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A aula de matemática numa perspectiva etnomatemática

Kátia Cristina de Menezes Domingues


Mestranda da FEUSP e integrante do Grupo de Estudo e Pesquisas em Etnomatemática

Resumo
Este trabalho propõe de um lado uma discussão sobre o currículo e os livros didáticos que,
muitas vezes, impõe o que os professores têm que ensinar e o que os educandos devem aprender,
sem levar em consideração os anseios, o contexto político, social e cultural dos alunos. De outro
lado, o trabalho apresenta os resultados empíricos de uma experiência em sala de aula
desenvolvida com olhar etnomatemático, em torno de situações contextualizadas e, por isso de
maior interesse para os alunos. O Programa etnomatemático procura delinear alguns possíveis
caminhos que valorizam os desejos, a cultura e o meio social dos alunos, no sentido de que o
aluno poderá usar de forma mais adequada os conhecimentos matemáticos quando ele conseguir
fazer relações no âmbito do que é conhecido para alcançar novos saberes. A matemática, neste
trabalho, foi utilizada como ferramenta para que o aluno pudesse articular seus conhecimentos na
resolução de problemas, confirmando o pressuposto de que todas as disciplinas são importantes e
inter-relacionadas, destacando assim, a contextualização e a transdisciplinaridade com ênfase na
cultura para se obter a transcendência.

Desenvolvimento

No ensino da matemática, deparamo-nos com dois problemas, entre outros: o primeiro, estaria no
contexto da matemática formal que, talvez, não seja tão importante para a maior parte dos estudantes, pois
nem todos serão matemáticos no futuro. Um segundo problema, pode estar na visão que há uma única cultura
- essa única interpretação independe das quantidades espaciais das pessoas – a Matemática formal/acadêmica,
acarretando a desvalorização e a exclusão das outras leituras matemáticas que não pertencem a cultura
dominante.
As aulas de matemática não favorecem o aluno a desenvolver relações entre o mundo e a história dessa
disciplina. Nem tampouco ajuda o aluno a desenvolver um olhar crítico frente a matemática. É preciso que o
aluno perceba quando a matemática é usada para favorecer a classe dominante e quando a matemática é usada
para a vida, para a pessoa exercer a cidadania, para desenvolver uma atitude crítica ao analisar cálculos,
estatísticas e ao ler um artigo. A Etnomatemática procura justamente mostrar a possibilidade de valorizar o
conhecimento do aluno, da sua cultura, do seu meio social para uma aprendizagem significativa e crítica da
matemática. O que seria o Programa de Etnomatemática?
“...etno é hoje aceito como algo muito amplo, referente ao contexto
cultural, e portanto, inclui considerações como linguagem, jargão,
códigos de comportamento, mitos e símbolos; matema é uma raiz
difícil, que vai na direção de explicar, de conhecer, de entender; e
tica vem sem dúvida de techne, que é a mesma raiz de arte e de
técnica. Assim, poderíamos dizer que etnomatemática é a arte ou a
técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos
culturais.” (D’AMBRÓSIO - 1998:5)
“A etnomatemática pode ser vista como um campo de
conhecimento intrinsecamente ligado a grupos culturais e a seus
interesses, sendo expressa por uma (etno) linguagem também ligada
à cultura do grupo, a seus ethnos. Atualmente, na sociedade
complexa onde vivemos, onde a maioria dos grupos culturais estão
ligados uns aos outros e uma dada pessoa pertence a vários grupos

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culturais, as etnomatemáticas produzidas expressam esta
complexidade do entrelaçamento cultural.” (BORBA - 1993:43)

Para evitar esse problema de especialistas ditarem o que todos devem estudar, pode-se pensar na
diversidade da cultura da sala de aula e estudar as diversas matemáticas: indígena, africana, portuguesa, de
carpinteiro, de pedreiro, de garçom, de dona de casa etc. Num primeiro momento parece uma proposta
atraente e democrática para os diversos grupos. No entanto, poderíamos nos deparar novamente com os
especialistas matemáticos de cada cultura e estaríamos novamente ditando o que estudar, como estudar e a
ordem dos conteúdos. Outro problema que surgeria seria se os africanos se interessassem apenas por
problemas africanos, os carpinteiros por problemas de carpinteiros, e assim por diante obtendo guetos
educacionais. Podendo novamente excluir a maior parte das pessoas, classificando como privilegiados, apenas
aqueles que ultrapassassem os limites de aprendizagem de sua própria cultura.

