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Poder Judiciário

JUSTIÇA FEDERAL
Seção Judiciária do Rio Grande do Sul
10ª Vara Federal de Porto Alegre
Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 600, 7º Andar - Ala Sul - Bairro: Praia de Belas - CEP: 90010395 - Fone: 3214-9215

AÇÃO CIVIL PÚBLICA Nº 5053279-66.2021.4.04.7100/RS


AUTOR: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
AUTOR: DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
RÉU: JAIR MESSIAS BOLSONARO
RÉU: UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO

SENTENÇA

RELATÓRIO

Versam os autos sobre ação civil pública que tem por objeto a condenação, tanto da União, como
do ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro, a adotarem medidas de reparação, indenização e de cessação de danos
extrapatrimoniais, morais coletivos e sociais, em razão de atos discriminatórios praticados pelo segundo réu,
mediante declarações públicas que configuram preconceito, discriminação e intolerância contra pessoas negras.

Os fatos apontados na inicial respeitam a manifestações públicas de juízo depreciativo sobre


cidadão negro, durante falas do ex-Presidente nos arredores do Palácio da Alvorada e também em rede social na
chamada “live do Presidente”. Relatam, os autores, que o ex-Presidente utilizou expressões pejorativas
referentes ao cabelo, no estilo black power, de um dos cidadãos integrantes do público a quem se dirigiu nos
arredores do Palácio, comparando o cabelo a um “criatório de baratas”, ciente de que estava sendo filmado e que
o vídeo circularia em redes sociais. Outros comentários também foram feitos pelo ex-Presidente, a saber: “olha
o criador de baratas, como tá essa criação de baratas?”; “Você não pode tomar ivermectina, vai matar todos
os seus piolhos"; ainda, observando o cabelo comentou: “tô vendo uma barata aqui”. No programa “live do
Presidente”, com a presença do cidadão alvo das falas ofensivas (que declarou não se sentir ofendido), o ex-
Presidente referiu-se ao fato como uma “piada”, mas não recuou de sua intenção de promover estigmas raciais
pejorativos e fez novas declarações ofensivas e estigmatizantes.

Perante tais fatos, os autores sustentam que as condutas do ex-Presidente extrapolam os limites da
ofensa individual e específica ao cidadão presente em suas manifestações, pois o discurso proferido configura
ofensa, discriminação e intolerância a qualquer pessoa negra. Aduzem que o uso do black power constitui
símbolo da resistência do movimento negro e que o ex-Presidente o transmutou em algo sujo, execrável e
discriminatório. Têm que o  réu Jair Bolsonaro não proferiu apenas piadas infelizes, mas praticou ato
discriminatório, ressaltando que a declaração de não-ofensa do cidadão envolvido não descaracteriza a prática
racista. Ressaltam que "A partir do temerário comportamento do Presidente da República de praticar, incitar
e/ou induzir a discriminação racial, denota-se a configuração da intencionalidade, ou seja, averigua-se em suas
condutas o propósito de prejudicar a estima e a estética da população negra, concedendo a esta um tratamento
desigual, menos favorável, motivado por um critério de diferenciação juridicamente proibido baseado no
fenótipo: o racismo."

Apontam violação aos preceitos da Constituição Federal postos nos arts. 1º, II e III e 3º, I e IV,
além de transgressão a termos de Tratados e Convenções dos quais o Brasil é aderente. Considerando o alcance
e a gravidade das declarações, sustentam que a responsabilidade do ex-Presidente da República decorre dos
próprios termos das manifestações públicas de juízo depreciativo à população negra. Já a responsabilidade da
União decorre dos termos do art. 37, § 6º, da Consituição Federal, pois o Presidente é o representante máximo
do Poder Executivo. A omissão da União em relação aos fatos alcança maior relevância, face ao reiterado
comportamento discriminatório do ex-Presidente da República, que terminou por incentivar e fomentar condutas
semelhantes de outros agentes públicos. Têm por evidenciada uma discriminação institucional indireta exercida
pela União, representada pela figura da Presidência, em afronta aos princípios democráticos e enfraquecimento
do princípio da igualdade.

Diante deste panorama de posturas discriminatórias, sustentam que a situação gerou danos morais
de ordem coletiva, os quais não pressupõem sofrimento, dor, ou abalo psíquico, pois configuram-se pela
violação aos direitos fundamentais da sociedade. Configurado o dano, postulam sua indenização mediante
reparação pecuniária. Em relação ao réu Jair Messias Bolsonaro, pedem, ainda, reparação extrapatrimonial
mediante a imposição de retratação pública às falas dos dias 04 e 06 de maio e 08 de julho de 2021 e exclusão
dos vídeos respectivos das redes sociais, além de abster-se de promover novas declarações ofensivas de cunho
preconceituoso.

Pugnam pelo deferimento de tutela de urgência, requerendo:


 

No mérito,
pedem o julgamento de
procedência, com a
convolação das medidas
antecipatórias em
definitivas, além da
condenação do réu Jair
Messias Bolsonaro a
publicar, às próprias
expensas, em veículos de
mídia e comunicação
oficial, retratação das
ofensas contidas nas falas
e na "live". Também
requerem a condenação
da União à obrigação de
fazer, consistente na
realização de campanha
publicitária de combate
ao racismo, de âmbito
nacional, com duração
mínima de um ano, com
valor não inferior a R$
10.000.000,00, utilizando
recursos orçamentários destinados à publicidade e propaganda oficial e, finalmente, a condenação de ambos os
réus ao pagamento de uma indenização por danos morais coletivos no valor mínimo de R$ 5.000.000,00, pro
rata, valor a ser revertido para o Fundo de Direitos Difusos a que alude o art. 13 da Lei nº 7.347/85, devendo
recair a indenização da União sobre verbas orçamentárias de Comunicação Social da Presidência da República.

Ante o pedido liminar, os réus foram intimados para manifestação, com prazo de 72 horas.

A União apontou ausência de interesse processual, alegando que a Administração Pública se pauta
pelo princípio da legalidade, sendo desnecessária uma ordem judicial para determinar o que a lei já impõe, no
sentido da coibição da prática de atos discriminatórios. Em sede preliminar, ainda apontou inépcia da inicial,
pela indeterminação dos pedidos, notadamente porque os autores pretendem a retirada de conteúdos da rede
mundial de computadores sem indicar seu endereço eletrônico (URL), ou os links de origem do material,
dificultando, inclusive, a ampla defesa. Nesta linha, argumentou com sua ilegitimidade passiva, sustentando que
"os arquivos de vídeo que acompanham a petição inicial não chegam a indicar a conta pessoal ou institucional
em que os mesmos foram veiculados, constituindo-se como reprodução de veículos de imprensa ("Foco Brasil"
e "Rádio Jovem Pan"), sobre os quais a União não possui ingerência ou responsabilidade." Ressaltou que as
imagens e a reprodução dos conteúdos em diversos veículos (onde permanecerão arquivadas), torna inócua
eventual ordem de remoção de contas pessoais ou institucionais vinculadas à Presidência da República. Nestes
termos, postulou a extinção do feito, sem apreciação do mérito. Quanto ao pedido antecipado, lembrou da
vedação legal de sua apreciação, por esgotar o objeto da lide (art. 1º, §3º, da Lei 8.437/92). No mérito, negou
que as condutas descritas na inicial apresentem viés discriminatório, encontrando-se no espectro da liberdade de
expresssão (art. 5º, c'c art. 60, §4º, CF), até porque delas não se extrai qualquer indicativo de repressão,
supressão, dominação ou eliminação de pessoas negras. Salientou que o cidadão a quem dirigidas as falas negou
a caracterização de qualquer ofensa, de modo que a ausência de dano individual implica na ausência de dano
coletivo. Sobre o pretenso histórico de ofensas do réu Jair Bolsonaro, por atos praticados enquanto Deputado
Federal, informou que a denúncia criminal sequer chegou a ser recebida (Inquérito 4.694/DF). Salientou que foi
por ato do mesmo réu que a Convenção Interamericana contra o Racismo foi ratificada após ser aprovada pelo
Decreto Legislativo nº 01/21. Finalizou ressaltando que não há urgência a amparar a pretensão liminar, a qual,
inclusive, do modo como requerida (proibitiva de manifestações), implicaria censura prévia.

