Você está na página 1de 18

Adaptação à universidade em jovens calouros

Adaptação à universidade
Marco Antônio Pereira Teixeira
Ana Cristina Garcia Dias
Shana Hastenpflug Wottrich
Adriano Machado Oliveira

Resumo
O primeiro ano é um período crítico para a adaptação do estudante à universidade. O objetivo desta pesquisa foi investigar, qualitativamente, a experiência
de adaptação à universidade em jovens calouros em uma universidade. Participaram do estudo 14 estudantes de diferentes cursos, com idades entre 18 e
22 anos. Os sujeitos foram entrevistados individualmente e as entrevistas submetidas a uma análise fenomenológica. Quatro grandes temas emergiram da
análise: Saindo de casa, Ingressando na vida acadêmica, Percebendo mudanças em si mesmo e Adaptando-se ao curso. Os resultados indicam que a
adaptação à universidade entre calouros é uma experiência que traz mudanças importantes para os estudantes, e que o sucesso na adaptação depende de
muitos fatores, alguns deles não ligados diretamente ao contexto acadêmico. Apesar disso, o contexto universitário tem um papel importante a
desempenhar no processo de adaptação à universidade.
Palavras-chave: universitários; adaptação; universidade.

Adaptation to university among young freshmen students


Abstract
The first year in university is a critical period for the student’s adaptation. The aim of this research was to investigate, in a qualitative way, the experience
of adaptation to university in a sample of university freshmen. Fourteen students from different courses, aged between 18 and 22 years old, took part in the
study. They were interviewed individually and the interviews were submitted to phenomenological analysis. Four main themes emerged from the analysis:
Leaving home, Starting academic life, Perceiving changes in self, and Adapting to the course. Results suggest that adaptation to university among
freshmen is an experience that produces important changes for the students, and that the adaptation success depends on many variables, some of them not
directly linked to the academic context. However, the university has an important role to play in the process of the students’ adaptation.
Keywords: college students; adaptation; university.

Adaptación a la universidad en jóvenes novatos

Resumen
El primer año es un período crítico para la adaptación del estudiante a la universidad. El objetivo de este trabajo fue investigar cualitativamente la
experiencia de adaptación a la universidad en jóvenes novatos. Participaron del estudio 14 estudiantes de cursos diferentes con edades entre 18 y 22 años.
Los sujetos fueron entrevistados individualmente y las entrevistas pasaron un análisis fenomenológico. Del análisis surgieron cuatro grandes temas:
Saliendo de casa, Ingresando en la vida académica, Percibiendo cambios en si mismo y Adaptándose al curso. Los resultados indican que la adaptación a
la universidad entre novatos es una experiencia que trae cambios importantes para los estudiantes, y que el suceso en la adaptación depende de muchos
factores, siendo que algunos de ellos no se relacionan directamente al contexto académico. Pese a eso, el contexto universitario tiene un papel importante
para desempeñar en el proceso de adaptación a la universidad.
Palabras clave: universitarios; adaptación; universidad.

185
profissão (ou curso) em si (Lassance & Gocks,
Introdução
1995).
De fato, a experiência universitária não se
As experiências durante o primeiro ano na
resume à formação profissional. Especialmente nos
universidade são muito importantes para a
anos iniciais, e para aqueles jovens que concluem o
permanência no ensino superior e para o sucesso
ensino médio e ingressam logo em seguida em um
acadêmico dos estudantes (Pascarella & Terenzini,
curso superior, a universidade tem um impacto que
2005; Reason, Terenzini & Domingo, 2006). O
vai além da profissionalização (Almeida & Soares,
modo como os alunos se integram ao contexto do
2003). A entrada na universidade implica uma série
ensino superior faz com que eles possam aproveitar
de transformações nas redes de amizade e de apoio
melhor (ou não) as oportunidades oferecidas pela
social dos jovens estudantes (Tao, Dong, Pratt,
universidade, tanto para sua formação profissional
Hunsberger & Pancer, 2000). Geralmente, até o
quanto para seu desenvolvimento psicossocial.
término do ensino médio, uma significativa parcela
Estudantes que se integram acadêmica e
da vida dos adolescentes gira em torno da escola: é
socialmente desde o início de seus cursos têm
na escola que passam a maior parte do tempo; é lá
possivelmente mais chances de crescerem
que costumam ter a maioria dos amigos; é também,
intelectual e pessoalmente do que aqueles que
principalmente, a escola que lhes cobra
enfrentam mais dificuldades na transição à
desempenho e responsabilidade, sob pena de
universidade.
sanções diversas. O mundo universitário, por outro
O ingresso no ensino superior é uma transição
lado, é bem menos estruturado que o mundo
que traz potenciais repercussões para o
escolar. Os colegas não são mais os mesmos,
desenvolvimento psicológico dos jovens estudantes.
havendo a necessidade de estabelecer novos
Em primeiro lugar, ela representa muitas vezes a
vínculos de amizade. Enquanto tais vínculos não se
primeira tentativa importante de implementar um
estabelecem, o jovem conta apenas com seus
senso de identidade autônomo, tentativa esta
próprios recursos psicológicos e o apoio das redes
traduzida por meio da escolha profissional (ou
formadas anteriormente ao ingresso na universidade
tentativa de escolha), que é uma tarefa típica do
(outros amigos e família) para enfrentar eventuais
desenvolvimento na passagem da adolescência para
dificuldades que possam surgir pela frente. Ajustar-
a vida adulta (Erikson, 1976). No entanto, estudos
se à universidade implica, assim, integrar-se
têm revelado que nem sempre a profissão escolhida
socialmente com as pessoas desse novo contexto,
possui um caráter central na constituição da
participando de atividades sociais e desenvolvendo
identidade de calouros universitários. Para alguns, o
relações interpessoais satisfatórias (Diniz &
simples fato de ingressar no ensino superior e
Almeida, 2006; Pascarella & Terenzini, 2005).
identificar-se como estudante universitário parece
A qualidade da relação que o universitário tem
ser um aspecto mais saliente do que a própria
com seus pais, durante e mesmo antes do ingresso
no ensino superior, é um fator que também