“À escola cabe cuidar para que a teia de significações seja


reforçada aqui, refinada ali, sempre com o recurso ao
enriquecimento das relações ou à construção de novos nós como
feixes de relações.” (MACHADO - 1996:192)

Talvez, se considerarmos o conhecimento como uma rede de significados que se entrelaçam de acordo
com os interesses das pessoas para a realização de seus projetos possamos facilitar a inter-relação das culturas
e favorecer assim, uma aprendizagem com compreensão. Nesta perspectiva podemos dizer que, por um lado,
nosso trabalho docente torna-se sem sentido se não houver uma meta a ser alcançada, pois sem objetivos,
mesmo que haja o acesso às informações, ocorre que muitas vezes não sabemos o que fazer com elas. Por
outro lado, quando pensamos em rede, é preciso que a ação seja orientada, porém não existem planos seguros
ou um caminho único, assim, o planejar não deve ser como uma cartilha a ser aceita e seguida cegamente
como tentam fazer os livros-texto e o currículo. O planejar envolve principalmente a reflexão do professor e
para que ocorra uma aprendizagem significativa, ele deve procurar levar em consideração as preocupações e
os meios cultural e social dos alunos. Através do diálogo com o educando a elaboração do plano de aula torna-
se singular. É essa aula diferenciada, com troca de experiências, resultante do diálogo contínuo entre professor
e aluno que a Etnomatemática estimula. A Etnomatemática valoriza também a troca de experiências entre as
diversas áreas do conhecimento, incentivando a contextualização e a transdisciplinaridade para uma
aprendizagem com real compreensão de significados que formará pessoas que reflitam criticamente e que
sejam capazes de fazer articulações entre os conhecimentos novos e antigos.
De modo geral, ao projetar a sua ação, o professor que procura levar em consideração os interesses, o
meio sócio-cultural, as angústias e o conhecimento primeiro do educando pode se deparar com o imprevisível
e em geral, o imprevisível assusta, traz insegurança. Os educandos podem perguntar coisas que nós, como
professores, não sabemos, pois a realidade é muito mais complexa do que os assuntos idealizados e
formatados nos livros-texto.
A criação de planos singulares passa a ser um desafio para a Etnomatemática na escola, pois é difícil
para os professores ter o tempo necessário para a elaboração e criação de planos que levem em consideração
as preocupações do aluno – devido, talvez, ao grande número de aulas que o professor é obrigado a cumprir
para poder sobreviver, ele não tem tempo de conhecer a comunidade em que a escola está inserida e nem o
próprio educando.
Os educandos - e seus pais - estão acostumados com métodos de ensino que os conduzem sem
reflexão, em que os conhecimentos são isolados e fragmentados do contexto sócio-cultural - o professor traz
tudo pronto, passa o conteúdo na lousa, explica e não há diálogo entre ele e os educandos; os temas são
abordados dissociadamente por cada disciplina e não há um enfoque favorecendo a visão global do assunto
para o educando. De modo geral, os problemas são discutidos de forma limitada, sob um único ponto de vista,
o que gera uma aula monótona e sem sentido para os envolvidos, professor e aluno. As aulas, muitas vezes,
são monótonas porque o currículo é desenvolvido por especialistas que, na maior parte das vezes, nunca