O réu Jair Messias Bolsonaro, à sua feita (MANIF1, evento 13), salientou que toda demanda se
assenta num único fato: a manifestação jocosa do Requerido, em vídeos publicados na internet, em relação ao
cabelo de um de seus apoiadores. Disse que os autores apontam esse fato único, equivocadamente, como
violação a direitos difusos, olvidando-se que todos os comentários versaram sobre o volume dos cabelos de um
cidadão, sem qualquer relação com traços biológicos envolvendo a cor da pele, e não foram proferidos em razão
dela, pois centraram-se em uma característica personalíssima do indivíduo, que sequer é privativa da população
negra. Nesta linha, apontou a inadequação da via eleita, pois a ação veio fundada em suposta violação à honra e
dignidade de um grupo racial (art. 1º, VII, da Lei 7.347/85), sem atentar que no caso não houve qualquer ofensa
que pudesse atingir a coletividade, porque discute-se apenas uma situação específica, referente a um direito
subjetivo personalíssimo de um único indivíduo. Apontou vício de forma da Ação Civil Pública, pois "o objeto
formador do núcleo da presente ação não se define enquanto direito difuso ou coletivo, não se configura como
violação a honra e dignidade de grupo específico e, portanto, não justifica a opção pela presente via
processual." Inexistente dano coletivo, alegou a ilegitimidade ativa do MPF e da DPU, pois não podem
patrocinar interesses individuais. Apontou ausente o interesse processual nos pleitos liminares, porque partem do
errôneo pressuposto de que as palavras do réu foram discriminatórias e porque solicitam ordem judicial para
determinar o que a própria lei já impõe. Quanto ao pedido de obrigação de fazer, consistente na ordem para
exclusão, das redes sociais do requerido, de manifestações discriminatórias, refere sua indeterminação, a qual dá
causa à inépcia da inicial, pois o pedido, além de genérico, está sujeito a interpretações subjetivas. Findou
requerendo a extinção do feito sem apreciação do mérito, ou, no mínimo, a rejeição dos pleitos liminares, à
míngua do periculum in mora  e da probabilidade do direito.

Indeferidas as pretensões antecipatórias, foram dadas vistas aos autores, sobre as preliminares
levantadas pelos réus, ao que responderam nos termos do Parecer do evento 23, afirmando que a mera previsão
legal de uma conduta ilícita não tem o condão de impedir sua prática, exigindo intervenção judicial. Sustentaram
que a lei não exige a indicação da URL, bastando a identificação do conteúdo, de modo a permitir a localização
do material que se pretende ver retirado da rede mundial de computadores, cabendo aos réus demonstrar que não
abrigaram ou permanecem abrigando as referidas falas em sites e redes sociais. Relativamente às alegações de
inadequação da via eleita e ilegitimidade ativa, alegaram que abarcam conteúdos de mérito, sobre o qual
reprisaram os argumentos da inicial, não sem salientar que o direito à liberdade de expressão não pode se
sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana e que as falas foram aptas a atingir todo um grupo racial.

Citados, os réus contestaram. A UNIÃO (CONTEST1, evento 33) renovou as preliminares


elencadas em sua manifestação anterior (ausência de interesse; inépcia da inicial por indeterminação dos
pedidos e ilegitimidade passiva), salientando a necessidade de que os conteúdos, cuja remoção se pretende,
devem ter especificada sua origem, ante a necessidade de sua localização (art. 19 da Lei 12.965/14). Também no
mérito valeu-se dos mesmos argumentos, adicionando a alegação da inviabilidade legal de alocar verba do
orçamento para a campanha referida na inicial, por invadir seara de competência do Poder Executivo, fraudando
regras do Direito Financeiro, subtraindo da deliberação democrática eventuais objeções à proposição escolhida
pelos autores. Ao final, reforçou a inexistência de um dano coletivo, que não pode ser presumido, sendo que os
autores não apresentaram quaisquer provas de sua ocorrência. Pugnou, assim, pela extinção, ou pelo julgamento
de improcedência.

Réplica, pelos autores, no evento 38.

Também o réu Jair Messias Bolsonaro contestou reprisando alegações anteriores (evento 40,
CONTES1). Ressaltou a inexistência de dano de ordem coletiva e a ausência de provas do mesmo, o qual não
tem por presumido in re ipsa. Alternativamente, apontou a abusividade do valor indenizatório postulado.
Finalizou pedindo a extinção, ou a improcedência.

Réplica a esta contestação no evento 44.

Nada mais sendo requerido, vieram conclusos os autos para sentença.

FUNDAMENTAÇÃO

Esta é uma ação cujo julgamento, seja a nível de apreciação das preliminares, ou do mérito, exige a
exata delimitação dos fatos que são contestados, das circunstâncias e local onde foram praticados. Nestes
termos, retira-se da própria inicial que os autores apontam como discriminatórias as seguintes falas do réu Jair
Messias Bolsonaro, enquanto Presidente da República, as quais têm como aptas a caracterizar atos de
discriminação racial:

1) Nos arredores do Palácio da Alvorada, no local que à epoca ficou conhecido como
"Cercadinho", foram proferidas as seguintes falas, todas dirigidas a um de seus apoiadores, o cidadão Maicon
Sulivan, que usa cabelo no estilo black power:

- Nos dias 04 e 06 de maio de 2021, ao visualizar o cidadão, observando seu cabelo:

"O que que você cria nessa cabeleira aí?"

"tô vendo uma barata aqui";

- No dia 08 de julho de 2021:

“olha o criador de baratas, como tá essa criação de baratas?”

“Você não pode tomar ivermectina, vai matar todos os seus piolhos";

2) Também em 08 de julho, o ex-Presidente convidou o cidadão, alvo das falas em questão, para
seu pronunciamento, em suas redes sociais, durante o programa "Live do Presidente", onde reforçou suas
manifestações, tratando o fato como uma piada, com as seguintes colocações:

- “se eu tivesse um cabelo desse naquela época minha mãe me cobriria de pancada”

- “você cria baratas aí mesmo?”