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
186
influencia a adaptação à universidade. A percepção expectativa de responsabilidade individual por parte
de apoio emocional por parte dos pais, a do aluno em sua formação e adesão ao curso,
reciprocidade nas relações pais-filhos, o diálogo verifica-se que certas características do ambiente
familiar sobre a vida na universidade e o apoio universitário, tais como a oportunidade de interação
parental específico em questões relativas à transição com professores e de envolvimento em atividades
parecem contribuir para a adaptação ao contexto do extra-classe, favorecem a integração do aluno ao
ensino superior (Mounts, 2004; Mounts, Valentiner, contexto universitário (Capovilla & Santos, 2001;
Anderson & Boswell, 2006; Wintre & Yaffe, 2000). Fior & Mercuri, 2003; Kuh, 1995; Kuh & Hu,
Além disso, jovens que se percebem 2001).
psicologicamente separados dos pais, mas que têm Enfim, o ingresso na universidade é, ao menos
sentimentos positivos em relação a essa separação, potencialmente, uma experiência estressora para os
tendem a se adaptar melhor na universidade do que jovens estudantes. Por ser hoje o ingresso na
aqueles que se sentem mais dependentes de seus universidade uma tarefa de desenvolvimento típica
pais em termos psicológicos (Beyers & Goossens, da transição para a vida adulta (ao menos nas
2003; Wiseman, Mayseless & Sharabany, 2006). camadas sociais mais favorecidas), faz-se
Alguns estudos indicam ainda que jovens que necessário ampliar nosso conhecimento a respeito
desenvolveram um padrão de apego seguro tendem do modo como os jovens vêm vivendo esse
a ser menos auto-críticos, o que os leva a se momento, as dificuldades enfrentadas e as
envolverem mais nas interações sociais e a repercussões dessa experiência em seu
experimentarem menos solidão e menos depressão desenvolvimento psicológico.
no primeiro ano da universidade (Wei, Russell & No Brasil, estudos recentes sobre a adaptação à
Zakalik, 2005; Wiseman & cols., 2006). universidade são ainda pouco numerosos (por
As rupturas impostas pela vida universitária exemplo, Mercuri & Polydoro, 2003; Joly, Santos
repercutem ainda em outros âmbitos além das redes & Sisto, 2005; Primi, Santos & Vendramini, 2002;
sociais dos estudantes. A universidade é um Schleich, 2006; Vendramini & cols., 2004). Não foi
ambiente distinto do escolar, nela a monitoração e o localizado nenhum estudo que focalizasse,
interesse da instituição pelo estudante é qualitativamente, a experiência de ingresso na
notadamente diminuído. Isto faz com que o universidade na perspectiva de universitários
envolvimento do estudante com sua formação calouros. Assim, o objetivo desta pesquisa foi
dependa muito mais dele do que do ambiente descrever e investigar exploratoriamente a
universitário. A responsabilidade pelo aprendizado, experiência de ingresso e adaptação ao curso
antes centrada na escola, é agora deslocada para o superior entre jovens ingressantes no meio
jovem. Dele se espera autonomia na aprendizagem, universitário. Mais especificamente, pretendeu-se
na administração do tempo e na definição de metas investigar se os jovens percebem dificuldades em
e estratégias para os estudos (Soares, Almeida, sua adaptação e como lidam com essas
Diniz & Guisande, 2006). Apesar deste aumento na dificuldades; se possuem redes de apoio (família e

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
187
amigos) e como essas redes auxiliam na adaptação; dos acontecimentos que a constituem” (Gomes,
se a experiência de ingresso na universidade produz 1998, p. 21). Assim, a pesquisa visa identificar o
mudanças pessoais capazes de ser reconhecidas que pode ser considerado o núcleo comum da
pelos jovens estudantes e qual a natureza dessas experiência (neste caso, a experiência de transição à
mudanças. Buscou-se privilegiar, assim, o caráter universidade) por meio do mapeamento das
subjetivo da experiência de ingresso e adaptação à temáticas que emergem na narrativa dos
vida universitária no primeiro ano por meio de participantes, pois a experiência consciente é, em
relatos retrospectivos dessa experiência, desde o última instância, um processo comunicativo que se
ingresso no curso até o momento atual. A fim de manifesta por meio da linguagem (Gomes, 1998).
que os participantes já tivessem tido um percurso de Nesse modo de pesquisar, portanto, a intenção não é
vida universitária razoável sobre o qual refletir, oferecer interpretações conclusivas ou
foram selecionados para a pesquisa estudantes entre generalizáveis para qualquer situação, mas sim
o final do primeiro e o final do segundo semestre de apontar as múltiplas possibilidades envolvidas no
seus cursos. fenômeno. Dessa forma, este estudo delineou-se
como uma sucessão de estudos de casos, nos quais
as temáticas emergentes apontaram para uma
Método
estrutura comum da experiência de transição
apresentada aqui, considerando a transversalidade
Participantes dos casos.
Participaram do estudo 14 calouros
universitários. Em todos os casos, tratava-se da Instrumento
primeira experiência de ingresso na universidade. A A fim de ter acesso às percepções dos jovens
Tabela 1 traz outros dados descritivos dos sobre sua adaptação à universidade, foi utilizada
participantes, como sexo, idade, curso, semestre, uma entrevista com roteiro tópico flexível,
situação de moradia (se moravam com os pais), elaborada para este estudo levando em consideração
opção pelo curso (se o curso era a opção mais os objetivos descritos ao final da introdução (ver
desejada e se estavam gostando do curso. Quadro 1). Esta entrevista buscou circunscrever o
tema de interesse e ao mesmo tempo dar liberdade
Delineamento para que o entrevistado construísse uma narrativa
Uma vez que o objetivo do estudo foi captar e associando temas considerados relevantes em sua
descrever a experiência de ingresso na universidade experiência pessoal (Gomes, 1998).
por jovens calouros, optou-se por um delineamento
qualitativo fenomenológico. A fenomenologia Procedimentos
busca revelar a experiência consciente dos Os participantes do estudo foram selecionados
indivíduos sobre um dado fenômeno, sendo que tal por conveniência, por meio de convites em salas de
experiência se esclarece “a partir da significação aula e indicações feitas por estudantes conhecidos

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
188
Tabela 1 – Características dos participantes do estudo.

Nome Mora com Curso 1ª Se está


Sexo Idade Curso Semestre
fictício os pais opção gostando
Ana F 18 Eng. Civil 2 não sim sim
Carol F 18 Direito 2 não sim sim
Clara F 19 Educação Especial 2 não sim sim
Cristine F 18 Educação Física 1 não não sim
Diana F 19 Química – licen. 2 não não não
M 18 Matemática – 2 sim sim sim
Douglas
licen.
Joana F 18 Educação Especial 2 não sim sim
João M 18 Eng. Civil 2 não sim sim
Jorge M 18 Eng. Elétrica 2 sim sim sim
Karen F 20 Agronomia 2 não sim sim
Luana F 22 Eng. Mecânica 2 não sim sim
Márcio M 18 Administração 2 sim sim sim
Pedro M 18 Eng. Elétrica 2 sim sim sim
Teresa F 19 Química – licen. 2 sim sim sim

Quadro 1 – Questões norteadoras da entrevista.