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estiveram à frente de uma sala de aula e ditam o que estudar. Os produtores de livros-texto decidem como
devemos ensinar e o tempo a ser gasto em cada matéria. Com isso, os professores se vêem de mãos atadas
pelos projetos da classe dominante que pretende manter de alguma forma o insucesso escolar dos alunos para
justificar as desigualdades sociais (SACRISTÁN e GÓMEZ, 2000). O ensino das disciplinas isoladamente,
tratado como um processo natural e rígido, sugere que é impossível haver outra maneira de se adquirir o
conhecimento. Os professores saem da universidade com a idéia de que quanto mais conteúdo se ensinar,
melhor para o educando - sem se preocupar com o significado disso para o aprendiz. Muitas vezes, o professor
tem a boa intenção de cumprir o currículo para que o educando possa passar no vestibular, no entanto, essa
boa intenção, freqüentemente, é ingênua e isso pode causar frustração no professor, uma vez que os educandos
não conseguem aprender com compreensão e apenas decoram os assuntos para a avaliação. Esta incapacidade
de aprender resulta em uma baixa auto-estima para o educando. A classe dominante de algum modo deseja e
condiciona esse fracasso escolar utilizando a justificativa de que as oportunidades são dadas igualmente para
todos os educandos, mas alguns não têm aptidão para os estudos, principalmente para matemática, matéria
considerada abstrata e de difícil compreensão. A matemática, dessa forma, é vista como uma selecionadora
natural no ambiente escolar, mais ainda quando deixa de levar em conta o conhecimento cultural do aluno.
Nota-se que o atual método de ensino não satisfaz ao homem contemporâneo, que deve ser capaz de realizar
analogias do conhecido para o desconhecido e articular de forma criadora o seu conhecimento.
A Etnomatemática, que valoriza a cultura, a contextualização e a inter-relação dos conhecimentos das
diversas disciplinas, pode ser considerada uma disciplina sem fronteiras porque sua proposta extrapola as
disciplinas e os limites da escola criando situações ricas para a educação dos alunos. Propomos a
Etnomatemática como um programa pedagógico e fazemos um convite para o professor refletir sobre a sua
prática e tentar aumentar o seu espaço de autonomia e criatividade junto aos seus educandos. A
Etnomatemática procura transformar o comportamento do professor a fim de transformar o ensino. Não
adianta apenas produzir materiais pedagógicos inovadores se o professor mantiver a mesma atitude
conservadora e ingênua, reproduzindo, muitas vezes, a estrutura da classe dominante. Como podemos formar
cidadãos críticos se não o somos?
Infelizmente, a Etnomatemática, por ser um programa de investigação novo - portanto pouco
conhecido – é mais uma linha de pesquisa e de discussão científico-filosófica do que uma linha de pesquisa
em sala de aula. Como exige um olhar holístico - transdisciplinar -, depara-se com o sério problema da má
formação dos professores, o que dificulta a possibilidade de um trabalho reflexivo e dinâmico.
A seguir, relatarei de forma resumida uma experiência em sala de aula que buscou atender aos
conceitos da Etnomatemática - assuntos contextualizados, transdisciplinaridade e valorização dos desejos,
anseios e conhecimentos dos alunos.
Os professores de matemática, ciências e educação física preocupados com o grande número de alunos
obesos e sedentários do colégio e percebendo também o interesse dos alunos pelo assunto, resolveram
desenvolver um projeto sobre obesidade e diabetes infantil.
Os alunos pesquisaram sobre as doenças em centros especializados, internet, bibliotecas e consultaram
familiares e amigos. A área de ciências trabalhou os conceitos de obesidade e diabetes e suas prevenções; a
área de educação física desenvolveu a conscientização sobre a importância da prática esportiva para um corpo
saudável; a área de matemática foi resposável pela pesquisa de receitas culinárias saudáveis, trabalhando
com medidas de massa, volume, capacidade, transformações e relações dessas medidas a partir das
medidas usadas diariamente pelos alunos como “um dedo de”, “uma colher de”, “uma xícara de” que
estão inseridas em nossa cultura e que não são valorizadas na escola. Essa divisão de tarefas citada foi uma
mera formalidade, pois os assuntos foram abordados globalmente, uma matéria complementou a outra durante
todo o projeto.
Em grupos de três pessoas, criaram receitas saudáveis com a ajuda dos pais (saladas, vitaminas,
lanches naturais, sucos...), prepararam-nas e tiraram fotos para a confecção de um pequeno livro. Para a
confecção desse livro, os grupos fizeram uma síntese do que conheciam sobre as doenças. Cada aluno deveria,
portanto, registrar todas as informações que conseguisse, trazendo para a aula todas as informações
pertinentes à pesquisa, inclusive o conhecimento de seus familiares. De modo geral, todos os alunos se