- “você toma banho quantas vezes por mês?”

- “vocês veem como é difícil fazer brincadeira no Brasil? Se vocês vissem as brincadeiras que
eu faço com Hélio “Negão” iam cair pra trás”

- “se criarem cota para feios você vai ser deputado federal";

A par disto, os autores referiram outras situações em que o réu teria proferido manifestações
similares, em relação a outro cidadão negro e também aos integrantes de quilombos, tudo para ressaltar o tom
racista de seus pronunciamentos. Todavia, as situações que ensejaram o ajuizamento desta demanda são,
especificamente, as falas proferidas nos dias 04, 06 e 08 de julho de 2021, seja no chamado "Cercadinho", seja
no programa "Live do Presidente", pelo que deve o exame deste juízo ficar restrito aos fatos contestados na
petição inicial, em observância ao princípio da adstrição (arts. 141 e 492 do CPC). No ponto, ainda vale
informar que as falas acerca dos quilombolas foram alvo de Inquérito Criminal perante o Supremo Tribunal
Federal (INQ 4694/DF), onde a denúncia foi rejeitada, por serem as declarações não apenas consideradas
inseridas dentro da liberdade de expressão conferida aos parlamentares (o réu era, à época, Deputado Federal),
mas tidas como inaptas a configurar discurso de ódio capaz de afetar os negros ou seus descendentes.

Situados os fatos que devem ser examinados nesta lide, debruço-me inicialmente sobre as questões
preliminares.

PRELIMINARES

1) Ausência de Interesse

Ambos os réus apontaram ausência de interesse de agir, em relação a determinados pedidos. A


União, especificamente, argumentou com a desnecessidade da demanda no que toca ao pedido de imposição de
ordem para que os réus se abstenham de "proferir novas manifestações de cunho discriminatório" e de que seja
expedida  orientação no âmbito da Administração Federal com indicação da ilicitude penal e administrativa a
respeito de manifestações racistas. Sustentou que tais pedidos presumem o desrespeito à lei, olvidando que a
Administração Pública pauta-se pelo princípio da legalidade e que o sistema legal brasileiro ostenta normativos
suficientes a coibir a prática de atos racistas ou discriminatórios. Já o réu Jair Messias Bolsonaro, disse que não
é papel das decisões judiciais reiterar disposições normativas e que o pedido é descabido, por desconsiderar que
as palavras por ele proferidas não possuem conteúdo discriminatório.

A preliminar procede em parte. A mera existência de leis ou normativos que proibem ou punem
determinadas condutas constitui proposição em tese, que não tem, por si só, o condão de obstar a prática de atos
racistas ou discriminatórios. A inicial justamente pondera que, apesar do arcabouço legislativo, houve
trangressão por parte dos réus, buscando a intervenção do Judiciário, não apenas no sentido reparatório, mas
também no preventivo, no sentido de esclarecer que as práticas descritas constituem infração à lei e que estão
sujeitas à punição. A ausência de interesse de agir pressupõe uma desnecessidade ou inutilidade do provimento
requerido, porque pode ser (ou já foi) alcançado por outro meio. Não é este o caso dos autos, onde os autores
buscam ordem de punição (especificando os atos que têm como ilícitos) e de abstenção (preventiva) de novas
condutas que têm como infratoras da ordem legal. Em suma, a simples existência de uma lei não inibe a prática
do ato vedado, impondo-se a intervenção judicial para tornar concreto o que a lei coloca em tese, seja punindo a
prática ilegal, seja advertindo da possibilidade de punição pela reiteração.

Há um ponto no pedido, contudo, que realmente carece de sentido. Foi requerido na inicial que os
réus sejam condenados a "expedir orientação da lavra da Presidência da República aos agentes públicos
integrantes de todas as esferas do Governo Federal indicando a ilicitude penal e administrativa de condutas e
manifestações racistas, sob pena de multa em caso de descumprimento." Tal como posto, este pedido não é
necessário. Como bem dito pelos réus e longamente explanado pelos autores na inicial, nosso sistema legislativo
já especifica as condutas que reputa como discriminatórias ou racistas e estabelece as devidas punições. Não há
sentido em que a União, no âmbito da Presidência da República, replique tais regras através de um comunicado
ou normativo interno, atuando como mera repetidora da lei. Tampouco poderia a União estabelecer multas para
eventuais transgressões, porque estaria atuando como legisladora, fraudando competência do Poder Legislativo.
Ainda, opera contra tal pretensão o fato de que esta demanda versa sobre condutas específicas e bem
delimitadas, pretensamente praticadas pelo ex-Presidente. Não está em pauta, nem sequer foi descrita, quaisquer
condutas diversas destas, praticadas por outros agentes públicos integrantes do Governo Federal. Assim, os
autores tentam, através desta Ação Civil, atingir pessoas que não compõem o polo passivo e de quem não há
mínima informação de qualquer prática discriminatória. Este pedido, portanto, carece de necessidade e utilidade
e neste ponto, vai extinta a ação sem apreciação do mérito, por ausente o interesse de agir, nos termos do art.
485, VI, do CPC.

Por fim, para encerrar o exame desta preliminar, observo que o argumento do ex-Presidente sobre
ausência de conteúdo discriminatório em suas palavras ou condutas, é uma questão que respeita ao mérito, pois
eventual aceitação deste argumento levaria à improcedência e não ao julgamento de extinção.

Acolho em parte a preliminar, de acordo com os fundamentos supra.

2) Inépcia da Inicial: Indeterminação dos Pedidos e Ilegitimidade Passiva

2.a) Indeterminação dos Pedidos


Novamente, os dois réus alinharam-se em sede preliminar, apontando inépcia da inicial, por
indeterminação dos pedidos.

O réu Jair Bolsonaro apontou a generalidade do pedido de exclusão das manifestações de cunho
supostamente discriminatório das redes sociais, porque não especifica que publicações engloba, limitando-se à
expressão genérica "publicações de cunho ofensivo", nem localiza a  URL da publicação, de modo a garantir
eficácia no cumprimento da ordem desejada.

Na mesma linha, a União ressaltou que, embora a inicial refira as falas tidas como discriminatórias
e as datas em que ocorreram, não indicou a origem dos vídeos publicados na rede mundial de computadores, seu
endereço eletrônico (URL), ou mesmo os links de origem do material que visa remover do acesso público. Tem,
assim, que esta situação de indeterminação dificulta tanto a defesa, quanto eventual cumprimento de decisão que
possa vir a ser prolatada pelo Juízo.

Pois bem. A começar, verifico que os autores indicaram as falas que têm por ilegais, inclusive
textualmente, informando a data e o local em que foram proferidas. Ao final, postularam a condenação dos réus
a "retirar de suas redes sociais e da rede oficial da Presidência da República as manifestações ofensivas de
cunho discriminatório e intolerante, acima descritas no item II, proferidas nos dias 04/05/2021, 06/05/2021 e
08/07/2021, e na “live” do dia 08 de julho de 2021, sob pena de incidência das medidas coercitivas pessoais,
notadamente a multa diária por descumprimento (astreintes) e cumulativamente a multa por ato atentatório à
dignidade da Justiça (art. 77, § 2º, CPC)." Ora, não se pode imputar tal pedido como genérico, indeterminado
ou falho. Veja-se que o mesmo é dirigido especificamente às redes sociais do ex-Presidente e à rede oficial da
Presidência da República. Não há pretensão de que os conteúdos sejam extirpados de quaisquer outros canais,
sendo perfeitamente factível ao juízo, na eventual procedência, que aponte os conteúdos que deverão ser
retirados dos específicos canais que estão indicados no pedido.