Questões
1. Qual a sua idade? Sua família é daqui da cidade? Com quem você mora atualmente?
2. Como foi a sua escolha de curso e a entrada na universidade?
3. Como você descreveria esse seu primeiro ano na universidade? O que mais marcou você?
4. Quais foram as maiores dificuldades com que você se deparou neste ano, dentro e fora da
universidade? Como lidou com elas?
5. Quando você tem dificuldades na faculdade ou dúvidas sobre sua carreira, com quem você pode
contar?
6. Quando tens alguma dificuldade pessoal, a quem recorres primeiro?
7. Tu percebes alguma mudança em ti em termos da tua maneira de pensar e agir ao longo deste ano?
Que tipo de mudança? Como isso aconteceu?
8. Tu percebes alguma mudança nas tuas expectativas em relação à universidade e ao curso no qual está
matriculado?
9. Tu achas que a universidade poderia ajudar os estudantes nessa transição para a universidade? De que
modo?

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
189
dos pesquisadores. Os próprios participantes da aprofundar. Uma vez escolhida uma determinada
pesquisa também sugeriram colegas e amigos como parte, retorna-se às entrevistas para localizar novos
potenciais colaboradores do estudo. As pessoas elementos que confirmem ou não a relevância da
indicadas ou que se disponibilizaram a participar parte escolhida. A exposição da redução compõe-se
foram contatadas pessoalmente ou por telefone a de excertos das entrevistas para servirem de
fim de confirmar o interesse na pesquisa. As evidência da análise realizada. Por fim, o terceiro
entrevistas foram agendadas conforme a passo, ou interpretação fenomenológica é um
disponibilidade dos voluntários e dos balanço crítico entre o que foi descrito e o que foi
entrevistadores, e gravadas em áudio. Cuidados especificado ou reduzido. Nesta etapa final os
éticos foram observados na execução do estudo, pesquisadores confrontam suas percepções, a
sendo utilizado um Termo de Consentimento Livre literatura e os sentidos oferecidos pelos
e Esclarecido de participação na pesquisa antes da entrevistados a fim de fornecer uma síntese
realização das entrevistas. compreensiva da experiência (Gomes, 1998).
Nesta pesquisa, os protocolos das entrevistas
Análise dos dados (dados brutos) foram tomados como a descrição
As entrevistas foram transcritas literalmente e bruta da experiência. O questionamento das
analisadas a partir do método fenomenológico. O entrevistas e a organização das mesmas em uma
método fenomenológico refere-se à maneira como o estrutura compreensiva constituem a redução
pesquisador procede reflexivamente ao longo da (Gomes, 1998), que é apresentada a seguir na seção
pesquisa, ou seja, como ele transforma sua “Resultados”. Por fim, os confrontos da redução
experiência consciente (intuições pré-reflexivas) em com a literatura e as considerações acerca das
consciência da experiência. A abordagem sistemática implicações da pesquisa constituem a interpretação
da experiência consciente organiza-se na seqüência fenomenológica, aqui explicitada na seção
de três reflexões que atuam sinergicamente “Discussão”.
(descrição, redução e interpretação) e que estão
presentes em todos os momentos da pesquisa
Resultados
(Gomes, 1998).
O primeiro passo ou descrição fenomenológica
traz uma síntese geral e não crítica dos temas A seguir são apresentados os temas identificados

indicados baseado no material empírico recolhido nas entrevistas, com excertos ilustrativos. Estes

na entrevista. O segundo passo ou redução temas (“Saindo de casa”, “Ingressando na vida

fenomenológica é um retorno à descrição para acadêmica – primeiras impressões”, “Percebendo

questioná-la, especificando suas partes temáticas, mudanças em si mesmo” e “Adaptando-se ao

diferenciando a força constitutiva de cada parte curso”) correspondem a quatro grandes dimensões

(relevante do irrelevante; essencial do em torno das quais foram organizadas as

complementar), para escolher em que parte percepções dos entrevistados sobre suas

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
190
experiências de primeiro ano. No conjunto, os experiências demandam diferentes adaptações em
temas constituem uma estrutura de possibilidades suas vidas. Apesar da presença dos obstáculos
relacionadas ao ingresso e à adaptação à advindos do fato de viverem sozinhos ou longe das
universidade. figuras parentais, essas dificuldades são valorizadas
e consideradas parte essencial da experiência de
Tema 1: Saindo de casa ingresso no ensino superior, pois elas encontram-se
A saída da casa dos pais, embora não associadas à sensação de autonomia e maturidade
diretamente ligada à vida dentro da universidade, é em suas vidas.
um evento marcante para aqueles que deixam suas “Tu tens vários caminhos pra seguir, mas alguns
famílias de origem com o intuito de estudar em uma caminhos levam, cada caminho leva a um resultado
outra cidade. Essa experiência de sair de casa é específico e daí a pessoa tem que saber qual o
percebida essencialmente de dois modos: como algo resultado que ela quer obter. Seria isso: dificuldade
difícil, em virtude de se sentirem sozinhos, e tem que existir. Se não existir dificuldade não tem
também como algo importante, devido à graça, não tem emoção.” (Pedro)
independência conquistada. A perda do contato
cotidiano com as figuras parentais traz a exigência Tema 2: Ingressando na vida acadêmica – primeiras
de desenvolverem um senso maior de “cuidar de impressões
si”, de ter responsabilidade por si mesmo. Nesse O ingresso na vida acadêmica é marcado por um
sentido, as atividades rotineiras de manutenção da conjunto de percepções muito variadas: um alívio
casa fazem com que os jovens percebam o suporte das pressões decorrentes do vestibular (principal
recebido na família de origem e mudem o seu modo sistema de seleção usado nas universidades
perceber a família. brasileiras, consistindo em um conjunto de provas
“...quando tu tá com a família, sempre tem que avaliam conhecimentos escolares), uma
alguém dizendo: “Vai estudar, acorda, vai na aula.” mudança surpreendente na vida ou mesmo uma
Aqui não. Aqui tu tem que mais é sozinho, se virar. experiência que provoca desamparo. Nesse novo
Tu tem que fazer as coisas, porque se tu não fizer, contexto de experiências, aparecem a instituição, o
ninguém vai fazer por ti.” (João) trote e as novas amizades como elementos cujos
“Com certeza, muda bastante... Tu passa a ver papéis são considerados fundamentais pelos
melhor a tua família, sabe, dar valor pras pessoas. calouros.
Eu mudei bastante em função não da faculdade, Ingressar na universidade gera alívio das tensões
mas estar aqui, sabe.” (Luana) envolvidas no processo seletivo para entrada na
As vivências dessas novas experiências longe da universidade. Dessa forma, entrar para um curso
família são percebidas como essenciais, e, de certa superior é percebido como um evento que divide a
forma, adquirem uma maior relevância na vida dos vida em dois momentos: antes e depois do resultado
indivíduos do que o ingresso na Universidade do vestibular.
propriamente dito. De fato, observa-se que tais

