Wikboldt. ABCriador: da escrita às escrituras. In: SCHAWANTZ,


Josimara Wikboldt. Biografemário de um aprender: escrileituras em meio à vida.
Pelotas: Ed. UFPel, 2017.

Bibliografia complementar
BRASIL. Ministério da Educação. Plano nacional de Alfabetização – PNA. DECRETO Nº

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


9.765, de 11 de abril de 2019. Brasília, 2019. Disponível em: D9765 (planalto.gov.
br). Acesso em: 31 ago. 2022.

KLEIN, Juliana Mottini; GUIZZO, Bianca Salazar. Problematizando representações docentes


nos Cadernos de formação do Programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa (PNAIC). Rev. bras. Estud. pedagog., Brasília, v. 98, n. 249, p. 311-331, maio/
ago. 2017.

MACHADO, Rosimar Isidoro; LOCKMANN, Kamila. A tríade ciclo de alfabetização-PNAIC-


ANA como um fluxo biopolítico circular que gerencia a alfabetização no Brasil.
Cadernos de Educação, n. 62, jul./dez. 2019.

PEREIRA, Reginaldo Santos; INIS, Nilson Fernandes. O pacto com a leitura e escrita no
estado da Bahia: normalização, disciplina e controle para governar a infância. Teoria
e Prática da Educação, v. 22, n. 2, p. 91-108, maio/ago. 2019.

REDON, Valéria Lopes. Alfabetização pós-construtivista em tempo de pandemia. Cadernos


de Gênero e Diversidade. v. 6, n. 2, abr./jun. 2020.

SCHWANTZ, Josimara Wikboldt. Sobre os Métodos... um aprender. In: SCHAWANTZ,


Josimara Wikboldt. Biografemário de um aprender: escrileituras em meio à vida.
Pelotas: Ed. UFPel, 2017.
Conhecimentos/Saberes Docentes: Concepções e Práticas 10

Orientações gerais sobre as atividades avaliativas

Componente curricular:
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais
do ensino fundamental

Professoras:
Dra. Caroline Barroncas de Oliveira e Dra. Mônica de Oliveira Costa

Considerando que a metodologia docente desta especialização prioriza


a valorização das práticas pedagógicas dos(as) professores(as) cursistas,
situando esse protagonismo na perspectiva do(a) professor(a) que reflete,
analisa e cria, elaboramos atividades avaliativas que contemplem a análise

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


e problematizações de concepções, práticas e leis que regimentam a
alfabetização e seus processos de letramento e práticas interdisciplinares,
bem como a produção de outros modos de existência da atuação desse(a)
professor(a) que alfabetiza artisticamente como proposta de integração
curricular nos anos iniciais.
Nesse sentido, o desenho pedagógico deste componente curricular
estabelece tempos/espaços de leitura, estudo, produção escrita individual e
coletiva na própria sala de aula do curso, subsidiados pela problematização
do cotidiano da vida, da escola e da rede pública de ensino onde o cursista
trabalha. Dessa maneira, segue o cronograma de atividades com seus
respectivos dias e horários de realização:

DATA DE
ATIVIDADE DIA/HORÁRIO
ENTREGA
Primeira atividade
No primeiro momento realizarão a leitura de um
texto complementar, indicado na bibliografia da
unidade I.
Após, em um segundo momento, farão uma 10/09/2022
produção escrita individual, composição de uma (sábado)
10/09/2022
carta (apêndice A) para o seu Ser alfabetizador Das 13h às
(sábado)
problematizando as ideias de alfabetização e 17h
alfabetizador que constituem o Ser alfabetizador TARDE
do(a) professor(a) cursista.
E em um terceiro momento, finalizando com uma
roda de conversa, compartilharão as escritas com
todos da turma (valor 0,0 a 5,0 pontos);
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 11

Segunda atividade 17/09/2022


Trabalho individual ou em dupla: Assitir ao (sábado)
17/09/2022
filme “Buda caiu de vergonha” e produzir Das 13h às
(sábado)
uma biocolagem a partir do roteiro de análise 17h
(apêndice B) (valor: 0,0 a 5,0 pontos). TARDE
Trabalho Final
Produção escrita individual ou em dupla de 24/09/2022
um Plano de Atuação Docente, a partir do (sábado)
24/09/2022
roteiro (apêndice C), com o foco em práticas Das 13h às
(sábado)
interdisciplinares e integradoras nos anos iniciais 15h
na perspectiva do Alfabetizador Artístico (valor TARDE
0,0 a 10,0 pontos).
Encerramento da disciplina com as professoras
24/09/2022
e socialização
(sábado)
- Do percurso formativo neste 24/09/2022
Das 15h às

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


componente curricular; (sábado)
17h
- Autoavaliação;
TARDE
- Avaliação do trabalho das professoras ministrantes.
unidade 1
A língua do Ser alfabetizador

Texto base
Textos complementares
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 13

Texto base

DISPOSITIVO DE ANTECIPAÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO


E POLÍTICAS CURRICULARES CONTEMPORÂNEAS:
GOVERNANDO CRIANÇAS E DOCENTES

Maria Carolina da Silva Caldeira1

RESUMO: Este artigo analisa três documentos curriculares recentes – os Cadernos de


Formação do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (BRASIL, 2012), a Base
Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) e o Caderno da Política Nacional de Alfabetização
(BRASIL, 2019) – para compreender de que modo o dispositivo de antecipação da alfabetização
opera nesses textos para produzir a criança alfabetizada. Com base em uma perspectiva
foucaultiana, considero que um dispositivo se constitui de elementos diversos e tem

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


como objetivo eliminar determinados riscos e governar dadas populações. O dispositivo de
antecipação da alfabetização pretende governar crianças e docentes a fim de produzir uma
criança que se alfabetize o quanto antes, eliminando os riscos que uma população analfabeta
pode representar. Argumento que para justificar a antecipação da alfabetização como
estratégia fundamental para a diminuição dos riscos que envolvem a população infantil, os
três documentos curriculares utilizam a expertise e a argumentação em torno da ciência como
técnica importante. Embora se utilizem de técnicas semelhantes, as definições de quem são
os experts e qual ciência é a verdadeira variam nos documentos, gerando tensões e conflitos
em torno de que conhecimentos e saberes são válidos no processo de alfabetização. Com
base na análise de discurso de inspiração foucaultiana, mostro as condições de emergência
para que essas verdades sejam afirmadas, bem como os conflitos que se estabelecem na
demanda pelas posições de sujeito criança alfabetizada e boa professora alfabetizadora.

Palavras-chave: Alfabetização. Currículo. Base Nacional Comum Curricular.

LITERACY ANTICIPATION DEVICE AND CONTEMPORARY CURRICULUM


POLICIES: GOVERNING CHILDREN AND TEACHERS

ABSTRACT: This article analyzes three recent curriculum documents the National Pact
for Literacy Training at the Right Age Notebooks (BRASIL, 2012), The Common National
Curriculum Base (BRASIL, 2018) and the National Literacy Policy Notebook (BRASIL, 2019)
– to understand how the literacy anticipation device operates in these texts to produce the
literate child. From a foucaultian perspective, I consider that a device is constituted by several
elements and aims to eliminate certain risks and to govern given populations. The literacy
anticipation device intends to govern children and teachers in order to produce a literate
child as soon as possible, eliminating the risks that an illiterate population may represent.
I argue that in order to justify the anticipation of literacy as a fundamental strategy for
reducing the risks to the child population, the three curriculum documents use expertise and
reasoning around science as an important technique. Although similar techniques are used,

1 Professora do Centro Pedagógico/UFMG. Professora do PPGE/FaE/UFMG. Doutora em Educação


ORCID - http://orcid.org/0000-0003-0668-1989 Email - mariacarolinasilva@hotmail.com
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 14

the definitions of who the experts are and which science is the true vary in the documents,
causing tensions and conflicts around which knowledge and knowledge are valid in the
literacy process. Based on Foucaultian-inspired discourse analysis, I show the emergency
conditions for these truths to be affirmed, as well as the conflicts that are established in the
demand for the subject positions of literate child and good literacy teacher.

Keywords: Literacy. Curriculum. Common National Curriculum Base.

DISPOSITIVO DE ANTICIPACIÓN DE LA ALFABETIZACIÓN Y POLÍTICAS


CURRICULARES CONTEMPORÁNEAS: GOBIERNO DE NIÑOS Y
MAESTROS

RESUMEN: Este artículo analiza tres documentos curriculares recientes: los Cuadernos de
capacitación en alfabetización a la edad adecuada (BRASIL, 2012), la Base nacional común
del plan de estudios (BRASIL, 2018) y el Cuaderno nacional de políticas de alfabetización

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


(BRASIL, 2019) - comprender cómo funciona el dispositivo de anticipación de la
alfabetización en estos textos para producir al niño alfabetizado. Desde una perspectiva
foucaultiana, considero que un dispositivo está constituido por diversos elementos y
tiene como objetivo eliminar ciertos riesgos y gobernar a determinadas poblaciones. El
dispositivo de anticipación de la alfabetización está destinado a gobernar a los niños y los
maestros a fin de producir un niño alfabetizado lo antes posible, eliminando los riesgos que
puede plantear una población analfabeta. Sostengo que para justificar la anticipación de la
alfabetización como una estrategia fundamental para reducir los riesgos para la población
infantil, los tres documentos del plan de estudios utilizan la experiencia y el razonamiento
en torno a la ciencia como una técnica importante. Aunque se utilizan técnicas similares,
las definiciones de quiénes son los expertos y qué ciencia es la verdadera varían en los
documentos, generando tensiones y conflictos en torno a los cuales el conocimiento y el
conocimiento son válidos en el proceso de alfabetización. Basado en el análisis del discurso
inspirado en Foucault, muestro las condiciones de emergencia para que estas verdades se
afirmen, así como los conflictos que se establecen en la demanda de los puestos de niño
alfabetizado y buen maestro de alfabetización.

Palabras clave: Alfabetización. Currículum. Base Curricular Nacional Común.

Introdução

As classes de ler e escrever, ao contrário, constituíram enorme


sucesso. Já no outono quase todos os bichos estavam, uns mais,
outros menos, alfabetizados. Os porcos já liam e escreviam muito
bem. Os cachorros aprenderam a ler razoavelmente, porém se
interessavam pela leitura de nada além dos Sete Mandamentos.
Maricota, a cabra, lia um pouco melhor que os cachorros e
costumava ler para os demais, à noite, os pedaços de jornal que
achava no lixo. Benjamim sabia ler tão bem quanto os porcos, mas
não exercia sua faculdade. Ao que sabia - costumava dizer -, nada
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 15

havia que valesse a pena ler. Quitéria aprendeu todo o alfabeto,


mas não conseguia juntar as letras. Sansão não foi capaz de ir
além da letra D. Desenhava na areia, com a pata, as letras A, B, C,
D, e ficava olhando, com as orelhas murchas, às vezes sacudindo
o topete, tentando com todas as suas forças lembrar-se do que
vinha depois, inutilmente. É verdade que em várias ocasiões
aprendeu E, F, G, H, mas ao consegui-lo, descobria sempre que
havia esquecido A, B, C e D. Afinal, decidiu contentar-se com as
quatro primeiras letras e costumava escrevê-las uma ou duas
vezes por dia, a fim de refrescar a memória. Mimosa recusou-se
a aprender mais do que as seis letras que compunham seu nome.
Formava-as, bem certinhas, com pedaços de ramos, enfeitava
o conjunto com uma ou duas flores e ficava andando à volta, a
admirá-las. Nenhum dos outros animais da granja chegou além

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


da letra A (ORWELL, 2000, versão para e-book)

Na fábula distópica “Revolução dos Bichos”, de George Orwell, quando


os animais tomam posse da Granja dos Bichos, a única ação em que os
dois líderes da Revolução concordam, e que rapidamente é aceita pelos
demais animais, é a criação de “classes de ler e escrever”. A despeito das
diferenças políticas e das habilidades diversas dos animais da fazenda, a
crença acerca da importância da leitura e da escrita e de sua inefabilidade
para a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária é acatada
como verdade. Os animais, com muito esforço, se dedicam a aprender e,
rapidamente, estão todos mais ou menos alfabetizados. O que se entende
por essa alfabetização é diverso e multifacetado, mas a ideia que move
essas ações é a crença na centralidade da leitura e da escrita na sociedade.
Fato semelhante parece ocorrer em diferentes governos do Brasil que,
apesar de todas as suas divergências, assinalam a importância de garantir
a alfabetização de todos/as os/as brasileiros/as. Esse parece ser um mote
comum a diversas políticas públicas, desde o estabelecimento do Império2
até os dias atuais. Diferentes legislações têm apontado a importância de
garantir a alfabetização de todos/as. O PNE 2014-2024, por exemplo, aponta
como Meta 5 “Alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3°
(terceiro) ano do ensino fundamental”.
2 A Primeira Lei de Ensino Elementar, decretada por Dom Pedro I em 15 de outubro de
1827, mandava “crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais
populosos do Imperio” (Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-
1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-publicacaooriginal- 90222-pl.html. Acesso em
04 de novembro de 2019.)
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 16

Esses diferentes movimentos em busca da alfabetização articulam-se


diretamente às questões curriculares. Afinal, a questão central que move
a discussão sobre currículo refere-se à pergunta “qual conhecimento
deve ser ensinado?” (SILVA, 2001, p. 14). Nas políticas de alfabetização, a
definição sobre que saberes e conhecimentos são importantes e o modo
como esse processo deve se efetuar são fundamentais. Dessa maneira, o
sentido atribuído ao que conta como alfabetização, em que momentos do
processo de escolarização ela deve acontecer e de que forma tal processo
deve se organizar são questões essencialmente curriculares. Considero,
assim, que diferentes materiais que se articulam em torno dessas temáticas
constituem-se em políticas curriculares, na medida em que se articulam às
questões principais desse campo, quais sejam: o que deve ser ensinado; que

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


relações de poder se estabelecem nesse processo; que sujeitos objetiva-se
produzir por meio desse currículo (CORAZZA; TADEU, 2003).
Este artigo toma como objeto de estudo três documentos curriculares
recentes: os Cadernos do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
– PNAIC (BRASIL, 2012)3, o item relativo ao ensino fundamental – anos
iniciais da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018) e
o Caderno da Política Nacional de Alfabetização – PNA (BRASIL, 2019).
O objetivo é analisar como opera nesses documentos o dispositivo de
antecipação de alfabetização. Com base em uma perspectiva foucaultiana,
considero que um dispositivo é um “conjunto de elementos heterogêneos”
que dispõem os indivíduos em determinadas relações de poder-saber
(FOUCAULT, 2000a, p. 244). O dispositivo de antecipação da alfabetização
tem operado em diferentes âmbitos da educação brasileira no sentido de
governar docentes e crianças para que a alfabetização se opere o quanto
antes no processo de escolarização infantil. Governo pode ser definido

3 O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade certa foi uma política pública firmada entre
o Governo Federal, Municípios e instituições de ensino superior, com o objetivo central
de garantir que todas as crianças estivessem alfabetizadas até os oito anos de idade. Para
isso, ao longo de seus três anos de duração (2012 a 2015) foram realizadas ações em quatro
eixos, a saber: Formação continuada presencial para os/as professores/as alfabetizadores/
as; Materiais didáticos distribuídos para as escolas; Avaliações sistemáticas das crianças
em processo de alfabetização; Gestão, mobilização e controle social. Durante os três anos
de vigência do PNAIC, foram produzidos diferentes cadernos de formação para os/as
docentes. Neste artigo, analiso apenas os cadernos produzidos no de 2012 (primeiro
ano do Pacto), pois são os cadernos que tratam especificamente de Língua Portuguesa e
Alfabetização. A temática aparece nos anos seguintes, mas não há mudanças significativas
em relação ao que foi estabelecido no ano de 2012.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 17

como o ato de “conduzir condutas” (FOUCAULT, 1997), ou seja, “estruturar


o eventual campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 1995, 244). O dispositivo
de antecipação da alfabetização está presente nesses diferentes documentos
para estruturar as ações que devem ser vivenciadas pelas crianças em
processo de alfabetização e pelas/os docentes alfabetizadoras/es.
Do ponto de vista metodológico, este artigo utilizará elementos da
análise de discurso de inspiração foucaultiana. O discurso para Foucault
se constitui em um “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo
sistema de formação” (FOUCAULT, 2008, p. 122). Analisar discursos, nessa
perspectiva, não significa analisar as falas e os ditos, mas compreender
os elementos que fazem possível com que certas falas e certos ditos
sejam reconhecidos como verdades e que tenham efeitos na produção de

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


determinados saberes e objetos. A análise de discurso não é uma análise
da língua, mas “uma interrogação sobre as condições de emergência
de dispositivos discursivos que sustentam práticas” (REVEL, 2005, p.
38). Segundo Foucault (2000b p. 23), é importante compreender um
determinado discurso não apenas pelo seu “termo final”, mas pelas forças
que lutaram em diversos períodos históricos para construir uma verdade.
Pretendo, assim, demonstrar as condições que possibilitam a existência
desse dispositivo e sua afirmação como verdade nesse tempo.
Argumento que, para justificar a antecipação da alfabetização como
estratégia fundamental para a diminuição dos riscos que envolvem certa
parcela da população infantil, os três documentos curriculares utilizam a
expertise e a argumentação em torno da ciência como técnica importante.
Na análise, é possível perceber um crescente movimento rumo à ciência
cognitiva apresentada na atualidade como verdade inquestionável capaz
de romper com os riscos do analfabetismo na sociedade brasileira.
Nesse processo, ocorre uma gradual desvalorização de certos saberes e
conhecimentos, sua substituição pela ciência cognitiva como única válida e
pelas metodologias relativas à consciência fonológica como estratégia para
produzir a alfabetização. Nesse processo, são demandadas e produzidas
uma professora alfabetizadora e uma criança alfabetizada narradas a partir
dessa verdade científica.
Para desenvolvimento desse argumento, este artigo está dividido em
quatro partes, além desta introdução. Na primeira parte, discuto como o
dispositivo de antecipação da alfabetização foi construído historicamente, além
dos elementos teóricos que serão utilizados na análise aqui proposta. Na
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 18

segunda parte, analiso a ideia de uma “idade certa” para alfabetizar e a


construção do analfabetismo infantil como um risco que precisa ser medido
e controlado. Mostro, também, como há uma progressiva antecipação na
idade que se espera que a alfabetização se consolide nos três documentos
analisados. Na terceira parte, analiso como a ciência cognitiva e as
metodologias relacionadas à consciência fonológica vão eliminando outros
saberes do processo de alfabetização para consolidar-se como verdade. Por
fim, apresento as considerações finais para sistematizar como a professora
alfabetizadora e a criança alfabetizada são produzidas nesses documentos.