A Lei 12.965/2014, que estabeleceu o Marco Civil da Internet, assim dispõe em seu art. 19:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de
internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se,
após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e
dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições
legais em contrário.

§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do
conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

Como se vê, a exigência legal impõe a identificação do conteúdo, mas não necessariamente da
URL, ou endereço de rede em que o mesmo se encontra. E o conteúdo foi bem delimitado na inicial, indicando
as falas e as datas, estando restrito o pedido de sua retirada dos canais da Presidência e das redes sociais do ex-
Presidente, o que permite não apenas a exata identificação do conteúdo que os autores pretendem ver excluído,
como também dos canais aos quais o pedido de exclusão se dirige. Como estes contornos todos e à luz da
legislação que rege o uso da internet no Brasil, não há fundamento na alegação de indeterminação dos pedidos,
de modo que a preliminar vai rejeitada neste ponto.

2.b) Ilegitimidade Passiva da União

 A União, no mesmo tópico em que argumentou acerca dos pedidos de exclusão de conteúdos da
Internet, alertou sobre a impertinência subjetiva da parte, sob a alegação de que eventual exclusão de conteúdos
das redes institucionais, não impediria a veiculação das informações e imagens em outros veículos de
comunicação, restando inócua a medida postulada. Infere-se que alegou sua ilegitimidade passiva para
providenciar a exclusão de conteúdos de quaisquer redes ou canais não oficiais.

Pois bem, este juízo vislumbra a ilegitimidade passiva da União, mas por razões distintas. Como a
matéria  sobre condições da ação é conhecível de ofício (art. 485, §3º, do CPC), delibero sobre a mesma, nos
termos que seguem.

Como frisado no início desta fundamentação, os pronunciamentos feitos pelo ex-Presidente da


República ocorreram em dois locais: no "cercadinho" próximo ao Palácio da Alvorada, através de  declarações
presenciais em público e, depois, no programa "Live do Presidente", transmitido em suas redes sociais. Ambos
os ambientes são informais e não integram o rol dos canais oficiais de comunicação da Presidência da
República. A questão que então se põe é se a União tem legitimidade para responder pela atuação de seu agente
político, quanto a manifestações ocorridas em ambientes sobre os quais não tem ingerência e que não
representam meios ou formas de comunicação oficial. Vejamos.

Sem dúvida alguma, o Presidente da República é figura pública de extrema visibilidade e


importância, o que torna difícil traçar uma linha divisória entre o que caracteriza manifestação de cunho pessoal,
diversa da comunicação oficial, mas a distinção existe. Para identificá-la é necessário estabelecer um critério,
pois é certo que não se pode tomar todas e quaisquer falas, opiniões ou manifestações do ocupante da
Presidência da República como representativas do entendimento ou da postura do Governo, até porque, ao ser
eleito, o Presidente não perde sua individualidade, ou a possibilidade de se manifestar enquanto cidadão não-
representante do Estado ou do Governo.
Nos elementos que anexou à sua contestação, a União informou que as comunicações oficiais sob
o Governo do Presidente Jair Bolsonaro eram gerenciadas pelo Departamento de Conteúdo e Gestão de Canais,
vinculado à Secretaria Especial de Comunicação Social que, por sua vez, era vinculada ao Ministério das
Comunicações. O Departamento é (ou ao menos era, ao tempo das manifestações) responsável pela gestão dos
seguintes canais (evento 33, OUT4):

Além disso,
o Decreto 6.555/2008
regula as ações de
comunicação do Poder
Executivo Federal,
esclarecendo que “O
Sistema de Comunicação
de Governo do Poder
Executivo Federal
(SICOM)  é integrado
pela Secretaria de
Comunicação Social da
Presidência de República,
como órgão central, e
pelas unidades
administrativas dos
órgãos e entidades integrantes do Poder Executivo Federal que tenham a atribuição de gerir ações de
comunicação.” (art. 4º).

É fato que em 2023 houve a eleição de um novo Governo, no qual a Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República assumiu o status de Ministério. Em 1º de janeiro de 2023 foi editado o
Decreto 11.362 que aprovou a nova estrutura regimental da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República. Nos termos do art. 18 deste Decreto é encargo do Departamento de Canais Digitais gerenciar os
canais de comunicação digital mantidos pela Secretaria de Comunicação Social. Embora o Decreto não traga o
endereço dos canais digitais, uma simples pesquisa revela que o canal do Youtube mantido pelo novo Governo
pemanece com o endereço https://www.youtube.com/secomvc, o mesmo utilizado pelo Governo anterior,
revelando que este era e permanece sendo o canal oficial da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República. Todavia, a "Live do Presidente" do dia 08 de julho de 2021 foi divulgada no seguinte endereço do
Youtube: "https://www.youtube.com/watch?v=7-mbQk9jrqE". Portanto, o ex- Presidente não utilizou um
veículo oficial de comunicação, como também não o fez quando se manifestou presencialmente no local que
ficou conhecido como "Cercadinho", onde conversava com seus apoiadores, em situações informais, totalmente
desvinculadas dos canais oficiais da Presidência da República.

Esta é, no ver deste juízo, a linha demarcatória da atuação, ou não, do Presidente como agente de
Estado. Portanto, manifestações ou opiniões proferidas em canais sociais pessoais do Presidente, ou em
ambientes informais, não podem ser compreendidas como manifestações do Governo, por mais ampla que seja a
repercussão destas falas, sendo impossível ter a União como legítima em quaisquer pretensões indenizatórias
provenientes destas manifestações.

Por outro viés, há de se observar que ao Presidente é constitucionalmente garantida a liberdade de


expressão, como a qualquer outro cidadão. Dita o art. 220 da Constituição Federal: “A manifestação do
pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” O Supremo Tribunal Federal tem posição assente
quanto ao ponto:

"Direito Constitucional. Agravo regimental em reclamação. Liberdade de expressão. Decisão judicial que
determinou a retirada de matéria jornalística de sítio eletrônico. Afronta ao julgado na ADPF 130. Procedência. 1.
O Supremo Tribunal Federal tem sido mais flexível na admissão de reclamação em matéria de liberdade de
expressão, em razão da persistente vulneração desse direito na cultura brasileira, inclusive por via judicial. 2. No
julgamento da ADPF 130, o STF proibiu enfaticamente a censura de publicações jornalísticas, bem como tornou
excepcional qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões. 3. A liberdade de
expressão desfruta de uma posição preferencial no Estado democrático brasileiro, por ser uma pré-condição para o
exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades. 4. Eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser
reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização. Ao determinar a retirada
de matéria jornalística de sítio eletrônico de meio de comunicação, a decisão reclamada violou essa orientação. 5.
Reclamação julgada procedente. (Rcl 22328, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em
06/03/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-090  DIVULG 09-05-2018  PUBLIC 10-05-2018)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL. LEI N. 9.612/98.


