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qualidade da bebida

Processamento

Efeitos da fermentação na
qualidade da bebida do café
Sara Maria Chalfoun e Ana Paula Fernandes*

Anna Netto

Frutos do cafeeiro: sabor e o aroma da bebida resultam de constituintes químicos, da ação de enzimas e do processamento das sementes

A planta de café produz frutos com polpa complexos da bebida café resultam da Dentre esses compostos, 29 já foram
doce e fina, cujo interior possui duas presença combinada de vários consti- identificados como responsáveis prin-
sementes, os grãos do café, base utili- tuintes químicos voláteis e não voláteis, cipais pelo aroma característico do café
zada pela indústria cafeeira. Arbusto dentre eles os ácidos, aldeídos, cetonas, torrado e moído (Sarrazin et al., 2000).
pertencente ao gênero Coffea e à família açúcares, proteínas, aminoácidos, ácidos A qualidade da bebida café, que se
Rubiaceae, as principais espécies do graxos e compostos fenólicos, incluindo caracteriza pelo sabor e aroma, é influen-
ponto de vista agroeconômico, dentre as também a ação de enzimas, em alguns ciada por diversos fatores pré e pós-co-
diversas existentes, são a Coffea arabica destes constituintes, que produzem lheita que garantem a expressão final da
(café arábica) e a Coffea canephora (café reações e compostos que interferem no qualidade do produto. Dentre os fatores
robusta ou conilon). O sabor e o aroma sabor experimentado na prova de xícara. pré-colheita destacam-se a espécie e a

visão agrícola nº 12 JAN | JUL 2013 105


qualidade da bebida

Figura 1 | Equipamentos e instalações variedades de café, o local do cultivo, envolve o grão e a ele se adere. Isso não
visando ao processamento do café: a maturação dos grãos, a incidência de quer dizer que não existam implicações
separador hidráulico (A); descascador
de cerejas (B) e tanques de despolpa- microrganismos e os efeitos das adu- quanto às características sensoriais do
mento (C) bações. Em relação aos fatores de pós- produto final, nesta etapa. Há diferenças
-colheita, destacam-se as fermentações genéricas que afetam os atributos senso-
Soares, 2011

enzimáticas e microbianas, os processos riais dos cafés processados “via úmida”


de armazenamento do café beneficiado, ou “via seca”, ambas requeridas por dife-
os blends (misturas de grãos arábica e rentes segmentos do mercado: os primei-
canefora) e a torração dos grãos. ros apresentam sabor mais suave, com
menos corpo e elevada acidez, enquanto
Métodos que os “arábicas” naturais possuem mais
Microrganismos podem estar presentes, corpo e adstringência e menor acidez.
naturalmente, em todas as etapas pré Originam, portanto, bebidas com diferen-
(A)
e pós-colheita do café, com influencia tes características, mas que, quando bem
na qualidade final da bebida, seja pela preparadas, podem apresentar qualidade
degradação de compostos presentes nos igualmente superior.
Nasser, 2010

grãos, seja pela excreção de metabólitos. No cacau, em contraste com o café, a


A incidência de microrganismos se deve, fermentação é requerida para desenvol-
principalmente, à colheita de uma mistu- ver o sabor do produto que, em grande
ra de diferentes estágios de maturação e parte, ocorre pela ação de enzimas, em
ao processamento “via seca” adotado em vez de atividade microbiana. No café,
grande parte do Brasil. A preparação de também, a fermentação tem um efeito
cafés “via úmida”, a partir dos frutos ma- benéfico sobre a qualidade; mas, ultima-
duros e com eliminação rápida da fonte mente, tem-se demonstrado que o café
de fermentação, pode resultar, se bem lavado mecanicamente (sem fermenta-
processada, em cafés de boa qualidade. ção) pode ser de qualidade comparável
O processamento “via seca” se refere ao produto fermentado. O processo de
ao método pelo qual os frutos são seca- fermentação pode ser desenvolvido sob
(B) dos integralmente, obtendo-se, então, duas formas: fermentação aeróbica (cha-
os cafés denominados não lavados ou mada de fermentaçao seca) e fermenta-
naturais, encaminhados imediatamente ção aneróbica (fermentação sob água).
para secagem após, a colheita e a separa- O objetivo final é permitir a remoção da
Nasser, 2010