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
191
“Ah... isso com certeza mudou [...] um dos com o teu pai e com tua mãe e depois tu mora
piores momentos foi o cursinho, e agora, dentro da sozinho... Algo do dia pra noite, dá pra dizer...”
universidade, eu não tenho aquela preocupação de (João)
estudar única e exclusivamente para passar no Assim, junto com o alívio e alegria pelo ingresso
vestibular... Agora tu tem que estudar, em termos de na universidade, há também certo desamparo
adquirir conhecimentos para a vida... e não única e gerado pela experiência de perda de referências
exclusivamente para o vestibular.” (Clara) anteriores. Ter que lidar por conta própria com um
Os significados atribuídos à entrada na grande volume de exigências, tanto acadêmicas
Universidade são perpassados pela rotina anterior quanto administrativas, é uma experiência que pode
de estudos – antes inespecífica e vivenciada sob provocar sentimentos de estar perdido e pouca
pressão e agora voltada para os interesses motivação. A ausência de uma orientação com
específicos de cada aluno. Nesse contexto, o estudo relação aos processos burocráticos universitários
assume um outro sentido, uma vez que a aquisição também é percebida como um obstáculo à
de conhecimentos na universidade não serve apenas adaptação, na medida em que dificulta a
para um fim avaliativo, mas implica em ambientação do calouro à instituição e suas rotinas.
conhecimentos que serão utilizados na vida. “Mas nem tanto, pelo menos tinha que ter uma
Outro significado associado ao ingresso no pessoa pra orientar... isso é pra aquilo... agora faz
ensino superior é o de uma mudança abrupta de isso... [..] Te vira... Bah! Muitos “balões” que a
vida, podendo ser sentido como um “estouro na gente dá por não saber, não ter alguém pra te ajudar
cabeça”. A vida acadêmica traz muitas mudanças até...” (Karen)
que exigem um esforço de adaptação do indivíduo, “Geralmente, tu não conhece muita coisa... Te
seja no sentido de corresponder às exigências de falam, tu absorve, mas não chega a se motivar a
desempenho, mais altas do que no ensino médio, fazer as coisas...” (Ana)
seja no sentido de se adaptar a novas regras da “Tu fica meio perdido... muito perdido... Mas tu
instituição e a novas pessoas, como colegas, tem que correr atrás, né... tu pega uns livros, dá uma
professores ou funcionários. A mudança de um estudada, vai em umas aulas de monitoria...”
ambiente familiar conhecido (a escola) para outro (Douglas)
desconhecido (a universidade) parece gerar No processo de ambientação à universidade, o
inicialmente uma sensação de atordoamento, que trote é visto como uma experiência que proporciona
sugere a perda de referências anteriores. um entrosamento inicial com os demais colegas de
“... É um negócio que eu senti bastante de turma e também de semestres posteriores, servindo
diferença do colégio pra faculdade. É um impacto como um “quebra-gelo”. Esse momento
muito forte. Até às vezes a cabeça dá um curto. Daí descontraído pode ser ainda acompanhado de
eu dava uma folga. Diferença brutal.” (Márcio) informações importantes, que auxiliarão na
“Foi em sete meses um estouro na cabeça. Tu adaptação posterior* como dicas sobre professores
muda completamente tua vida. Antes tu morava e sobre o funcionamento da instituição.

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
192
“Tem um processo de interação no trote, assim, autonomia. As mudanças em responsabilidade são
tu acaba ficando menos tímido... aquela sujeira percebidas em dois grandes âmbitos: o profissional
toda, aquela festa... não tem com tu não ficar menos e o pessoal. Os calouros têm consciência de que, na
tímido.” (Márcio) universidade, o que está em jogo é o futuro
“Do que eu gostei bastante foi quando os meus profissional e que é preciso seriedade nesse sentido,
veteranos me recepcionaram... Em relação ao trote, ainda que a importância dada ao aspecto
assim, eles fora bem... ‘Se tu quer fazer tu faz... se profissional varie muito entre os estudantes. No
não quer... não participa’... E foram dando as dicas plano pessoal, a responsabilidade mostra-se atrelada
dos professores... Se tu ter alguma dificuldade a ao fato de levar uma vida mais independente do
quem tu deve procurar...” (Douglas) contato com os familiares, o que exige assumir
Os laços de amizade estabelecidos nessas tarefas cotidianas por conta própria e arcar com as
primeiras experiências na universidade são conseqüências de seus atos. De um modo ou de
percebidos como sendo de grande importância pelos outro, o significado dessa responsabilidade
calouros. Há uma expectativa em relação às novas encontra-se associado à noção de adultez.
amizades que serão formadas. O estreitamento dos “Ah, tipo, tenho mais responsabilidade. Porque
laços entre os estudantes permite o tu tá estudando pra ser um profissional, né?”
compartilhamento de expectativas, interesses e (Karen)
problemas, facilitando a adaptação. Por outro lado, “Aumentou a responsabilidade, então, sei lá, eu
a ausência de um espírito de grupo entre os acho que tenha amadurecido um pouquinho, só pelo
estudantes pode ser motivo de decepção, à medida fato de estar longe de casa, então não tem quem
em que frustra expectativas de uma mudança na faça as coisas por ti e tu tem que fazer, né?”
vida social após a entrada na universidade. (Cristine)
“...agora, como todo mundo tem a mesma visão, “E no comportamento, tu te torna mais
o mesmo pensamento, estuda, e quer ser alguém na responsável. Tu parece que tu passa e ‘agora eu sou
vida, então, a amizade ficou mais intensa. O cara gente, eu sou adulto, vou fazer por mim, tô fazendo
divide os problemas que tem.” (João) a minha vida’. Com certeza, muda bastante...”
“A falta de união da minha turma, isso me (Luana)
decepcionou bastante. Porque tu ouve todo mundo Outras mudanças percebidas relacionadas a
falar que tu entra na faculdade e a vida muda.” aspectos pessoais são o desenvolvimento de
(Luana) relacionamentos interpessoais e a superação da
timidez. A experiência universitária pode ainda
Tema 3: Percebendo mudanças em si mesmo oferecer ferramentas para o desenvolvimento do
Entrar na universidade é uma experiência que juízo crítico, facilitando a emergência de atitudes
implica mudanças no modo de comportar-se e de mais autônomas.
perceber a si mesmo, ganhando saliência a “Isso é um pensamento que eu mudei, um
responsabilidade, as relações interpessoais e a pensamento que engloba, que afeta vários setores da