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envolveram nessa atividade com dedicação e entusiasmo. Ao preparar um lanche, o aluno pôde quantificar as
calorias ali existentes, além de fazer analogias de medidas como uma pitada de sal ou um punhado de tomates
com as medidas de massa que encontramos nos livros-texto, valorizando a cultura popular existente no
preparo dos alimentos. Pode-se dizer que quando a criança consegue estabelecer relações de semelhança do
conhecido para o não conhecido ela está conseguindo ampliar sua intelectualidade e sua gama de significados.
Na verdade, um dos grandes objetivos do trabalho foi reverter a denúncia feita por Lima:

“Este isolamento da escola relativamente às dinâmicas quotidianas do


social, que ela tanto gosta de preservar defende-a do complexo, do
imprevisto, do acompanhamento do presente em marcha, e defende o
privado, o previsível, o ordenado, uma suposta pureza incontaminada por
relações sociais maculadas por interesses privados.” (LIMA, 1999, p.168)

Durante o desenvolvimento do projeto, surgiram perguntas como: “quantas gotas contém uma colher
de chá de suco de limão?”, “quantas gotas contém uma colher de café de baunilha?”, “litro e quilo têm alguma
relação de medida?”. São perguntas que geralmente não aparecem nas aulas tradicionais de matemática
porque, na maioria das vezes, elas são moldadas, engessadas e não permitem que o aluno participe e reflita
sobre os assuntos, limitando sua curiosidade. Nesta fase do trabalho, os alunos se sentiram motivados a
relacionar as diferentes unidades de massa da cultura popular com as apresentadas nos livros, o que
proporcionou a análise de várias situações-problemas. O grupo percebeu que a matemática popular não é pior
que a acadêmica, que isto depende muito da situação-problema, ou seja, do contexto experimentado.

Considerações Finais

Os objetivos que traçamos ao elaborar o projeto foram atendidos no decorrer do processo, entre estes
destacamos:
a) prevenir e conscientizar as crianças e seus familiares de tais doenças;
b) levar o aluno a questionar seus hábitos alimentares e seu modo de vida;
c) fazer emergir idéias matemáticas de modo contextualizado, ou seja, encaminhar a educação escolar
numa perspectiva etnomatemática.
O trabalho foi trandisciplinar porque permeou todas as disciplinas sem valorizar nenhuma em especial.
O aluno foi o sujeito do processo de ensino-aprendizagem, pois todas as pesquisas giraram em torno de seus
interesses valorizando o seu meio e sua cultura. O resgate do conhecimento popular proporcionou aos alunos
autonomia na pesquisa matemática e na superação das eventuais dificuldades em sua prática, porque
construíram conhecimentos significativos. Da experiência e do contexto apresentados pode-se afirmar que a
matemática não pode mais ser vista de modo desvinculado do mundo real.
Dessa maneira, podemos propor o Programa de Etnomatemática como base teórica e filosófica para a
elaboração de um currículo crítico, político, transdisciplinar e de grande valorização cultural. Sabemos que há
muito a ser pesquisado sobre essa complexa temática, no entanto, esperamos que esse texto venha, de alguma
forma, a contribuir para as investigações futuras.

Bibliografia

ABDOUNUR, Oscar João. Matemática e Música. São Paulo: Editora Escrituras, 2003.

BORBA, Marcelo C. Etnomatemática e a cultura da sala de aula. São Paulo: Revista: A Educação
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D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Elo entre as tradições e a modernidade. Minas Gerais:
Editora Autêntica, 2001.

D’AMBROSIO, Ubiratan. Transdisciplinaridade. São Paulo: Editora Palas Athena, 1997.

D’AMBROSIO, Ubiratan. A Era da Consciência. São Paulo: Editora Fundação Peirópolis, 1997.

DOMINGUES, K.C. Menezes. O Currículo com abordagem etnomatemática. São Paulo: Revista SBEM
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DOMITE, Maria do Carmo S. Notas sobre a formação de professores e professoras numa perspectiva da
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora Paz e Terra, l996.

FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Editora Cortez, 1993.

LIMA, Rosa, STOER, Steve, e outros. O que se aprende na escola: culturas e conteúdos de saberes.
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MACHADO, Nílson José. Epistemologia e didática. São Paulo: Editora Cortez, 1996.

SACRISTÁN, J. Gimeno e GÓMEZ, A . I. Pérez. Compreender e Transformar o Ensino. São Paulo:


Editora ARTMED, 2000.

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