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EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO

PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

João Gualberto Garcez Ramos*

RESUMO: O princípio do devido processo ABSTRACT: The Due Process of Law was
legal nasceu na Inglaterra, no ano 1215. born in England, in the year 1215. It had a
Teve um desenvolvimento diferente na different development in England and in the
Inglaterra e nos Estados Unidos da América, United States of America, especially because
the role of the American Supreme Court.
especialmente por causa do papel da Suprema
Also, the Due Process of Law is in the core
Corte norte-americana. O devido processo
of the Law in Brasil since the very beginning.
legal também está no coração do Direito
In the second half of the eighth century, many
brasileiro desde o seu início. A Constituição classics of the Brasilian Law wrote about it.
do Império, de 1824, em seu art. 179, inciso The 1824 Brasilian Imperial Constitution, in
II, trazia um aspecto substancial do princípio. its art. 179, inc. II, had a substantial vision of
A Constituição brasileira de 1988 apenas o the standard. The 1988 Brasilian Constitution
enfatizou em nosso ordenamento jurídico. just stressed it.

Delimitação do tema que conspurcam esse equilíbrio, essa justeza


intrínseca, violam o princípio do devido
Pode-se dizer sem medo que já faz muito
processo legal. E, “puxando a sardinha”
tempo que o princípio do devido processo
para o nosso lado, posso afirmar que essas
legal se encontra no centro do nosso sistema
irregularidades são muito mais graves quando
processual. Ele é a verdadeira e própria
atingem o processo penal.
essência do processo, em todas as suas
Essa visão corresponde ao que já escreviam
manifestações. O processo legítimo, justo,
processualistas antigos.
equilibrado, é o devido processo legal. Daí
que todas as irregularidades do processo Na obra clássica de José Antonio Pimenta
Bueno, por exemplo, está escrito:
* Professor Adjunto da UFPR. Procurador da As formalidades dos atos e termos do processo
República. são frutos da prudência e razão calma da lei.

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É de muita importância que a luta que se a sociedade que acusa, como para o acusado
estabelece entre o acusado e o Poder Público que se defende”.4
não sofra outra influência ou direção que não
seja dela. Todas essas passagens se referem, com
Os termos e condições que a lei prescreve, maior ou menor grau de penetração, ao
são meios protetores que garantem a plenitude Devido Processo Legal, enquanto garantidor
da acusação e da defesa: são faróis que
das formas processuais.
assinalam a linha e norte que os magistrados
e as partes devem seguir, precauções salutares Essa visão, portanto, não se constitui em
que encadeiam o arbítrio e os abusos , que novidade alguma no Brasil.
esclarecem a verdade, e dão autenticidade ou
Ocorre que, sobretudo a partir da Constituição
valor legal aos atos. O seu fim é conciliar o
interesse da justiça repressiva com a proteção de 1988, surgiram novas interpretações desse
devida à inocência que pode existir.1 secular princípio. De uma hora para outra,
vieram à baila expressões extravagantes
Até na “Praxe Brasileira” do conselheiro
como “razoabilidade das leis” para, com base
Joaquim Ignácio Ramalho, insuspeito
nelas, impugnar-se a constitucionalidade de
praxista, encontram-se, aqui e ali, exortações
normas jurídicas substanciais.
ao respeito às formas processuais e ao direito
Meu objetivo neste estudo é demonstrar
de defesa.2
que essa virada não é a-histórica, isto é, que
O senador do Império Vicente Alves
há uma evolução lenta e cheia de avanços e
de Paula Pessoa, também ele um praxista
retornos por detrás dela. E, ao final, discutir se
tardio, escreveu ser fundamental a sabedoria
e até que ponto essa evolução, de fato, atinge
e o equilíbrio dos juízes, a fim de garantir
o ordenamento jurídico brasileiro.
que suas “decisões, conscienciosamente
A primeira pista para revelar essa linha
inspiradas e ditadas pelo único respeito
evolutiva encontramo-la na Inglaterra, perto
das leis, sejam acatadas pelos cidadãos e
do ano 1.066.
invioláveis para o poder: Tribunais acessíveis
a todos, permitindo a acusação e a defesa
1 Breve histórico do princípio
com completa liberdade, e garantias da
do devido processo legal na
publicidade”.3
Inglaterra
Para Antônio Luiz da Câmara Leal, outro
antigo processualista, “a forma processual Após ter derrotado o rei Haroldo II na
representa uma garantia de direitos, tanto para batalha de Hastings, em 1066, e conquistado
a ilha da Inglaterra, o conquistador Guilherme
deveria ser coroado rei. Percebeu que a
1
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos população inglesa tinha verdadeira adoração
sobre o Processo Criminal brasileiro, ed. anot., atual. e
compl. por José Frederico Marques, facsimilar à ed. de por um antigo monarca saxão, Eduardo, dito
1857. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1959, p. 228.
2
RAMALHO, Joaquim Ignácio. Praxe brasileira,
São Paulo: 1869, pp. 5, 8, 51, 52 etc. 4
LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Comentários ao
3
PESSOA, Vicente Alves de Paula. Código do Código de Processo Penal brasileiro, Rio de Janeiro-São
Processo Criminal, 1880, p. 20. Paulo: Freitas Bastos, 1942, v. 1, p. 20.