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
193
minha vida, que é a timidez... Eu tô sendo menos universidade. Nesse sentido, os vínculos afetivos
tímido...” (Pedro) com os colegas, as relações com os professores, as
“Mudou a minha maneira de agir... Antes, como atividades extra-classe e o desenvolvimento de
é que eu vou te dizer, eu tinha que escutar tudo e estratégias para lidar com as frustrações e
ficar quieta. Agora não, eu posso falar, contestar. dificuldades são fatores importantes na experiência
Antes eu tinha que escutar, dizer ‘Amém’, e fazer de adaptação.
...” (Joana) A vivência trazida pelos universitários mostrou
“... e tu chega aqui e vê que não é grande coisa que os vínculos afetivos com os colegas são
também... que exige muita coisa de ti, da pessoa, essenciais para a adaptação. Além do sentimento de
porque se tu for esperar pelo professor...” (Teresa) pertencer a um grupo, as amizades possibilitam a
A necessidade de autonomia é sentida partilha de experiências e o apoio em caso de
especialmente em relação ao aprendizado. Os dificuldades.
calouros percebem que é preciso assumir uma “...Eu não tinha amigos, assim, prá essas coisas.
atitude ativa frente à aprendizagem, buscando Agora, eu tenho. As amizades, assim. Não tem
aprender por conta própria e procurando amizade particular, são várias pessoas.” (João)
oportunidades que estão além da sala de aula. Tal “(...) o papel que cada uma [colega] tem na vida
exigência por autonomia, contudo, é vivida de da outra é fundamental. (...) afinal tu passa parte da
formas diferentes. Há os que valorizam essa tua vida aqui dentro né...então é claro que a gente
experiência, vendo nela uma chance de ampliar o convive e é fundamental...” (Teresa)
potencial do sujeito no âmbito do conhecimento A importância dos professores para a adaptação
acadêmico. Porém, outros se sentem desanimados à vida acadêmica dos calouros é percebida em dois
com a necessidade de “ir atrás” do conhecimento e planos: o acadêmico e o pessoal. Os alunos notam
das oportunidades de aprendizado. que o desempenho em sala de aula, a competência e
“Pra mim, isso é bom, porque... sempre tu ir a capacidade de ensinar do professor são aspectos
atrás é bom, né? Se tu tem que procurar, tu vai que contribuem para gostar do curso e envolver-se
aprendendo, já... Vai procurando, vai vendo outras nas atividades. Quando isso não ocorre, o
coisas.” (Karen) sentimento é de frustração. Porém, além dessa
“E eu acho, eu me sinto meio desanimada [...] É dimensão acadêmica do papel docente na
aquela coisa: é o livro, é a doutrina e o aluno que se adaptação, os professores também podem cumprir
vire, assim, como, é a gente que tem que estar uma importante função no aspecto pessoal do
correndo atrás...” (Carol) ajustamento à universidade. Esse segundo papel,
embora não pareça central, é percebido pelos alunos
Tema 4: Adaptando-se ao curso como uma demonstração de interesse que vai além
O ajustamento à universidade entre os calouros do aprendizado formal.
depende de um conjunto de aspectos que faz com “O que eu não tenho gostado mais é professor
que eles se sintam pertencendo ao curso e à que vai dar aula e dá aula mais ou menos, assim, e

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
194
ele finge que sabe, e tu finge que aprende... e “...várias vezes tu quer fugir, tu quer largar tudo.
termina o conteúdo e pronto: vai embora e ninguém Eu já tive vontade de fazer isso. Mas justamente
aprendeu nada. Isso é muito ruim...” (Jorge) pela dificuldade do curso.” (Luana)
“Eles perguntam se tu tá com uma cara estranha, “Sinceramente... eu achei decepcionante... Eu
eles já chegam e perguntam, se tu tá bem... se tu tá achava que ia ser algo mais assim... tipo no segundo
mal... Eles não são tipo professores de cursinho, que grau a gente não tem vontade de estudar... Eu
chegam lá na frente e não importa se tu tá bem ou pensei que a faculdade ia me ajudar mais, sei lá...
mal... Eles têm contato direto com a gente, não só (...) se eu quiser aprender alguma coisa... eu tenho
em relação ao conteúdo.” (Clara) que pegar os livros e estudar (...) Se eu quiser
As atividades acadêmicas não obrigatórias aprender, se eu quiser ir bem numa prova... porque
ocupam um lugar de destaque no processo de no quê depender da explicação deles [professores]
adaptação ao curso para os alunos que se envolvem na faculdade... não... não adianta muito (...) eu
nesse tipo de experiência. Tais atividades exigem repeti a matéria, né... daí continua sendo o mesmo
responsabilidade e oportunizam contato com outros professor... e daí ele continua explicando daquele
estudantes e professores. A movimentação do aluno mesmo jeito, (...) ele não explica bem, sabe... daí
no ambiente do curso, preenchendo seus horários teve prova e eu não fui muito bem... daí eu pensei
com atividades de projetos e pesquisas, possibilita ‘meu, eu tenho que estudar pro vestibular, eu tenho
conhecer novas realidades e motiva os alunos em que sair desse curso!’, que é horrível... (...) os meus
relação à vida acadêmica. colegas também estão mais ou menos que nem eu...
“Um troço que pra mim tá sendo bom é eu decepcionados com a faculdade.” (Diana)
participar do projeto na faculdade, que a gente tá Contudo, os calouros também aprendem com os
fazendo nas escolas municipais e coisa... Tu vê veteranos que, com o passar do tempo, o curso se
outra realidade, né? Isso tá sendo bom...” (Cristine) torna melhor. Para isso, é preciso tolerar as
“Sempre tem alguma coisa pra fazer, alguma eventuais insatisfações iniciais.
coisa pra pesquisar. Com a Empresa Júnior a gente “... o segundo semestre e essas outras cadeiras
tá começando com projetos agora. Com o diretório do primeiro só atrapalham. Todo mundo diz que o
também, a gente começou com projeto da semana básico é assim mesmo.” (Karen)
acadêmica. O diretório é alguma coisa que não pára, “Tem um amigo meu da Mecânica que tá se
né? Os dois são coisas que não param.” (Carol) formando agora que falou que ele acha que é um
A adaptação à universidade implica ainda teste de resistência o básico, né. Se tu passar no
aprender a lidar com as frustrações em relação ao básico, tu tá pronto pra te formar.” (Jorge)
curso, seja em relação ao conteúdo das disciplinas Ao lidar com as dificuldades, o jovem pode
ou mesmo a dificuldade em dar conta das recorrer aos pais, aos amigos e mesmo aos
exigências. Essas dificuldades e frustrações iniciais professores. No entanto, os pais são percebidos
podem levar a sentimentos de decepção e a como fontes de apoio fundamental, apesar da
pensamentos de abandono do curso. presença dos amigos.