Dispositivo, governo e risco: ferramentas analíticas para


compreender a antecipação da alfabetização

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


O conceito de dispositivo emerge na teorização foucaultiana por volta dos
anos 1970. Segundo Agamben (2005, p. 9) esse conceito passa a fazer parte dos
estudos desenvolvidos por Foucault quando ele se dedica à discussão sobre
o “governo dos homens”. Se antes os estudos foucaultianos se desdobravam
em discussões acerca do discurso e do poder, o conceito de dispositivo servirá
para unir esses elementos, mostrando a rede que se estabelece entre eles.
Dispositivo pode ser definido como um conjunto de elementos heterogêneos,
tais como “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (FOUCAULT, 2000a, p. 244)
que têm como objetivo central governar uma determinada população. Dreyfus
e Rabinow (1995, p. 135) afirmam que o dispositivo diz respeito às “práticas
elas mesmas, atuando como um aparelho, uma ferramenta, constituindo
sujeitos e os organizando”. Assim, para explicar como nas sociedades operava
o governo, Foucault recorre a elementos múltiplos que envolvem o discursivo
e o não discursivo. Esses elementos movimentam legislações, regulamentos,
espaços e discussões de diferentes tipos, que produzem determinados modos
de ser e de agir no mundo.
O governo é uma das estratégias por meio da qual as relações de poder
se estabelecem e se atualizam no contexto social. Nas análises foucaultianas
considera-se que “as relações de poder são, antes de tudo, produtivas”
(FOUCAULT, 2000c, p. 236). O poder produz saber, pois “não há relação de
poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (FOUCAULT,
1999, p. 27). O poder também produz verdades e define possíveis campos de
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 19

ação daqueles/as que se inserem nessas relações. Nesse sentido, o governo


é o ato de condução de condutas (FOUCAULT, 1997), ou seja, ele se refere
a uma “ação sobre a ação, sobre ações eventuais, ou atuais, futuras ou
presentes” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 243).
O dispositivo de antecipação da alfabetização, por sua vez, se refere a um
conjunto de práticas, saberes, legislações, organizações espaciais e curriculares,
discursos e proposições morais e acadêmicas que tem o objetivo central de
governar as crianças para garantir que elas se alfabetizem o quanto antes.
Essa demanda pela alfabetização pretende estruturar ações que devem ser
vividas por crianças e professoras no âmbito escolar, a fim de evitar os riscos do
analfabetismo. Esse dispositivo funciona para governar os/as professores/as e
os/as alunos/as que ingressam no 1º ano do ensino fundamental e para garantir

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


a plena alfabetização de todos/as o mais cedo possível, preferencialmente
ainda no primeiro ano na rede pública de ensino4.
Por muito tempo no Brasil, a idade de sete anos foi considerada a
adequada para o ingresso na escola de ensino fundamental e esse nível
de ensino era, de modo geral, considerado responsável por garantir a
alfabetização. Lourenço Filho, em livro sobre alfabetização5 publicado pela
primeira vez em 1920, afirma que a “idade de sete anos é a da maioridade
escolar, como a de vinte e um, a da maioridade civil” (LOURENÇO FILHO,
2008, p. 23). O marco dos sete anos remete à “tradição hipocrática de se
dividir a infância em três períodos: infantia, do nascimento aos 7 anos;
puerícia, dos 7 aos 12 anos para meninas, e dos 7 aos 14 para meninos, e
adolescentia, dos 12 ou 14 até os 21” (HEYWOOD, 2005, p. 26). Essa tradição
está presente também no discurso do cristianismo, no qual a idade de sete
anos “é considerada como passagem para a idade da razão e das primeiras
responsabilidades, influenciando o ingresso nas escolas e atividades mais
sistematizadas de aprendizagem” (OLIVEIRA, 2012, p. 2).
Porém, gradualmente, foram se construindo condições para que a

4 Nas escolas da rede privada e mesmo em algumas escolas da rede pública esse dispositivo
opera para produzir a alfabetização na educação infantil. Como veremos a seguir, a
construção do primeiro ano como “idade para alfabetização” visa atingir, sobretudo, as
crianças de camadas populares.
5 Trata-se do livro “Testes ABC para a verificação da maturidade necessária à aprendizagem
da leitura e da escrita”. O Teste ABC consta de oito provas, sendo que cada prova vale de
zero a três pontos, que visam a verificar as condições de maturidade de cada criança para
iniciar o processo de alfabetização.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 20

alfabetização (e também o ingresso no ensino fundamental)6 fosse iniciada


antes dos sete anos. Caldeira e Paraíso (2016, p. 849) mostram que para
antecipar esse processo “foi preciso articular um dispositivo de antecipação
da alfabetização, cujas bases foram sendo construídas ao longo da história
da educação brasileira”. As autoras apontam diferentes elementos que foram
sendo amalgamados para produzir esse processo de antecipação, processo
esse que se consolida nesse momento histórico com a promulgação da Base
Nacional Comum Curricular e da Política Nacional de Alfabetização. Neste
artigo, considero que a ideia que dá base a esse dispositivo é a de que quanto
antes a criança se alfabetizar, menores são os riscos do fracasso escolar e da
consequente exclusão social.
A noção de risco vem sendo utilizada nos estudos sobre biopoder.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Esse modo de compreender o poder refere-se à forma como ele atua não
apenas sobre os indivíduos, mas sobre as populações, agindo em diferentes
aspectos da vida, controlando-a e organizando-a. Na modernidade, “o poder
político acabava de assumir a tarefa de gerir a vida” (FOUCAULT, 2006, p.
131). Nesse processo de gerenciamento da vida, é necessário classificar
espaços e indivíduos, verificando se há certas características que podem ser
problemáticas. Segundo Traversini (2003, p. 111) “com a invenção da noção
de risco, passou-se a considerar que algumas ações podem ser realizadas
para prevenir e evitar perigos e ameaças, obtendo uma sensação de domínio
da insegurança e da incerteza”.
Parece ser isso que ocorre com a operacionalização do dispositivo de
antecipação de alfabetização nas políticas curriculares aqui analisadas.
Visando atingir a estratégia maior de alfabetizar a todos/as, essas legislações
utilizam diferentes técnicas e saberes para garantir que o processo de
alfabetização aconteça. Se considerarmos que as estratégias são o modo
como os “procedimentos para regular as capacidades das pessoas se ligam
a objetivos morais, sociais ou políticos mais amplos” (ROSE, 2001, p. 40),
parece haver uma série de investimentos – entre os quais a criação de políticas
curriculares – para garantir a alfabetização das crianças, preferencialmente,
aos seis anos de idade. Pretende-se, assim, diminuir os riscos de uma
população não-alfabetizada, produzindo uma sensação social de segurança
e de comprometimento com objetivos morais mais amplos.

6 A 11.114/2005 tornou obrigatória a matrícula das crianças a partir dos seis anos de
idade no ensino fundamental. Já a Lei 11.274/2006 ampliou o ensino fundamental de
oito para nove anos, com início a partir dos seis anos de idade.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 21

Nesse processo, o currículo emerge como ferramenta fundamental, já


que por meio dele é possível garantir efeitos duradouros na vida das pessoas.
Considero o currículo como um espaço em que poder e saber se articulam,
visando o controle de determinadas etapas da vida. Por meio do currículo,
visa-se a produção de um determinado tipo de sujeito. No caso específico aqui
analisado, considero que os três currículos visam a produção de uma criança
que se alfabetize o quanto antes e que, por causa disso, não seja um risco à
população brasileira.

A idade certa para alfabetizar

Para que, de fato, as crianças estejam alfabetizadas aos oito anos


de idade, necessitamos promover o ensino do sistema de escrita

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


desde o primeiro ano do Ensino Fundamental e garantir que os
conhecimentos relativos às correspondências grafofônicas sejam
consolidados nos dois anos seguintes. (BRASIL, 2012a, p. 7)
Embora, desde que nasce e na Educação Infantil, a criança esteja
cercada e participe de diferentes práticas letradas, é nos anos
iniciais (1º e 2º anos) do Ensino Fundamental que se espera que
ela se alfabetize. Isso significa que a alfabetização deve ser o foco
da ação pedagógica. (BRASIL, 2018, p. 89)
Do ponto de vista operacional, alfabetizar é: no primeiro ano
do ensino fundamental, ensinar explicitamente o princípio
alfabético e as regras de decodificação e de codificação que
concretizam o princípio alfabético na variante escrita da língua
para habilitar crianças à leitura e soletração de palavras escritas
à razão de 60 a 80 palavras por minuto com tolerância de no
máximo 5% de erro na leitura. (BRASIL, 2019, p. 18)

Sete anos separam a publicação do primeiro documento curricular


aqui analisado (PNAIC) do último (PNA). Parece, porém, ter havido
uma mudança expressiva no modo de se referir à “idade certa” para a
alfabetização nos três documentos. Nos Cadernos do PNAIC estabelece-se
que a alfabetização deve ocorrer até os oito anos de idade. Na BNCC, coloca-
se que essa alfabetização deve ocorrer aos sete anos de idade (ao final do
2º ano do ensino fundamental de 9 anos). Na PNA, estabelece-se o marco
do 1º ano do ensino fundamental (portanto, aos seis anos) como o período
para que as crianças consigam ler e escrever.
Embora haja uma explicitação gradual quanto ao primeiro ano
como o momento em que deve acontecer a alfabetização, é perceptível
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 22

que desde os cadernos de formação do PNAIC a ideia da centralidade do


1º ano para a alfabetização aparece. Ainda que se afirme que “três anos
têm se mostrado um intervalo que favorece um trabalho pedagógico com
menor tensão para docentes e para estudantes, considerando o princípio da
progressão” (BRASIL, 2016a, p. 23), a ideia de que alguns conhecimentos,
particularmente aqueles articulados ao que se denonima no PNAIC como
o eixo da “Apropriação do sistema de escrita”, sejam consolidados desde o
primeiro ano do ensino fundamental atravessa todo o documento. Afinal,
essa política curricular trabalha com a ideia de que “garantir que todas as
crianças que frequentam a escola se alfabetizem nos três primeiros anos
do Ensino Fundamental precisa ser, no contexto atual, uma prioridade
da escola brasileira”. (BRASIL, 2016a, p. 25). Nesse sentido, é necessário

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


garantir o ensino sistemático de certos saberes desde o primeiro ano e até
mesmo na educação infantil.
Como apontado na introdução deste artigo, o dispositivo de antecipação
da alfabetização não começa a operar apenas a partir do momento em que a
PNA é aprovada e define de forma explícita o primeiro ano como o momento
da alfabetização. Enunciações diversas foram produzidas no sentido de
mobilizar um desejo e uma luta para que esse enunciado fosse afirmado
como verdadeiro. Assim, a defesa pelo direito das crianças ao acesso à
cultura escrita é uma das enunciações que é articulada para afirmar-se
essa verdade. Fatores econômicos que motivaram a ampliação do ensino
fundamental de oito para nove anos também foram acionados para que esse
dispositivo se consolidasse. A constatação de que muitas redes de ensino
já matriculavam as crianças de seis anos em “classes de alfabetização”
também foi uma prática acionada para justificar a alfabetização aos seis
anos (BRASIL, 2004). Um dos argumentos decisivos, porém, referia-se à
ideia de que, com a entrada das crianças aos seis anos, “criam-se melhores
condições para a alfabetização das crianças, sendo este considerado um
dos problemas históricos da educação brasileira” (SANTOS; VIEIRA, 2006,
p. 780). Com base nessas diferentes argumentações, o dispositivo de
antecipação da alfabetização passou a operar ostensivamente no primeiro
ano do ensino fundamental.
Percebe-se, assim, a capilaridade das relações de poder, que vão
perpassando diferentes esferas da vida e que se consolidam em forma
de legislação. Não se trata de imposição, mas de um longo prcesso de
construção de uma verdade, em que diferentes elementos são articulados.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 23

Como afirma Foucault (2000b, p. 12) “ a verdade é deste mundo; ela


é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos
regulamentados de poder”. Ela nada tem de essencial, já que é construída
peça por peça por diferentes mecanismos. A verdade contemporânea
segundo a qual é necessário alfabetizar as crianças o quanto antes foi
sendo assim construída, por meio de um processo longo7. As políticas
curriculares aqui analisadas não se constituem no início desse processo.
São, ao contrário, sua faceta mais visível, mas que resulta de toda essa
construção capilar permeada pelo poder.
Segundo essas políticas curriculares, a alfabetização deve ser garantida
o quanto antes para evitar os riscos do analfabetismo. Conforme a PNA
“o analfabetismo nos dias atuais está claramente associado a condições

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


adversas de vida, geralmente relacionadas à pobreza e geradoras de
diferentes formas de vulnerabilidade sociais” (BRASIL, 2019, p. 10). Por essa
razão, o objetivo central da Política Nacional de Alfabetização é “elevar a
qualidade da alfabetização e combater o analfabetismo em todo o território
brasileiro” (BRASIL, 2019, p. 7). Parece operar nesse documento a ideia de
que “as pessoas são analfabetas, portanto, seu processo cognitivo é inferior,
seu desenvolvimento econômico é prejudicado” (STREET, 2010, p. 36).
Freire, em 1968, já mostrava os perigos de uma concepção de analfabetismo
que o considerava como uma erva daninha a ser erradicada (FREIRE, 2001).
O preconceito contra os/as analfabetos/as é uma realidade construída na
sociedade brasileira por meio de diferentes estratégias.
Esse preconceito parece ser reatualizado na PNA que apresenta o
analfabetismo como um risco para um grupo de crianças. Nesse sentido,
justifica-se o dispostivo de antecipação da alfabetização a partir da ideia
de que “a priorização da alfabetização no 1º ano do ensino fundamental é
uma diretriz de implementação da PNA que beneficia sobretudo as crianças
mais pobres” (BRASIL, 2019, p. 42). Essas crianças não dispõem do que é
nomeado no documento como “literacia familiar”, ou seja, o “conjunto de
práticas e experiências relacionadas com a linguagem, a leitura e a escrita,

7 Caldeira e Paraíso (2016) mostram como esse dispositivo foi construído por meio de uma
análise de diferentes elementos da história da alfabetização brasileira. Esses elementos
incluem princípios que remetem à “querela dos métodos”, passam pelos estudos da
psicogênese da língua escrita e do letramento e se consolidam na forma de legislação.
Partindo da proposição das autoras, considero que os documentos curriculares aqui
analisados são parte desse processo histórico e promovem pequenos deslocamentos (que
produzem mudanças significativas) naquilo que já vinha sendo produzido historicamente.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 24

as quais a criança vivencia com seus pais ou cuidadores” (BRASIL, 2019, p.


51). Por não terem acesso às práticas da cultura escrita em suas famílias,
essas crianças precisam da escola para evitar que permaneçam analfabetas.
As crianças pobres que podem não se alfabetizar são aqui entendidas
como uma população. Para Foucault (2006, p. 31), a partir do século
XVIII, “os governos percebem que não têm que lidar simplesmente com
sujeitos, nem mesmo com um ‘povo’, porém com uma ‘população’, com
seus fenômenos específicos e suas variáveis próprias”. Trata-se, assim,
de delimitar as características de um determinado grupo e, a partir delas,
pensar em políticas gerais e em formas de exercer poder sobre eles/as. Como
afirmam Traversini e Bello (2009, p. 144), “em uma comunidade pode haver
indivíduos ou um grupo deles que não se enquadram nas características

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


consideradas de risco”. Porém, para o exercício do poder sobre a população,
tais diferenças pouco importam. O que vale, nesse momento é produzir
“exercícios de gestão de riscos” (TRAVERSINI, BELLO, 2009, p. 144) que
modelem essa população a uma meta pre-estabelecida.
No caso do dispositivo de antecipação da alfabetização, a estatística
funciona como um mecanismo para mostrar os riscos que corremos como
país caso a alfabetização não se consolide. A estatística é acionada também
para estabelecer as metas para a população infantil que se quer governar.
O saber estatístico opera em dois dos três documentos curriculares
analisados. No PNAIC, são utilizadas evidências do SAEB, da Prova Brasil e
do PISA. Já na PNA, os dados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA),
do PISA e do Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional) são acionados por
meio de percentuais e tabelas, a fim de evidenciar o quanto ainda temos
“problemas” no campo da alfabetização, como se vê nas imagens a seguir.

FIGURA 1 – Dados sobre analfabetismo

Fonte: Brasil (2019, p. 10 e 13)


Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 25

A estatística é acionada como uma tecnologia para exercer poder


sobre docentes e crianças. É para evitar que a insuficência nos níveis de
leitura se mantenha, para impedir que continuemos a ocupar o 59º lugar
entre os países avaliados pelo Pisa e para resolver o problema dos “7,0
pontos percentuais [que ainda faltam] para a erradicação do analfabetismo
absoluto” (BRASIL, 2019, p. 12) que esses dados são apresentados. Não
por acaso eles estão logo no início desse documento. A apresentação de
dados numéricos pretende dar um caráter de verdade incontestável à
situação precária no que se refere à alfabetização que vivemos em nosso
país, de acordo com esse documento, já que “os números permitem um
planejamento administrativo” (TRAVERSINI; BELLO, 2009, p. 144), de
determinadas situações. Eles fazem com que dados aspectos da “vida e de
seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos, e faz do poder-

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


saber um agente de transformação da vida humana” (FOUCAULT, 2006, pp.
155-156). É necessário medir o desempenho das crianças e conduzir suas
vidas de maneira a evitar que elas caiam no risco do analfabetismo a que
sua baixa literacia familiar conduziria.
Diante de tal argumentação, torna-se quase impossível problematizar
o dispositivo de antecipação da alfabetização, que vem para combater um
risco que a infância corre, caso medidas específicas não sejam tomadas. A
principal dessas medidas é garantir que as crianças se alfabetizam o quanto
antes. Para isso, a ciência é acionada a fim de justificar as metodologias mais
adequadas à alfabetização. Nesse processo, certos saberes são incluídos
e excluídos do currículo de acordo com a definição que se tem de ciência
para efetivar a alfabetização de todos/as e de cada um/a preferencialmente
aos seis anos de idade, como mostro a seguir.

Ciência e expertise para a produção da criança alfabetizada e


da professora alfabetizadora

A ciência cognitiva da leitura apresenta um conjunto vigoroso


de evidências sobre como as pessoas aprendem a ler e a escrever
e indica os caminhos mais eficazes para o ensino da leitura
e da escrita. A PNA pretende inserir o Brasil no rol de países
que escolheram a ciência como fundamento na elaboração de
suas políticas públicas de alfabetização, levando para a sala
de aula os achados das ciências cognitivas e promovendo, em
consonância com o pacto federativo, as práticas de alfabetização
mais eficazes, a fim de criar melhores condições para o ensino e
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 26

a aprendizagem das habilidades de leitura e de escrita em todo


o país. (BRASIL, 2019, p. 7, grifos do original)
Na construção desses conhecimentos, há três relações que são
muito importantes: a) as relações entre a variedade de língua
oral falada e a língua escrita (perspectiva sociolinguística); b)
os tipos de relações fono-ortográficas do português do Brasil;
e c) a estrutura da sílaba do português do Brasil (perspectiva
fonológica) (BRASIL, 2018, p. 91)
Na década de 1980, as práticas de alfabetização baseadas em
métodos sintéticos e analíticos que culminavam na retenção, na
1ª série, de uma grande parcela da população que frequentava as
redes públicas de ensino passaram a ser amplamente criticadas
à luz de teorias construtivistas e interacionistas de ensino (em
geral) e da língua (em particular). (BRASIL, 2012b, p. 16)

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Diferentes conhecimentos são acionados nos três documentos
curriculares aqui analisados para propagar a verdade segundo a qual
a alfabetização deve ocorrer o quanto antes. Nos ditos dos Cadernos de
Formação do PNAIC, é possível perceber uma variedade de saberes e
conhecimentos de diversas áreas teóricas. Por se tratar de um material
voltado à formação de professores/as, parece operar nele uma ideia divulgada
em textos acadêmicos sobre o tema da formação do/a alfabetizador/a que
argumentam que esse/a profissional deve “ter formação em sociolinguística;
psicolinguística, fonologia [...], literatura infantil, gêneros textuais, teorias
da leitura e diferentes estratégias exigidas por diferentes gêneros textuais”
(SOARES, 2010, p. 10). Assim, elementos de diversas teorias estão presentes
messe material, que procura abordar uma variedade de temáticas no
currículo de formação de professores/as. Cabe registrar, porém, que
três perspectivas teóricas parecem ganhar centralidade: os estudos da
perspectiva sociointeracionista, particularmente da psicogênese da língua
escrita; os estudos sobre consciência fonológica; e as pesquisas sobre
letramento. Essas bases também se apresentam na BNCC, que reafirma a
importância da sociolinguística, da perspectiva fonológica e dos estudos
sobre letramento, como mostrado na epígrafe que abre este tópico. Na
Base também se apresentam diferentes teorias e conceitos que embasam
os objetivos de aprendizagem de cada série escolar dos anos iniciais do
ensino fundamental.
Parece, todavia, haver um deslocamento no que se refere à PNA. Nela
a palavra ciência é utilizada diretamente e há a vinculação explícita a um
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 27

ramo acadêmico, nomeado de ciências cognitivas da leitura. Segundo o


documento “essa área do conhecimento apresenta o conjunto de evidências
mais vigorosas sobre como as pessoas aprendem a ler e a escrever e
como é possível ensiná-las de modo mais eficaz” (BRASIL, 2019, p. 16).
O documento argumenta, ainda, que “a PNA pretende inserir o Brasil no
rol de países que escolheram a ciência como fundamento na elaboração
de suas políticas públicas de alfabetização, levando para a sala de aula os
achados das ciências cognitivas” (BRASIL, 2019, p. 7). A PNA vincula-se,
assim, à ciência, que se caracteriza como uma das principais formações
discursivas de nossa época. Um conhecimento considerado científico tem
menos chance de ser problematizado ou desconsiderado, já que a ciência
faz parte do regime de verdade de nossos tempos (FOUCAULT, 2001d).