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“o Confessor”, misto de rei e pastor, que foi, É por isso que, em 1215, os barões
afinal, canonizado pela Igreja Católica menos ingleses exigem do rei João I o respeito às leis
de cem anos depois de sua morte. da terra. Fazem com que ele se comprometa
O conquistador talvez estivesse cansado que “nenhum homem livre será molestado,
de tantas guerras e pretendeu construir um ou aprisionado, ou despojado, ou colocado
período de estabilidade administrativa. Além fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo
disso, não podia esquecer de que era um rei aniquilado, nem nós iremos contra ele, nem
invasor. Teve de ter muito cuidado e tirocínio. permitiremos que alguém o faça, exceto
Tomou diversas providências políticas que pelo julgamento legal de seus pares ou pelo
garantiram essa estabilidade por muitos e Direito da terra”.
O uso da expressão “devido processo
muitos anos.
legal” (due process of the law), ocorre pela
Uma das providências foi de ordem
primeira vez em 1354, quando o rei Eduardo
litúrgica.
III, seguindo a velha tradição, confirma as
O conquistador foi sagrado Guilherme I
leis da terra e, entre elas, a Magna Carta das
em uma cerimônia solene em que confirmou
Liberdades. O texto de Eduardo III dispõe
as leis de Eduardo, o Confessor. É mesmo
que “que nenhum homem de qualquer estado
significativo que não tenha se preocupado
ou condição que ele seja, possa ser posto
em confirmar as leis de Haroldo II, que era
fora da terra ou da posse, ou molestado, ou
um rei derrotado, mas as de Eduardo, um rei
aprisionado, ou deserdado, ou condenado à
amado pelo povo.
morte, sem ser antes levado a responder a um
Ao jurar as leis de Eduardo, o rei devido processo legal”.
normando Guilherme I obteve diversos Com o tempo, o poder de fazer leis do
efeitos, alguns dos quais ele próprio talvez país passou do soberano ao Parlamento. E o
não tenha percebido. O primeiro efeito foi dever de respeitá-las – que já atingia o povo –
declarar-se a si próprio um continuador do passou cada vez mais a afetar o soberano.
rei saxão. Com isso, não salientou tanto sua Assim, a evolução do devido processo
imagem de conquistador, mas construiu uma legal, na Inglaterra, está ligada ao poder
imagem de revente continuador da tradição do povo de fazer leis e ao dever de todos
jurídica posta. de respeitá-las. O Parlamento inglês –
Outro efeito foi o de, pela primeira representante dos comuns – é o único Poder
vez, construir um conceito que se tornaria na Inglaterra.
essencial para o Direito. Hoje, o sistema jurídico inglês vive uma
Trata-se do dever do governante de não crise – no sentido construtivo da palavra,
respeitar apenas as suas leis, mas também a isto é, como ocasião de renascimento e
dos seus antecessores. As leis editadas pelos reconstrução. Trata-se de sua integração
monarcas anteriores se tornam, com sua à União Européia, fato que interferirá na
morte, leis da terra (Legem Terræ). concepção de que o Parlamento é o único
Essa tradição se transferiu aos monarcas poder político a que os ingleses devem, de
que se seguiram a Guilherme I. fato, reverência.

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Essa integração redundará em uma para resolver problemas entre as colônias e a
modificação – muitas vezes radical – no Inglaterra. Ouviu de Glenville o seguinte:
ordenamento jurídico inglês, a fim de Vocês, americanos, têm idéias erradas sobre
adaptá-lo aos contornos do Direito a nossa Constituição. Pretendem que as
instruções que o rei dá a seus governadores
Comunitário europeu.
não têm força de lei, e consideram-se livres
para aceitar ou recusar essas instruções,
2 Breve histórico do princípio conforme lhes parece. Mas essas instruções
não são como recomendações pessoais dadas
do devido processo legal a um embaixador para ajudá-lo a conduzir-se
nos EUA num cerimonial pouco complicado. Em
primeiro lugar, são elaboradas por juízes
A história dos EUA , por sua vez, versados em direitos; são em seguida
estudadas, discutidas, por vezes emendadas
conecta-se de maneira muito peculiar à
pelo Conselho; finalmente, assinadas pelo
história da Inglaterra. rei. Então, tornam-se a lei do país para
Como primeiro ponto de ligação os americanos, porque o rei é o legislador
das colônias.
encontra-se a mesma tradição lingüística.
Falar a mesma língua é, evidentemente, um E segue Franklin:
formidável traço de união. Apenas por essa Respondi a Sua Senhoria que era semelhante
razão, aparentemente trivial, entre os EUA e a teoria inteiramente nova para mim. Sempre
pensei que, de acordo com nossas cartas
Inglaterra haverão sempre mais semelhanças
constitucionais, as nossas leis deveriam
que diferenças. ser elaboradas por nossas assembléias e
Outrossim, as tradições cultural e apresentadas em seguida ao rei para serem
aprovadas; uma vez aprovadas, o rei não
educacional estão fortemente conectadas.
poderia mais aboli-las, nem alterá-las. E, do
As universidades americanas, especialmente mesmo jeito que as assembléias não podiam
as mais tradicionais, são claramente fazer leis permanentes sem sua aprovação,
assim também o rei não podia fazer leis sem
influenciadas pelas universidades inglesas,
a aprovação das assembléias. Assegurou-me
especialmente Oxford e Cambridge. Para que eu estava inteiramente errado. Mas não
ficar com um exemplo bastante trivial concordei”.5
dessa influência, a sede da Universidade Tal como hoje ocorre entre os EUA e seus
Harvard, a mais antiga dos EUA, fica em satélites, a democracia é, mais do que tudo,
uma cidade do estado de Massachusets um produto de consumo interno.
chamada justamente Cambridge. Por tal razão, as relações entre a Inglaterra e
Por outro lado, os EUA viram a Inglaterra, os EUA têm componentes de amor e de ódio.
por muitos anos, como a potência dominadora No caso da tradição jurídica, a Constituição
e repressora. Neste passo, é interessante dos EUA reflete a preocupação de rompimento
sublinhar que a tradição democrática da com certas práticas jurídicas da Inglaterra.
Inglaterra não se aplicava nas relações com
São exemplos disso o art. 1º, seção 9ª,
suas colônias.
O founding father Benjamin Franklin, por
exemplo, relata um diálogo que teve com o 5
FRANKLIN, Benjamin. “Autobiografia”, apud
BRUCKBERGER, R. L. A república americana, trad. de
primeiro-ministro inglês George Grenville Mercedes Zilda Cobas Felgueras, Rio de Janeiro: Fundo
em 1757, quando foi enviado a Londres de Cultura, 1960, p. 51-52.