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
195
“... eu converso muito com as minhas amigas, cotidianas que precisam ser realizadas,
com a minha irmã, mas a minha mãe é impulsionando o desenvolvimento da autonomia. A
indispensável...” (Clara) entrada na universidade, neste caso, é uma
“... a gente tá longe da família... a gente se sente experiência que impacta não apenas pelas demandas
sozinho... e eles [amigos] substituem um pouco...” do ambiente universitário, mas também porque
(Diana) provoca uma mudança mais radical no contexto de
vida do jovem, exigindo o desenvolvimento de
respostas adaptativas frente a um conjunto de
Discussão
situações desafiadoras relacionadas ao
gerenciamento da própria vida, algo já detectado em
Os relatos dos entrevistados mostraram uma outros estudos (Gottlieb, Still & Newby-Clark,
grande diversidade de experiências relacionadas ao 2007).
ingresso na universidade. Contudo, não foram No entanto, o senso de responsabilidade também
observadas, na maioria dos participantes deste se desenvolve em função das exigências
estudo, dificuldades de adaptação à universidade acadêmicas, pois os calouros percebem que a
que sugerissem um sofrimento psicológico universidade não irá esperar por eles para o
demasiado ou um fracasso frente às exigências cumprimento das mesmas. Assim, a partir do
acadêmicas. Embora tenham sido referidos ingresso na universidade, eles precisam tomar para
sentimentos de solidão, de insatisfação com o curso, si a responsabilidade por suas vidas – tanto na
com professores, com colegas e com o esfera pessoal quanto acadêmica – o que estabelece
funcionamento da universidade, além de um nível um novo modo de relação do sujeito consigo
de exigência acadêmica com o qual não estavam mesmo. Este desenvolvimento de autonomia, ainda
acostumados, os participantes desta pesquisa não que sob certa pressão, é um efeito esperado e
descreveram estas experiências, em geral, como positivo da ida à universidade nos estudantes
situações com as quais não conseguissem lidar ou (Pachane, 2003; Pascarella & Terenzini, 2005). É
tolerar (exceto no caso de uma entrevistada que interessante notar que tais experiências, ainda que
pensava em trocar de curso). Assim sendo, as potencialmente estressantes, foram percebidas, em
experiências relatadas parecem refletir, em seu geral, de um modo positivo, como algo que produz
conjunto, um leque de possibilidades que são mais crescimento pessoal. Essa percepção de
ou menos comuns à maioria dos estudantes amadurecimento por meio do enfrentamento de
universitários. situações adversas ou desafiadoras é uma das
Observou-se que o ingresso na universidade traz características psicológicas que parecem marcar,
uma série de mudanças de caráter mais pessoal aos subjetivamente, a transição da adolescência para a
estudantes. Em especial, a saída da casa dos pais adultez emergente (Arnett, 2004), sendo um aspecto
(para aqueles que deixam suas famílias de origem) a ser considerado na avaliação das vivências
traz novas responsabilidades ligadas a tarefas universitárias.

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
196
Por sua vez, o ingresso na universidade largar o curso, assim, parece ser uma reação
propriamente dito é percebido como um evento desesperançada de esquivar-se de uma situação
potencialmente impactante. Primeiro, há a sensação aversiva frente à qual o estudante sente-se sem
de alívio e de tarefa cumprida, que era a aprovação capacidade de enfrentamento. Nesse sentido, o grau
no vestibular. Esta sensação pode ser acompanhada de motivação para o curso específico (não avaliada
de uma idéia de que agora poderão estudar apenas neste estudo) bem como características mais gerais
aquilo que gostam ou desejam. Contudo, as de personalidade (como pró-atividade), podem ser
primeiras exigências universitárias, sejam elas fatores que diferenciem aqueles que persistem nos
burocráticas (matrículas, carteiras estudantis) ou cursos, dos que desistem frente às dificuldades.
acadêmicas (nível de exigência das aulas), podem Porém, os relatos também deixam evidente a
ser percebidas como muito bruscas, fazendo com importância que um contexto acadêmico bem
que alguns se sintam perdidos frente ao cotidiano estruturado em termos de informação e apoio tem
universitário. Essa percepção de mudança brusca para uma boa adaptação no início do curso. De fato,
revela o despreparo que em geral o calouro sabe-se que o ambiente e a cultura organizacional
apresenta frente às demandas e o modo de da instituição repercutem no desenvolvimento e
funcionamento da universidade. A falta de um desempenho do estudante, mais do que
maior conhecimento sobre o que é a universidade e características estruturais como tamanho, missão ou
o que esperar dela, tanto em termos acadêmicos seletividade da universidade (Berger, 2000). A
quanto pessoais, é um fator que pode concorrer para integração com os demais estudantes (calouros e
as dificuldades de adaptação (Bardagi, 2007; Santos veteranos) e o próprio “trote” são também fatores
& Melo-Silva, 2003). que concorrem para uma adaptação mais tranqüila,
É importante notar, contudo, que nem sempre as na medida em que os elos interpessoais são
dificuldades ou as frustrações percebidas fortalecidos, tornando a busca e o recebimento de
(disciplinas pouco interessantes, muito difíceis ou apoio mais fáceis.
professores com pouca didática) refletem-se numa Após as primeiras semanas e a integração
desadaptação ao curso, no sentido do estudante inicial, o papel do grupo (colegas) parece ficar mais
sentir-se de tal forma insatisfeito que chegue a evidente. A satisfação com a vida universitária
pensar em abandoná-lo (embora isso também possa parece associada com o quanto o grupo corresponde
ocorrer). Alguns alunos conseguem enfrentar as às expectativas sociais dos estudantes. De acordo
dificuldades e interpretá-las como se fossem com essa idéia, Diniz e Almeida (2006) verificaram
desafios a serem superados, enquanto outros as que, especialmente no primeiro semestre, os
vêem como barreiras instransponíveis (Zajacova, relacionamentos interpessoais eram mais
Lynch & Espenshade, 2005). Esta última situação importantes para a adaptação do que a gestão de
pode resultar de uma atitude passiva frente àquilo responsabilidades, cuja importância aumentava
que é percebido como frustrante, configurando uma apenas no segundo semestre. Isso é compreensível,
propensão ao abandono do curso. A intenção de pois, uma vez que o calouro ainda não tem uma