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Por se basear em determinados métodos, por realizar pesquisas e por
afirmar ter comprovação, os conhecimentos científicos são atualmente
considerados como verdades.
No PNAIC, a vinculação a pesquisas e estudos já se fazia. Assim,
afirmava-se que os estudos da psicogênese da língua escrita eram
importantes, pois as autoras Emilia Ferrero e Ana Teberosky “perceberam,
por meio de pesquisas, que, no processo de apropriação do Sistema de
Escrita Alfabética, os alunos precisariam entender como esse sistema
funciona” (BRASIL, 2012b, p. 16). De modo semelhante, mostra-se
que “desde a década de 1970, pesquisas feitas em diversos países vêm
demonstrando que existe uma relação entre o que se passou a chamar
consciência fonológica e o aprendizado da escrita alfabética” (BRASIL,
2012c, p. 20). Não há, entretanto, uma única ciência considerada como
legítima. O que se tem é uma variedade de estudos que mostram diferentes
formas de compreender o processo de alfabetização.
Na PNA, porém, o que se tem é uma restrição às ciências cognitivas da
leitura. Esse ramo do conhecimento passa a ser considerado o único válido
para produzir a alfabetização infantil. Nesse processo, são acionados
especialistas para explicar sobre o processo de alfabetização e sobre a
melhor forma de alfabetizar. No Caderno da PNA há em quase todas as
páginas um “box” ao lado do texto principal, intitulado “o que dizem os
especialistas”. Nesse “box”, são reforçados certos princípios, como se
pode ver a seguir.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 28

FIGURA 2 – “Box” com fala dos especialistas

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Fonte: Brasil (2019, p. 17)

Especialistas brasileiros e internacionais são acionados para afirmar a


centralidade da ciência cognitiva e para dizer como as crianças aprendem.
No processo de governo, as autoridades têm fundamental importância,
pois “cumprem a função no discurso de fazer diversas tentativas para agir
sobre as ações dos outros, em nome de objetivos ligados à prosperidade
nacional, produtividade, felicidade” (PARAÍSO, 2007, p. 187). Para se
afirmar, “a autoridade da autoridade depende de uma presunção de saber
positivo, de sabedoria e virtude, de experiência e julgamento prático”
(ROSE, 2001, p. 39). Recorre-se, na escrita da PNA, à autoridade vinculada
a certas instituições universitárias (em sua grande maioria internacionais
e notadamente norte-americanas) e aos títulos acadêmicos como estratégia
para mostrar a neutralidade e a superioridade desse saber.
Parece operar aqui uma expertise, que tem se tornado fundamental nas
práticas de governo. Isso ocorre “não porque os experts conspiram com o
estado para iludir, controlar e condicionar os sujeitos” (ROSE, 1998, p. 42). Pelo
contrário, o que eles fazem é agir sobre nossas escolhas, desejos e condutas.
Operam, assim, “não através da ameaça da violência ou do constrangimento
físico, mas através da persuasão inerente às suas verdades, das ansiedades
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 29

estimuladas por suas normas e das atrações exercidas pelas imagens da


vida e do eu que ela nos oferece” (ROSE, 1998, p. 43). Afinal, que professor/a
não sonha com uma criança alfabetizada? Que docente e/ou pesquisador/a
ousa discordar da importância do acesso à cultura escrita para as crianças,
sobretudo para as mais pobres? Quem não deseja garantias quanto aos modos
como as crianças aprendem e o melhor meio de ensiná-las?
O recurso à expertise também aparecia nas políticas do PNAIC. Porém,
ali parecia haver uma multiplicação de especialistas, pois “as formas de
regulação, controle e governo da sociedade contemporânea não podem
ser compreendidas sem uma descrição da proliferação e da ubiquidade de
um sem-número de especialistas” (SILVA, 1998, p. 12). Assim, além das
autoridades ditas científicas e/ou acadêmicas, os/as professores/as também

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


eram convocados/as como autoridades nesse processo, como se pode ver
nas duas imagens a seguir.

FIGURA 3 – Relato da prática de uma alfabetizadora

Fonte: Brasil (2012c, p. 34)

Utilizar-se da “autoridade de professoras esclarecidas e bem-


sucedidas” (PARAÍSO, 2007, p. 196) para afirmar certas verdades parece
ser algo presente nos Cadernos do PNAIC. Os relatos das professoras que
contam como conduziram suas aulas e sua própria conduta como docentes
são recorrentes nos cadernos, a fim de mostrar como é possível – mesmo
em condições adversas – realizar aquilo que está presente nas propostas
apresentadas. Cria-se um sentimento de identificação com as demais
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 30

alfabetizadoras, ao mesmo tempo em que se apresenta um determinado


modelo de agir como mais adequado. Também são apresentados modelos
de docentes que tinham práticas consideradas como menos adequadas e
que se modificaram, garantindo, dessa forma, o sucesso na alfabetização.

Figura 4 – Relato de uma alfabetizadora

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Fonte: Brasil (2012c, p. 20)

Modificar-se a si mesmo para garantir a alfabetização, governando-


se de determinada maneira é o que se demanda. Cabe registrar que no
excerto acima se unem duas autoridades: ao mesmo tempo, apresenta-
se o resultado de uma pesquisa (da qual o trecho foi extraído) e a fala de
uma docente que compreendeu os resultados do fracasso de seu trabalho
e se propôs a se modificar. Um exercício sobre si mesmo é exigido dos/as
docentes alfabetizadores/as nesse material.
Nesse excerto está presente também a demanda constante pela
“reflexão com as palavras”, um saber que cada vez mais ganha forças no
processo de alfabetização das crianças. Essa reflexão com as palavras
aparece explicitamente nos Cadernos do PNAIC, quando se afirma que “para
que os indivíduos possam ler e produzir textos com autonomia é necessário
que eles consolidem as correspondências grafofônicas, ao mesmo tempo
em que vivenciem atividades de leitura e produção de textos” (BRASIL,
2012b, p. 22). Para isso, afirma-se que são direitos de aprendizagem das
crianças em processo de alfabetização aprender a “Grafar corretamente
palavras com correspondências regulares diretas entre letras e fonemas
(P, B, T, D, F, V)” e “Grafar corretamente palavras com correspondências
regulares contextuais entre letras ou grupos de letras e seu valor sonoro”
(BRASIL, 2012d, p. 29). De modo semelhante, ela aparece também na BNCC,
na qual se afirma que para se alfabetizar é necessário “perceber as relações
bastante complexas que se estabelecem entre os sons da fala (fonemas) e
as letras da escrita (grafemas), o que envolve consciência fonológica da
linguagem” (BRASIL, 2018, p. 90).
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 31

Embora não se ignore a importância de outros saberes (que se


expressa até mesmo pela presença de seis eixos fundamentais no
processo de alfabetização no PNAIC e de quatro “práticas de linguagem”
na BNCC), há um crescente incentivo à presença de saberes relativos à
consciência fonológica. Eles, porém, parecem se apoiar também em outros
conhecimentos, como se pode ver a seguir:

a partir da perspectiva construtivista de alfabetização, inspirada


em Ferreiro e Teberosky (1984), organizamos, com base em Leal
(2004), alguns tipos de atividades que consideramos fundamentais
para que os alunos avancem nos seus conhecimentos sobre as
relações som-grafia em nossa língua (BRASIL, 2012d, p. 30)

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


A PNA opera uma importante mudança em relação ao que vinha
se estabelecendo nas políticas anteriores. Se antes parecia haver uma
proliferação de especialistas e de saberes, na PNA há a afirmação da ciência
cognitiva como única forma de garantir a alfabetização. Nesse sentido,
discussões relativas à psicogênese da língua escrita, aos estudos sobre
letramento e às discussões sociolinguísticas – que apareciam nos outros
dois documentos – são suprimidas na PNA, de maneira que a alfabetização
passa a ser pensada sobretudo como um processo de aprendizagem de dois
fatores fundamentais: “o conhecimento dos sons das letras e a consciência
fonêmica, ou seja, a habilidade de identificar ou segmentar os pequenos
segmentos sonoros que compõem as palavras que ouvimos ou falamos”
(BRASIL, 2019, p. 33).
Parece haver, assim, um estreitamento do que se entende por
alfabetização e dos saberes que devem constituir o currículo desse momento
da escolarização. Se considerarmos que o processo de seleção de saberes
para compor um currículo demanda sempre um determinado tipo de
sujeito, importa analisar que posições de sujeito são demandadas nessas
políticas curriculares. Esses currículos, embora tenham muitas semelhanças,
demandam diferentes posições de sujeito criança alfabetizada e professora
alfabetizadora, como mostro nas considerações finais deste trabalho.

Considerações finais

Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia
dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 32

As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de


um homem para um porco e de um porco para um homem outra
vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem e
quem era porco. (ORWELL, 2000, versão para e-book).

Ao final do livro “Revolução dos Bichos”, os porcos se unem de tal forma


com os humanos que se torna impossível aos demais animais da granja
distingui-los. Olha-se para um e para outro e os rostos se confundem. As
fronteiras são borradas de tal forma que se perdem as marcas de cada um.
Espero não ter sido isso que produzi com a escrita deste texto. Ao mostrar
como opera nos três documentos curriculares um mesmo dispositivo,
que tem como pano de fundo uma estratégia maior, não quero igualá-los
e torna-los indistintos. Não é esse o objetivo de uma análise como a que

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


se propôs aqui. Procurei mostrar como há pontos de semelhança, mas
como há também pequenas diferenças que produzem grandes mudanças,
sobretudo nos efeitos que se pretende produzir em termos de subjetivação.
Parece haver nos Cadernos do PNAIC, a produção de um/a professor/a
alfabetizador/a que “precisa ser um mediador da aprendizagem e, para
isso, necessita planejar boas situações didáticas, selecionando e/ou
criando bons recursos didáticos” (BRASIL, 2012c, p. 20). Esse currículo
também reconhece as crianças como sujeitos de direitos, que constroem
suas hipóteses no processo de alfabetização. Já a BNCC e, sobretudo, a
PNA parecem considerar a criança como alguém que “deve ser guiado
gradualmente durante a aprendizagem dessas relações grafofonêmicas
(BRASIL, 2019, p. 18). Pode-se, por dedução, pensar que o/a professor/a
deve ser o guia nesse processo. Parece, todavia, que ele/a é mais alguém
a ser guidado, por meio de diferentes estratégias que podem produzir
a alfabetização, do que um guia em sim mesmo. Como afirma um dos
especialistas convidados a opinar no documento

Outras evidências, igualmente vigorosas, devem ser levadas em


conta [...]: um currículo nacional claro e consistente; estratégias
e materiais didáticos adequados ao nível dos professores;
instrumentos adequados de avaliação; professores de elevado
nível acadêmico devidamente preparados, supervisão escolar
adequada e um rigoroso ensino de Língua Portuguesa, Matemática
e Ciências (BRASIL, 2019, p. 17).
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 33

O/a docente precisa de uma formação em “elevado” grau acadêmico.


Precisa de supervisão escolar adequada. Necessita de um currículo claro e
materiais adequados ao seu nível. Parece haver aqui uma condução também
desse docente, que passa a ser quase que um operacionalizador de uma
proposta maior, planejada e justificada com base na ciência cognitiva,
a qual cabe a ele/a aplicar em sala de aula a fim de garantir o sucesso
da alfabetização e salvar as crianças (pobres) do risco do analfabetismo.
Nesse sentido, é impossível desconsiderar que a PNA insere-se em um
contexto de controle cada vez maior das práticas pedagógicas, controle esse
que se expressa por políticas curriculares cada vez mais centralizadoras.
Essa discussão, como aponta Macedo (2017, p. 209), também está
presente na BNCC que é pensada como um mecanismo para controlar “a

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


imprevisibilidade da ação docente”. Parece que as forças reacionárias que
se uniram para a construção da BNCC também deixam suas marcas na PNA.
Analisar detidamente essas políticas constitui-se, assim, em aspecto
importante para a pesquisa na área de currículo, alfabetização e formação
de professores/as. Compreender os modos como os/as docentes e as
crianças em processo de alfabetização têm lidado com tais políticas também
se constitui em demanda urgente para a pesquisa. Se parece haver hoje uma
estratégia operacionalizada pelo dispositivo de antecipação da alfabetização
para envolver docentes e educandos/as em determinadas relações de poder,
importa também compreender “as pequenas táticas locais e individuais”
(FOUCAULT, 2006, p. 232) que vão sendo construídas nos currículos
escolares para resistir e recriar essas políticas. Nesse processo, pode haver
um “embaraçamento” dos significados, mas também criações e invenções
que permitem ir além da homogeneização crescente que se pretende por
meio de textos curriculares, que, por sua vez, se articulam à produção de
materiais didáticos e às políticas de formação de professores. Compreender
o que tem sido feito com esse grande investimento político sobre os corpos
e almas de discentes e educadores é fundamental nesse momento histórico
em que vivemos forças reacionárias em diferentes direções.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 34

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo. Outra travessia. Ilha de Santa Catarina, n. 5,


p. 9-16, 2° semestre de 2005.

BRASIL. Ampliação do ensino fundamental para nove anos: 3º relatório do Programa.


Brasília: MEC/SEB, 2004.

BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: formação do professor


alfabetizador: Caderno de apresentação. Brasília: MEC, SEB, 2012a.

BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: currículo na alfabetização:


concepções e princípios. Brasília: MEC, SEB, 2012b.

BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: apropriação do sistema de


escrita alfabética. Brasília: MEC, SEB, 2012c.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa: apropriação do sistema
de escrita alfabética e a consolidação do processo de alfabetização em escolas do
campo. Brasília: MEC, SEB, 2012d.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, SEB, 2018.

BRASIL. PNA – Política Nacional de Alfabetização. Brasília: MEC, SEALF, 2019.

CALDEIRA, Maria Carolina da Silva; PARAÍSO, Marlucy Alves. Dispositivo da antecipação


da alfabetização: condições de emergência e seus contornos atuais. Cadernos de
Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), v. 46, p. 846-868, 2016. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/cp/v46n161/1980-5314-cp-46-161-00846.pdf

CORAZZA, Sandra; TADEU, Tomaz. Dr. Nietzche, curriculista – com uma pequena ajuda
do professor Deleuze. In: TADEU, T; CORAZZA, S. Composições. Belo Horizonte:
Autêntica, 2003, p. 35-57.

DREYFYS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault: Uma trajetória filosófica para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In: MACHADO, Roberto. Microfísica


do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000a. p. 243-276.

FOUCAULT, Michel. Nietzche, a genealogia e a história. In: MACHADO, Roberto. Microfísica


do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2000b. p. 15-37.

FOUCAULT, Michel. Não ao sexo rei. In: MACHADO, Roberto. Microfísica do poder. Rio de
Janeiro: Graal, 2000c. p. 229-242.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. São Paulo: Graal, 2006.

FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFYS H. & RABINOW, P. Michel Foucault:
Uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeiro, Forense, 1995, p. 231-249.

FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 35

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FREIRE, Paulo.Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

HEYWOOD, Colin. Uma história da infância. Porto Alegre: Artes Médicas, 2005.

LOURENÇO FILHO, Manuel. Testes ABC para a verificação da maturidade necessária à


aprendizagem da leitura e da escrita. 13. ed. Brasília, DF: Inep, 2008.

MACEDO, Elizabeth. As demandas conservadoras do movimento escola sem partido e


a Base Nacional Curricular comum. Educação & Sociedade (Impresso), v. 38, p.
507-524, 2017.

OLIVEIRA, Sueli. O ingresso no ensino fundamental com cinco anos: direito à


escolarização ou negação do direito à infância? 2012 (Ensaio). Disponível em: <http://
www.mp.rs.gov.br/ infância/doutrina/id694.htm>. Acesso em: 30 mar. 2013.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


ORWELL, George. Revolução dos bichos. São Paulo: Companhia dos bichos, 2000. (Versão
para e-book).

PARAÍSO, Marlucy. Currículo e mídia educativa brasileira: poder, saber, subjetivação.


Chapecó-SC: Editora Argos, 2007.

REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.

ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomaz Tadeu
(org.). Liberdades Reguladas. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 30-45.

ROSE, Nikolas. Como se deve fazer a história do eu. Educação e Realidade. Porto Alegre,
v. 26, n. 1, p. 33-57, 2001.

SANTOS, Lucíola. VIEIRA, Lívia. “Agora seu filho entra mais cedo na escola”: a criança
de seis anos no ensino fundamental de nove anos em Minas Gerais. Educação &
Sociedade. Campinas, v. 27, n. 96, p. 775-796, out. 2006.

SILVA, Tomaz Tadeu. As pedagogias psi e o governo do eu nos regimes neoliberais. In:
SILVA, T. T. Liberdades Reguladas. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 7-13.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do


currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

SOARES, Magda. Simplificar sem falsificar. Guia da Alfabetização. Educação (São Paulo),
v. 1, p. 6-11, 2010.

STREET, Brian. Os novos estudos sobre o letramento: histórico e perspectivas. In:


MARINHO, Marildes. CARVALHO, Gilcinei. Cultura escrita e letramento. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2010, p. 33-53.

BELLO, Samuel; TRAVERSINI, Clarice. Saber estatístico e sua curricularização para o


governamento de todos e de cada um. Bolema. Boletim de Educação Matemática
(UNESP. Rio Claro. Impresso), v. 24, p. 855-871, 2011.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 36

TRAVERSINI, Clarice Salete. Programa Alfabetização Solidária: o governamento de todos


e de cada um. Porto Alegre: UFRGS, 2003. Tese (Doutorado em Educação) - Programa
de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2003.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 37

Textos complementares

BRASIL. Ministério da Educação. Plano nacional de Alfabetização – PNA. DECRETO Nº


9.765, de 11 de abril de 2019. Brasília, 2019. Disponível em: D9765 (planalto.gov.
br). Acesso em: 31 ago. 2022.

KLEIN, Juliana Mottini; GUIZZO, Bianca Salazar. Problematizando representações docentes nos
Cadernos de formação do Programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC). Rev. bras. Estud. pedagog., Brasília, v. 98, n. 249, p. 311-331, maio/ago. 2017.

MACHADO, Rosimar Isidoro; LOCKMANN, Kamila. A tríade ciclo de alfabetização-PNAIC-


ANA como um fluxo biopolítico circular que gerencia a alfabetização no Brasil.
Cadernos de Educação, n. 62, jul./dez. 2019.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


unidade 2
A língua do (des)alfabetizador

Texto base
Texto complementar
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 39

Texto base

CURRÍCULO, DESEJO E EXPERIÊNCIA


1
Marlucy Alves Paraíso*

Resumo: Mesmo sendo um espaço disciplinar e classificador, por excelência, muitas


coisas podem acontecer em um currículo, porque se trata de um artefato com muitas
possibilidades de diálogos com a vida. Este artigo explora o conceito de desejo deleuze-
guattariano para pensar o currículo-desejo. Opera com exemplos de vivências de práticas
de reagrupamentos da escola e com cenas de um filme para explorar possibilidades e
dificuldades do desejar no currículo. O argumento desenvolvido é o de que não há um
método para fazer desejar em um currículo, mas é possível construir nos currículos
encontros convenientes para fazer crescer a potência da vida. Para isso é necessário
saber da potência e da dificuldade do desejo no currículo e divulgar nesse território uma

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


multiplicidade de textos que talvez alguém consiga estabelecer um encontro e, então,
fazer agenciamentos, expandir território, desejar e produzir experiência.

Palavras-chave: Currículo. Desejo. Experiência.

Abstract: Even being a discipline and classifier space, par excellence, many things can
happen in a curriculum because it is about a device with many possibilities of life dialogues.
This article explores the concept of deleuze-guattariano desire to think the curriculum-
desire. It operates with examples of regroupings experiences at school and with film
scenes to explore possibilities and difficulties of desiring in the curriculum. The developed
argument is that it doesn’t have a method to make to desire in a curriculum, but is possible
to construct in the curriculums convenient meetings that make the life’s potency increase.
For that it is necessary to know the potency and the difficulty of the desire in the curriculum
and divulge in this territory a multiplicity of texts that somebody perhaps establish a
meeting and, then, make agencies, expand territory, desire and produce experience.

Keywords: Curriculum. Desire. Experience.

