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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ – UESPI

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE – CCS

BACHARELADO EM PSICOLOGIA

FLÁVIA ALESSANDRA LEITE DIAS

RESENHA CRÍTICA DO CONTO “O ALIENISTA” (MACHADO DE ASSIS)

TERESINA – PIAUÍ

2022
Publicada em 1882, O Alienista, obra escrita por Machado de Assis

aborda temas relacionados a mente humana e questões de normalidade e

insanidade. A história é narrada em terceira pessoa e tem como protagonista

Dr. Simão Bacamarte, um médico muito conceituado no Brasil e na Europa.

Após passar um tempo no exterior, Dr. Bacamarte volta sua terra natal,

Itaguaí, e casa-se com D. Evarista, uma viúva a quem ele julga não ser

bonita e simpática, contudo, uma boa mulher para gerar bons filhos, o que

acaba não ocorrendo.

Dessa maneira, Dr. Bacamarte acaba se concentrando somente em

estudos da mente humana e começa a ficar cada vez mais obcecado pelo

tema. A partir disso, o médico inicia um projeto de construção de uma clínica

com o objetivo de estudar a loucura e as doenças da mente. Intitulado de

Casa Verde, o local seria um abrigo destinado a internação de pessoas

consideradas “loucas” na cidade. O médico afirma ter como propósito definir

o que é loucura, descobrir suas causas e seus variados graus e,

principalmente, descobrir sua cura, conforme descrito no trecho abaixo.

“Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os


furiosos e os mansos; daí passou às subclasses,
monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto feito,
começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos
de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as
simpatias, as palavras, os gestos, as tendências; inquiria da
vida dos enfermos, profissão, costumes, circunstâncias da
revelação mórbida, acidentes da infância e da mocidade,
doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma
devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor.
E cada dia notava uma observação nova, uma descoberta
interessante, um fenômeno extraordinário. (MACHADO DE
ASSIS, 1882)”
Posteriormente, como resultado dessa obsessão em estudar as

características do comportamento humano, Dr. Bacamarte passa a enxergar

a loucura em vários indivíduos, até aqueles vistos como sãs pela sociedade

local. Nesse sentido, um a um, os habitantes da cidade vão sendo

diagnosticados e colocados na Casa Verde. Por conseguinte, mais de 75%

da população local se encontra no abrigo, causando uma grande revolta na

cidade. Entretanto, a manifestação denominada “Revolta dos Canjicas” não

gerou tantas repercussões posto que os próprios manifestantes também

acabaram sendo internados na Casa Verde.

Ao perceber falhas em seu critério, o protagonista decide libertar essas

pessoas e rever sua teoria. Em seguida, o médico conclui que loucos são

aqueles que não possuem nenhuma falha de caráter, dessa maneira, decidiu

prender na Casa Verde aqueles que tinham regularidades em suas ações e

eram considerados “normais”. Contudo, mais uma vez, sua teoria se prova

errada e Dr. Bacamarte solta todos esses indivíduos. Ao entender ser o único

a pensar fora do padrão na cidade, o médico chega a conclusão ser o único

“anormal” de Itaguaí. O conto finaliza com o protagonista se internando

voluntariamente na Casa Verde e se trancando no local, falecendo dezessete

meses depois.

Atrelando elementos da obra aos conteúdos aprendidos na disciplina,

pode-se discutir a cerca da fronteira entre o normal e o patológico para a

psicopatologia. As noções de normalidade para a psicologia vêm, desde

sempre, sofrendo alterações visto que existem muitos fatores, como

contextos sociais, culturais e psíquicos que podem interferir no

comportamento de um indivíduo. Dessa forma, existe uma dificuldade, por


parte de profissionais, de estabelecer com exatidão a definição de saúde e

doença mental, criando-se vários critérios distintos de normalidade. No

referido conto, observa-se uma tentativa do protagonista em classificar essa

divisão entre loucura e sanidade, utilizando diferentes critérios para ditar

essas concepções errôneas sobre o normal e o patológico, acarretando a

internação e isolamento de pessoas consideradas loucas por ele.

Ademais, vale ressaltar sobre a maneira absolutista empregada pelo

psiquiatra da obra ao diagnosticar os moradores da cidade. A primeira tese

do protagonista sobre o que seria loucura era definir que, loucos eram

pessoas que apresentavam algum desvio social e de caráter visível a

sociedade, ou seja, a loucura estaria associada a diferença. Segundo

Canguilhem (1966), nem toda anomalia é patológica. Diversidade não é

doença. O anormal não é, necessariamente, patológico. A citação a seguir

destaca os ideais de Simão Bacamarte:

“(...) Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim,


Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por
outros termos, demarquemos definitivamente os limites da
razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as
faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia. (MACHADO
DE ASSIS, 1882)”.

Dalgalarrondo (2018) afirma que o diagnóstico só é útil e válido se for

visto como algo mais que simplesmente rotular o paciente, o autor declara,

ainda, que esse tipo de utilização do diagnóstico psiquiátrico seria uma forma

precária, questionável e não propriamente científica, e funcionaria apenas

como estímulo a preconceitos que devem ser combatidos. Desse modo,

constata-se que não houve, por parte do protagonista, um aprofundamento do

conhecimento sobre o diagnóstico em saúde mental uma vez que ele apenas
ditava e encarcerava esses indivíduos sem nenhum tipo de comunicação e

compreensão psicológica dos casos.

Além disso, outro ponto válido de ser abordado diz respeito a

medicalização da vida. Dalgalarrondo (2018) define medicalização como um

conceito que se refere a transformação de comportamentos desviantes em

doenças ou transtornos mentais, implicando a ação do controle e poder médico

sobre as condições transformadas em entidades médicas. Em “O alienista”,

Simão Bacamarte declara que sua ideia era criar uma teoria e um remédio

universal que se aplicasse a realidade por completo. Destarte, nota-se que o

médico pretendia usar a terapia medicamentosa como opção de tratamento da

população da Casa Verde, patologizando qualquer comportamento dos

sujeitos.

Machado de Assis também nos traz uma forte critica as instituições

psiquiátricas do Brasil ao apontar a Casa Verde como um local de apreensão

dos loucos. De acordo com Foucault (1993), os manicômios não tinham por

proposta suprimir a doença, “mas sim mantê-la a uma distância sacramentada”,

purificando a cidade da presença dos indesejados. Logo, a sociedade

procurava se proteger dos possíveis perigos que os loucos causavam,

retirando a liberdade destes. Nesse sentido, Machado nos expõe os malefícios

dessa prática e se estabelece como um dos nomes importantes da luta

antimanicomial.

Em suma, o conto machadiano realiza uma importante crítica ao

cientificismo positivista que dispõe o médico como proprietário da razão e do

discurso cientifico, além disso, aborda temas relevantes como a medicalização,

o diagnóstico muitas vezes injusto da loucura e o encarceramento e


segregação de pessoas consideradas fora do padrão de normalidade. Através

de um humor irônico e ácido, “O alienista” nos faz refletir sobre questões que,

mesmo 140 anos depois, ainda são pertinentes e atuais. No decurso de poucas

páginas, o autor consegue construir personagens bem aprofundados e

analisar, de forma bem estruturada, as nuances da sanidade e da loucura.


REFERÊNCIAS

CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. 1966. 6º edição. ed. rev.


Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2009.
DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos
mentais. 3ª.ed. - Porto Alegre: Artmed, 2018.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 3º edição. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1993.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. O alienista (1882). São Paulo: Martin
Claret, 2003.

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