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
197
imagem individual de si mesmo como estudante de desengajamento dos calouros. Paralelamente à
uma dada profissão, sua referência identitária é relação professor-aluno, as atividades
antes de tudo o coletivo do qual faz parte. Percebe- extracurriculares também auxiliam na adaptação, na
se, assim, a importância da integração ao grupo medida em que possibilitam aos alunos integrarem-
como fator de adesão ao curso no início da vida se ainda mais à dinâmica do curso, conhecendo
acadêmica (Lassance & Gocks, 1995). É no espaço mais colegas e professores, e ainda tendo a
coletivo que os indivíduos partilham suas oportunidade de explorar aspectos da formação não
expectativas e se apropriam dos mitos ou estruturas contemplados nas aulas (Fior & Mercuri, 2003).
narrativas próprias de cada curso. São as Quanto às dificuldades enfrentadas, nenhuma foi
justificativas do tipo “no início é assim mesmo” ou considerada de manejo muito difícil pela maioria
“depois do segundo ano melhora” que ajudam o dos entrevistados. Para lidar com as dificuldades
estudante a dar um sentido ao seu percurso na acadêmicas (como desempenho nas disciplinas),
faculdade, e assim lidar também com as suas colegas e até mesmo professores foram citados
dificuldades. Dessa forma, a importância da como as principais fontes de apoio. Já para
interação com os colegas não se restringe ao dificuldades de cunho mais emocional, ligadas a
aspecto afetivo ou de amizade. A inserção social do dificuldades em viver sozinho ou de adaptar-se à
estudante possibilita a este construir um sentido nova vida social imposta pela universidade, as
partilhado acerca das suas experiências no curso – referências privilegiadas foram os pais ou outros
positivas e negativas – ajudando-o a desenvolver parentes, ainda que espacialmente distantes dos
estratégias de ajustamento na universidade. estudantes, indicando a importância do apoio
Além do grupo, os professores e as familiar para a adaptação dos calouros ao contexto
oportunidades de envolvimento acadêmico extra- universitário (Mounts, 2004; Mounts & cols. 2006;
classe também foram citados como elementos que Wintre & Yaffe, 2000).
favorecem a adaptação, como revelam outras De um modo geral, os resultados deste estudo
pesquisas (Bardagi, 2007; Fior & Mercuri, 2003; indicam que a adaptação à universidade entre
Kuh, 1995; Kuh & Hu, 2001; Pascarella & calouros depende de muitos fatores, sendo que
Terenzini, 2005). Embora no caso dos professores alguns deles não estão ligados diretamente ao
as referências não tenham sido muito evidentes, os contexto acadêmico, como o fato de o estudante
relatos sugerem que os professores influenciam o morar com a família ou não, e a própria rede de
envolvimento do aluno em função da forma como apoio social com a qual o calouro pode contar fora
preparam e ministram suas aulas e se relacionam da universidade. Apesar disso, o contexto
com os alunos (Kuh & Hu, 2001; Pascarella & universitário tem um papel importante a
Terenzini, 2005). Professores interessados em que desempenhar no processo de adaptação à
os alunos aprendam parecem funcionar como universidade. É essencial, no início do curso, prover
estímulo para a adesão ao curso, ao passo que informações de qualidade aos ingressantes relativas
professores desinteressados estimulam o à vida acadêmica e também dar apoio efetivo para

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
198
que o aluno possa usufruir corretamente e sem voluntário da participação na pesquisa, o que pode
dificuldades dos benefícios que a universidade ter levado à auto-seleção de alunos melhor
oferece, especialmente nas primeiras semanas após adaptados aos seus cursos. Esse viés da amostra
o ingresso (por exemplo, obtenção de documentos, pode também explicar por que dificuldades
procedimentos de matrícula, uso de bibliotecas, acadêmicas mais críticas não tenham sido salientes
restaurante universitário, localização das unidades e nas entrevistas. Contudo, é muito provável que
serviços, normas da instituição, etc.). existam situações de desadaptação severa entre os
Concomitantemente, é necessário que os cursos estudantes. Futuros estudos podem buscar
estimulem a integração social dos alunos, na descrever, quantitativamente, a severidade de
medida em que o grupo tem um papel fundamental alguns problemas de adaptação que porventura
na construção da identidade dos novos existam, tais como depressão, solidão, estresse entre
universitários e também na construção de uma rede outros. Também seria interessante identificar casos
de apoio afetivo e acadêmico que possa auxiliá-los de desadaptação mais extremos para estudá-los
em caso de dificuldades. Atividades de integração qualitativamente em maior detalhe, buscando
podem ser propostas dentro de cada curso e também compreender aspectos específicos, pessoais e
entre os cursos, promovendo o contato dos alunos contextuais, que dificultam a adaptação à
com diversidade de idéias e pessoas. Ainda, é universidade.
preciso oferecer serviços especializados que possam
dar atenção àqueles estudantes que venham a se
Referências
deparar com maiores dificuldades de adaptação,
seja por estarem longe da família, por não se
sentirem eficazes para fazer amigos, por não Almeida, L. S., & Soares, A. P. (2003). Os estudantes
universitários: sucesso escolar e desenvolvimento
conseguirem se organizar para dar conta das
psicossocial. Em E. Mercuri & S. A. J. Polydoro (Orgs.),
exigências acadêmicas ou mesmo por apresentarem
Estudante universitário: características e experiências
outros problemas pessoais que possam interferir no
de formação (pp. 15-40). Taubaté: Cabral.
seu funcionamento cotidiano.
De toda forma, novas pesquisas são necessárias Arnett, J. J. (2004). Emerging adulthood. New York:
para explorar de modo mais aprofundado os Oxford University Press.

aspectos envolvidos na adaptação à universidade


Bardagi, M. P. (2007). Evasão e comportamento
evidenciados neste estudo. Nesta pesquisa todos os
vocacional de universitários: estudos sobre o
participantes eram provenientes de uma mesma desenvolvimento de carreira na graduação. Tese de
instituição e foram convidados a participar do doutorado não publicada, Universidade Federal do Rio
estudo. O fato de que quase todos os entrevistados Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
não tenham relatado insatisfação ou dificuldades
acentuadas, caracterizando situações de pré-
abandono de curso, talvez seja decorrente do caráter

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
199
Berger, J. (2000). Organizational behavior at colleges Kuh, G. D. (1995). The other curriculum: out-of-class
and student outcomes: A new perspective on college experiences associated with student learning and personal
impact. Review of Higher Education, 23, 177-198. development. The Journal of Higher Education, 66(2),
123-155.
Beyers, W., & Goossens, L. (2003). Psychological
separation and adjustment to university: Moderating effects Kuh, G. D., & Hu, S. (2001). The effects of student-faculty
of gender, age, and perceived parenting style. Journal of interaction in the 1990s. The Review of Higher Education,
Adolescent Research, 18, 363-382. 24(3), 309-332.