Currículo, desejo e experiência1

Um currículo é um composto heterogêneo, constituído por matérias


díspares e de naturezas distintas; por saberes diversos e com capacidades
variadas; por sentidos múltiplos e com inúmeras possibilidades. Um
currículo está sempre cheio de ordenamentos, de linhas fixas, de corpos
organizados, de identidades majoritárias. Porém um currículo, também,

* Marlucy Alves Paraíso é professora da FAE/UFMG, pesquisadora do CNPQ, coordenadora


do GECC: Grupo de Estudos e Pesquisas em Currículos e Culturas da UFMG e pós-doutora
pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Educação da Universidade de Valência (Espanha).
E-mail: mparaiso@fae.ufmg.br 1
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 40

está sempre cheio de possibilidades de rompimento das linhas do ser;


de contágios que podem nascer e se mover por caminhos insuspeitados;
de construção de modos de vida que podem se desenvolver de formas
particulares. Um currículo é um artefato com muitas possibilidades de
diálogos com a vida; com diversas possibilidades de modos de vida, de
povos e de seus desejos. É um artefato com um mundo a explorar. Afinal,
mesmo sendo um espaço disciplinar, por excelência, muitas coisas podem
acontecer em um currículo.
Dar-se conta de que tudo pode caber em um currículo é uma
maravilha, mas também é uma dificuldade. Criar não é fácil; romper com o
já conhecido é muito difícil, e referências são necessárias em um currículo.
Contudo, sem rupturas, é impossível explorar novos encontros positivos

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


com nossas forças vitais. Quando vou a uma escola, observo os currículos,
investigo os reagrupamentos escolares, converso com as crianças que estão
nesses reagrupamentos e com aquelas que não estão, pergunto às crianças
sobre suas percepções da escola e sobre o seu aprender e converso com as
professoras sobre o currículo, sobre a sua prática e sobre o aprender das
crianças, tenho feito permanentemente algumas perguntas para exercício
de pensamento que quero aqui explorar, a saber: pode um currículo
produzir o desejo? O desejo destruiria o currículo? Ou o currículo, com
tanta organização, classificação e interpretação, destrói o desejo?
Essas perguntas são feitas porque a investigação dos currículos dos
“reagrupamentos na escola” é realizada ao mesmo tempo em que leio “a
filosofia para profanos2”, sou contagiada por suas potencialidades e penso
um currículo com base em alguns de seus conceitos. Fico, então, agitada
com uma sensação primeira que faço aqui objeto de minha exploração.
Trata-se da sensação de que o desejo é algo muito difícil de ser produzido
em um currículo. É isso o que sinto ao ouvir Helen, criança de sete anos de
idade, que é retirada de seu primeiro agrupamento (constituído por alunos/
as de sete anos de idade) e reagrupada em outra turma da escola com mais
14 colegas de várias idades que não aprenderam a ler. Helen fala que gosta
de tudo da escola e de todas as matérias. Para Helen o problema é que ela
não aprende; não sabe as coisas ensinadas, por isso está ali. Acha difícil,
muito difícil, aprender português porque ela conversa muito, e “quem
conversa não aprende”. (Paraíso, 2005, p. 32).
O desejo, que é fábrica, potência, alegria, é fundamental para aprender,
para pensar, criar, construir, enfrentar os poderes, as dificuldades da vida,
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 41

movimentar, deixar passar algo, produzir alegrias, viver. É isso que sinto ao
ver a menina Baktay, afegã de seis anos de idade, em seus enfrentamentos,
em suas conexões, em sua corrida, em seus pulos de alegria – com sua
vontade de potência já não caminha mais; ela corre e dança, diria, talvez,
Nietzsche -, com todo o desejo de ir à escola para aprender histórias
divertidas. Trata-se da personagem do filme iraniano, Buda explodiu de
vergonha3, que escolhi para estabelecer relações com os reagrupamentos
na escola4 e para pensar o currículo-desejo.
Este artigo, portanto, opera com exemplos de vivências de práticas
de reagrupamentos da escola e com cenas de um filme para explorar
possibilidades e dificuldades do desejar no currículo. O argumento
desenvolvido é o de que é possível construir, nos currículos, encontros

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


convenientes para fazer crescer a potência da vida e a alegria. Contudo,
se não há um modo para fazer desejar em um currículo, é necessário pelo
menos saber de sua potência e de sua dificuldade para que, estando à
espreita permanentemente, consigamos possibilitar uma multiplicidade
de textos que talvez alguém consiga estabelecer um encontro e, a partir
desse momento então, desejar, criar e expandir seu território. Aí sim a
aprendizagem estará garantida. Escolho, então, pensar nas potencialidades
e nas dificuldades do currículo-desejo por meio de alguns exemplos.

Os reagrupamentos como espaços problemáticos: quando os


poderes aprisionam o desejo

Como efeito do processo de enturmação dos alunos por idade, adotado


por várias redes de ensino de vários municípios e estados brasileiros,
profissionais de várias escolas começaram a falar das “dificuldades
enfrentadas para trabalhar com alunos com grande heterogeneidade
na aprendizagem dos conhecimentos escolares.” (Fortes, 1997, p. 27).
Além disso, surgiram inúmeras críticas às escolas que fazem “promoção
automática dos alunos” (Dalben, 2000 e Filgueiras 2005). Estudiosos/as
chamaram a atenção para o fato de que “onde a promoção automática
foi adotada sem outras medidas complementares, a qualidade do ensino
caiu irremediavelmente” (Filgueiras, 2005, p. 46). Além disso, como efeito
dessa prática, as próprias professoras começaram a se preocupar em “ver
crianças terminando o primeiro ciclo e, às vezes, até o segundo ciclo, sem
estarem alfabetizadas.”
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 42

A partir dos problemas identificados pelos/as próprios/as docentes


que trabalham com base nessas propostas e nas críticas feitas por
pesquisadores/ as da área da educação e pela sociedade em geral, foram
criados, na Escola Plural de Belo Horizonte, os chamados “projetos de
intervenção” ou “reagrupamentos de alunos” com dificuldades em
determinados conteúdos5. Os reagrupamentos têm como objetivo trabalhar
as dificuldades que certos alunos apresentam na aprendizagem de
determinados conteúdos, diminuindo a heterogeneidade na aprendizagem,
identificada entre os alunos nas avaliações diagnósticas. Com a prática
dos reagrupamentos, os/as alunos/as continuam agrupados por idade e
permanecem com seus pares (por meio da promoção automática) nos
ciclos de formação. Contudo, em determinados momentos, em dias e

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


horários definidos pela escola, os/as alunos/as com dificuldades em
alguns conteúdos, especialmente em leitura e escrita e em matemática,
são separados/as de seus colegas e reagrupados/as com outros/as alunos/
as de diferentes idades que apresentam dificuldades semelhantes.
Com base no que aprendi de Deleuze (1996 e 2001) e de Deleuze e
Guattari (1976) sobre o desejo, posso dizer que não é difícil conseguir ou
conquistar o que alguém deseja em um currículo. A partir do momento em
que se deseja em um currículo, se não se tem algo, se conquista. Porém fazer
desejar em um currículo, sim, é difícil; muito difícil. É difícil porque desejar
não é apenas dizer “eu quero aprender!”. O “eu quero!”, para Deleuze, está
muito próximo de uma imposição que é incorporada. A imposição aprisiona
a vida porque faz assumir desejos que não nascem da própria potência de
ampliar o território. Para desejar é necessário experimentar com sua própria
potência. E o que convém a potência de cada um, insiste Deleuze (2001), é
o que, ao mesmo tempo, faz “crescer seu território” e lhe “produz alegrias.”
O desejo é deixar-nos arrastar pelo próprio movimento da vida. Mas
para nos deixar levar pelo movimento da vida, precisamos encontrar “algo
que nos convenha”, fazer conexões e construir agenciamento. Afinal, não
se deseja um objeto ou uma pessoa. Se assim o fosse o desejo seria falta.
Deleuze (1996) explicita: “para mim, desejo não comporta qualquer falta.
Ele não é um dado natural. Está constantemente unido a um agenciamento
que funciona” (p. 18). Então, como o desejo é potência, e não falta, desejar
é construir um agenciamento, construir um conjunto. Isso porque, ao
encontrar algo que nos convenha, não desejamos um objeto específico,
desejamos um conjunto do qual aquele objeto faz parte, desejamos todo
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 43

o contexto daquele objeto. Deleuze (2001) diz: o desejo “remete a estados


de coisas”; remete a que “cada um encontre estados de coisas que lhe
convenha”. Lembra: “não há desejo que não corra para um agenciamento”.
E sugere: “Procure agenciamentos que lhe convenha!”; “Experimente
agenciamentos que lhes convenha!”; “Nunca interprete!”6
Nesse sentido, um currículo que pense o desejo como acontecimento,
deve afastar-se da intenção de querer a todo custo que um determinado
objetivo seja alcançado. Precisa parar de reproduzir e, principalmente, de
interpretar. Interpretar o/a aluno/a, diagnosticá-lo/a e classificá-lo/a, então,
nem pensar! Isso é o mesmo que ver o desejo morrer. Melhor: isso seria o
mesmo que matar o desejo, porque Deleuze (2001) lembra que no desejo
“não há mortes, há assassinatos.”

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Os reagrupamentos na escola não somente interpretam as crianças
e as classificam, como procuram, a todo custo, aprisioná-los/as em
interpretações. As próprias crianças usam essas interpretações para
falarem de si, de suas aprendizagens e dos motivos por que não aprendem.
Roberto, por exemplo, tem 8 anos de idade e frequenta um reagrupamento
que trabalha a leitura e a escrita com crianças de idades distintas. Assim
todos os dias letivos, durante uma hora por dia, ele sai de sua turma de
segundo ano do primeiro ciclo e vai para a “turma da leitura e escrita”. O
Roberto sabe por que está ali, e diz do que gosta, do que não gosta e por
que não aprendeu a ler ainda. Ele diz:

Vim para cá porque não aprendi a ler... não aprendi porque


converso muito... eu queria aprender a ler e a colorir direito ... que
eu deixo sair fora, sabe?... Esses negócios eu queria aprender...
É que eu não gosto de português... tem que escrever muito e eu
não sei... gosto de matemática; matemática é bom... continha...
Eu sei continha, aprendi fazer e gosto... Gostei da escola também
quando um menino da minha sala me ensinou a fazer lixeirinha
e ai eu fui aprendendo sozinho um tanto de coisa ...

Quanta tristeza pode produzir a frequência em um espaço que diz


todos os dias a alguém: você não sabe! Aliás, não precisa mais dizer; todos
já sabem que aquele espaço é dos que não sabem. Para Nietzsche (1981)
conhecer é uma atividade que aumenta a potência, porque é um modo de
tomar consciência e de “saber de sua própria força” (p. 19). Assim, é bom
que Roberto lembre, saiba e registre que aprendeu algo. É bom que ele
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 44

goste daquilo que aprendeu. Isso poderá se transformar no fio condutor


de sua saída desse currículo organizado que coloca cada um em seu
compartimento com base na divisão entre quem aprendeu e quem não
aprendeu. Não adianta dizer ou justificar que o objetivo da interpretação
no currículo é bom e digno. Continua sendo interpretação, seja de que
tipo for e seja com que objetivo for. Ainda que o objetivo seja algo que
qualquer pedagogia considera muito nobre – como, por exemplo, fazer
a criança aprender a ler e a escrever –, a interpretação traça linhas que
tendem à fixidez e diminuem possibilidades. Se produzir tristeza, então, a
interpretação pode ser muito complicada para o desejo, porque a tristeza
diminui a potência de agir.
Então nada de interpretação e classificações que produzam tristezas

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


e dificultem o fluxo da vida! Mas e o planejamento? Nada de planejamento
também? Não é disso que se trata. Não é o planejamento que atrapalha o
desejo no currículo. Há que planejar aulas, e muito bem planejadas. O que
não se pode, é deixar-se aprisionar pelo planejado. Para Deleuze, (2001)
é muito importante o trabalho prévio de ensaio para uma aula. Só com
muito preparo e ensaiando muito (como faz um ator antes de entrar em
cena) garantiremos os “dez minutos de inspiração” necessários para lançar
textos e atirar flechas que podem ser recolhidas por alguém em uma aula
ou em um currículo. É do inusitado que nasce o currículo-desejo. Dali de
um lugar e em um momento onde nada se esperou pode nascer o desejo,
porque, eis a tese de Deleuze (1988, p. 54), “ninguém sabe antecipadamente
de que afectos é capaz”; “ninguém sabe antecipadamente como se aprende,
é uma longa história de experimentação”.
Em todo o processo de desterritorialização, é muito importante
saber da força e da fragilidade do desejo em um currículo. Isso é muito
importante para ampliar as possibilidades; para sentir as conexões
possibilitadas; para deixar passar algo; para produzir e vivenciar a alegria
de sentir que algo toca aqueles que vivenciam um currículo. É possível,
em um currículo, ficar à espreita de encontros que tirem o desejo do lugar
ao qual tem sido dado a ele nos currículos, e ofertar a possibilidade para
que cada um/a possa deixar que experiências sejam construídas. Para
falar de conexões, de vivências de alegrias, de agenciamentos do desejo,
escolhi abordar um filme e dizer das sensações por ele provocadas. É isso
que faço a seguir.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 45

Buda explodiu de vergonha: sobre a capacidade mobilizadora


do desejo

O filme iraniano conta a história de uma pequena garota afegã de seis


anos, chamada Baktay, que quer comprar um caderno e ir à escola7. Baktay
vivia com sua mãe e sua irmã, ainda bebê, em uma das covas debaixo da
estátua de Buda, explodida pelos Talibãs. Baktay tem um vizinho, Abbas,
muito estudioso, que lê em voz alta. Com medo que sua irmã acorde, Baktay
pede ao garoto que não leia alto. Abbas lhe diz que ela tem inveja porque
não sabe ler. Incitada a comprovar que sabe mesmo ler, Baktay recebe o
livro de Abbas e interpreta os desenhos fingindo que está lendo. Depois de
dizer-lhe, várias vezes, que ela não sabe ler, Abbas toma-lhe o livro e lê uma
pequena história. Esse é um momento fantástico do filme, porque mostra

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


a mudança no semblante de Baktay, seu sorriso de contentamento, sua
alegria e seu pedido para que leia um pouco mais para ela. Abbas repete
a leitura da mesma história mais outras duas vezes. É muito interessante
ver que Baktay não se entristece ao perceber e ficar evidente para o vizinho
que ela não sabe ler. Ela, ao contrário, se fortalece.
Encantada com o fato de seu vizinho saber ler histórias que ela
considera divertidas, Baktay pede ao amigo para levá-la com ele para a
escola. O garoto diz que ela precisa de caderno e lápis, e a primeira metade
da história concentra-se na luta que a garota enfrenta para comprar um
caderno. Como não tem dinheiro, para obtê-lo é obrigada a trocar ovos por
pães, e depois vender o pão e então comprar o caderno. Baktay só consegue
o dinheiro que dá para comprar o caderno, por isso pega o baton de sua
mãe para escrever.
Após esse confronto com um Afeganistão pragmático e ocidentalizado,
em sua luta pelo caderno, Baktay inicia uma busca por uma escola em que
ela possa estudar, e encontra-se com a nova geração do país. Trata-se de
um grupo de garotos (os filhos da guerra) que decide maltratá-la por seu
desejo de ir à escola. Por essa razão rasgam o caderno recém-comprado e
submetem Baktay a um jogo de tortura emocional sobre sua condição de
mulher. Essa cena é de uma força singular, e ocupa uma parte significativa
da narrativa. Embora seja um jogo de crianças, que brincam imitando aos
talibãs, não ficamos com dúvidas sobre a seriedade das propostas dos
garotos ao cogitarem jogar Baktay em um buraco ou apedrejá-la até a morte.
As crianças masculinas brincam de guerra com galhos e ramos que fazem
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 46

passar por armas, fuzis e caças de combate. No entanto nem tudo nesse jogo
é de brincadeira, pois as pedras que ameaçam atirar em Baktay, quando a
vêem com o batom da sua mãe, são verdadeiras.
Quando esses meninos prendem Baktay, já estão com outras três
meninas presas em uma cova. Os motivos da prisão das garotas: uma
tinha os “olhos de lobo” (muito bonitos); outra era por demais bonita e
ainda usava batom e uma última mastigava chicletes. Mesmo se juntando
às garotas presas, Baktay não se conforma com essa situação e nem com as
justificativas para a prisão das outras meninas. Lembra de que ser bonita
não pode ser pecado e nem problema. Fala que não pode haver problema
em passar e usar batom e nem em mastigar chicletes. Com seu devir-
revolucionário em ação, mesmo presa, Baktay passa batom em si e na garota

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


pequena e fala do quanto estão bonitas. Além disso, em momento algum
Baktay desiste de sua luta para ir à escola. Ela escapa desses meninos,
recupera uma parte do seu caderno e continua sua busca pela escola até
o fim do filme, mostrando seu desejo de estudar, de aprender a ler e de
escutar histórias divertidas.
Posso estabelecer diferentes conexões com esse filme, porque ele
aborda várias temáticas que me tocam: os problemas da guerra, seus efeitos
duradouros sobre as novas gerações, a educação diferenciada e desigual de
meninas e meninos e a luta das mulheres do Afeganistão por educação e por
liberdade. Trata-se de um filme que transita entre o poético e o político, e que
produz emoções particulares. Contudo quero, aqui, seguir a linha do desejo
que é objeto de exploração deste artigo. Durante todo o filme, somente em um
instante, a palavra desejo é pronunciada. E, seguramente, não é o momento
mais importante do filme. Mas ele fala em desejo. Trata-se de um momento
em que Abbas retorna da escola lendo o alfabeto em voz alta. Baktay está
presa pelos meninos que “brincam de guerra” e, escutando a voz de Abbas,
consegue gritar por ele, antes que os meninos tapem a sua boca. Ao tentar
entender o que se passa e atender ao chamado de Baktay, Abbas é pego em
uma armadilha montada pelos garotos. Os meninos que imitam aos talibãs,
após cobrir Abbas com lama, fazem um jogo com o garoto. Ele terá de dizer o
que aprende na escola e o que significam algumas letras do alfabeto. O jogo
de perguntas e respostas entre os meninos-talibãs e Abbas é assim:

• De onde você vem? Vem da América?


• Eu venho da escola.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 47

• Se é assim, vamos ver o que está aprendendo na escola. De que é o A?


• O A pode ser de Amigo.
• Não imbecil, o A é de América. E o B? De que é o B?
• B é de Baktay.
• Não pronuncie nome estrangeiro, seu idiota! B é de Buda... E o N é de que?
• N é de Nome.
• Nada disso. N é de Não. E o D, de que é?
• Não sei...
• Que escola é essa? D é de Deus, seu imbecil.
• Sim o D é de Deus. Desejo também se escreve com D. Mas eu aprendi
que D é de Deus

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Nesse momento, quando Abbas diz em voz baixa que desejo também se
escreve com D, ele toca naquilo que é o motor do filme, e que mobiliza Baktay
em suas conexões, que a faz lutar, pedir, implorar, escapar, sorrir, chorar,
militar, correr, pular, aprender, enfrentar, arriscar, experimentar, entrar
em devires... Esse filme enfoca o desejo e sua capacidade mobilizadora. O
ponto exato em que o desejo é produzido é quando Abbas lê para Baktay
a seguinte história:

Um homem estava dormindo a sesta debaixo de uma árvore.


Quando já estava dormindo caiu-lhe sobre a cabeça uma noz. O
homem despertou sobressaltado, levantou-se assustado e disse:
menos mal que não foi uma abóbora porque se em vez de uma
noz fosse uma abóbora teria me matado.

É essa simples história que encanta Baktay e que a faz delirar. É


essa pequena história que faz Baktay desejar um mundo. Deleuze (2001)
diz que “desejar é delirar. Mas delirar não tem nada a ver com o que a
psicanálise reteve do delírio”. Isso porque “não se delira sobre o pai e a
mãe. Delira-se sobre o mundo inteiro”. Para Deleuze (1996), o “delírio é
geográfico-político”, porque faz construir e expandir territórios e faz lutar
para desamarrar as teias que dificultam o fluxo da vida. Nada, a partir
desse momento, desanima a pequena Baktay em sua luta e em seu desejo:
de ir à escola, de aprender histórias divertidas. Nenhuma das dificuldades
enfrentadas a desestimula. Em diferentes momentos escutamos Baktay
dizer a mesma coisa: “quero ir à escola”; “quero aprender histórias
divertidas”; “quero ir à escola aprender histórias divertidas”. É sempre
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 48

isso que ela diz nos mais diferentes momentos de sua difícil luta para ir à
escola. Em vários momentos isso é dito com um grande sorriso alegre; em
outros com preocupação e em outros chorando8.
Mas o desejo não está na enunciação “eu quero ir à escola aprender
histórias divertidas”. O desejo está em todo o agenciamento feito, do qual
essa enunciação faz parte; está no corpo refeito que “se abre para dançar
ao universo” (Artaud, 1978, p. 33). Afinal, embora “todo tipo de desejo
implique estilos de enunciação” (Deleuze, 1996, p. 16), os enunciados se
constituem em apenas um dos componentes do agenciamento do desejo9.
Deleuze (1996) lembra que “em vez de ser estrutura ou gênese, ele [o desejo]
é, contrariamente, processo. Em vez de ser sentimento, ele é, contrariamente,
afecto”. E continua: “em vez de ser subjetividade, ele é, contrariamente,

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


“hecceidade” (individualidade de uma jornada, de uma estação, de uma vida).
Em vez de ser coisa ou pessoa, ele é, contrariamente, acontecimento” (p. 19).
Com o desejo mobilizador em construção, vemos uma garota de
seis anos delirar sobre um mundo que ela quer e que a potencializa.
Vemos a construção de agenciamentos que lhe convém e de um território
ou uma região de onde tira forças para viver alegremente. Vemos a
desterritorialização (a saída do território) para expandir seu mundo.
Vemos, em síntese, o desejo correr... Afinal desejar é o ato de construir
uma disposição concatenada de elementos que formam um conjunto para
experimentar com a sua própria potência. E o que convém à potência de
alguém é o que faz com que seu território cresça.