ção hidráulica. Já o processamento “via mucilagem do grão com pergaminho, sem


úmida” se refere a vários métodos nos ocorrência de fermentações indesejáveis
quais os grãos são separados mecanica- (por exemplo, as fermentações butíricas
mente da casca do fruto fresco (despol- e propiônicas).
pamento), antes da secagem, e que pode Cabe ao produtor escolher a melhor al-
ou não incluir a etapa de fermentação ternativa para a remoção da mucilagem,
(Figura 1). A decisão sobre qual método considerando-se que baixas tempera-
adotar depende de fatores econômicos turas médias, durante a fermentação,
(C) ou ambientais, tais como áreas sujeitas à requerem período mais longo para que a
elevada umidade relativa do ar, durante mesma se complete, o que é indesejável
o período de colheita e secagem do café. para o caso da fermentação com água ou
Devem-se considerar, ainda, as exigên- fermentação “via úmida”, e a fermentação
cias ou preferências dos mercados ao seca é mais confiável. Indiscutível é que a
qual a produção se destina. fermentação mal conduzida (ou se ocor-
rer naturalmente, sob condições desfa-
Fermentação voráveis) pode resultar em perdas desas-
O café é fermentado para facilitar a trosas à qualidade, independentemente
remoção da camada de mucilagem que do método de processamento utilizado.
Em casos extremos, quando o período de Figura 2 | Microrganismos associados a frutos e grãos de café: leveduras asso-
maturação do fruto ocorre sob condições ciadas a frutos de café (A) e colônias do fungo Aspergillus ochraceus, cultivadas
em meio CYA, obtidas de grãos de café (B)
ambientais muito favoráveis aos micror-
ganismos, fermentações indesejáveis

Chalfoun e Batista, 2003


podem se iniciar nos frutos super ma-
duros (overipe), ainda na planta. Nesse
caso nenhum investimento realizado
nas operações pós-colheita irá restituir
a qualidade do produto final já compro-
metida na planta.
Do ponto de vista de qualidade, a
etapa de fermentação por “via úmida”
ou anaeróbica exige conformidade com
determinados critérios: em primeiro
lugar, a massa de grãos deve incluir uni-
formemente café em pergaminho, com
um mínimo de grãos esmagados, cascas
e café não despolpado; em segundo lugar,
a fermentação deve ser concluída, assim
que possível, depois da suficiente degra-
dação da mucilagem; em seguida, depois
da lavagem, a mucilagem deve ser com- (A)

pletamente removida, antes da secagem.


O produto descascado, produzido sem
qualquer tentativa para se remover a mu-

Lima, C. A.
cilagem, sendo os grãos descascados ime-
diatamente secos, podem proporcionar
um café da mais alta qualidade, esta uma
técnica de processamento relativamente
recente, desenvolvida no Brasil, mas que
exige condições específicas de manejo
do café durante a secagem para alcançar
os objetivos de qualidade pretendidos.
Deve-se considerar que a mucilagem ade-
rida aos grãos pode representar um risco
de desenvolvimento de microrganismos,
que agem detrimentalmente à qualidade (B)
do produto.
Um biodesmucilador foi desenvol-
vido pelo Programa de Inovação da cado como um acelerador do processo final, em relação às características de
Universidade Federal de Lavras (UFLA), de remoção da mucilagem do café seja sabor, aroma e, mesmo, as relativas à
juntamente com a Empresa de Pesquisa pelo processamento “via úmida”, com segurança.
Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), fermentação tradicional em tanques,
cujos testes estão sendo finalizandos ou no descascamento dos frutos cereja. Aspectos microbiológicos
para um start up de seu lançamento Entende-se que, dessa forma, o risco de O resultado de um processo de fermen-
e comercialização, por meio da Tbio comprometimento da qualidade será re- tação é consequência do que se passa e
soluções biotecnológicas, que integra o duzido pela aleatoridade com que os mi- das condições que ocorrem durante a fer-
Sistema de Incubadoras da Universidade. crorganismos se associam aos processos mentação. A mucilagem é constituída por
O produto de natureza enzimática, que já fermentativos, nem sempre favoráveis materiais pécticos, incluindo protopecti-
teve patente requerida, poderá ser apli- à preservação da qualidade do produto na (33%), açúcares redutores – incluindo
qualidade da bebida