Capovilla, S. L., & Santos, A. A. A. (2001). Avaliação Lassance, M. C. P., & Gocks, A. (1995). A formação da
da influência de atividades extramuros no identidade profissional em universitários: a questão da
desenvolvimento pessoal de universitários. Psico-USF, prática. Anais do II Simpósio Brasileiro de Orientação
6, 49-58. Vocacional e Ocupacional (pp. 65-70). São Paulo:
ABOP.
Diniz, A. M., & Almeida, L. S. (2006). Adaptação à
universidade em estudantes de primeiro ano: Estudo Mercuri, E., & Polydoro, S. A. J. (Orgs.). (2003).
diacrónico da interacção entre o relacionamento com Estudante universitário: características e experiências
pares, o bem-estar pessoal e o equilíbrio emocional. de formação. Taubaté: Cabral.
Análise Psicológica, 1(XXIV), 29-38.
Mounts, N. (2004). Contributions of parenting and
Erikson, E. H. (1976). Identidade, juventude e crise. Rio de campus climate to freshmen adjustment in a multiethnic
Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1968) sample. Journal of Adolescent Research, 19, 468-491.

Fior, C. A., & Mercuri, E. (2003). Formação Mounts, N. S., Valentiner, D. P., Anderson, K. L., &
universitária: o impacto das atividades não obrigatórias. Boswell, M. K. (2006). Shyness, sociability, and parental
Em E. Mercuri & S. A. J. Polydoro (Orgs.), Estudante support for the college transition: Relation to
universitário: características e experiências de formação adolescents’ adjustment. Journal of Youth and
(pp. 129-154). Taubaté: Cabral. Adolescence, 35(1), 71-80.

Gomes, W. B. (1998). A entrevista fenomenológica e o Pachane, G. A. (2003). A experiência universitária e sua


estudo da experiência consciente. Em W. B. Gomes contribuição ao desenvolvimento pessoal do aluno. Em
(Org.), Fenomenologia e pesquisa em psicologia (pp. 19- E. Mercuri & S. A. J. Polydoro (Orgs.), Estudante
44). Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS. universitário: características e experiências de formação
(pp. 155-186). Taubaté: Cabral.
Gottlieb, B. H., Still, E., & Newby-Clark, I. R. (2007).
Types and precipitants of growth and decline in Pascarella, E. T., & Terenzini, E. T. (2005). How college
emerging adulthood. Journal of Adolescent Research, 22, affects students: A third decade of research. (Vol. 2).
132-155. San Francisco: Jossey-Bass.

Joly, M. C. R. A., Santos, A. A. A., & Sisto, F. F. (Orgs.) Primi, R., Santos, A. A. A., & Vendramini, C. M. (2002).
(2005). Questões do cotidiano universitário. São Paulo: Habilidades básicas e desempenho acadêmico em
Casa do Psicólogo.

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
200
universitários ingressantes. Estudos de Psicologia, 7, 47-
Vendramini, C. M. M., Santos, A. A. A., Polydoro, S. A.,
55.
Sbardelini, E. T. B., Serpa, M. N. F., & Natário, E. G.
(2004). Construção e validação de uma escala sobre
Reason, R. D., Terenzini, P. T., & Domingo, R. J.
avaliação da vida acadêmica (EAVA). Estudos de
(2006). First things first: Developing academic
Psicologia, 9, 259-268.
competence in the first year of college. Research in
Higher Education, 47, 149-175.
Wei, M., Russell, D. W., & Zakalik, R. A. (2005). Adult
attachment, social self-efficacy, self-disclosure,
Santos, M. A., & Melo-Silva, L. L. (2003). “Será que era
loneliness, and subsequent depression for freshmen
isso o que eu queria?” A formação acadêmica em
college students: A longitudinal study. Journal of
psicologia na perspectiva do aluno. Em L. L. Melo-Silva,
Counseling Psychology, 52, 602-614.
M. A. Santos, J. T. Simão & M. C. Avi (Orgs.),
Arquitetura de uma ocupação – orientação profissional:
Wintre, M. G., & Yaffe, M. (2000). First-year students’
Teoria e técnica (pp. 387-406). São Paulo: Vetor.
adjustment to university life as a function of
relationships with parents. Journal of Adolescent
Schleich, A. L. R. (2006). Integração na educação
Research, 15, 9-37.
superior e satisfação acadêmica de estudantes
ingressantes e concluintes. Dissertação de Mestrado não
Wiseman, H., Mayseless, O., & Sharabany, R. (2006).
publicada, Universidade Estadual de Campinas,
Why they are lonely? Perceived quality of early
Campinas, São Paulo.
relationships with parents, attachment, personality
predispositions an loneliness in first-year university
Soares, A. P., Almeida, L. A., Diniz, A. M., & Guisande,
students. Personality and individual Differences, 40,
M. A. (2006). Modelo multidimensional de ajustamento
237-248.
de jovens ao contexto universitário (MMAU): Estudo
com estudantes de ciências e tecnologias versus ciências
Zajacova, A., Lynch, S. M., & Espenshade, T. J. (2005).
sociais e humanas. Análise Psicológica, 1(XXIV), 15-27.
Self-efficacy, stress, and academic success in college.
Research in Higher Education, 46, 677-706.
Tao, S., Dong, Q., Pratt, M. W., Hunsberger, B., &
Pancer, S. M. (2000). Social support: Relations to coping
and adjustment during the transition to university in the
People’s Republic of China. Journal of Adolescent
Research, 15, 123-144.

Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) ● Volume 12 Número 1 Janeiro/Junho 2008 ● 185-202
201
Recebido em: 01/10/2007
Revisado em: 06/06/2008
Aprovado em: 30/06/2008

Sobre os autores:

Marco Antônio Pereira Teixeira (mapteixeira@yahoo.com.br) - Professor do Instituto de Psicologia da UFRGS. Doutor em Psicologia pela UFRGS.
Endereço para correspondência: Rua Ramiro Barcelos 2600 – Porto Alegre / RS – CEP 90035-003.

Ana Cristina Garcia Dias (cristcris@hotmail.com) - Professora do Curso de Psicologia da UFSM. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento
pela USP/SP.

Shana Hastenpflug Wottrich (swottrich@yahoo.com.br) - Psicóloga formada pela Universidade Federal de Santa Maria.

Adriano Machado Oliveira (adriano_oliveira22@hotmail.com) - Psicólogo formado pela Universidade Federal de Santa Maria.

Nota: os autores agradecem o apoio da FAPERGS à pesquisa.

Adaptação à universidade em jovens calouros ● Marco Antônio Pereira Teixeira, Ana Cristina Garcia Dias, Shana Hastenpflug Wottrich e Adriano Machado Oliveira
202

Você também pode gostar