Pode um currículo produzir o desejo?

No espaço problemático do reagrupamento escolar, Helen, garota


de sete anos, foi avaliada como não se encontrando no mesmo nível de
aprendizado da leitura em que estavam suas demais colegas de sete anos.
Por isso é reagrupada junto com os/as alunos/as que não sabem ler. Em
todos os dias letivos, durante uma hora, sai de sua turma da primeira série
do primeiro ciclo e vai para o espaço do reagrupamento. Helen não gosta
de estar ali. Ela diz:

Não gosto da escola quando eu não aprendo. (...) Eu gostei de


ciências uma vez que aprendi... já esqueci do que era que eu
gostei (...) Mas eu já gostei de uma coisa de ciências (...). Português
eu não gosto porque tem que escrever muito(...); eu queria gostar
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 49

( ...) mas eu não sei ai não gosto. Eu queria aprender para não vir
para cá (...) Eu não aprendo a ler, ai não gosto.

Aquele espaço não parece nada interessante mesmo: conteúdo (letras,


sílabas, palavras, frases com uma mesma letra), quadro-negro, caderno,
escrita... É difícil gostar, afinal é o território dos que não sabem. Quase ninguém
quer estar ali. Fico pensando que algo no currículo um dia tocou Helen: alguma
coisa de ciências. Ela já não se lembra mais o que foi. Mas sabe que aprendeu
e gostou. No plano das possibilidades, esse momento poderia ter instaurado
outra construção com o saber e o sentir no território do currículo. O que poderia
ter ocorrido, então, se tivesse sido ofertado a Helen uma grande quantidade
de textos e de materiais sobre isso que ela aprendeu e gostou?
Nada está garantido, porque já sabemos que “ninguém sabe

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


antecipadamente como se aprende” (Deleuze, 1988). Contudo, Deleuze
(2001) diz que “o papel do professor é este: comunicar e fazer com que
crianças apreciem um texto.” Então, como exercício de pensamento, penso
sobre o que poderia ter acontecido, se fosse percebido esse gosto de Helen,
e se fosse ofertado a ela saberes, materiais, textos, imagens, conversas que
envolvessem e desenvolvessem paixões. Talvez sua história com o aprender
fosse outra. Embora nada esteja mesmo garantido, seguindo mais uma
vez a indicação de Deleuze (2001), posso dizer que um currículo pode:
“(...) mostrar a vida; testemunhar em favor da vida; encontrar a emoção
da criança.” O resto é com ela, depende dela. Depende das conexões
que conseguir estabelecer, do território que conseguir ampliar e dos
agenciamentos que conseguir construir.
Um currículo pode ser um lugar privilegiado de contágio do desejo.
Muitos/as de nós, quando pensamos em nossa vida na escola ou na
universidade, lembramos de um professor ou de uma professora, de uma
aula, de uma matéria ou de um livro que marcou um antes e um depois em
nossas vidas. Podemos contar histórias de uma transformação em nosso
viver que se deu por meio de contágios e conexões produzidas no território
do currículo ou no convívio com um/a professor/a. Aqueles momentos em
que sentimos, de repente, ao lado de um professor ou de uma professora, que
podemos, que podemos muito, que podemos mais, que o mundo a ocupar é
nosso... Deleuze também conta a história de um encontro com um professor
seu de literatura, quando tinha 14 anos, que transformou o seu viver. A partir
desse encontro com esse professor, diz Deleuze (2001), ele se transformou,
e nunca mais foi “o aluno medíocre que era antes desse encontro”.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 50

Contudo, o encontro não precisa ser com um/a professor/a. Algo


precisa passar; agenciamentos precisam ser feitos; territórios precisam ser
ampliados; desterritorializações precisam ser feitas. Um/a professor/a pode
ampliar possibilidades de um encontro que produza experiências. Contudo,
se o desejo é uma disposição concatenada de elementos que formam um
conjunto, uma vez construído, seja qual for a atitude do/a professor/a, quem
deseja saberá dispor os elementos rizomaticamente e experimentar os
agenciamentos que lhe convenha e produzir experiências.
A experiência é algo que se dá solitariamente, mas que outros vêm
cruzá-la, atravessá-la, compor com ela. Na experiência saímos sempre
transformados; e o mundo também se transforma. A menina afegã, Baktay,
em sua experiência de aprender histórias divertidas, mostra que quando

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


se constrói um desejo, quando se deseja um mundo, tudo se modifica. O
desejo é tão pleno, tão alegre, tão potente que se algo falta, logo se conquista
de algum modo.
Quando, por fim, depois de um longo caminho, Baktay encontra uma
escola de garotas; ela não pede licença, entra na sala, enquanto a professora
está escrevendo no quadro, e senta-se na carteira de uma garota que havia
saído da sala para buscar algo para a professora. Afinal, ela precisa de um
território. Seu comportamento é rizomático; molecular; além da norma. A
um estímulo ela responde de modo diferente conforme a situação. Nunca
é a mesma resposta. No seu retorno, a garota disputa o lugar com Baktay,
fazendo-a sair de sua carteira. Baktay implora para sentarem as duas juntas e
o consegue em troca de umas folhas do seu caderno. Quando Baktay começa a
escrever com o batom no caderno, há uma “pequena revolução feminina” na
sala de aula. A garota toma o batom de Baktay e se pinta: lábios e bochechas.
A partir daí as duas juntas saem pintando todas as outras meninas da sala.
A alegria se instaura na sala; todas rindo e se achando muito belas.
A professora que escrevia no quadro sem notar nada do que estava
ocorrendo, quando se vira de frente para a turma e vê todas as garotas com
lábios e bochechas pintados, esbraveja, perguntando o que era aquilo, quem
havia pintado a todas e com o quê foram pintadas. Baktay é apontada como a
autora do movimento de rebeldia. A professora dirige-se a ela perguntando
quem ela é. Inicialmente Baktey parece estar em outro mundo; em seu
devir-imperceptível nem percebe que a professora está falando com ela.
Inclusive a professora pergunta várias vezes: “quem é você?”, sem obter
qualquer resposta. Baktay fica em silencio por um bom tempo e depois
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 51

retorna a pergunta para a professora: “Quem? Ela?” (pergunta apontado


para uma outra menina que está ao seu lado). Quando por fim percebe que
é com ela que a professora está esbravejando, Baktay pergunta: “Quem?
Eu? Sou Baktay”. A professora continua perguntando: de onde você saiu?
De onde você veio? O que está fazendo aqui? Em que série você está? Baktay
responde a todas as perguntas da professora, e esta manda que ela saia da
sala imediatamente. Mais que um devir-revolucionário, devir-mulher ou
devir-afegã, o vemos aí um devir-imperceptível. Afinal Baktay não deseja
ser conhecida e nem reconhecida. Baktay está imperceptível: característica
da mais alta velocidade e da maior lentidão.
Baktay sai da sala; mas não desiste de aprender. Ela bate em um sino
que faz com que todas as crianças saiam da escola correndo. Toda a escola

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


fica lá, então, só para ela, à sua disposição. Baktay senta-se sozinha em
uma das várias cadeiras vazias que estão enfileiradas em um espaço aberto
onde anteriormente tinha uma turma de homens adultos estudando, abre
o caderno (que não possui escrita alguma) e lê, em voz alta e olhando para
o caderno em branco, a mesma história que Abbas havia lido para ela e que
despertou tanto desejo. Baktay, em seu devir-imperceptível, faz a aquisição
de uma clandestinidade. Ela não é conhecida e nem reconhecida.
Após essa cena, Baktay inicia seu retorno para a sua casa. No caminho
encontra Abbas que estava lhe procurando. Abbas pergunta-lhe: Baktay,
onde você estava? Ela responde: estava na escola. Abbas pergunta: aprendeu
alguma história divertida? Baktay responde: “não encontrei ninguém que
quisesse me ensinar... mas eu estou aprendendo sozinha, e já está bom.”
Nietzsche (1999) considera que tornar interessante o que por si mesmo
não é nada interessante é tarefa dos indivíduos potentes, porque esses
vêem e escutam pensando. Pois não há duvidas de que Baktay tornou muito
interessante algo que não era nada interessante. Os indivíduos potentes,
para Nietzsche (1999), são os pensantessentintes que percebem aquilo
que para outras pessoas passa despercebido. Olham, sentem, selecionam,
nomeiam e dão um sentido e um valor ao que vêem, sentem e percebem.
Isso é muito importante para aprender. Para construir um agenciamento
do desejo é preciso pensar e sentir. É preciso dedicar tempo e atenção ao
desenvolvimento de si mesmo. O agenciamento do desejo demanda que
sejamos amantes da mudança e do devir. É preciso ser professor/a da nossa
própria arte de viver. É preciso, em síntese, como o faz Baktay, romper a
lógica do “ser” e passar para a lógica rizomática do “e”; buscar não “quem
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 52

somos” ou “o que é”; mas tudo aquilo que podemos somar graças ao “e”
para fazer funcionar os agenciamentos do desejo.

Por uma nova pragmática ou quando o desejo produz


experiência

Estar permanentemente à espreita de algo que nos toque é uma


indicação de Deleuze, para a busca de algo que nos encaminhe para uma
outra direção; para a não reprodução de planos fechados da existência10.
Como existem muitas possibilidades em uma vida, em um currículo e
em tudo na vida é preciso não imitar, mas se deixar contagiar. “Devir é
rizoma, contágio” (Deleuze; Guattari, 1997, p. 19). Isso porque no devir
não há evolução, mas simbiose, aliança, composição, contágio. No contágio

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


há fusão e, nela, a possibilidade de que surja algo novo. A menina Baktay
é o exemplo: deixa-se contagiar e abre-se a um mundo novo. A menina
Carolina, de 11 anos, estudante do 1o. ano do segundo ciclo de uma escola
do município de Belo Horizonte é outro exemplo. Ela mostra como em
um currículo pode ocorrer um encontro, levar para bem longe a tristeza e
transformar aqueles/as que são contagiados. Ela diz:

(...) Eu sou a aluna daqui que mais lê. Tudo aconteceu assim,
de repente! (...) Era muito ruim não saber ler (...) e eu já tinha
9 anos e não sabia. Sabia as letras, mas quando juntava não
conseguia. Na minha sala só tinha eu e o Ivan que não lia. (...) foi
assim: a professora Fernanda veio ficar na minha sala porque
a minha professora adoeceu. Ai ela trouxe uma poesia e falou:
Carolina a poesia que eu trouxe hoje tem o seu nome. E eu falei:
ah! professora não gosto do meu nome não. E ela falou: por que
Carolina? Eu acho seu nome tão bonito! Eu achava feio. Aí ela
falou que trouxe a poesia de Cecília Meireles que era linda. (...)
A professora Fernanda gostava muito de Cecília Meireles. Ela
passou a poesia para nós, e leu a poesia tão bonito que eu achei
linda o jeito dela ler e a partir daí eu ficava tentando ler igual
a ela (...) Eu fiquei com tanta vontade de ler, tanta vontade que
eu decorei a poesia... Eu pedia todo mundo que eu via para me
ensinar a ler (...). E depois alguma coisa abriu na minha cabeça
e eu aprendi ler assim de repente... Eu não sei como, (...) mas
foi lendo a poesia que aprendi ler. Eu gostava tanto da poesia
que a professora Fernanda me deu o livro da Cecília Meireles de
presente. E eu só ficava com o livro, até dormia com o livro. (...)
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 53

Eu adorei o presente. Foi o presente que mais gostei na vida. (...)


Sei todas as poesias do livro e todo mundo aqui me pede para
falar poesias. (... ) Eu gosto. Eu fico feliz de saber poesias. (...)Eu
leio um tanto de coisas mas gosto mais da Cecília Meireles. Eu
falo que meu nome é Carolina Cecília e eu vou ser poeta também.
(...) A poesia chama “o Colar de Carolina”. É assim: Com seu colar
de coral, Carolina corre por entre as colunas da colina. O colar
de Carolina colore o colo de cal, torna corada a menina. E o sol,
vendo aquela cor do colar de Carolina, põe coroas de coral nas
colunas da colina. (...) Foi assim que aprendi a ler e a gostar de
poesias, e a gostar de ler também (...). Ah ... e do meu nome, né?
(...) Carolina é o nome mais bonito do mundo!!

Do encontro com uma professora, uma poesia e uma poeta no território

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


do currículo tudo se modifica na vida de Carolina. Isso mostra que em um
currículo, ainda que seja um espaço problemático, é possível contagiar-se e
deixar-se contagiar. O desejo que cria a experiência da leitura para Carolina
não é produzido por alguém; porque o desejo é produtividade impessoal
e involuntária. Desejo é plenitude, é uma potência de crescimento, é uma
alegria que se instaura e faz experimentar.
Que conexões podem ser feitas entre Baktay, criança afegã de 6
anos de idade, do filme “Buda explodiu por vergonha”, e Carolina, criança
brasileira de 11 anos de idade, que estuda em uma escola municipal de Belo
Horizonte? Primeiramente, tanto Carolina como Baktay produziram um
encontro potencializador que as comoveram e aumentaram a potencia de
agir. Em segundo lugar, elas deixaram-se levar pelo desejo de experimentar.
E a experimentação, como lembra Deleuze (1992), “é sempre o atual, o
nascente, o novo, o que está em vias de se fazer” (p. 132). Por fim conexões,
desterritorializações e agenciamentos foram feitos porque o desejo foi
acionado. Uma vez que se deseja fica fácil movimentar, buscar e experimentar.
Por mais que um currículo seja cheio de organizações, de disciplina,
de controle; ele também é cheio de possibilidades. Um currículo é sempre
cheio de possibilidades múltiplas pela matéria diversa que o constitui.
Como, no espaço curricular, se tem sempre um/a professor/a discorrendo,
pessoas de diferentes tipos que se manifestam ou não e materiais muito
diversos, um/a ouvinte de um currículo pode, em qualquer momento, como
dizia Deleuze (2001) sobre as aulas, “entrar na corrente do pensamento”.
Isso porque em um currículo, como vimos com Carolina, como em uma vida
e como em tudo na vida, como vimos com Baktay, há sempre possibilidades
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 54

de perceptos, afectos e encontros alegres... Afinal, os poderes trabalham


para tapar os “vazamentos”; mas a diferença, as linhas de fuga e o desejo
veem primeiro porque a lógica da vida não é a lógica do ser; é a lógica do
devir. (Deleuze, 1988, 1992, 1996 e 2001).
Como os encontros possibilitados em um currículo podem aumentar
ou diminuir a potência, e não devemos jamais nos contentar com os
encontros tristes, é necessário saber da potência e da dificuldade do desejo.
É necessário saber de sua potencia, porque o desejo foge e faz fugir; porque
ele possibilita desamarrar os poderes territorializados e tratar com bom-
humor as paixões de todos os tipos: alegres e tristes (Spinoza, 2007). É
necessário saber de sua dificuldade porque não é possível formular
como objetivo de um currículo fazer desejar. Não é possível formular um

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


método para trazer o desejo e suas linhas de fuga para um currículo. Não
é possível porque o desejo não depende da vontade; depende mais da
conexão com algo que nos convém. Não é possível, também, porque se ele
for territorializado aí acabou a sua força.
A constituição do desejo, para Deleuze (2001), “implica, sobretudo,
a constituição de um (...) ‘corpo sem órgãos’ que se define por zonas de
intensidade.” Um corpo sem órgãos é um corpo não organizado, como
o corpo de um bebê, que é pura vitalidade na busca por ampliar suas
próprias forças. Um corpo sem órgão é um corpo com vontade de potência;
não é algo dado; é algo que temos que alcançar se quisermos que a vida
e o desejo fluam. O corpo sem órgãos é importante para o desejo, nesse
pensamento, porque remete a uma oposição à organização. Organização
que costuma ser tão cara aos currículos, ao ensino e à pedagogia. Pois
para liberar a vida, para fazer a vida crescer alegremente, para desejar é
necessário desorganizar um corpo; seguindo a fórmula de Deleuze (2001):
“construir um corpo sem órgãos.”
Desejar, então, é amar a vida. Amar a vida, como depreendo de
Nietzsche (2004), não porque estamos acostumados a viver, mas porque
estamos acostumados a amar. Afinal, amar a vida porque estamos
acostumados a viver é querer o já vivido. Contudo, amar a vida porque
estamos acostumados a amar é não nos remeter a uma vida repetitiva; é
entrar no fluxo do movimento, porque a vida é puro movimento. O que se
deve repetir é apenas o impulso pelo qual nos conectamos a pensamentos,
a conceitos, às coisas e às pessoas para nos deixarmos levar, afetar e sermos
afetados. Amar a vida é amar a mudança, a corrente, o movimento contínuo,
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 55

o acontecimento. Amar a vida é produzir experiência. Experiência, como


a entende Foucault (1994), é tentar atingir um certo ponto da vida que
seja o mais próximo possível do “invivível”11. Isso requer um máximo de
intensidade e ao mesmo tempo de impossibilidade. A experiência não é
apreendida para ser repetida, passivamente transmitida. Ela acontece para
recriar, potencializar outras vivências, outras diferenças. Aprender com a
experiência é, sobretudo, fazer daquilo que não somos, mas poderíamos ser,
parte integrante de nosso mundo. Como procurei mostrar neste trabalho, a
experiência é criadora e não reprodutora. No território do fazer curricular
é possível ver improvisações, encontros, emoções... É possível encontrar
sensações provocadas pelas forças das experimentações curriculares e
a vivência de alegrias. A alegria, como explicita Deleuze (2001), “é tudo o

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


que consiste em preencher uma potência. Sente alegria quando preenche,
quando efetua uma de suas potências.”
O que pode um currículo-desejo? Desterritorializar as normas
do currículo-forma, dos reagrupamentos, gerando possibilidades
insuspeitadas de aprendizado. Criar novas possibilidades ali onde o
currículo-dominante nem cogita que seja possível. Fazer composições com
as crianças, com aquela criança, com uma professora, com uma poeta, com
uma colega, com um amigo, com uma história, com uma poesia, com um
livro... Produzir o desejo, fazendo a vida renovar e aumentando a potência
de agir. Cultivar encontros que potencializam: “os bons encontros. Aqueles
que nos ajudam a nos apartar do efêmero e do contingente para nos fazer
experimentar um gostinho do infinito e do eterno.” (Tadeu, 2003, p. 72).
Fazer no movimento agenciamentos que nos convenha.
Afinal, o currículo-desejo é uma aposta no movimento, que se conecta
e faz composições, gerando outros movimentos. Em síntese, o que pode
um currículo-desejo? Fazer agenciamentos que potencializem; conquistar
um território; desterritorializar sempre e viver alegrias que contagiem!
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 56

Referências

ARTAUD, Antonin. Oeuvres completes. Paris: Gallimard, 1978.

DALBEN, Angela Loureiro de Freitas. Singular ou Plural?: Eis a escola em questão! Belo
Horizonte: GAME / FAE / UFMG, 2000.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução Luiz Orlandi; Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1988.

DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34. 1992.

DELEUZE, Gilles. Desejo e Prazer. Tradução Luiz Orlandi. Cadernos de Subjetividade,


número especial, p. 13-25. 1996.

DELEUZE, Gilles. Diálogos. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.

DELEUZE, Gilles. O abecedário de Gilles Deleuze. Entrevista concedida em vídeo a Claire

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Parnet. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério de Educação, “TV Escola”, série
Ensino Fundamental, 2001.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução


Joana Morais Varela e Manuel Maria Carrilho. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia – v. 4. Tradução


Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.