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cláusula 3ª, primeira parte, que proíbem as A solução que se obteve foi a adoção
leis condenatórias (acts of attainder) e o de uma federação. Ponto, portanto, para os
art. 1º, seções 9, cláusula 8ª, primeira parte federalistas. Contudo, a Constituição adotada
e 10, cláusula 1ª, última parte, que proíbe a foi escrita por Jefferson e deixou de enfrentar,
concessão de títulos de nobreza tanto pela por exemplo, questões cruciais como a da
União quanto por qualquer estado-membro. escravidão. Ponto para os antifederalistas.
No entanto, uma tradição permaneceu e Com isso, a União foi formada sobre a
conectou para sempre os sistemas jurídicos idéia de que os homens – todos os homens –
da Inglaterra e dos EUA. nasceram iguais e devem como tais ser
A 5ª emenda da Carta de Direitos, que tratados. Alguns estados-membros dessa
entrou em vigor em dezembro de 1791, dispôs União, especialmente os do sul, seguiram
que “ninguém (…) poderá ser privado da com a idéia de que alguns homens nasceram
vida, liberdade, ou propriedade, sem devido para servir os demais na condição de escravos.
processo legal”. Assim, embora aceitassem que a União
Essa evolução é, porém, muito diversa da dos estados-membros tivesse um estatuto
que se deu na Inglaterra. Foi radicalmente de direitos humanos mais completo, não
moldada por componentes políticos e étnicos aceitavam praticá-lo em seus territórios.
que, na época da formação do princípio O tempo passou e verificou-se um
do devido processo legal, inexistiam na desenvolvimento econômico desigual, se
Inglaterra. comparados os estados-membros do sul e
O componente político foi a existência do norte. O norte desenvolveu sua economia
de duas correntes durante a Convenção da com inúmeras indústrias. O sul, por sua vez,
Filadélfia, os federalistas e os antifederalistas. formado por estados-membros fortemente
Os federalistas, representados especialmente escravistas, seguiu com a economia agrícola.
por James Madison, Alexander Hamilton e Estava explicada essa opção tendo em conta
John Jay, advogavam a adoção de um modelo a utilização de mão-de-obra escrava.
federativo, em que os estados-membros Contudo, a economia do norte já exibia
abriam mão de uma parcela significativa a vocação do expansionismo. Queria instalar
de suas competências – especialmente a indústrias também no sul, a fim de dar
liberdade para adotar a forma de Estado e de conta da demanda crescente. Queria vender
governo, a soberania e o poder de negociar seus produtos industrializados aos estados-
diretamente com nações estrangeiras. membros do sul. Contudo, os negros do
Os antifederalistas, representados por sul não eram bons operários, porque não
George Mason, Thomas Jefferson, Patrick treinados. E os aristocráticos brancos do sul,
Henry e Richard Henry Lee, sustentavam que naturalmente, não se sujeitariam a trabalhar
a nova ordem constitucional deveria assumir como operários. Daí a dificuldade de instalar
a forma de uma confederação de Estados indústrias. Além disso, o potencial de compras
independentes. Essa seria a melhor forma de do sul estava reduzido pelo menos à metade,
preservar as tradições culturais de cada uma pois os escravos negros estavam à margem do
das antigas colônias. mercado, impossibilitados de consumir.

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Daí porque os estados-membros do norte do Compromisso do Missouri” (Missouri
começaram a pressionar os estados-membros Compromise Act), de 1820, que proibia a
do sul para acabar com a escravidão. Essa escravidão em territórios federais acima de
pressão se deu por meio dos órgãos de uma linha por ela estabelecida. Com a morte
imprensa do norte, que começaram a mostrar de John Emerson, sua viúva transferiu a
os aspectos injustos e bizarros da escravidão. “propriedade” de Scott para o seu irmão,
A pressão também se deu por meio John Sanford, que levou-o de volta para St.
do Congresso, instalado no Distrito de Louis. Scott iniciou, então, uma luta judicial
Columbia, no norte do país. Os políticos para ver-se declarado livre; argumentou
e industriais do norte influenciaram o que com o período que viveu em território
Congresso a, por exemplo, votar uma lei federal adquiriu a condição de “cidadão dos
que proibia a importação de negros cativos Estados Unidos” e, portanto, não poderia ser
da África (1808); ou a considerar pirataria, escravizado. Tentou, em juízo, caracterizar
punida com a morte, essa atividade (1820). seu aprisionamento como um seqüestro, a
Os conflitos – que no fundo eram conflitos privação ilícita da liberdade de um homem
sobre duas concepções do capitalismo – se livre, um cidadão e portador de direitos
acentuaram. na ordem civil. Essa ação foi inicialmente
Atingiram um primeiro clímax em 1856, julgada procedente por um tribunal do
com o caso Dred Scott v. Sandford.6 Missouri e, depois, por um tribunal federal,
O caso Dred Scott, como ficou conhecido, não conhecida. Tornou a propor a ação e
é importante por inúmeras razões. perdeu na Suprema Corte do Missouri – corte
Foi a segunda vez que a Suprema Corte que catorze anos antes havia reconhecido a
estadunidense anulou um ato do congresso libertação de diversos escravos na mesma
por inconstitucionalidade. A primeira havia situação de Scott – e, posteriormente, na
sido em 1803, com Marbury v. Madison.7 Justiça Federal. Conseguiu levar o caso à
Foi a primeira vez, porém, que a Suprema
Suprema Corte.
Corte julgou inconstitucional uma lei com
O juiz-presidente Taney apresentou
base em uma visão substancial do princípio
a decisão da Suprema Corte, com os
do devido processo legal.
seguintes itens: a) os fundadores dos EUA
E, por último, foi um dos fatores que
não tencionaram tratar o negro como ser
desencadeou a Guerra de Secessão, tamanha
humano; b) conforme a tradição do direito
foi a revolta que causou nos abolicionistas.
estadunidense, portanto, negro não é ser
Dred Scott nasceu escravo no Estado
humano, é coisa; c) viola o princípio do devido
da Virginia. Um de seus proprietários, o
processo legal uma lei que considerasse o
cirurgião do Exército John Emerson, levou-o
negro um ser humano e, com isso, privasse
consigo para o Forte Snelling, no território
alguém de sua propriedade; d) o Congresso não
do Wisconsin. Estava em vigor, então, a “Lei
poderia ter editado lei que contraria a tradição
jurídica dos EUA; e) a Lei do Compromisso do
6
60 U.S. (19 How.) 393 (1856). Missouri (Missouri Compromise Act, 1820) é
7
5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803). inconstitucional, por violação da 5ª emenda;