RÁDIODIFUSÃO COMUNITÁRIA. PROBIÇÃO DO PROSELITISMO. INCONSTITUCIONALIDADE.
PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA. 1. A liberdade de expressão representa tanto o direito de não ser
arbitrariamente privado ou impedido de manifestar seu próprio pensamento quanto o direito coletivo de receber
informações e de conhecer a expressão do pensamento alheio. 2. Por ser um instrumento para a garantia de outros
direitos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece a primazia da liberdade de expressão. 3. A
liberdade religiosa não é exercível apenas em privado, mas também no espaço público, e inclui o direito de tentar
convencer os outros, por meio do ensinamento, a mudar de religião. O discurso proselitista é, pois, inerente à
liberdade de expressão religiosa. Precedentes. 4. A liberdade política pressupõe a livre manifestação do pensamento
e a formulação de discurso persuasivo e o uso do argumentos críticos. Consenso e debate público informado
pressupõem a livre troca de ideias e não apenas a divulgação de informações. 5. O artigo 220 da Constituição
Federal expressamente consagra a liberdade de expressão sob qualquer forma, processo ou veículo, hipótese que
inclui o serviço de radiodifusão comunitária. 6. Viola a Constituição Federal a proibição de veiculação de discurso
proselitista em serviço de radiodifusão comunitária. 7. Ação direta julgada procedente. (ADI 2566, Relator(a):
ALEXANDRE DE MORAES, Relator(a) p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 16/05/2018,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-225  DIVULG 22-10-2018  PUBLIC 23-10-2018)

A posição de Chefe de Estado não retira do Presidente esta liberdade. E se a exerce em situações
não oficiais, a União não pode ser responsabilizada por eventuais danos que daí advenham. É evidente que o
abuso ou o excesso no exercício desse direito pode gerar direito à indenização, mas sua reclamação deve ser
dirigida contra quem violou o Direito e, no caso, as manifestações indicadas na inicial não representam a
posição do Governo ou do Estado Brasileiro, de modo que a União revela-se ilegítima para estar no polo passivo
desta demanda.

Constatada a ilegitimidade passiva, a União deve ser excluída da lide e o feito, em relação a ela,
extinto sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC.

Excluída da lide a União, resta apenas o ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro como réu desta
demanda. Apesar de o mesmo ser pessoa física, não incluída no rol do art. 109, I, CF, mesmo assim se mantém
competente a Justiça Federal para o processamento deste feito de natureza cível. Isto porque o mero fato de
constar o Ministério Público Federal como autor da demanda atrai a competência do Juízo Federal. Neste
sentido:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL.  AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.


RECEBIMENTO DA INICIAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CONEXÃO COM OUTRAS AÇÕES.
DESCABIMENTO. (IM)POSSIBILIDADE DE APROVEITAMENTO INTEGRAL E DESCONTEXTUALIZADO DAS
PROVAS COLHIDAS NA ESFERA CRIMINAL. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO CONHECIMENTO. PEDIDO
DE DESBLOQUEIO DE BENS. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS.  1. A jurisprudência da Corte Superior
entende que "a presença do Ministério Público Federal no polo ativo da ação civil pública implica, por si só, a
competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, supramencionado, tendo em vista que se trata de
instituição federal". (AgInt no CC 157.073/SP, Relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em
13.3.2019, DJe 22.3.2019). 2. Considerando que as 08 ações civis públicas de improbidade tratam de objetos
distintos, relacionados a certames e a contratos distintos, desvios/recebimentos de valores vinculados a
custeio/programas diversos, não há falar em conexão processual.   3. O entendimento consolidado da Corte
Superior, em específico da Primeira Seção, no julgamento do REsp 1.366.721/BA, sob a sistemática dos recursos
repetitivos (art. 543-C do CPC) é no sentido de que o decreto de indisponibilidade de bens em ação civil pública por
ato de improbidade administrativa constitui tutela de evidência e dispensa a comprovação de dilapidação iminente
ou efetiva do patrimônio do réu, uma vez que o periculum in mora está implícito no art. 7º da Lei nº 8.429/1992. 4.
No tocante à alegação de os imóveis estarem bloqueados na ação penal em nada repercute na medida constritiva
operada nesta ação porquanto independentes as esferas cível e penal, existindo apenas duas conclusões do processo
penal que poderiam surtir os efeitos postulados de liberação de bens - a negativa de autoria e a inexistência dos
fatos.  (TRF4, AG 5028884-67.2021.4.04.0000, TERCEIRA TURMA, Relatora MARGA INGE BARTH TESSLER,
juntado aos autos em 21/10/2021)

Acolho, pois, a preliminar de ilegitimidade passiva da União, embora por fundamentos diversos
dos apresentados em contestação, motivo pelo qual vai a mesma excluída da lide e extinto o feito sem resolução
do mérito em relação à mesma.

Restando no feito apenas o réu Jair Messias Bolsonaro, verifico que o mesmo apontou, ainda, duas
preliminares, a saber:

3) Inadequação da Via Eleita e Ilegitimidade Ativa do Ministério Público Federal

O fundamento utilizado pelo réu nesta seara funda-se na impossibilidade de utilização do


instrumento da ação civil pública baseada em situação de fato que tem como inapta a produzir dano moral
coletivo, sustentando a inocorrência de violação à honra ou imagem de qualquer grupo racial. Seguindo tal linha
de raciocínio, lembra que a legitimação à Ação Civil Pública somente se configura para defesa de danos de
ordem coletiva ou transindividual (art. 1º, VII, da Lei 7.347/85). Estando estes ausentes, aponta tanto a
ilegitimidade ativa, seja do MPF, seja da DPU, como a inadequação da via eleita.

Esta simples síntese dos argumentos que embasam ambas as preliminares, revela à saciedade que
as mesmas confundem-se com o mérito, porque pressupõem um juízo de valor sobre os atos questionados na
inicial, o que, justamente, compõe o cerne da lide. São questões, portanto, que adiante serão analisadas, em juízo
meritório.
Superadas todas as preliminares, passo ao exame do mérito.

DO MÉRITO

Como dito na contestação do evento 40 o questionamento central desta demanda, apesar do longo
arrazoado da inicial, restringe-se às manifestações jocosas sobre o cabelo de um dos apoiadores do réu,  por ele
dirigidas ao indíviduo, em três ocasiões: duas no chamado "Cercadinho" e outra no programa "Live do
Presidente", as quais vieram a ser divulgadas na Internet.

O que cabe analisar, portanto, é a natureza destas manifestações e sua extensão, para ver se se
afiguram como suficientes e aptas a justificar o ajuizamento desta Ação Civil Pública.

Nos termos do art. 1º da Lei 7.347/85, a Ação Civil Pública é instrumento processual dirigido à
apuração de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados (art. 1º):

"l - ao meio-ambiente;

ll - ao consumidor;

                       III – a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;

IV - por infração da ordem econômica;       (Redação dada pela Lei nº 12.529, de 2011).