FILGUEIRAS, Karina Fideles. O sistema de ciclos em Minas Gerais. Presença Pedagógica,


Belo Horizonte, v. 11, n. 62, p. 39-48, mar./abr. 2005.

FORTES, Maria de Fátima. A escola plural: uma nova concepção do processo ensino-
aprendizagem. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, v. 3, n. 13, p. 17-29, jan./
fev. 1997.

FOUCAULT, Michel. Dits et Ecrits. Vol. 4. Paris: Gallimard, 1994. LARRAURI, Maite. La
felicidad según Spinoza. Valência: Tàndem, 2003

LARRAURI, Maite. La potência según Nietzsche. Valência: Tàndem, 2005.

PARAÍSO, Marlucy. Uma cartografia das experimentações e dos fazeres curriculares de


professoras bem-sucedidas. Relatório de Pesquisa. Financiada pela Pró-Reitoria
de Pesquisa da UFMG, 120 p., Belo Horizonte, 2005.

SMED/BH. Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Escola Plural Proposta


Político-Pedagógica, 1994.

SMED/BH. Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Escola Plural. Caderno


1: Construindo uma referência curricular para a escola plural: uma reflexão
preliminar, 1995.

TADEU, Tomaz. A arte do encontro e da composição: Spinoza + Currículo + Deleuze. In: CORAZZA,
Sandra; TADEU, Tomaz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. P.59-74.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 57

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia ciência. Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Hemus; 1981.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução Mário da Silva. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1983.

NIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer como educador. Madri: Valdemar, 1999.

NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.

SPINOZA. Benedictus. Ética: Ed. bilíngue português-latim. Tradução Tomaz Tadeu. Belo
Horizonte: Autêntica, 2007.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 58

1 Este artigo foi elaborado durante o período de Estágio pós-doutoral realizado na Faculdade de
Filosofia e Ciências da Educação da Universidade de Valência (Espanha) com bolsa da CAPES.

2 Refiro-me a filósofos como F. Nietzsche, B. Spinoza, M. Foucault e G. Deleuze. A filosofia


produzida por esses filósofos tem sido chamada de “filosofia para profanos” porque, como
sugere Larrauri (2003), trata-se de uma filosofia feita para não-filósofos.

3 Filme dirigido pela jovem iraniana de 18 anos Hanah Makhmalbaf. Ano 2007, 81 min.

4 Os reagrupamentos constituem no objeto de uma investigação que venho desenvol-


vendo como pesquisadora PICDT do CNPq intitulada: Currículo e a produção de sujeitos:
relações de gênero nos reagrupamentos escolares. (2007-2010).

5 Vale registrar que na Escola Plural, os reagrupamentos já estavam previstos desde a sua
criação, nos seus primeiros documentos. Belo Horizonte (1994 e 1995).

6 As citações de Deleuze, 2001 foram extraídas de uma entrevista em vídeo e não permitem,

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


portanto, paginação. (Nota da Revisora).

7 O título do filme em francês, inclusive, foi O caderno, valorizando toda a empreitada


levada a cabo pela garota Baktay para comprar o caderno que era a condição dada por
seu amigo para levá-la á escola.

8 No momento em que ela é colocada em um buraco cavado pelos meninos e é ameaçada


com pedras, Baktay chora, com lágrimas escorrendo pelas faces, e implora repetindo várias
vezes: “deixa-me em paz, pelo amor de Deus. Deixa-me ir à escola. Deixe-me ir aprender
histórias. Não quero brincar de guerra. Quero ir à escola. Deixe-me ir à escola aprender
histórias. Eu quero ir à escola aprender histórias divertidas”. Quando vai à polícia pedir
ajuda para as garotas que continuam presas pelos meninos o semblante é de preocupação
quando o policial pede que espere cinco minutos porque ele é guarda de trânsito. Baktay diz
ao policial: “Não posso chegar tarde na escola. Quero ir aprender muitos contos na escola e
o alfabeto também. Não posso chegar tarde. Quero aprender historias divertidas na escola.”

9 Deleuze (1996) diz que todo agenciamento tem quatro componentes: 1) remete a estados
de coisas (que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha); 2) enunciados, estilos
de enunciação (todo agenciamento implica estilos de enunciação); 3) Implica territórios
(cada um com seu território); e 4) desterritorialização (o modo como saímos do território).

10 Sobre isso Deleuze (2001) diz: “Quando vou ver uma exposição, estou à espreita, em
busca de um quadro que me toque, de um quadro que me comova. (...) Uma exposição de
pintura, ou o cinema, sempre tenho a impressão que posso ter o encon- tro com uma idéia.”

11 Esse é o sentido dado à experiência por Foucault e que se insere na tradição de


autores como Nietzsche e Blanchot. Essa noção se contrapõe à noção de experiência
da fenomenologia. Sobre isso o próprio Foucault diz em uma entrevista: “a experiência
do fenomenólogo é, no fundo, uma certa maneira de pôr um olhar reflexivo sobre um
objeto qualquer do vivido, sobre o cotidiano em sua forma transitória, para extrair as
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 59

significações. Para Nietzsche, Bataille, Blanchot, ao contrário, a experiência é tentar chegar


a um certo ponto da vida que seja o mais próximo do invivível. O que se requer é o máximo
de intensidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade. O trabalho fenomenológico, pelo
contrário, consiste em estender todo o campo de possibilidades ligadas à experiência
cotidiana.” (1994, p. 80).

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 60

Texto complementar

PEREIRA, Reginaldo Santos; INIS, Nilson Fernandes. O pacto com a leitura e escrita no
estado da Bahia: normalização, disciplina e controle para governar a infância. Teoria
e Prática da Educação, v. 22, n. 2, p. 91-108, maio/ago. 2019.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


unidade 3
A língua do Alfabetizador Artístico

Texto base
Textos complementares
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 62

Texto base

ABCRIADOR: DA ESCRITA ÀS ESCRITURAS

O caderno

Tudo que ela faz, aquilo que lhe acontece, registra ali. Seu caderno
querido, que sempre a acompanha. Já não consegue desgrudar-se dele,
como um vício. Necessita dele tanto quanto ele necessita dela. Ambos
consolidam uma relação. Tarde de outono. A professora e o lápis se jogam
nas linhas do caderno. Ele os seduz, oferecendo-lhes uma sedosa folha de
papel para escrever. Com a ponta dos dedos, ela toca a capa do caderno,
que brinca com cores sígnicas: um verde que se mescla em tons de amarelo

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


satisfeito e marrom vintage. Ao abrir a primeira folha, sente o cheiro do
papel misturado à tinta. Um frio desce sua nuca e para nas suas costas.
Seus dedos, polegar, indicador e médio, apertam a quase ponta do lápis
em um preparo para o romance. Iniciava-se ali uma relação de amor. O
desejo transcorria-lhe a pele fazendo sentir arrepios cada vez mais longos
como se tivesse recebendo sussurros e beijos no pescoço. A ponta do
lápis escorrega na primeira linha da página, vai adentrando e deixando
marcas naquela folha em branco Palavras são formadas, frases diluídas.
Prazer. O gozo é inevitável. A professora, imbuída em seus pensamentos,
escreve, rasura e reescreve tudo outra vez. Entradas e saídas movimentam
aqueles “corpos”. Ela enxerga, no pequeno espaço de vinte e três linhas, um
universo de possibilidades para encarar a vida, a profissão e seus anseios.
Naquelas entrelinhas, navega e embriaga-se. Deixa-se penetrar. Sente os
mais vivos prazeres do texto que escreve. Delira em poemas. Faz perguntas.
Responde em seguida. Pula uma folha em branco. Sua mente faz produzir
uma escritura lubrificada, trêmula de prazer. Ao ler o que escreveu, apaga.
Escreve novamente e, nesse incessante movimento, acaba atravessando
o interior do outro. Na superfície rala daquele caderno, dissemina suas
ideias, seus projetos, seus mundos e fundos. Um ponto final jamais seria
o fim, apenas o começo daquela história de amor ao escrever.

***

O que difere uma escrita de uma escritura? Roland Barthes (2003),


escritor francês que se ocupou de pensar os modos de projeção da palavra,
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 63

convida [não diretamente] a escrever. Uma escritura singular do impessoal


carregada de desacontecimentos a partir da composição de histórias de
vida e as palavras. Dessa forma, a professora escreve biografemas.
Não se trata de redigir uma biografia a partir de fatos lineares de
uma vida, mas, ao contrário, fatos a-históricos, composições de linhas
retiradas do ínfimo de uma existência vivida (COSTA, 2010). Trata-se de
signos ralos, podendo ser observado em Oliveira (2010) como uma menor
matéria que é possível de ser operada na escrita de forma a variá-la de
uma estrutura preconcebida, alcançando outra maneira de abordar a vida.
O método biografemático é possível de ser explorado, também, em outras
obras como a de Frichmann (2012), que trata de uma autobiografemática,
de Costa (2012), desvendando o corpo em obras, de Adó (2013), pensando

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


no funcionamento da autocomédia intelectual de um educador como um
programa biografemático para a Educação.
A professora propõe uma meta: dizer da escritura. Barthes (2004)
afirma a relação da escrita com o prazer, pois escrever é, também, “uma
prática corporal de gozo” (Ibid., p. 293) como que em um encantamento
erótico, por uma necessidade de deleite. Do mesmo modo, para o autor,
escreve-se porque essa ação descentra a fala, individua, realizando um
trabalho cuja origem não é evidente. A escrita marca uma diferença em si.
É por meio dela que a vida, o acaso e o fora são protagonizados. Escreve-se
para encher o ego, na procura de reconhecimento, de ser lida, admirada,
amada e, até mesmo, contestada. Também, escreve-se para cumprir tarefas
de cunho ideológico e, até mesmo, contraideológico. Para produzir sentidos
novos, para burlar a ideia, o ídolo e habilitar assim o valor superior de uma
atividade pluralista, sem causalidade, finalidade nem generalidade, como
o é o próprio texto.
Essa escritura quer abalar as certezas que são carregadas para fazer
pensar de novo. Nela não existe o autor, pois não determina identidades
de quem escreve um texto, a literatura serve apenas como a prática do
escrever. O prazer da leitura surge pela beleza do texto, pela diversidade de
experimentações que são permitidas. Do mesmo modo, a leitura aglomera-
se como uma matéria importante para o ato de escrever, pois é por meio
dos agenciamentos realizados que se possibilita alcançar a composição
de escritura, como um continuum de forças que se apodera da leitura para
a produção de um texto singular. A leitura, segundo Barthes (2004, p.
171), é “um fenômeno sobredeterminado, que implica níveis de descrição
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 64

diferentes. Leitura é aquilo que não pára.” Há leituras mortas, que são aquelas
estereotipadas, submetidas às repetições mentais; e as leituras vivas, que
produzem no leitor um texto interior, uma fuga, uma verdade, um prazer
no próprio texto.

Prazer do texto. Clássicos. Cultura (quanto mais cultura houver,


maior, mais diverso será o prazer). Inteligência. Ironia. Delicadeza.
Euforia. Domínio. Segurança: arte de viver. O prazer do texto pode
definir-se por uma prática (sem nenhum risco de repressão): lugar
e tempo de leitura: casa, província, refeição próxima, candeeiro,
família lá onde é preciso, isto é, ao longe e não longe (Proust no
gabinete com aromas de íris), etc. (BARTHES, 2010, p. 61).

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Por que a escola não está entre a lista dos lugares que Barthes cita
ao sentir prazer de ler um texto? Qual o lugar e o tempo da leitura e da
escritura nas escolas? Uma experimentação em escrileituras poderá
auxiliar responder a essas questões e colocar outras em jogo.

Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida

A professora descreve aquilo que move a experimentar possibilidades


de uma escritura biográfica. Ela pensa sobre as aprendizagens, a sua, a tua
e a de seus alunos. Escrileituras de um projeto que a encontrou e produziu
coisas nela. Diz mais.
O Projeto denominado Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida
foi aprovado pelo edital nº 038/2010 vinculado ao Programa Observatório
da Educação (OBEDUC) e financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES) junto ao Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).
Ele é inventivo.
Em conjunto com a CAPES, o INEP, bem como com a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI),
opera na tentativa de articular a Pós-Graduação, as licenciaturas e as
Escolas de Educação Básica, estimulando a produção acadêmica em nível
de mestrado e doutorado. Toda proposta de trabalho advinda de Programas
de Pós-Graduação de Instituições de Ensino Superior (IES), públicas e
privadas, com proposição de estudos e pesquisas em educação, tem seu
espaço para realizar submissão aos editais de seleção do OBEDUC.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 65

Audacioso. Adaptável. Nunca sai sem deixar um pouquinho de si e


levar outro tanto de todos.
Pode-se pensar que, além de financiar trabalhos envolvendo o Ensino
Superior, conjuga essa modalidade ao ensino básico de educação. Ao
oferecer bolsas de trabalho aos estudantes e professores, favorece uma
ampliação dos saberes acadêmicos para as práticas de sala de aula.
Outro fator que chama a atenção, ao observar o envolvimento do
OBEDUC na área da educação, é o fato de ter como proposta estimular
a utilização de dados estatísticos oferecidos pelo INEP, como subsídio
de aprofundamento nas pesquisas em relação à realidade educacional
brasileira. É uma possibilidade de articulação entre duas instituições em
prol dos benefícios extraídos para a educação.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Sobrevoando o contexto do Projeto Escrileituras, na tentativa de
localizá-lo em um tempo real e cronológico, descobre-se que ele é, também,
atemporal, não localizável, que se situa em todos os espaços e em nenhum
ao mesmo tempo. Circula pelas superfícies. Cria passagens de vida nas
leituras e escrituras que produz nos diversos lugares por que passou.
Sobre sua proposta de trabalho e de pesquisa, o vínculo teórico ao qual
se desenvolve faz referência à linha de estudos das Filosofias da diferença.
Busca uma tentativa de operar, inseparavelmente, com a teoria e a prática, a
leitura e a escritura, ambas trafegando em via de mão dupla nos caminhos
educativos. Visa a atuar mais no experimento do ler e do escrever como
potência e menos na representação daquilo que já se sabe.
Escolhe seus próprios teóricos. Tem vida própria. Um bando se junta
ao Projeto e ele aceita. Dizem coisas dele e fazem dele uma potência para
pensar em novos problemas na educação, porque “sobre os velhos” muita
gente já opinou. As respostas estão dadas. Ele não quer o dado. Quando
o dado já está dado, não há nada mais para se fazer. Quer o dramático, o
espantoso, o imemorável, o inteligível.
Como “disparador de cenários que pensam a educação com e na vida”
(DALAROSA, 2011, p. 15), ele implica ensinar e aprender a partir do ato
de criação textual, no agenciamento de três áreas do conhecimento: Arte,
Filosofia e Educação. Por esse meio, vem articulando seus trabalhos e
realizando Oficinas de Escrileituras pelo país.
É espalhado.
Nessa proposição, quatro professores de universidades federais e
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 66

estaduais compõem Núcleos1 de trabalho que ampliam a abrangência do


Projeto a nível nacional. Cada um dos Núcleos compõe grupos de estudos
com ênfase ao ensino, à pesquisa e à extensão. Planejam e realizam as
atividades em Oficinas tanto na educação básica, nas modalidades Regular
e Educação de Jovens e Adultos (EJA), quanto no ensino superior.
Ele se amplia e se alastra como fogo. Já não é possível mais alcançá-
lo em um número estatístico. Também é como a água que escorrega
por qualquer espaço esburacado. Em um mínimo ponto vazado, ele se
esparrama, inunda. Dispersa e inventa novas modas. Enlouquece qualquer
tipo de gente.
As Oficinas atuam com a ideia de Escrileituras, que acontecem em atos
de ruptura e desterritorializações. Esse conceito aparece, para muitos, como

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


uma nova proposta pedagógica no campo da linguagem ou, até mesmo,
como uma metodologia diferenciada para o ensino do ler e do escrever.
Segundo Corazza (2011a), surge como uma asserção para o Projeto a partir
de um questionamento bastante presente na educação: Como qualificar o
ensino básico no Brasil no que tange à leitura e à escrita, considerando os
baixos números que constam no Índice de Desenvolvimento da Educação
Básica (IDEB)?
Fecundam um pensamento oculto e dão vazão àquele cheio de ideias
por meio das formas com que se lê a partir daquilo que se escreve e vice-
versa. Não é função das Oficinas fazer interpretar, raciocinar, refletir,
significar ou identificar algo nem ninguém. Seu procedimento tenta
ativar maneiras de ler e formas de escrever. Suas atividades escrileiturais
desenvolvem-se em torno da exploração-experimental para varrer os clichês
que poderão sobrepor-se aos modos de invenção e fabulação na escritura.
De onde vem a invenção do Projeto?
De Sandra. De outros e tantos. Da Filosofia. Dos alunos. Da Literatura.
Dos problemas. De Nietzsche. De Deleuze. Das leituras e escrituras. Do
poético. Da negação aos clichês. De Guattari. Da Arte. Da mesmice. De
Barthes. Da Universidade. Das ideias. Do pensamento. Da Ciência. De
Foucault. Da vida.
Almeja escrever um texto produtivo que dê abertura às interferências
do meio em que o escritor se situa, tornando o texto traduzível de múltiplas
1 Núcleo UFRGS coordenado pela professora Sandra Mara Corazza; Núcleo UFMT
coordenado pelo professor Silas Borges Monteiro; Núcleo Unioeste coordenado pela
professora Ester Maria Dreher Heuser; Núcleo UFPel coordenado pela professora Carla
Gonçalves Rodrigues.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 67

formas. Abre espaços para a criação oferecendo lugar a outros formatos de


expressão. Conforme Barthes (2010), que o leitor-escritor, em sua prática de
escrever, possibilite, no texto, o inusitado, obtendo uma vontade de fruição
desejando produzir escrituras.
Assim, o Projeto Escrileituras compreende “a experimentação como
condição da aprendizagem” (CORAZZA, 2011a, p. 13), em que a própria vida
é o elemento disparador das circunstâncias que fazem ler-escrever. Ela é
comparada a uma obra de arte, conforme em Nietzsche (2005), permitindo
pensar o desordenamento como processo de criação; os encontros com
outros corpos como processo de afecção para fazer variar a língua, liberando
forças criadoras na construção de um estilo.
Ele potencializa. Despotencializa. Inverte o jogo.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


O trabalho de ler-escrever em meio à vida traz ressonâncias nos modos
de produção de sentidos, histórias e de vidas que acontecem nos variados
espaçamentos não pensados no ato de escrever. Os textos produzidos
nas Oficinas têm a intenção de exercitar a imaginação a partir dos
agenciamentos possibilitados pelos objetos brutos oferecidos durante a
proposta. Desse modo, permeando a ideia de Deleuze e Guattari (1995,
p. 23), “podem- se sempre efetuar, na língua, decomposições estruturais
internas: isto não é fundamentalmente diferente de uma busca das raízes”.
As Escrileituras tentaram operar com a linguagem, durante os quatro anos
de trabalho [2010-2014] por um método tipo rizoma (DELEUZE; GUATTARI,
1995), que realiza um descentramento, inibindo o fechamento de si
enquanto estrutura e poder.
O Projeto rizomatiza ao criar linhas na composição de mapas que
sucedem a vida. Diz e pensa um aprender. A força da recognição no
pensamento deixa a desejar em relação a uma aprendizagem como
acontecimento (ROOS, 2005), pois sua capacidade de produção torna-se
limitada apenas a exprimir as coisas dizíveis e visíveis. Interessa mais,
nessa perspectiva de trabalho, pensar num aprender diferente de um
entendimento consensual na educação, como o desenvolvimento da ação
mental. A abrangência conceitual planifica-se nas noções de encontro,
signos e interceptação, tornando-se conceitos potentes explorados nas
Oficinas para pensar nas práticas de leitura e de escrita realizadas nos
ambientes educacionais.
Trata-se de um método não teorético, mas artistador, pois
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 68

consiste antes em um método de criação perspectivista, que


deriva de inflexões diferenciais e estabelece um ponto de vista,
como lugar, foco ou posição. Essa atitude conforma uma radical
liberdade, na constituição daquilo que o Projeto considera objetivo,
por processar a escolha de um ponto original, escolhido pelos
participantes, que são os seus artistas-sujeitos; isto é, aqueles
que se instalam naquela variação de ponto de vista; sem que este
ponto varie com cada participante, mas enquanto condição para
que cada um deles apreenda algo (CORAZZA et al, 2014).