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f) sendo coisa, o negro não tem capacidade Eis aí o primeiro momento – infeliz
de ser parte; correta, portanto, a decisão que primeiro momento – do princípio do devido
o considerou uma coisa, e não um “cidadão processo legal.
dos Estados Unidos”. A tensão racial cresceu e, com a eleição
Em sua opinão, de triste memória, o juiz- de Abraham Lincoln para a presidência dos
presidente Taney escreveu: EUA, os estados-membros do sul declararam
A questão é simples assim: pode um negro, a secessão e o país mergulhou em uma
cujos ancestrais foram importados para este guerra fraticida.
país, e vendidos como escravos, tornar-se
Ao final da guerra, foram editadas duas
membro da comunidade política formada
e instituída pela Constituição dos Estados emendas à Constituição dos EUA. A 13ª
Unidos, e assim tornar-se titular de todos os e a 14ª. A 13ª acaba, definitivamente, com
direitos, privilégios, e imunidades, garantidas a escravidão.
por esse instrumento ao cidadão? Um desses
direitos é o privilégio de propor uma ação A 14ª é ainda mais importante, pois
em uma corte dos Estados Unidos nos casos afirma:
especificados na Constituição. (…) Pensamos
Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas
que não, e que eles não estão incluídos, e que
nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição,
não se intentou que fossem incluídos, sob
são cidadãs dos Estados Unidos e do estado-
a palavra ‘cidadãos’ na Constituição, e que
membro onde residam. Nenhum estado-
não podem reclamar nenhum dos direitos e
membro poderá fazer ou aplicar nenhuma
privilégios por ela criados e garantidos aos
lei tendente a abolir os privilégios ou as
cidadãos dos Estados Unidos. Ao contrário,
imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos;
eles foram naquele tempo considerados como
nem poderá retirar-lhes a vida, a liberdade, ou
uma subordinada e inferior classe de coisas,
a propriedade, sem o devido processo legal;
que foram subjugados pela raça dominante,
nem poderá denegar a nenhuma pessoa sob sua
e, ainda que emancipados ou não, continuam
jurisdição igual proteção das leis.
sujeitos à sua autoridade, e não têm direitos ou
privilégios, mas apenas aqueles que o poder Essa emenda foi editada com o
e o governo eventualmente lhes conferir. (…)
objetivo imediato de revogar uma antiga
Ninguém dessa raça jamais imigrou para
os Estados Unidos voluntariamente; todos jurisprudência da Suprema Corte dos EUA,
foram trazidos para cá como mercadorias. Barron v. Baltimore,9 para a qual a Carta
O número dos que estavam emancipados, de Direitos da União não se aplicava aos
ao tempo da elaboração da Constituição, era
estados-membros. Outro objetivo, mais
muito menor do que os que eram mantidos
escravos; e estavam identificados, na opinião amplo, foi assegurar um desenvolvimento
pública, com a raça à qual pertenciam, em não uniforme dos estados-membros.
com a população livre. É óbvio que eles não Contudo, para que se tenha uma idéia
estavam na mente dos autores da Constituição da resistência que sofre esse conceito de
quando eles conferiram direitos e privilégios
submissão dos ordenamentos jurídicos
aos cidadãos de um Estado em qualquer parte
do território pertencente à União.8
estaduais ao ordenamento da União, diga-se
que a Suprema Corte levou aproximadamente
cem anos para começar a dar-lhe aplicação
8
TANEY, Roger B. “Opinião”, em Dred Scott no âmbito do processo penal.
v. John F. A. Sandford, 60 U.S. (19 How.) 393, 403-
405, 411-412 (1856), em www.findlaw.com/casecode/
supreme.html (acesso em maio de 2005). 9
32 U.S. (7 Pet.) 243 (1833).

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Quanto ao devido processo legal 3 Breve histórico do princípio
substancial, na década de trinta do século do devido processo legal
vinte ele serviu primacialmente como no Brasil e uma tentativa de
ferramenta de proteção da propriedade e conclusão
da liberdade, vista primacialmente como
liberdade de iniciativa. A primeira Constituição brasileira a fazer
Um exemplo dessa visão privatista do expressa menção ao princípio foi a de 1988,
devido processo legal se deu quando do no inciso LIV do art. 5º.
período do “Novo Acordo” (New Deal), Até então, conforme vimos no início
proposto e colocado em prática pelo desta exposição, prevaleceu, na doutrina e
presidente Franklin D. Roosevelt. A Suprema jurisprudência, a visão formalística do
Corte impugnou essa política através de princípio.
diversas decisões que consideraram que A primeira notícia, no Brasil, do princípio
a intervenção do Estado na economia do devido processo legal substancial vem
uma forma desarrazoada de retirada da com o livro “A Corte Suprema e o Direito
propriedade “sem o devido processo legal”. Constitucional americano”, da Professora
O enfrentamento entre a Corte e o presidente Lêda Boechat Rodrigues, publicada em
Franklin D. Roosevelt foi tamanho que, no
1958.10 Nessa notável obra, ao comentar o
início de 1937, ele elaborou e enviou ao
caso Chicago Milwaukee and St. Paul R. Co
Congresso um pacote de leis, conhecido
v. Minnesota,11 a querida professora carioca
como “Pacote da Suprema Corte” (Court
escreveu que, nesse julgamento, “iria a
Packing Plan). Esse pacote visava aposentar
Corte converter a cláusula de due process
diversos juízes antipáticos às medidas e
numa restrição positiva, sustentando dever
aumentar o números de magistrados da
o Judiciário dar-lhe, obrigatoriamente, força
Suprema Corte. Assustados com essa
possibilidade, os juízes da Suprema Corte executiva, sempre que os departamentos dos
passaram a, paulatinamente, diminuir a Estados procurassem, a seu ver, impor tarifas
oposição ao “Novo Acordo”. arbitrárias e irrazoáveis”.12
Hoje, a Suprema Corte dos EUA evoluiu E segue a grande pesquisadora, a respeito
na sua compreensão do princípio do devido da cláusula do devido processo legal:
processo legal. Pode-se dizer que não o utiliza Ela passaria, agora, a ser instrumento ilimitado
mais como um instrumento de manutenção de avaliação da constitucionalidade não só das
leis estaduais como das leis do Congresso,
do statu quo, como já o utilizou outrora.
através do exame do seu acordo com a
Concentra-se na solução de questões
relacionadas com a igualdade substancial das
pessoas – o que a Constituição estadunidense 10
RODRIGUES, Lêda. A Corte Suprema e o
Direito Constitucional americano. Rio de Janeiro:
denomina de “igual proteção das leis”
Forense, 1958.
(equal protection of the laws). A questão 11
134 U.S. 418 (1890).
das políticas de ação afirmativa, as questões
12
RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema
relacionadas com a família e outras, estão na e o Direito Constitucional americano, Rio de Janeiro:
pauta de discussões da Suprema Corte. Forense, 1958, p. 96.