VI - à ordem urbanística.      (Incluído pela Medida provisória nº 2.180-35, de 2001)

VII – à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.      (Incluído pela Lei nº 12.966, de 2014)

VIII – ao patrimônio público e social.       (Incluído pela  Lei nº 13.004, de 2014)"

Por evidente, o enquadramento dos fatos se deu pelo inciso VII, desde que os autores têm por
violada a honra e a dignidade da raça negra, ponderando que o cabelo estilo black power identifica os indivíduos
desta raça. Extrai-se da inicial: "As falas de cunho racista do Presidente a respeito do cabelo black power
endereçam ainda inequívoca ofensa ao simbolismo de luta política dos movimentos negros, notadamente porque
é cediço que pessoas negras sempre foram oprimidas pela construção negativa de suas características estéticas,
em especial os cabelos. Os cabelos black power também corporificam uma estética que se rebela contra séculos
em que pessoas negras foram subjugadas pelo racismo que lhes impunha padrões estéticos depreciadores de
suas características naturais e que sempre lhes geraram diversos danos psicológicos e estéticos. E foi a partir
dos movimentos de afirmação e resistência negros que passaram a enfatizar o orgulho racial e o autorespeito
como marcadores de luta contra todas forma de opressão, que esses estereótipos passaram a ser combatidos no
imaginário social. Assim, ao afirmar e reafirmar seu menosprezo à estética do cabelo afro, o Presidente da
República também o faz em relação ao processo de afirmação da dignidade das pessoas negras duramente
defendido e protagonizado pelos movimentos de luta política de combate ao racismo, com especial inspiração
no Movimento Black Power que emergiu nos Estados Unidos, nas décadas de 60 e 70, e que ecoou em todos os
países afetados pela diáspora africana." Considerando a associação, que têm como inerente, entre este estilo de
cabelo e a raça negra, combinada com as alusões à falta de higiene e à estética, os demandantes apontam as falas
do Sr. Jair Bolsonaro como capazes de atingir a moral e a dignidade de toda a raça negra.

Pois bem. Em primeiro lugar, antes de aprofundar-me no exame da questão proposta, cabe dizer
que, à luz da teoria da asserção, os autores não podem ser tomados como partes ilegítimas, porque estão entre os
legalmente autorizados a propor a Ação Civil Pública (art. 5º da Lei 7.347/85) e porque sustentam que houve
dano moral coletivo à raça negra. Para o ajuizamento (e consequente legitimação ativa) basta a assertividade de
seus argumentos, desenvolvidos dentro de um raciocínio lógico, tal como posto na inicial. Isso basta para lhes
garantir o direito de ação, sem impedir que se julguem improcedentes suas alegações. Assim, se entendem que
houve um dano moral coletivo, a par da expressa autorização para a proposição da demanda, têm causa para a
propositura da ação coletiva, ainda que esta não venha a ser aceita no mérito.

Refutadas estas últimas alegações referentes a questões preliminares, cabe, por fim, adentrar no
âmago da demanda: saber se as falas do Sr. Jair Bolsonaro foram, ou não, aptas a lesar toda a comunidade negra
brasileira, pela associação entre o cabelo black power com a negritude e a sujeira.

Como já dito, as falas dirigiram-se a um único indivíduo e são, inegavelmente, deselegantes e


inadequadas. Mas temo que, apesar da infelicidade das manifestações, não se pode tomá-las como suficientes a
atingir toda a raça negra, de modo a justificar a ocorrência de um dano moral coletivo. Tratando do tema, o
Superior Tribunal de Justiça exarou o seguinte entendimento:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS. MATERIAL PUBLICITÁRIO. INFORMAÇÕES
DUVIDOSAS. LESÃO A VALORES FUNDAMENTAIS. NÃO OCORRÊNCIA. DECISÃO MANTIDA.
1. Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, "se, por um lado, o dano moral coletivo não está relacionado a
atributos da pessoa humana e se configura in re ipsa, dispensando a demonstração de prejuízos concretos ou de
efetivo abalo moral, de outro, somente ficará caracterizado se ocorrer uma lesão a valores fundamentais da
sociedade e se essa vulneração ocorrer de forma injusta e intolerável" (REsp 1502967/RS, Rel. Ministra NANCY
ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/08/2018, DJe 14/08/2018).
2. No caso dos autos, a vinculação de material publicitário com informações duvidosas, capazes de induzir o
consumidor a erro, não configura lesão a valores fundamentais da sociedade 3. Agravo interno a que se nega
provimento.
(AgInt no AREsp n. 2.160.486/PR, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 28/11/2022,
DJe de 5/12/2022.)

É evidente que a dignidade da pessoa humana e o direito de não ser distinguido negativamente por
questões de raça, impõem-se não somente com primazia, mas também como objetivo fundante da República
Brasileira (art. 3º, IV, CF). Apesar disto, a caracterização de um dano moral coletivo, capaz de afetar a honra e
dignidade de um grupo racial, pressupõe uma ilicitude praticada de forma totalmente injusta e intolerável. Na
espécie, para justificar que as infelizes colocações do Sr. Jair Bolsonaro foram aptas a lesar a moral de toda a
comunidade negra brasileira, os autores desenvolveram o argumento de que o cabelo no estilo black power
(característica física enfatizada pelo réu) identifica as pessoas desta raça. Tenho, porém, que a alegação é por
demais extensiva. Ainda que o cabelo black power seja comum entre pessoas da raça negra, não é um estilo
exclusivo delas. Há pessoas brancas que utilizam o mesmo estilo. E a ênfase nas falas do réu jamais foi em
relação à cor da pele, mas sim ao volume do cabelo.

A Lei 12.288/2010 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial e seu art. 1º, I, traz o conceito de
discriminação racial:

"I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou
exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;"

A distinção que deve ser punida deve estar baseada em raça ou cor, com a intenção de violar
direitos e liberdades. No caso, houve uma distinção por uma específica característica física, não exclusiva da
população negra. Observo que os autores não anexaram à inicial qualquer manifestação, pública ou particular,
de pessoas ou grupos que tenham se sentido lesadas pelas colocações do réu. Ainda que o dano moral coletivo se
configure in re ipsa, um mínimo de evidência de sua caracterização poderia ser demonstrada, até para
comprovar a tese sustentada na inicial. Assim, manifestações da sociedade contrárias às colocações do réu
auxiliariam na demonstração de que a repercussão de suas falas atingiu uma ampla comunidade. Mas nada disto
há nos autos. Evidente, o fato teve repercussão na mídia, até porque o réu era, à época, ostensiva figura pública
(embora não tenha se manifestado em canais oficiais).  Portanto, mídias diversas replicaram suas falas (enfatizo,
nunca canais oficiais da Presidência da República), mas não se pode dizer que a repercussão tenha atingido
profundamente, de modo injusto e intolerável, toda a comunidade negra nacional. Certo que o indivíduo a quem
dirigidos os comentários poderia alegar ofensa, embora não o tenha feito. Mas uma fala dirigida a um único
cidadão, tenha ele se sentido ofendido ou não, não tem o poder e a extensão reivindicadas na inicial, porque não
foi intolerável a tal ponto. As colocações podem ser taxadas de inadequadas, infelizes, deseducadas, e poderiam
ser intoleráveis para o cidadão a quem dirigidas. Porém, o que é díficil é conceber estas falas como capazes de
atingir a coletividade dos integrantes da raça negra brasileira. Veja-se o seguinte precedente sobre a
caracterização do dano moral coletivo, que bem expressa o raciocínio deste juízo:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. COLOCAÇÃO DE PRODUTO ALIMENTÍCIO