Esse modo de operar não objetiva estruturar, hierarquizar e


estigmatizar as atividades em torno da alfabetização, mas para dar vazão às
possibilidades universais de ler e escrever. Compactua com o procedimento.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Possibilita espaço para a leitura em variados âmbitos da escola [a calçada,
a quadra de esportes, o refeitório, e a própria sala de aula, por exemplo] na
experimentação de matérias, que não somente livros, mas obras artísticas,
fragmentos de filmes, ideias filosóficas, música e teatro.
A metodologia desdobra-se em Oficinas como possibilidade de que
elas se tornem matéria de pesquisa por seus participantes. Para tal, são
descritas seis modalidades, segundo Dalarosa (2011, p. 21), como “seis
linhas de intensidades a serem multiplicadas numa cartografia intensiva”.
São essas linhas também os eixos temáticos que planificam as atividades
escrileiturais: artes visuais; biografemas; filosofia; lógica e pensamento
matemático; música e corpo; teatro. Seu método de análise é o cartográfico,
pois atua na experiência, pensando no próprio caminho da investigação,
pesquisando o processo enquanto tal, adentrando-se nos estudos e
firmando acontecimentos. Também faz de inspiração a esse trabalho o
método genealógico2 empregado por Foucault (apud DELEUZE, 2012).
Destrói. Territorializa. Arquiteta modos de atuar com a escrita por
meio de pontes conceituais modalísticas. Utiliza-se de termos. Traduz
conceitos. Lê e escreve.
Incorporada por essa proposta, Corazza (2011a) sinaliza algumas
características do eixo comum às Oficinas, tais como transdisciplinaridade;
imersão na estrangeiridade dos textos oficinados; aportagem de
problematizações acerca do vivido; produção de pesquisas; exercício de
2 Este método é citado no Projeto como um propulsor para colocar os conceitos em
perspectiva genealógica, podendo modificar perguntas generalizadoras de pesquisa, “O
que é pensar?”, por outras que possam questionar: Quais as condições possíveis para o
pensamento? (HEUSER, 2011, p. 19).
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 69

escrileituras; espaço de correlações entre leitura, invenção, sensações,


afectos e pensamento; vivência de diferentes processos de singularização.
O que, de fato, são as escrileituras?
A concepção de escrileituras desdobra-se em múltiplos sentidos,
propõe a criação de um texto aberto às interferências do leitor e, portanto,
escrevível de variadas formas. Remete-se à criação de uma escritura
inspiradora e cheia de ideias, capaz de produzir a diferença em seu exercício,
deixando de lado as reproduções que inibem a capacidade de invenção. Os
escritos criados nas Oficinas são singulares e passíveis de desvelamento de
subjetividades acionadas devido ao trabalho investido nesse campo.
Trata-se de um movimento de escritura autoral que não funciona
por modelos ou metodologias estruturadas. Elas funcionam a partir

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


da experimentação de matérias artísticas, filosóficas e científicas que,
ao provocar o pensamento, concede lugar aos processos do escrever.
Escrileituras operadas a partir do movimento de leitura pela escrita e a escrita
pela leitura que caminham juntas no processo de aquisição da linguagem.
Estão em jogo, nas escrileituras, os afectos e os perceptos, as funções
e os conceitos3 incididos, respectivamente, pela Arte, pela Ciência e pela
Filosofia. Nas Oficinas, são observados a partir daquilo que é emitido em
matéria de escritura, através de quem lê e escreve, ao se deparar com seus
variados elementos. Trata-se de uma maneira de destituir o senso comum
referente à geração de uma escrita, propondo novas formas de pensar sobre
esse conhecimento, tentando experimentações no ato de ler e escrever,
possibilitando o exercício do pensamento, principalmente, ao agenciar
dispositivos filoartísticos.
As Oficinas são trabalhadoras e inventoras. Elas agenciam autores
visto como os “mal-ditos”, infames e minúsculos. Põe a vida em jogo no
processo de alfabetização, usando-a como alavanca para impulsionar o
desejo e o prazer de ler e de escrever.
As atividades escrileiturais denominam-se, também, Oficinas de
Transcriação (OsT). Tratam, da mesma maneira, de trabalhos que envolvem
a pesquisa, a criação e a inovação. Funcionam “por meio de uma arte menor
e de um planejamento de desnaturação, as OsT constituem um campo
3 Para Deleuze (1997), não somente a arte efetua criações, mas também outras áreas de
conhecimento. Dessa forma, a arte cria afectos, que são os devires, e perceptos, que são
as paisagens produzidas no pensamento. Já a ciência cria funções, que são as relações
estabelecidas em um conjunto, e a filosofia cria conceitos, que são sempre imanentes,
dados a partir do arranjo de elementos escolhidos de um plano.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 70

artistador de variações múltiplas” (CORAZZA, 2011b, p. 53). Operam por


meio dos Afectos, dos Perceptos, das Funções e dos Conceitos, a partir de
obras que outros autores designaram na Arte, na Filosofia e na Ciência,
usando-os como alavanca potente para criar textos e leituras outras.
Segundo Corazza (2011b), a matéria principal das Oficinas é a vida.
Já se tratando de política, o que move suas atividades é a multiplicidade,
funcionando por intermédio de uma resistência contra a mesmice e
os clichês em educação. No que diz respeito aos movimentos que as
desencadeiam, afirma-se que elas devam extrair acontecimentos das coisas,
dos corpos, rejeitando as modelizações, capturando e liberando forças que
agem sobre os estratos, favorecendo a cultura do dissenso: reinventando
novas formas, sentidos e posições de grupos e/ou indivíduos.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


As Oficinas traduzem e transcriam o já dito e o já pensado. Quando
se trata de falar em tradução, não quer dizer cópia, mas uma tentativa de
modificar o original, pois é no ato de traduzir que se “produz correspondências
entre Literatura, Filosofia, Artes, Ciências, Educação” (CORAZZA, 2011b, p.
63). Daí nasce a transcriação, pois, além de se ocupar da criação do novo
sobre o velho, preocupa-se com a informação estética desse original.
Cada participante das OsT é um Didata-Tradutor (DiTra), um escrileitor,
que transcria e transcultura Perceptos, Afectos, Funções e Conceitos,
praticando e produzindo arte, instalando a diferença “como condição de
nosso estar com os outros” (MATOS, 2005 apud CORAZZA, 2011b, p. 67).
O escrileitor cria, durante as OsT, seus próprios procedimentos, que têm
por função propor e desenvolver experimentações para que as Oficinas
funcionem. À vista do que foi apresentado a partir deste estudo, entende-
se que tanto as Oficinas de Transcriação quanto sua Didática da Tradução
pretendem a experimentação por aquele que participa, sendo um escrileitor,
traduz outras maneiras de ler e escrever em meio à vida na experimentação
da estrangeirização4 da língua.
Retomando a questão anterior sobre o lugar e o tempo das leituras e
escrituras na escola, talvez seja interessante pensar não somente o espaço
das salas de aula. É, também, o pensamento, um meio para iniciar-se o
processo que leva a ler e a escrever em que a fabulação seja a promotora de
escrituras que se difere em sua forma, se utilizando das interferências do
meio [não somente escolares] para produzir seu próprio texto. Do mesmo

4 De acordo com Deleuze e Guattari (1977), trata-se de inventar outra língua na própria
língua, variando-a de seu regime vigente.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 71

modo, as leituras acompanham esse movimento, pois está em recíproco


compartilhamento entre a composição de palavras e aquilo que se lê. Trata-
se de um processo de leitura pela escrita e vice-versa. Um está ligado ao
outro. Se o lugar é todo, o tempo é múltiplo porque não se orienta pela
cronologia. Nessa perspectiva adotada de escrileituras, a experimentação
do ler e do escrever passa por espaços heterogêneos, de saberes e de
pessoas que se predisponham a criar suas escrituras em movidas pela
vida na tradução de acontecimentos.

Escrileituras em movimento

A professora retorna aos seus escritos. Faz de tudo para colocar suas
ideias em ação. Propõe um trabalho de escrileitura, pois é a partir dessa

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


configuração conceitual que inicia a investigação aqui proposta. Do projeto,
ela é uma integrante; da vida, também. Percebe, por suas trajetórias
vividas, que há algo que permeia a escrita muito maior que qualquer prática
ou “hábito” de um suposto escrever. Há uma potência que faz emergir a
vontade de escrever, e essa potência produz uma variação de forças de
existir que podem aumentá-la ou diminuí-la em razão dos encontros que
se tecem durante uma vida (SPINOZA, 2007). A escritura se utiliza da
existência enquanto dispositivo para dizer, em palavras escritas, o que a
fala não é capaz de transmitir, puras sensações. Professora-que-fabula cria
cenas, de maneira intensiva, por meio de uma escritura, contendo devires
de um trabalho analítico textual em torno de uma Oficina de Escrileituras
realizada em uma escola. Trata-se dos rabiscos de uma experimentação
para dizer se funciona.

Cena 1

Bate o sinal. Os estudantes adentram os corredores da escola. Barulho


constante: gritos, arrastões de pés, mochilas se debatendo pelas paredes,
assobios, freios de bicicleta, música de rap saindo de um alto falante da
pequena caixa de som comprada no camelô.
Qualquer dia do mês do ano. Tudo normal como de costume. Em local
específico, no fundo do corredor principal, à direita, última peça da escola.
Ali se situava a dita sala de aula, do terceiro ano C do turno da tarde. Algo
aconteceria. Chega o primeiro aluno. Qual sua reação? Susto, risada e um
passo para trás.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 72

Não entra na sala. Retorna para encontrar os demais colegas que se


aproximavam pelo corredor. Avisa-os da composição estrutural daquele
espaço e dos “outros-novos” componentes junto à sua Professora.
Não existiam mais classes. As cadeiras já não estavam mais lá para sentar.
O chão era seu único consolo. E as mochilas, onde colocar? Desespero! Onde
sentar? Desequilíbrios, desajustes. Começava aí um novo currículo do espaço.
A Professora titular adianta: - Terão novas experiências com os “outros-
novos”, coisas diferentes que poucos viram e fizeram. Irão dançar, escrever e filosofar.
Ela ausenta-se da sala, mas antes adverte os “outros-novos”: chamem
se alguém perturbar a aula.
Os estudantes, ainda agitados por não saberem onde ficar, tentam
encontrar o “melhor” espaço no chão, já que as cadeiras não serviam mais
para sentar, estavam em outro lugar que não aquele representado por todos.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


A Professora titular não sabia que ali não ia se “dar uma aula” e, sim, fazer
funcionar um pensamento com as crianças.
Os professores que estavam naquela sala de aula, entre graduandos e
mestrandos, profissionais das Letras, Artes, Dança, Pedagogia, Informática
e Biologia, tinham um objetivo em comum: provocar um pensamento que
produzisse, também, leituras e escrituras em Oficinas de Escrileituras.
Aqueles novos professores apresentaram-se aos alunos, que se
dispersavam com muita frequência. Dúvidas surgiram a partir das suas
observações: Será que o trabalho iria dar certo?
Agitação. Gritos e alvoroços. Não queriam participar das atividades
propostas.
Uma alternativa: contar histórias.
As luzes foram apagadas. Quando os professores começaram as
atividades, um grande barulho percorreu a sala. De repente, um clarão!
Todos fecharam os olhos diante daquela luz estonteante. Mãos nos rostos
para tentar enxergar. Na parede tangente ao quadro negro, surgiu, como
num passe de mágica, um portal.
Daquele estranho “buraco” das profundezas, apareceu um homem
com uma vasta cabeleira cacheada. Todos se assustaram. Ele pediu que
se acalmassem e se apresentou. Era Spinoza, um filósofo do século XVII.
Conversou com os estudantes, falou um pouco de si, de suas aventuras
pensamentais e de “descobrimentos”. Discorreu sobre o afeto, os modos
como o corpo é afetado e que não há possibilidade de conhecer-se a si
mesmo e aos corpos exteriores senão pelas forças que eles produzem uns
sobre os outros (SPINOZA, 2007). Eis o encontro!
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 73

O professor alertou os discentes a que veio: fazê-los experimentar


um passeio. Um trabalho de movimentos. Experimentações do que pode
a leitura, a escritura e o pensamento. Spinoza convidou-os a entrar pelo
portal pensamental. Lugar onde iriam conhecer o espírito como a ideia de
corpo. Um modo de pensar. Os estudantes, meio confusos, admiraram e,
ao mesmo tempo, desconfiaram daquele homem, mas entraram junto com
seus colegas e os “outros-novos”, Nietzsche e Lispector.

Cena 2

Da sala branca
Do portal pensamental, chegaram a uma sala, toda branca: o chão e
as paredes brancas. Como uma sala de hospício ou coisa parecida. O som

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


ao fundo de uma voz dizia: Como teu corpo e tua mente funcionam em ti?
O que é pensar?
Em seguida, Lispector, uma mulher alta de ombros largos, olhos
puxados e grandes, assume a fala para contar sobre uma vida, não humana,
a da galinha Laura. Antes mesmo de ela começar a contar da vida de Laura,
eis que surge...
Laura aparece naquela sala branca. Uma galinha falante e pensante.
Laura pensa sobre a sua vida e conta seu íntimo. De Luís, seu galo marido,
ao seu filho frango, Hermanny. Conta dos dias ruins que passou quando
um ladrão atacou seu galinheiro e do escândalo que fez até acordar Dona
Luísa. Laura, ao contrário de outras galinhas, fala e pensa. Tem sentimentos
também. Ficou triste ao saber que estava velha e que iria servir para um
prato gostoso de frango ao molho pardo. Enganou Dona Luísa, que matou
outra galinha achando ser ela. Ela é bem esperta, pois sabe até mesmo
como os humanos são por dentro: São muito complicados.
- Mas é óbvio que a gente pensa. Sempre! Mas uma galinha não pensa.
Pelo menos, nunca nenhuma nos contou que pensa, disse um estudante.
- Nós só pensemos porque somos violentados por algo que nos tira o
sossego, a professora Lispector retrucou. Para ela, a ideia de que Laura é uma
galinha que fala e pensa lhe tirou o sossego de uma verdade preconcebida
de que os animais são diferentes dos seres humanos. As pessoas fazem uso
do seu pensamento quando conquistam problemas do cotidiano a partir dos
encontros que se consolidam. A galinha Laura proporcionou um encontro
de pensamentos para a criação de outras questões. Criaram um problema
a partir daquilo que é o seu portador: a fala da galinha. Essa fala prendeu
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 74

a atenção das crianças e da própria professora. O movimento de ideias e


troca de discussões a respeito daquela situação vivenciada fez pensar.
O portal pensamental se abre novamente, uma luz amarela irradia.
Os alunos são convidados a entrarem. Despedem-se de Laura e saem da
sala branca.

Cena 3

Da sala amarela
Nietzsche, o “outro-novo”, começa a escrever. Escreve em um quadro
todo amarelo escuro. Escreve sobre aquilo que lhe aflige: o que pode o
corpo? Provocou a pensar sobre a possibilidade de dançar em todas as
suas formas. Isso não pode ser excluído do currículo da educação. Haverá

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


um currículo do espaço escolar onde se permita dançar com o corpo e, por
que não, dançar com a caneta? Tentaremos!
Nesse momento, Nietzsche aperta um botão do lado esquerdo do
quadro e uma música instrumental começa a tocar ao fundo. Os estudantes
são convidados a se movimentar por aquela sala vazia amarela. Começam
a surgir ideias e parecem escrever nas paredes e no chão da sala.
Escrevem aquilo que pensam ser o sentido para além de um senso
comum: do corpo e da alma.
- Corpo é dança! Afirma uma aluna.
- Alma é um vento que controla o corpo, escreve outro aluno.
Nietzsche sorri e continua...
Põe a rodar um vídeo e atenta os alunos a observarem as cenas do
filme. Em língua estrangeira e sem legendas, o filme vai adiante. Cenas
rápidas são lançadas em movimentos corporais dançantes. Billy Elliot
rodopia aos olhos curiosos das crianças, vorazes por novidades.
Uns acharam graça dos movimentos de Billy. Outros se misturavam
ao chão da sala, numa exaustiva tentativa de imitação de seus movimentos.
Corpos debatidos e agitados deram forma à composição corporal estudantil
gerada por aqueles fragmentos cinematográficos. Quem contém o que é
colocado a vazar?
A escrita não apareceu. Pelo menos, no papel. Talvez nos riscos
desenhados no chão pelo salto de cada sapato e tênis no momento em que
se locomoviam pela sala. Aquele espaço e as matérias fizeram escrever,
mas não com a caneta, tampouco o lápis se movimentou. Proporcionou,
isso sim, uma escritura corporal em meio à sala de aula.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 75

A música para. Um sinal é acionado. Como em um sonho, quando o


despertador é ativado, tudo desaparece.
Era hora de voltar para aquele espaço-estreito. Para a Professora
titular de todos os dias. Copiar e responder as soluções corretamente.
Ler e escrever em folhas branquinhas de papel ofício ou de caderno de
espiral. Voltavam a seguir o “plano” de aula da Professora. Ficar em silêncio.
Imobilizar o corpo-crianceiro. Corpo que pede vida na escola. Potência!
Todos os “outros-novos” se despediram dos estudantes e da escola,
retornaram a seus afazeres. Naquele dia um movimento de mudança, mesmo
que pequeno, houve na sala. Os alunos voltaram para seu dia a dia escolar.
Aprenderam que aprender é infinito e que só pensamos quando criamos
nossos próprios problemas, fabulando outros modos de ser e de pensar
na dispersão dos corpos, inventando, lendo e escrevendo nossas próprias

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


histórias. Aprenderam, também, que ler e escrever é muito mais do que
copiar, é inventar a própria vida em meio às linhas de uma folha de papel.

Pode juntar? Aprendendo...

Para aprender, é preciso estar atento, pensa a professora. Uma


atenção não identificável como uma faculdade inerente aos seres
humanos, mas, sim, um estado de estar à espreita, conforme cita Deleuze
(1997) em A de animal no Abecedário. Cada ser constrói arranjos com as
coisas às quais se vincula em sua singularidade, uma materialidade
exposta e virtualidade acometida, que têm o poder de potencializar e
despotencializar a vida. Aprender está no entre. Acontece pelo meio, entre
o não saber e o saber (DELEUZE, 1988, p. 271). Aprender se dá no fazer,
no experimentar outras formas de se relacionar com o pensamento, seja
lendo, escrevendo ou criando.
Por meio de um procedimento transversal, o conceito de aprender é
vislumbrado por outra configuração pensamental. Um aprender filosófico,
poético, anônimo. Transversal porque atua por uma zona rizomática que
não é estabelecida por nenhum modelo estrutural ou gerativo (DELEUZE;
GUATTARI, 1995). Agindo dessa maneira, é possível agenciar-se a vários
campos do conhecimento sem priorizar um em detrimento de outros.
Filosófico porque se ocupa de criar outras imagens no pensamento
sobre o que se presume que seja o aprender e como alguém aprende. Um
aprender poético porque acessa um tempo virtual, a-histórico e fabulístico,
permitindo que se efetivem os encontros tanto a partir da literatura quanto
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 76

das artes. E, por fim, um aprender anônimo, pois não se enquadra em


perspectiva científica alguma, não possui uma identidade nem significado,
não opera por métodos, é um clandestino que vaga pelas desertas cidades
abandonadas do velho oeste curricular.
Escrever exige esforço, concentração e uma pitada de loucura. Uma
professora que se atreva a tal ousadia é uma docente em potencial, pois
escrever “é um processo” (DELEUZE, 1997, p. 11) que cresce a cada
percurso de transformação. Por onde e de que forma seduzir o movimento
de escrever? Como possibilitar a “abertura ao inusitado, à raridade e ao
desejo de escrever”? (CORAZZA, 2011a, p. 7).
O procedimento de agenciar convoca possibilidades diferentes de
produzir pensamento e escrileituras. A Arte é envolvida para facilitar o
movimento de criação. Com ela, é possível ver, ouvir e sentir a obra: Francys

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Alÿs e seu bloco de gelo5 (1997); Frida Kahlo e suas surpreendentes pinturas
que retratavam e compartilhavam a dor e o sofrimento de uma vida. O
que reverbera a necessidade de criar tal arte? A emergência de expandir
um desejo a conduzir blocos de sensações em quem os experimenta. Já a
Filosofia cria conceitos. Isso auxilia na produção de imagens de pensamento
em relação àquilo que se quer escrever: uma poesia, uma música, uma
estória, etc. Eles são produzidos a partir de um plano de imanência, local
onde se recolhem os elementos desse plano e o seu arranjo produz o
conceito. A filosofia trata de orientar o pensamento a enfrentar os problemas
construídos. Assim, o conceito se refere a um acontecimento no pensamento
que é mobilizado por aquilo que inquieta. Na Ciência, são criados os
functivos, que tratam da relação entre limite e variável, são as funções que
conduzem à desaceleração do caos (DELEUZE; GUATTARI, 1996).
Tendo em vista tal intenção em agenciar elementos diversificados
para produção de escrileituras, é benevolente pensar naquilo que serve
de material para a coisa escrita: Tudo serve! “Tudo aquilo que nos leva
a coisa nenhuma, dejetos e coisinhas sem importância, enfim, todas as
coisas jogadas fora podem convergir para o mesmo ponto, o ponto inicial
da escrita” (COSTA, 2010, p. 9).