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razão (reasonableness). Determinar o que É discutível que devêssemos lançar mão de
constituía o due process transformou-se (…) um único princípio, posto que amplo, para
na consideração mais importante do direito
constitucional americano. E, uma vez que, pela
resolver todos os problemas.
aplicação da ‘regra da razão’ (rule of reason), E é da tradição constitucional brasileira
a decisão judicial envolvia, na realidade, que as leis devam obediência a toda a
o julgamento baseado em considerações
Constituição, tanto aos princípios quanto
de ordem social e econômica, a cláusula
do processo legal regular, entendida como às regras. A diferença é que as leis podem
proteção substantiva, atribuiu aos tribunais violar as regras constitucionais e, quanto aos
poder quase legislativo.13 princípios, a violação é sempre tendencial:
Em 1989, pouco menos de um ano após uma lei tende a violar um princípio.
a promulgação da Constituição cidadã, veio Quanto à razoabilidade minhas dúvidas
a lume o livro “O devido processo legal e a são ainda maiores. É óbvio que as leis devem
razoabilidade das leis na nova Constituição ser razoáveis, como qualquer ato jurídico.
do Brasil”, do Professor Carlos Roberto de A regra da razão, no sistema constitucional
Siqueira Castro.14 Nessa obra, que já nasceu brasileiro, não existe senão como instrumento
um clássico do Direito Constitucional, hermenêutico e não de construção de regras
defende o autor que a Constituição brasileira abstratas fora do Congresso.
albergou o princípio do devido processo legal Como o Juiz Associado da Suprema Corte
e da razoabilidade das leis.
dos EUA, Hugo Lafayette Black, temo que a
Tenho cá minhas dúvidas de que se
regra da razão sirva como uma farmacopéia
precisasse chegar a tanto. Com efeito, a
para que um tribunal qualquer – que, afinal,
Constituição brasileira de 1988 é em tudo
é formado por profissionais que não foram
diferente da Constituição estadunidense. As
eleitos para suas funções – anule todo e
diferenças partem do próprio título. Enquanto
qualquer ato emanado dos demais poderes
é sempre necessário designar a Constituição
que não se adapte à sua visão particular de
brasileira a partir do ano de sua promulgação,
tantas foram nossas aventuras constitucionais, uma questão qualquer. Não todas, mas muitas
a equivalente norte-americana foi somente vezes, para citar o testemunho insuspeito do
uma. Seu corpo é rigorosamente o mesmo, Juiz Hugo Black, o argumento de falta de
desde 1787. Embora seja correto dizer razoabilidade das leis carece de seriedade.15
que foi alterada inúmeras vezes desde sua Afinal de contas, não foi com base na
promulgação, as 27 emendas ratificadas razoabilidade da lei que a Suprema Corte
por três quartos dos estados-membros não dos EUA afirmou que um negro não é gente
a mutilaram. e que qualquer lei que tenhar atribuir-lhe essa
Além disso, a Constituição brasileira é qualidade é inconstitucional?
analítica e está plena de princípios e de regras. Eu sequer penso em negar a importância
de estudar e compreender a tradição
13
RODRIGUES, Lêda Boechat. Idem, p. 139-140.
14
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. O devido 15
BLACK, Hugo Lafayette. Crença na Constituição,
processo legal e a razoabilidade das leis na nova trad. de Luiz Carlos F. de Paula Xavier e Paulino Jacques,
Constituição do Brasil, Rio de Janeiro: Forense, 1989. Rio de Janeiro: Forense, 1970, p. 44.

109
constitucional norte-americana. Essa REFERÊNCIAS
compreensão somente se justica, porém, na
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos
medida em que servir para que possamos sobre o Processo Criminal brasileiro, ed. anot.,
compreender a nossa própria. atual. e compl. por José Frederico Marques,
E a primeira lição que os americanos facsimilar à ed. de 1857. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1959. p. 228.
nos passam é a importância de compreender
nossas próprias origens e usá-las como baliza CASTRO, Carlos Roberto Siqueira de. O devido
processo legal e a razoabilidade das leis na
para os futuros caminhares. E a nossa tradição
nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro:
constitucional, coitadinha, é tão esquecida. Forense, 1989.
A propósito e sem o desejo de chegar a
FRANKLIN, Benjamin. “Autobiografia”,
uma firme e inapelável conclusão, deixem-me apud BRUCKBERGER, R. L. A república
fazer ao menos uma tentativa de conclusão. americana, trad. de Mercedes Zilda Cobas
Ao analisar as leis e os atos normativos Felgueras. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura,
1960. p. 51-52.
públicos em face da Constituição, poderíamos –
à maneira dos “originalistas” ianques – LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Comentários
ao Código de Processo Penal brasileiro. Rio de
resgatar um belo dispositivo da nossa
Janeiro-São Paulo: Freitas Bastos, 1942, v. 1, p. 20.
Constituição do Império e transformá-lo em
PESSOA, Vicente Alves de Paula. Código do
um norte para a interpretação constitucional Processo Criminal, 1880, p. 20.
das leis.
RAMALHO, Joaquim Ignácio. Praxe brasileira,
Trata-se do art. 179, inciso II, que dispôs: São Paulo: 1869, pp. 5, 8, 51, 52 etc.
A inviolabilidade dos direitos civis e políticos RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema
dos cidadãos brasileiros, que tem por base e o Direito Constitucional americano, Rio de
a liberdade, a segurança individual, e a Janeiro: Forense, 1958.
propriedade, é garantida pela Constituição do
TANEY, Roger B. “Opinião”, em Dred Scott
Império, pela maneira seguinte (…) Nenhuma
v. John F. A. Sandford, 60 U.S. (19 How.) 393,
lei será estabelecida sem utilidade pública. 403-405, 411-412 (1856), em www.findlaw.com/
casecode/supreme.html (acesso em maio de 2005).
De fato. Desde que dado o devido
peso a cada uma das palavras, a questão
da legitimidade da lei face à Constituição
principia e se esgota nessa singela realidade.
As leis são írritas se não corresponderem aos
valores constitucionais. São inválidas se não
atenderem à utilidade pública substancial.
Nesta época, em que inúmeros e
inconfessáveis interesses privados muitas
vezes se contrapõem e negam o interesse
público, quando a legislação é feita aos
empurrões, o respeito a esse dístico seria
um notável avanço para o todo de nosso
ordenamento jurídico.

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TÍTULO DE HONORIS CAUSA

Oração proferida, à comunidade acadêmica, em 5 de março de 2007,


pelo Prof. Dr. António José Avelãs Nunes, por ocasião do recebimento
do Título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Paraná,
no Salão Nobre da Faculdade de Direito.

Senhor Reitor da Universidade Federal do Paraná, Senhor Decano do Conselho Universitário,


Senhores Membros do Conselho Universitário, Senhor Director da Faculdade de Direito da UFPR,
Senhor Reitor da Universidade de Coimbra, Caros Colegas, Prezados Estudantes, Meus Amigos.