glicose e frutose (30%) –, açúcares não entretanto, parece haver um limite de -isoborneol e geomina, respectivamente.
redutores – tais como sacarose (20%), biomassa presente acima da qual os Esses compostos são produzidos, predo-
celulose e cinzas (17%) (Wrigley, 1988). A fungos mesofílicos podem sobreviver, minantemente, por espécies de Eurotium
maior parte dos microrganismos se ori- em meio à fermentação. Outro aspecto e por alguns outros Actinomicetos. As
gina da própria mucilagem, sendo alguns relevante relativo à participação dos fermentações podem ocorrer no fruto
provenientes da água de processamento microrganismos no processo de fermen- do café desde o seu amadurecimento,
e de cascas, que passam, incidentalmente tação do café se refere à produção de ainda na planta, até a etapa de secagem,
– entre outros. Entretanto, as condições enzimas pectinolíticas ou pectinases. e podem ser favorável ou desfavorável
nas quais eles se desenvolvem propor- As pectinases são responsáveis pela à qualidade sensorial e de segurança do
cionam um excepcional poder de pressão degradação das substâncias pécticas, produto final, a depender das condições
seletiva em torno de microrganismos para fins nutricionais, e são produzidas ambientais nas quais ocorrem. Produtos
fermentativos, que podem sobreviver principalmente por bactérias, fungos, le- inovadores à base de enzimas obtidos de
sob condições de baixo pH. A mucilagem veduras e plantas superiores. A hidrólise microrganismos permitem a aceleração
fresca tem um pH de 6,5, que cai rapida- da pectina, importante aspecto do pro- do processo de desmucilagem, portanto
mente para um mínimo de 4,1 a 4,3. Como cesso de remoção da mucilagem, é obtida promissores para a melhoria do processo
ocorre tipicamente na fermentação dos pela ação sinérgica de algumas enzimas, de remoção dessa substância.
alimentos, a microbiota nativa (wild) do incluindo a pectinametilesterase, endo
*Sara Maria Chalfoun é pesquisadora da
material cru muda rápida e completa- e exopoligalacturonase, pectato liase e
Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas
mente para espécies que se encontram pectina liase (Gummadi e Panda, 2003). Gerais (Epamig) (chalfoun@epamig.ufla.br)
presentes, mas raras, na comunidade O papel dos microrganismos na alte- e Ana Paula Fernandes é doutoranda em
associada aos frutos. ração da qualidade sensorial do café, Ciência dos Alimentos, bolsista da Fepamig
(anynhafbio04@yahoo.com.br).
Em geral, a fermentação pode ser ca- no processamento “via úmida”, tem sido
racterizada por um misto de leveduras/ matéria de debates. Dos vários defeitos
bactérias fermentativas. Kloekera api- atribuídos a problemas ocorridos duran-
culata (=Hansenisporeapiculata =Sac- te a fermentação, os mais importantes
charomyces apiculatus) e Hansenispore são “gosto fermentado”, “ardido” e “verde
uvarum são relatadas como predomi- escuro”. Uma vez que a fermentação pode
nantes nas populações de leveduras, ocorrer no fruto intacto, especialmente
juntamente com outras leveduras tais se colhido e não processado imediata-
como Pichiakluyveri (=P. fermentans) e mente, ou até mesmo com os frutos ainda
Kluyveromyces marxianus (=Candida na planta, os mesmos defeitos podem se
kefir = C. bulgericus) (Figura 2). O aspecto originar quando falhas ocorrem indepen-
bacteriano da fermentação é conduzido dentemente da etapa de fermentação.
por bactérias ácido láticas, algumas O gosto fermentado possui nuances de
Enterobacteriaceae e Bacillus. As bac- aldeídos frutais. Já o gosto ardido é se-
térias produtoras de enzimas pectino- melhante à cebola e o grão verde escuro
líticas mais comuns são Pseudomonas confere um acentuado gosto desagra-
(P. fluorescens, por exemplo) e Erwinia dável. Grãos “verde escuros” têm sido
(E. carotovora, por exemplo). Dessas, atribuídos ao desenvolvimento de Ba-
somente Erwinia é fermentativa, sendo cillus brevisor, altos níveis de bactérias
a presença de Pseudomonas difícil de ser ácido-láticas, e pode estar estreitamente Referências bibliográficas
GUMMADI, S. N.; PANDA, T. Purification and bio-
demonstrada no líquido fermentado. Em associados a substâncias derivadas de
chemical properties of microbial pectinases
geral, as bactérias ácido-láticas têm sido ácido metil butanoico, ésteres de ácido – a review. In: Process Biochemistry, Oxford,
relatadas como mais numerosas do que ciclo hexanoico e compostos orgânicos v.38, n.7, p.987-996, Feb. 2003.
as Enterobacteriaceae. contendo enxofre (S). SARRAZIN, C. et al. Representativeness of coffee
A condição de baixa tensão de oxigênio Alguns compostos indutores de possí- aroma extracts: a comparison of different
extraction methods. In: Food Chemistry, v. 70,
e elevada atividade determinam que es- veis defeitos são indicativos das fontes de
p. 99-106, 2000.
pécies oxidativas e mesofílicas de Asper- microrganismos que os produziram. Os
WRIGLEY, G. Coffee. Longman Scientific Techni-
gillus produtoras de ocratoxina A (OTA) odores de mofo e de terra, por exemplos, cal and John Wiley & Sons, Inc. New York.
não sobrevivam ao meio de fermentação; são atribuídos principalmente a 2-metil- 1988. 639 p.

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