Por entre as folhas de um biografemário: o abecedário

De volta aos seus escritos, a professora tece considerações. Descobre-


se na sala de aula, sua sala, seu espaço de constituição onde compila
5 Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ZedESyQEnMA>.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 77

devaneios e experimentações com os estudantes. Retorna à infância. À


sala da pequenina casa que transformara em um espaço de criações para
composição de suas histórias em quadrinhos. Gostaria de tornar especial,
também, a sua sala de aula e, para isso, sabia que um longo preparo seria
a chave para que as aprendizagens se consolidassem. Não sabia disso na
época em que fazia tentativas de escritora.
Crise de identidade. É quando a ponta do lápis já não consegue
descrever o que se é de fato. Descobre o biografema. Uma composição da
vida pela escritura a partir do ínfimo de uma história apresentada pelas
circunstâncias que a sucedem, “o biografema é apresentado como um ‘traço
biográfico’, como o ponto (punctum) que coloca o observador para fora da obra
histórica propriamente dita” (COSTA, 2010, p. 28). Um movimento de ler a

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


própria vida como um texto e menos como um apanhado de fatos históricos
e cronológicos, tornando-se a constituição do invisível. Talvez, o biografema
sirva para uma exploração das diversidades observadas de um olhar atento à
vida para a construção de uma estética docente. Para a professora, seu reflexo
no espelho não retratava mais a realidade desejada, não respondia mais ao
que ela era: boa professora e muito inventiva? Clicherizada e individualista?
Não havia respostas, apenas o silêncio de uma tarde de inverno.
Pensativa, a professora observa a sala de aula vazia, minutos antes
de seus alunos e alunas adentrarem aquele espaço. Letras do alfabeto
dispostas na parede retratavam a situação. Ela os olhava. Todos enfileirados
em determinada ordem com sua respectiva representação: A de abelha, B
de bola, C de caderno...
Das significâncias queria se desfazer. Começou a compor escrituras6
de sua vida a partir do conjunto de letras que a língua dispusera para criar
e pensar. Gostaria de fazer outra coisa com as letras que não reconhecê-las
em um estrato linguístico. Não enxergava mais a importância das letras.
Dessa forma, foi à procura por si mesma.
A letra A poderia servir para muitas outras funções e não apenas
representar, já não era mais da abelha, do avião ou da aranha. Era de Amor,
de criação e de aprender. A de animal (DELEUZE; PARNET, 1997), enquanto
sua relação com o mundo: de estar à espreita. Usava essa letra para pensar
em como escreve e o que a faz escrever. É preciso estar atenta aos signos
que passam nas relações que se estabelecem em uma vida.

6 Escritura fabulística inspirada em O Abecedário de Gilles Deleuze. Disponível em: < http://
stoa.usp.br/prodsubjeduc/files/262/1015/Abecedario+G.+Deleuze.pdf>.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 78

Pensava sobre a letra B. A professora não gostaria de ver o B apenas


representado pela baleia ou pela bola. Queria vê-lo fazendo sentido na
família dos bem dotados na escrita, das belas combinações, da liberdade
na linguagem e, também, na bebida (DELEUZE; PARNET, 1997) por
potencializar a vida na medida em que a revigora, desde que, com
precaução, consiga ficar em alerta para não deixar-se escravizar por ela
ou em função dela. Escrever como um vício a uma bebida. Embriagar-se
nas tramas do texto e das composições históricas agenciadas para produzir
sentido naquilo que escreve ao “incisar ritmicamente uma superfície
virgem (sendo o virgem o infinitamente possível)” (BARTHES, 2004, p. 293).
Já a letra C deixou de acompanhar o coco ou a cuia para passar a dar
sentido à cultura como condição primeira para um aprender. A professora

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


admira a cultura não para abastecer o cérebro a uma reserva de saber
(DELEUZE; PARNET, 1997), mas para usá-la a favor dos encontros. Não
somente encontros com os estudantes ou outras professoras, mas encontros
com arte, com conceitos filosóficos, livros literários, etc. Parte à espreita dos
encontros com coisas disponíveis pela cultura, e que isso produza o pensar,
ao ir se alimentar de outras fontes para além daquelas que já a mantêm.
Observa a letra D. Vê nela um potencial: a produção do desejo,
principalmente ao reler seu biogramerário, lugar onde compõe o indizível, no
esgotado tempo que lança memórias e aprendizagens a partir da escritura.
Abandona o dado, o dia e o dedo. Forma um conjunto de tudo o que a move
a pensar sobre o aprender, deseja esse aprender, não aquilo que falta, mas
aquilo que se produz nela: o currículo, a cultura, a reprovação, os métodos
e as teorias desenvolvidas pelas psicologias da educação. Desbrava um
aprender em filosofia. Constrói um agenciamento em torno do desejo de
aprender, na experimentação de outras formas de ler e escrever. Arquiteta
um território onde possa ver e falar daquilo que inspira, mas também para
sair dele na geração de outros novos.
O elefante não representa mais a letra E. Para a professora, o E é
espaço de criação, esperança de chegar ao que deseja na transformação
de um aprender que inventa seu próprio modo de partir e de entrar pelas
circunstâncias que se efetivam. Lugar de falar da infância [enfance], ou
melhor, de escrever a partir dela. Escrever por ela, e não sobre ela. É muito
mais do que tornar-se uma memorialista, é escrever algo da vida que se
passa em si, um devir-criança. Aprender a ler, talvez, para a professora, seja
comunicar, fazendo com que seus estudantes apreciem a beleza de um texto
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 79

a datar de uma infância que não é a sua ou particular de alguém, mas que
é um modo de inventar a infância do mundo (DELEUZE; PARNET, 1997).
A letra F já não podia mais ser usada para representar apenas a fada,
era mais do que isso. A professora criou um conto que não tinha fadas,
construiu uma fidelidade com sua escritura que se transformava. Esse
vínculo só foi possível na percepção dos signos que emanaram de uma
relação, seja na escola, ou na vida particular (DELEUZE; PARNET, 1997).
A letra G não representava mais o gato para ela e sim a grande Ideia,
de estar engajada em algum movimento de esquerda [gauche]. Acreditava
que poderia expressar-se de maneira a ser vista por um maior número de
pessoas. Aos poucos, foi-se dando conta de que isso não era suficiente e que
necessitava estar engajada em si mesma em um pensamento operatório

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


a partir do que desejava ser enquanto professora. Precisava ter ideias.
Necessitava de algo que lhe fizesse coçar a cabeça: um problema!
H não era a horta apenas, mas sim a História ou estória de vida que
se constituía nas folhas de seu biografemário. Uma vida imanente, plural.
Uma história que é dela e de todo mundo. Uma multiplicidade que é criada
a partir de um processo de tradução poética de uma vida já vivida. Não se
trata de tradução, mas uma composição do velho sobre o já existente na
articulação de novos recomeços. A tradução é vista, nessa perspectiva,
como um processo de criação (CORAZZA, 2011b).
I não queria mais ser a igreja. Queria outra Ideia. Do pecado à redenção.
Da traição aos métodos e estruturas da linguagem às inventivas maneiras
de escrever. A busca da loucura do pensamento transposto em palavras.
Queria encontrar uma Ideia para expressar na escritura que exaltasse um
complexo de sensações a quem os leria.
A letra J não servia mais para representar o jabuti e, sim, inspirava
o jeito de escrever, exaltando uma alegria [joie]. Devia partir dessa alegria
para preencher uma potência no seu trabalho, uma docência que originasse
resistência e vida. Deixar de lado aquilo que entristece para preencher uma
professoralidade em potencial (DELEUZE; PARNET, 1997).
A letra K não entendia muito bem, pois era uma das letras que não
constava naquele alfabeto, será que nada significava? Começava a gostar
das palavras descompassadas, excluídas de um todo universal. Era como
se todas as outras letras manipulassem o que ela escreveria, mas a letra K
não. Pensava nesse problema da letra. Uma letra que não tinha significado
representado naquele momento de exposição de sala de aula. A professora
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 80

fazia uma tentativa de busca aos problemas, assim como Kant [filósofo
prussiano da era moderna] que criou, em seu tempo, muitos problemas.
Admirava Kant não por sua filosofia crítica, especificamente, mas por tratar
da praticidade da filosofia, operando conceitos com base em problemas da
existência humana. A letra K fez pensar em Kant.
A letra L não podia representar mais a lata. Para a professora, l estava
para literatura, vida em essência. A criação de personagens em suas
escrituras possibilitava exercer um pensamento em torno daquilo que
queria dizer sobre determinado conceito em educação, a aprendizagem,
por exemplo. A literatura possibilita a formação de um pensador, seja ele
filósofo ou professor. Os personagens literários atuam na dimensão de um
conceito, pois testemunham em favor da vida (DELEUZE; PARNET, 1997).

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


A letra L lhe inspirava escrever.
M de mala já não servia, era pobre de ideias. Queria mais coisas para
tirar dessa mala: invenções, fabulações, atualizações e uma boa saúde. Não
há literatura sem fabulação, pois ela retribui com uma saúde que expressa
um povo menor que procura resistir a uma doença [maladie]. Doença que
aprisiona e inibe a escuta à vida. A literatura serve para a professora como
uma possibilidade de “abrir um sulco para si” (DELEUZE, 1997, p. 15). A
saúde fraca minimiza a potência de agir. Dessa forma, a letra M lhe fez
pensar na doença.
Na letra N, buscava pensar no nó da escritura. Os pontos de ligamento
entre pensamento e ação, interferidos ou não pelos signos mundanos,
posicionados no limite da própria ignorância para ter o que dizer e o que
escrever (DELEUZE; PARNET, 1997). A letra N também lhe provoca a pensar
sobre o mecanismo cerebral, estudado pela neurologia na medicina. O que
acontece com o cérebro quando escrevemos? Não era sua especialidade,
mas a curiosidade imperava e era manifestada em suas criações. Talvez
nós são firmados nesse território que é o cérebro, lugar de possibilidades
de exaltações, fendas, composições, extremidades nervosas, associação e
consolidação de ideias.
O de ovo? Que coisa mais sem graça. A professora desencadeou uma
função para a letra O: iria servir para ouvir os barulhos, os sussurros e
até mesmo os silêncios que se instalavam durante suas aulas. Haverá
aprendizado na composição de um silêncio? Queria escrever sobre isso
que a desequilibrava e era a partir desse sistema que recuperava algo
novamente: uma ideia, uma palavra. Apenas os gritos de uma ópera faziam
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 81

pensar na possibilidade de um não silêncio que provoca, ao mesmo tempo,


uma espécie de desequilíbrio quanto há o canto fora do tom. A professora
avalia sua trajetória formativa em torno dos desequilíbrios no qual sempre
algo é readquirido durante o processo. Um estilo, quem sabe.
P não era mais para representar o papagaio. Mesmo que gostasse
da repetição do papagaio, ele não servia para representar essa ideia.
Procurou na função de ser professora aquilo que não imaginava que
poderia transcriar por meio de suas aulas. Considerava uma aula a matéria
em movimento onde um tanto de coisas acontecem (DELEUZE; PARNET,
1997). Dessa forma, precisava de inspiração, de uma longa preparação para
oferecer aos seus estudantes algo que, de alguma forma, fosse percebido
por eles: um signo.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Q representava, naquele alfabeto exposto na sala de aula acima de
sua cabeça, o quati. Pobre animal nem sabia para o que estava sendo
usado: uma mera representação entre significado e significante. O Q para
a professora destacava-se na produção de questões que movimentassem
seus pensamentos. Não queria criar interrogações, pois elas não têm o
poder de fazer pensar, mas queria elaborar boas questões que dessem o
que escrever.
A palavra rato era a representante da letra R. Mas a professora queria
produzir na sua escritura a resistência, essa era sua necessidade: liberar
a vida de uma professora das prisões da mesmice, dos clichês, da falta do
que pensar, por meio da escrita.
S era representado pelo sapo. Mas essa letra inspirava trabalhar
com a ideia de estilo [style] como um devir da língua. Precisava de uma
composição para aquilo que escrevia. Uma transformação da língua-mãe
em outra língua. Pensava em suas escrituras como uma alternativa de
variar as formas estruturadas de operar com a linguagem escrita de forma
menos odiosa. Desvendava um modo de escrever que se fazia poético,
atingindo um limite ao impregnar seu próprio ritmo ao texto. Atentava
para o estilo que se formava.
T de tatu não serve mais para a professora. T agora seria o tudo. Todas
as percepções que pudessem estar concentradas na sua escritura para
ressoar o afeto era o que desejava. Ainda pensava no estilo. Agora sob corpo,
como uma variação das suas atitudes. O esporte proporciona a criação de
um estilo ao corpo, comprometendo a sua estrutura física preconcebida.
É possível, talvez, acreditar nos estilistas, sejam escritores ou esportistas,
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 82

como grandes inventores, pois, além de desfazer-se dos modelos vigentes,


criam novas táticas jogadas no campo inserido. A professora, inspirada
nos estilistas, pelo abecedário, procura inventar novas formas de produzir
aprendizagens e estratégias para escrever.
A letra U representava o urubu. A letra U projetava-se para o sentido
de único, de singularidade e menos do Uno. Não gostaria de representar
um universal, modo de talhar a escrita que sirva de modelo. Repudiava
os modelos, almejava as multiplicidades, porque é a partir delas que é
subtraído, eliminando, assim, o universal. Almejava a criação na sua forma
mais complexa, pois sua necessidade partia da interrogação: o que uma
professora cria?
V estava exposto na parede e configurava uma vaca. Para a professora,

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


a letra V estava ligada à viagem. Desejava uma viagem imóvel. Mergulhava
na literatura, nos personagens e suas inspiradoras vidas para traçar seu
caminho de aprendizagem. Preferiria a solidão para isso. Naquela sala de
aula, estava só. O vento que entrava pelas janelas emperradas soprava um
ar nebuloso. Uma voz a absorvia inteiramente; um sonho ou um fantasma?
Foi na caneta e no papel que se transcriou a escritura. Um devir-professora-
nômade pela escritura.
W não aparecia naquele abecedário. Uma falha? Um menosprezo?
Será que essa letra não apresentava serventia para a Língua? Mais uma
letra descompassada, perdida da ordem. Uma letra interessante. Uma letra
simulacro /v/ [som da letra V].
A letra X representava o xale. Para a professora, aí estava o grande
mistério: o elemento X da questão: Por onde aprendemos? O ainda
desconhecido na educação: Por onde deixamos de aprender?
A letra Y, da mesma forma que a letra W, não comportava uma
organização ou a organização não a comportou por ser dinâmica, veloz e
sem precedentes, uma letra simulacro /i/ [som da letra I] do indizível.
Do Z de Zazá para z do ziguezague animalesco e de um zumbido. Tudo
o que lhe emite um zumbido a faz entrar em alerta, por isso a vontade de
ver a letra Z no sentido de um barulho da vida animal dos insetos [ZZZzzzz].
Esse grito aguça sua pele e a faz ir até o limite da audição. Tudo o que a
provoca até o limite a faz vibrar. Procura um procedimento de variação
da própria língua, pela escritura, que leva a linguagem a um alcance
demarcado (DELEUZE; PARNET, 1997). Como criar seu estilo a partir das
letras simulacros? Invenções de uma professora-nômade-que-fabula.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 83

Textos complementares

REDON, Valéria Lopes. Alfabetização pós-construtivista em tempo de pandemia. Cadernos


de Gênero e Diversidade. v. 6, n. 2, abr./jun. 2020.

SCHWANTZ, Josimara Wikboldt. Sobre os Métodos... um aprender. In: SCHAWANTZ,


Josimara Wikboldt. Biografemário de um aprender: escrileituras em meio à vida.
Pelotas: Ed. UFPel, 2017.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


apêndices
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 85

Apêndice A

ATIVIDADE DA UNIDADE I
ROTEIRO PARA A PRODUÇÃO DA CARTA

Após a leitura dos textos indicados na bibliografia complementar, da


unidade I, e discutidos em nossa aula pela manhã, os(as) professores(as)
cursistas individualmente irão produzir uma escrita de carta para o seu Ser
alfabetizador. A carta é um diálogo com uma escrita próxima e, ao falar do Ser
alfabetizador, poderão problematizar as ideias de alfabetização, de criança, de
ensino, de aprendizagem e de outras que constituem suas formas de pensar
e de agir enquanto professores(as) que alfabetizam ou alfabetizaram.
Dessa forma, iremos mostrar como pode ser iniciada a escrita da carta.

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


CARTA AO NOSSO SER ALFABETIZADOR

Nome do município, em pleno verão amazônico de 2022.

Cara _________, Como vai? Espero que não se assuste ao receber esta
carta, pois ainda não tínhamos conversado de forma tão próxima. Mas
estamos aqui para dialogar com você sobre nossas ideias e reflexões que nos
mobilizam a pensar sobre você perante a formação docente que alfabetiza
nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 86

Apêndice B

ATIVIDADE DA UNIDADE II
ROTEIRO PARA ANÁLISE DO FILME “E BUDA
DESABOU DE VERGONHA”

Após assistir ao filme, reunir em duplas para a problematização das


ideias apresentadas e para a produção de uma biocolagem.
A biocolagem é a produção de uma imagem a partir de outras imagens,
textos, elementos vivos ou não, que, cortados, rasgados, sobrepostos e
colados têm a intenção de gerar algo que diga sobre o desejo mobilizador
do aprender a ler e a escrever que pode ser posto em visibilidade por um(a)

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


professor(a) alfabetizador(a)-artista.
Seguem algumas questões para auxiliar no processo de criação:

- O desejo mobilizador de Bakhtai em aprender a ler e escrever, mesmo


diante das dificuldades que enfrenta para estar na escola.

- Com um caderno comprado com muito esforço e um batom, diante da


proibição de uma sociedade afegã, com a descrença do vizinho Abbas,
Bakhtai vai à escola. O que é preciso para aprender a ler e escrever?

- No caminho da escola, Bakhtai enfrenta um grupo de meninos (os


filhos da guerra) que decidem maltratá-la por seu desejo de ir à escola.
De que modos o devir-revolucionário de Bakhtai acontece e possibilita
fabricar novos modos de existência do ser criança?
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 87

Apêndice C

TRABALHO FINAL
ROTEIRO DO PLANO DE ATUAÇÃO DOCENTE

Movimentados pela perspectiva do Alfabetizador Artístico, realizar de


forma individual ou em duplas a escolha de uma temática do cotidiano. A
partir da temática escolhida deverão criar um plano de aula que a articule
interdisciplinarmente com as áreas de conhecimentos trabalhadas nos anos
iniciais, configurando, assim, uma produção processual de alfabetização.
Dessa forma, pontuamos alguns itens fundamentais para a produção
deste plano:

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Nome da Escola:
Professores(as) cursistas:
Temática do cotidiano:
Turma:
Data:
Introdução/contextualização da temática do cotidiano: Uma breve
contextualização da temática escolhida pela dupla ou pelo cursista,
apresentando a relação que o cotidiano tem com o sujeito criança e sua
interação com o conhecimento e a vida.

Objetivos: Definir objetivos que contemplem a aprendizagem da criança


e as relações de um currículo integrador.
Geral:
Específicos: Lembrar que cada objetivo específico corresponde a um
momento da aula.

Experimentação interdisciplinar: Deverá compor o processo de escolha


das atividades e todo o processo didático que será constituído durante a
atuação (o passo a passo da aula). Lembrar da arte e do cotidiano como
centro do processo alfabetizador.

Avaliação: Pontuar o tipo de avaliação e os critérios estabelecidos.


Referências: Considerar todo texto citado no decorrer do plano e aqueles
que foram utilizados para consultas.
Alfabetização, letramento e práticas interdisciplinares nos anos iniciais do ensino fundamental 88

Eixo 1: Conhecimentos/saberes pedagógicos da docência nos anos iniciais do ensino fundamental


Curso de Especialização Saberes e Práticas para a
Docência nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental:
Língua Portuguesa e Matemática

Você também pode gostar