1 – A minha primeira palavra é, por Alberto Machado, que esteve, desde o início,
imperativo de consciência, que não por entre o pequeno grupo que pôs em marcha a
razões protocolares, para saudar o Reitor ideia de me ser concedido o título de Doutor
da UFPR e, na sua pessoa, homenagear esta Honoris Causa, ideia que defendeu perante o
Universidade, a mais antiga criada no Brasil, Conselho Universitário, em seu nome e em
tal como a Universidade de Coimbra é a nome da sua Faculdade.
mais antiga universidade portuguesa, talvez Devo uma palavra de reconhecimento
mesmo a mais antiga universidade pública ao Prof. Rogério Molinari, que foi relator
europeia, criada que foi por acto régio de do processo que conduziu à aprovação
D. Dinis. pelo Conselho Universitário da proposta de
Quero dizer-lhe, Senhor Reitor Carlos concessão do título de Doutor Honoris Causa.
Moreira Júnior, que é uma honra para mim Os médicos estão habituados a lidar com
passar a fazer parte do claustro dos doutores casos difíceis e a salvar todos os que recorrem
desta Universidade. Muito obrigado por aos seus serviços, os bons e os maus. Perante
ter acolhido a proposta da Faculdade de este caso difícil, o Prof. Molinari empenhou-
Direito e por tê-la apoiado junto do Conselho se em salvar a minha causa, apesar dos poucos
Universitário. méritos dela. Aqui lhe deixo o testemunho da
É tempo, agora, de homenagear a minha gratidão.
Faculdade de Direito da UFPR, que me Uma palavra de agradecimento é devida
habituei a considerar a minha segunda Casa. aos Membros do Conselho Universitário, que
Faço-o na pessoa do seu Director, Prof. Luiz decidiram por unanimidade outorgar-me a

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mais alta distinção universitária. A vossa Prof. Eng. Fernando Seabra Santos, que
decisão encheu-me de alegria, mas impôs-me entendeu dever estar pessoalmente presente
um pesado encargo. O de ser digno da distinção nesta cerimónia, num gesto que muito me
que me foi concedida. sensibiliza e que diz bem do grau de exigência
Comovidamente, aqui deixo o meu abraço com que o Doutor Seabra Santos encara o seu
fraterno a todos os Colegas desta Faculdade múnus reitoral. Sublinhado o gesto do Reitor,
de Direito da UFPR, que me acompanharam direi ao Amigo: apesar dos meus esforços
ao longo do caminho que conduziu à para te dissuadir de fazer a viagem, decidiste
deliberação do Conselho Universitário em vir. Bem hajas pela tua amizade.
razão da qual aqui nos encontramos. Não duvido de que a honra que
Sem esquecer nenhum dos outros, me é concedida – a maior honra a que
que daqui saúdo com amizade, recordarei um universitário pode aspirar – só
dois deles. circunstancialmente tem que ver com os
O Prof. Luiz Edson Fachin, por cuja mão meus méritos pessoais. Na minha pessoa,
visitei pela primeira vez esta Faculdade e quiseram V. Exªs homenagear a Universidade
a cidade de Curitiba. O nosso encontro foi de Coimbra, a Universidade criada em 1290
um caso de amizade à primeira vista, que por um rei-poeta, “plantador de naus”.
se multiplicou numa cadeia de amizades Mas o simples facto de terem V. Exªs
que ultrapassaram esta terra de pinhais e as entendido que eu poderia ser o pretexto para
fronteiras do Paraná, estendendo-se a todo esta homenagem à Universidade de Coimbra
o Brasil. é uma distinção que eu só mereço por uma
A Prof.ª Aldacy Coutinho, a cuja amizade razão: porque V. Exªs assim o decidiram.
e generosidade devo a sementeira de ideias Não posso cometer a indelicadeza – que
e de afectos que frutificou no momento seria, ainda por cima, ingratidão – de pôr em
feliz que hoje vivo convosco, neste edifício causa a justeza da vossa decisão. Aceito-a
histórico, símbolo da Universidade e símbolo com toda a humildade, invocando – e já não
da Cidade. é pouca imodéstia da minha parte – o dito
A todos os meus Amigos brasileiros de um personagem de Saramago: “conheces
(alguns aqui presentes) quero agradecer o nome que te deram, não conheces o nome
o privilégio de me aceitarem como seu que tens”. Eu sei apenas o nome que os meus
amigo e a honra de poder contá-los entre pais me deram, não conheço o nome que
os meus melhores Amigos. Não vou dizer tenho, não conheço a ideia que os outros
os seus nomes. Eles sabem – os presentes fazem de mim.
e os ausentes – a quem me refiro. E eu sei Do fundo do coração, agradeço a vossa
quanto lhes devo, no plano intelectual e no generosidade para comigo. E fico-me por aqui
plano afectivo. em matéria de agradecimentos. Porque acredito
Permita-me, Senhor Reitor Carlos Moreira, que, “em assuntos de sentimento, quanto maior
uma palavra de sentido reconhecimento for a parte de grandiloquência, menor será a
ao Reitor da Universidade de Coimbra, parte de verdade”. (José Saramago)

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2 - Se eu fosse Fernando Pessoa/Bernardo (Miguel Torga), “gente cujo rosto / Às vezes
Soares, saberia “dar a cada emoção uma luminoso / E outras vezes tosco / Ora me
personalidade, a cada estado de alma, uma lembra escravos / Ora me lembra reis”,
alma”. Mas não sou. Por isso, fiel à cultura para utilizar os versos com que uma poetisa
camponesa da minha terra, vou tentar contar- portuguesa (Sophia de Mello Breyner)
vos algumas histórias. caracteriza o povo português.
Em 1985, coube-me o privilégio de fazer o Poderia falar-vos dos meus cinco tios que
elogio académico de Tancredo Neves, recém- tiveram de emigrar para o Brasil e por cá
eleito Presidente do Brasil, na cerimónia morreram brasileiros, quase tão pobres como
solene do seu Doutoramento Honoris Causa quando chegaram, deixando por cá filhos,
pela Faculdade de Direito da Universidade netos e bisnetos.
de Coimbra. Saudei-o como descendente de Poderia contar-vos a história do meu
portugueses dos Açores que se manteve fiel próprio pai, que, em meados do século
aos ideais democráticos. Mas nele saudei, passado, tentou também ele a sua sorte
jubilosamente, o povo brasileiro que acabara em terras brasileiras, sorte madrasta que o
de se libertar da ditadura. obrigou a regressar a casa, mais pobre e mais
Na parte final da cerimónia, ostentando sofrido do que quando dela partira.
já o anel, a borla e o capelo de Doutor O sangue brasileiro é, pois, sangue do
em Direito, Tancredo Neves tomou o seu meu sangue. Este parentesco faz-me feliz e
lugar nos cadeirais, junto de mim. Com ar quase me autoriza a considerar-me brasileiro
cansado, muito comovido, segredou: “Valeu por direito próprio.
a pena ter chegado até hoje, só para viver
este momento”. 4 – Mas esta é uma memória que pouco
Perante vós, nesta Sala dos Actos Solenes, vos interessa. Talvez valha a pena, porém,
é o que me apetece dizer, não em segredo, recordar aqui uma outra memória, a memória
mas em voz alta. de um “tempo carcerário” (Orlando de
Carvalho), um tempo em que a Pátria era
3 - Chegado aqui, poderia apresentar- “lugar de exílio” (Daniel Filipe), um tempo
me como o fez José Saramago no discurso de raiva, em que os poetas tinham “remorsos
que proferiu ao receber o Prémio Nobel da da beleza”, invectivavam o sol, por “nascer
Literatura, no qual contou histórias dos avós todos os dias / no emprego burocrático de dar
pastores de porcos, com os quais viveu a razão aos relógios”, um tempo em que, mais
infância. Também eu poderia falar dos meus uma vez nos versos de José Gomes Ferreira,
avós analfabetos, moleiro um, pastor de os poetas faziam “versos contra a Paisagem
cabras o outro. E falar do meu pai alfaiate do mundo / — essa prostituta que parece
e da minha mãe costureira. Esta é a minha andar à ordem dos ricos para adormecer
linhagem. Estas são as minhas raízes, raízes os pobres”.
fincadas no povo “que trabalha dia e noite Nesse tempo salazarento, concluí em
sem esmorecer”, no povo que faz a história 1962 a minha licenciatura em Direito,
mas “não cabe nas crónicas” dos historiadores vivendo de bolsas de estudo desde os quinze