CONTAMINADO NO MERCADO DE CONSUMO. ACHOCOLATADO TODDYNHO. DANO MORAL COLETIVO.
DIREITOS DIFUSOS OU METAINDIVIDUAIS. SUJEITOS INDETERMINADOS OU INDETERMINÁVEIS.
OBJETO INDIVISÍVEL. SEGURANÇA À SAÚDE DO CONSUMIDOR. INFORMAÇÃO E TRANSPARÊNCIA.
RECALL. PROVIDÊNCIA A SER INCENTIVADA. PREVENÇÃO DE RISCOS.

1. A violação de direitos metaindividuais dá ensejo à condenação por danos morais coletivos, cujo objetivo é a
preservação de valores essenciais da sociedade. O dano moral coletivo é autônomo, revelando-se
independentemente de ter havido afetação a patrimônio ou higidez psicofísica individual.
2. Apesar de o dano moral coletivo ocorrer in re ipsa, sua configuração ocorre apenas quando a conduta
antijurídica afetar interesses fundamentais, ultrapassando os limites do individualismo, mediante conduta grave,
altamente reprovável, sob pena de o instituto ser banalizado.
3. Os direitos difusos, metaindividuais, são aqueles pertencentes, simultânea e indistintamente, a todos os
integrantes de uma coletividade, indeterminados ou indetermináveis, caracterizando-se, ademais, pela natureza
indivisível de seu objeto ou bem jurídico protegido, tendo como elemento comum as circunstâncias do fato lesivo, e
não a existência de uma relação jurídica base.
4. No caso concreto, não há violação de direitos difusos ou transindividuais, não sendo possível o reconhecimento
da ocorrência de dano moral coletivo, malgrado a nítida existência de afronta a direitos individuais homogêneos,
tendo sido proferida condenação genérica, a ser ulteriormente liquidada, nos termos do processo coletivo.
5. O não reconhecimento do dano coletivo não retira do evento danoso a potencialidade de causar danos
individualmente considerados, tanto de natureza material quanto moral, a serem examinado em cada caso. (REsp n.
1.838.184/RS, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 5/10/2021, DJe de 26/11/2021.

Ora, o dano moral coletivo não significa a somatória dos  danos individuais dos integrantes da
raça (supostamente) atingida pelas falas, porque constitui uma nova modalidade de dano, o qual tem por objeto a
violação de um direito da coletividade considerada em si mesma vítima de uma ação danosa do ofensor. Não
vejo isto nos fatos contemplados na inicial. O que vejo são comentários inadequados, infelizes, desnecessários,
mas capazes de atingir somente o cidadão a quem dirigidos, sem potencial para atingir toda uma raça, ainda
mais quando enfatizam uma caracterísitca física que dela não é exclusiva. A conduta do réu pode ser taxada de
inapropriada, mas não de altamente reprovável, pois não foi apta a causar uma lesão de natureza tão gravosa
como é a exigida para a caracterização do dano moral coletivo. Nesta linha, cito os seguintes precedentes, que
confirmam o entendimento aqui esposado:

 
 

AGRAVO INTERNO NO
AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO CIVIL
PÚBLICA.
DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAR. DANOS MORAIS COLETIVOS. AUSÊNCIA DE ABALO A
TODA COLETIVIDADE. DANOS MATERIAIS. INEXISTÊNCIA. INVIÁVEL MODIFICAR AS CONCLUSÕES DO
ACÓRDÃO A QUO. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS N. 7 E 83 DO STJ. AGRAVO DESPROVIDO.
1. A condenação à indenização por dano moral coletivo em ação civil pública deve ser imposta somente aos atos
ilícitos de razoável relevância e que acarretem verdadeiros sofrimentos a toda coletividade, pois do contrário
estar-se-ia impondo mais um custo às sociedades empresárias. Precedentes. Incidência da Súmula 83/STJ.
2. As instâncias ordinárias, soberanas na análise do acervo probatório dos autos, consignaram não ter havido prova
da ocorrência de danos, sejam eles materiais ou morais, capazes de ensejar a condenação à reparação civil, pois
não se comprovou o dano aos correntistas, tendo em vista as isenções de tarifas, bem como não houve dificuldade
oposta pela casa bancária para transferência dos vencimentos para as instituições financeiras escolhidas pelos
servidores públicos. Infirmar tais conclusões demandaria o reexame de provas, atraindo a aplicação da Súmula
7/STJ.
3. Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp n. 964.666/RJ, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira
Turma, julgado em 25/10/2016, DJe de 11/11/2016.)

Faço notar às partes que este juízo não olvida toda a gama de Tratados e legislações que abordam a
questão do racismo ou da discriminação racial, cuja prática é execrável e deve estar sujeita às devidas punições.
Mas isto não autoriza aplicá-las em situações que não correspondam ao arcabouço normativo. No caso, estamos
em sede de uma Ação Civil Pública, cujo fundamento pressupõe violação à honra e dignidade de todo um grupo
racial (art. 1º, VII, da Lei 7.347/85). O sucesso da demanda, portanto, estaria sujeito à comprovação desta
violação em relação a todo o grupo racial, o que não tenho por caracterizado. Em outras palavras, as
manifestações do réu Jair Messias Bolsonaro não tiveram o potencial de atingir a honra ou a dignidade da raça
negra, muito embora isso possa ter ocorrido em relação ao indíviduo que foi objeto dos comentários. A situação
posta nos autos não teve a dimensão e a gravidade que os autores afirmam, mesmo que constitua um comentário
infeliz e sem graça para a maioria das pessoas. Do contexto dos vídeos é possível inferir a intenção de um
gracejo (ainda que rude), mas não se consegue extrair das colocações, nem a intenção, nem a efetiva
configuração de uma ofensa de tal magnitude que possa ter maculado a honra de todos os integrantes da raça
negra brasileira.