113
anos. O meu projecto de então era ser juiz. algumas cátedras estavam a ser utilizadas
Barraram-me o caminho por razões políticas. para ‘propaganda’ de ideias marxistas.
Pouco depois, recusei um lugar de quadro Entendi – creio que correctamente – que
superior num banco por preferir a carreira a conversa era comigo. E decidi publicar
académica. A polícia política conseguiu adiar numa das revistas da Faculdade, com a
o meu contrato até 1967. E só cedeu perante concordância do respectivo Director, um
a acção determinada do Director da minha capítulo das minhas lições de Economia
Faculdade, talvez a única Escola portuguesa Política em que era clara a influência
que, durante aqueles anos de chumbo, fez marxista. O texto saiu depois em livro, sob o
ponto de honra em não recusar ninguém por título “Os sistemas económicos”. Estávamos
razões ideológicas. em meados de 1973. Não me aconteceu nada,
Como norma de trabalho, creio poder a não ser, porventura, algumas anotações mais
dizer que segui à risca o conselho de na minha ficha na polícia política.
Fernando Pessoa/Ricardo Reis (Odes): “Sê
6 – Entretanto, com a Revolução dos
todo em cada coisa. Põe quanto és / No
Cravos (25 de Abril de 1974), chegou o
mínimo que fazes”. Mas foi o conselho
dia em “emergimos da noite e do silêncio”
de um grande Mestre da minha geração,
(Sophia), uma longa noite de 48 anos. Estava
o Doutor Orlando de Carvalho, que mais
desde Setembro/1973 em Paris a preparar a
profundamente marcou a minha atitude de
minha tese de doutoramento. Fui a Portugal
universitário: “Faça-se respeitar tal como
ver a festa. E já não regressei, mobilizado
é. Para isso é preciso pisar os terrenos do
que fui para integrar o 1º Governo do
adversário”, disse-me ele quando entrei na
Portugal liberto do fascismo. Esse foi o meu
Faculdade como segundo-assistente. E assim
trabalho, responsável pelo Ensino Superior e
procurei fazer, ao longo dos anos.
Investigação Científica, até Setembro de 1975.
Com a queda do último Governo presidido
5 – Com o início da guerra colonial,
pelo General Vasco Gonçalves, regressei a
a opressão agravou-se em Portugal. Em Coimbra e à Faculdade de Direito. Os tempos
1969, os estudantes da UC, em protesto conturbados da contra-revolução ‘obrigaram-
contra o regime, contra a guerra e contra a me’ a dedicar boa parte do meu tempo e das
opressão, fizeram greve a exames, com uma minhas energias a actividades cívicas que
adesão superior a 90%. O governo abanou foram adiando o meu doutoramento. Afinal, “
e o ministro foi substituído. Uns tempos a vida é o que fazemos dela”, como escreveu
depois, o novo ministro anunciou reformas Fernando Pessoa…
que sofreram forte contestação dos sectores Concluída, finalmente, a tese em Julho
mais à direita dentro da Universidade. Num de 1983, prestei provas em Maio de 1984.
relatório apresentado ao Senado universitário Pois bem. Apesar das “portas que Abril
o Director da minha Faculdade criticava abriu” (Ary dos Santos), neste Maio dez
duramente aquelas reformas e insinuava que anos depois de Abril, corri o risco de ficar
as coisas já tinham ido longe demais, que reprovado, de novo por razões políticas.

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A minha tese estuda a problemática do lugar na Universidade. Assim mesmo, como
desenvolvimento na América Latina, quem diz: cá se fazem, cá se pagam.
particularmente no Brasil. Pois um dos
arguentes (exterior à Universidade de 7 – Obtido, nestas condições, o título
Coimbra) foi a ponto de inventar um autor de Doutor, o Conselho Científico da minha
argentino – que depois confirmei nunca ter Faculdade deliberou, por unanimidade, a
existido! – para me acusar da ignorância minha contratação como professor, o que me
grave de desconhecer o principal adversário permitiu continuar na carreira universitária.
de Raul Prebisch, o grande economista Por unanimidade viria também a ser aprovado
argentino, primeiro Director da CEPAL , no concurso para professor associado.
cujas ideias analisei na minha tese. Tudo Anos mais tarde, quando me apresentei a
isto para votar a minha reprovação. provas públicas para obter o título de agregado,
Na tese, defendia, em síntese, que o o professor que tinha querido reprovar-me
único desenvolvimento digno desse nome é o por eu ser um cientista comprometido, era
“desenvolvimento do povo, pelo povo e para professor catedrático da minha Faculdade
o povo”. E concluía perguntando se um tal e, segundo as praxes, seria o arguente da
desenvolvimento poderá ocorrer no quadro lição de síntese que eu teria de apresentar
do capitalismo. Terminava deste modo as publicamente, nos termos da legislação que
mais de mil páginas da tese, editada no regula as provas de agregação. Entendi, por
México pelo Fondo de Cultura Económica e isso, ser meu dever deixar claro que eu era
recentemente editada no Brasil pela Quartier mesmo um cientista comprometido, para ser
Latin, com prefácio de Celso Furtado (o julgado como tal.
último escrito do grande jurista/economista Na minha lição (que publiquei em
brasileiro, que aqui recordo, carinhosamente, livro logo a seguir) defendi a tese de que
como um dos meus Mestres): “Por nós, a Economia Política surgiu como “ciência
defendemos que a via socialista é aquela da burguesia”, comprometida com a acção
que permite a mais eficaz mobilização dos da burguesia revolucionária no sentido de
recursos disponíveis para a prossecução acelerar a desagregação da ordem feudal e
dos objectivos enunciados, garantindo de erguer a nova ordem burguesa, do mesmo
uma distribuição mais igual de sacrifícios modo que a teoria económica marxista
e benefícios. Acreditamos, com Teixeira (enquanto Crítica da Economia Política)
Ribeiro – Catedrático de Coimbra com se assumiu como “ciência do proletariado”,
quem sempre trabalhei –, que “o socialismo comprometida com a transformação do
realizado mostra ser uma técnica eficiente de mundo, empenhada em “dar à classe operária
desenvolvimento de países pobres”. (…) a consciência das condições e da natureza
Talvez por isso, um outro membro do da sua própria acção”. (Engels)
júri (também exterior à Universidade de Defendi que a ciência económica sempre
Coimbra) votou a minha reprovação alegando esteve, desde as origens, comprometida com
na sua declaração de voto que eu era um um determinado projecto de sociedade. Foi
cientista comprometido, pelo que não tinha assim com os fisiocratas, com Adam Smith

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e com David Ricardo. Foi assim com Karl (Odes, Ricardo Reis): “A realidade / Sempre
Marx. Foi assim com Keynes, cuja obra é mais ou menos / Do que nós queremos / Só
teórica visou, confessadamente, salvar nós somos sempre / Iguais a nós próprios”.
o capitalismo da derrocada que parecia
iminente, perante as ondas de choque da 8 – Dito isto, creio ser meu dever dizer
Grande Depressão e os horrores do nazi- aqui que, mesmo nos anos de chumbo do
fascismo, já por demais notórios. fascismo, a Faculdade de Direito de Coimbra
Aí fiz uma crítica cerrada do paradigma procurou afirmar-se como uma Escola
marginalista, dos seus pressupostos ideológicos, plural, uma Casa de Cultura, uma Casa de
da sua pretensa neutralidade científica, da sua Liberdade, uma Casa onde o confronto das
concepção de “economia pura”, de “ciência ideias e a tensão da polémica não excluíam
físico-matemática”, “com o mesmo grau de o respeito recíproco, uma Casa onde se
certeza que possui a mecânica racional”. praticava a “liberdade de aprender e de
Procurei mostrar a sua incapacidade para ensinar” que a Constituição do Portugal
compreender o capitalismo, e critiquei a sua Democrático a todos veio garantir. A este
recusa em analisar o poder, as estruturas do propósito, deixem-me contar só mais uma
poder, as relações de poder. Defendi que pequena história.
o mercado é, como o estado, um produto Em 1972, as circunstâncias ofereceram-
social, uma instituição política, e não um me a feliz oportunidade de publicar em livro
mecanismo natural. uma nota minha de crítica ao conteúdo de
Para concluir que a ciência económica uma entrevista de Jan Tinbergen (pouco
é uma ciência política, comprometida com antes galardoado com o Prémio Nobel da
valores. Economia), seguida de um artigo de resposta
Pois bem. Exprimindo-se por voto secreto de Tinbergen e um artigo meu, de maior
(prática estranha na comunidade universitária, fôlego (objecto de cortes vários da Censura, na
que deveria primar pela transparência), o júri revista onde foi originariamente publicado),
deliberou aprovar-me por unanimidade, ou criticando de novo, na perspectiva do
seja, com o voto favorável do professor que marxismo, as concepções social-democratas
votara a minha reprovação no doutoramento defendidas por Jan Tinbergen.
por eu ser um “cientista comprometido”. Chamei ao livro “Do capitalismo e do
O mesmo viria a acontecer no concurso para socialismo”. Acontece que esse livro foi
professor catedrático, pouco tempo depois. lido pelo Doutor Antunes Varela, regressado
Tinha conseguido aquilo que me ao seu lugar de Professor da Faculdade de
propusera: usar plenamente a liberdade de Direito de Coimbra, após vários anos de
investigar e de ensinar; não abdicar nunca ministro do governo de Salazar. Era ele o
deste direito essencial à função de professor; Ministro da Justiça quando fui impedido de
ocupar o meu lugar na Universidade sem me candidatar à magistratura. No entanto,
renegar as minhas ideias. como professor da FDUC e apesar de eu não
Tinha aprendido o vero alcance da lhe ter oferecido o livro, o Doutor Antunes
verdade contida nestes versos de Pessoa Varela escreveu-me uma carta em que, para

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além de outras referências elogiosas, concluía produtividade, que parecem tornar mais
deste modo:”Apesar da ideologia colectivista real a utopia dos clássicos do marxismo
que o perpassa de princípio ao fim, este livro ao assumirem que, um dia, a humanidade
honra o seu autor e a Escola que o formou”. há-de passar do reino da necessidade para
Trago-vos esta história, não para me o reino da liberdade. Sei bem – sabemos
elogiar, mas para homenagear a minha todos – que esse dia não será amanhã.
Faculdade, que gosto de recordar assim: Mas talvez tenhamos razões para acreditar
plural, tolerante, aberta ao diálogo. É por isso que estamos a fazer o caminho. Porque o
que gosto dela. É por isso que gosto também caminho do futuro do Homem passa pela
da minha nova Casa: a Faculdade de Direito educação, pelo progresso científico, pela
da UFPR. democratização do conhecimento e não pela
contra-revolução monetarista e neo-liberal
9 – Vivemos um tempo de grande que inspira a política de globalização, que
esperança e de grande desespero. muitos procuram identificar com a revolução
Um tempo de grande desespero. Porque científica e tecnológica.
sabemos – lembrou-o a FAO há pouco – que Cabe-nos a nós, universitários, trabalhar
cerca de 18 mil crianças morrem de fome para fazer luz nesta noite do “pensamento
todos dias; que 850 milhões de pessoas único” e do “fascismo de mercado” (Paul
deitam-se diariamente sem nada no estômago; Samuelson). E não podemos esperar muito
que o número de pessoas com fome aumenta mais. Porque, dizendo-o com versos de Xico
ao ritmo de cinco milhões por ano. Buarque, “quem espera nunca alcança”.
E, no entanto, todos sabemos que a
humanidade dispõe hoje de recursos para 10 – Termino com um haikai de Helena
evitar este escândalo intolerável. Pesa Kolody:
sobre nós, universitários-cidadãos, pesa
“Sou voz mínima / cantando / no coral
sobre a Universidade-cidadã uma enorme
do mundo”.
responsabilidade. Digo-o com a força dos versos
de uma grande senhora da poesia portuguesa Bem hajam todos por terem querido
(Sophia de Mello Breyner): “Vemos, ouvimos encontrar um lugar para mim no vosso coral.
e lemos. / Não podemos ignorar”. Bem hajam todos por me terem ouvido.
Um tempo de grande esperança também. Perdoem-me pelo tempo que lhes roubei.
Porque a revolução científica e tecnológica
tem proporcionado fabulosos ganhos de Curitiba, 5 de Março de 2007

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