É importante frisar, por fim, que este juízo não está negando a deselegância das manifestações,
pois o fundamento da improcedência reside na vislumbrada incapacidade de as manifestações em apreço
violarem a honra ou a dignidade de uma coletividade. No ponto, vale citar trecho do voto do Ministro Alexandre
de Moraes, por ocasião da decisão que findou por rejeitar a denúncia veiculada no Inqúerito 4.694/DF:

"Há um célebre conceito do Professor de Oxford, ISAIAH BERLIN, exposto em uma palestra em 1958, que, fez uma
dicotomia entre liberdade de expressão negativa e liberdade expressão positiva, afirmado que a essência da
liberdade de expressão negativa é a possibilidade de ofender, o que, jamais se confunde com o discurso de ódio.
DWORKIN, após citar a palestra, analisa a questão da liberdade de expressão, colocando que o ideal seria que as
formas de expressão sempre fossem heroicas, mas defende a necessidade de proteção das manifestações de mau
gosto, aquelas feitas inclusive erroneamente (O Direito da liberdade. A leitura moral da Constituição norte-
americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 345, 351 e ss). Eu não tenho nenhuma dúvida sobre a grosseria, a
vulgaridade e, no tocante aos quilombolas, principalmente, total desconhecimento da realidade nas declarações que
foram feitas pelo denunciado. Quando se refere, de uma maneira pejorativa, com uma crítica ácida, grosseira,
vulgar aos quilombolas, demonstra desconhecer a realidade dos quilombos. E digo isso porque, durante quatro
anos, como Secretário de Justiça, fui presidente do Conselho do Instituto de Terras do Estado de São Paulo - ITESP,
e, lá, atuávamos diretamente com os quilombolas. À época, visitei pessoalmente diversos quilombos. Eram vinte e
quatro, hoje são trinta e um quilombos no Estado de São Paulo. Inclusive aquele quilombo criticado, em Eldorado,
pelo denunciado é o Quilombo de Ivaporunduva, que é o mais antigo da região de Eldorado Paulista e, juntamente
com um que é muito próximo, Sapatu, atua há anos, há décadas, na preservação do meio ambiente, no turismo da
região, plantação de milho, feijão, inhame, cana, banana, às margens do Rio Ribeira, artesanato; possuindo, ainda,
escola, posto de saúde, centro de convivência. Ou seja, as declarações foram absolutamente desconectadas com a
realidade, mas, no caso em questão, como diria uma construção interessante do Ministro NELSON JOBIM, a
manifestação se deu "na contextualidade da imunidade". Apesar da grosseria das expressões, apesar do erro, da
vulgaridade, do desconhecimento, não me parece que a conduta do denunciado tenha extrapolado os limites de sua
liberdade de expressão qualificada que é abrangida pela imunidade material. Não teriam, a meu ver, extrapolado
para um verdadeiro discurso de ódio, de incitação ao racismo ou à xenofobia. Suas declarações, repito,
principalmente as mais grosseiras, e vulgares, em momento algum, tiveram o intuito objetivo de negar ou ser contra
o sofrimento causado aos negros e seus descendentes pela escravidão, negar os direitos dos quilombolas, negar a
própria escravidão ou seus efeitos. As declarações do denunciado não defenderam ou incitaram tratamento
desumano, degradante e cruel, em relação aos negros, nem fizeram apologia do que foi feito no período abominável
da escravidão no Brasil. Igualmente, as declarações não buscaram, até pela grosseria e falta de conhecimento,
ampliar ou propagar o ódio racial. Aquela última frase grosseira, conforme já referido, - "essa raça aí embaixo,
uma minoria" -, referiu-se a todos os brasileiros que recebem bolsa-família, ou seja, não foi direcionada a uma
determinada ao negros e seus descendentes. Foi uma agressão gratuita, mas dentro da liberdade de opinião do
denunciado protegida pela imunidade material.

Concluo com uma análise feita em célebre julgamento da Suprema Corte norte-americana, sobre a liberdade de
expressão de agentes públicos. As frases grosseiras, vulgares, desrespeitosas ou com desconhecimento de causa
devem ser analisadas pelo eleitor, pois é aquele que tem sempre o direito de saber a opinião dos seus representantes
políticos. Na presente hipótese, apesar de recheada de frases desrespeitosas, o cerne da manifestação foi uma crítica
a políticas de governo, com as quais o denunciado não concorda. Entretanto, as declarações não chegaram a
extrapolar e caracterizar um discurso de ódio como citado anteriormente.". (Órgão julgador:  Primeira Turma
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO Julgamento: 11/09/2018 Publicação: 01/08/2019)

Ainda que o precedente acima citado tenha argumentando, em essência, com a imunidade
parlamentar, é fato que não considerou como apta a caracterizar um discurso de ódio, ou de incitação ao
racismo, uma fala de abrangência bem maior que aquelas em apreço nesta demanda, porque mais genérica
(referindo-se a todos os quilombolas: descendentes e remanescentes de comunidades formadas por escravizados
fugitivos).

À luz de tal raciocínio, tem-se que, mesmo que a liberdade de expressão tenha sido exercida com
excessos, a lesão somente pode ser medida a nível individual, pois, friso, as falas, seja por se restringirem a um
único indivíduo, seja por enfatizarem um atributo físico que não é exclusivo da raça negra, seja porque, no
contexto em que expressadas, não podem ser tomadas como altamente reprováveis (embora inadequadas), foram
incapazes de atingir a honra ou a dignidade de todos os componentes da raça negra brasileira, de modo que este
juízo não tem como configurado um dano moral coletivo.

Enfim, fundada na lei, nos fatos e nos precedentes invocados acima, tenho que os comentários
tecidos pelo ex-Presidente acerca das características do cabelo de um de seus apoiadores não podem ser tomados
como hábeis a atingir a moral, a honra ou a dignidade de um grupo racial. Não há, portanto, ilícito apto a
caracterizar um dano moral coletivo, pelo que resta julgar improcedentes os pedidos.

DISPOSITIVO

ISSO POSTO:

1. Acolho, em parte, a preliminar de ausência de interesse processual, no que toca ao pedido de


condenação das partes a "expedir orientação da lavra da Presidência da República aos agentes públicos
integrantes de todas as esferas do Governo Federal indicando a ilicitude penal e administrativa de condutas e
manifestações racistas, sob pena de multa em caso de descumprimento.", extinguindo o feito quanto ao ponto,
sem resolução do mérito, nos termos do at. 485, VI, do CPC;

2. Acolho, também, a preliminar de ilegitimidade passiva da União Federal, pelos fundamentos


supra expostos, excluindo-a da lide e extinguindo o feito, em relação à mesma, sem resolução do mérito,
novamente de acordo com o art. 485, VI, do CPC;

3. Rejeito as demais preliminares e julgo IMPROCEDENTE o pedido em relação ao réu Jair


Messias Bolsonaro, extinguindo o processo com resolução do mérito, nos termos do art. 487, I, do CPC.

Sem condenação em custas ou honorários (art. 18 da Lei 7.437/85).

Intimem-se.

Ao trânsito, arquive-se.

Documento eletrônico assinado por ANA MARIA WICKERT THEISEN, Juíza Federal Substituta, na forma do artigo 1º, inciso III, da Lei
11.419, de 19 de dezembro de 2006 e Resolução TRF 4ª Região nº 17, de 26 de março de 2010. A conferência da autenticidade do documento
está disponível no endereço eletrônico http://www.trf4.jus.br/trf4/processos/verifica.php, mediante o preenchimento do código verificador
710016835953v144 e do código CRC 3aaf3bfd.

Informações adicionais da assinatura:


Signatário (a): ANA MARIA WICKERT THEISEN
Data e Hora: 8/2/2023, às 9:48:38

5053279-66.2021.4.04.7100 710016835953 .V144

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