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Sociologia III - Avaliação II

Aluna: Aline dos Santos Bellafronte - RA: 61478


Professor: Dr. Hilton Costa

Objetivo
"Se quisermos que certos invólucros estourem,
não devemos acariciá-los,
mas meter as unhas nele!"
Simone de Beauvoir, em: A Força das Coisas

O presente ensaio tem como objetivo analisar o Episódio 4, "Outside - Por Fora",
da recente série de Guillermo Del Toro, "Gabinete de Curiosidades"; uma coletânea de contos de
terror que reune renomes do gênero cinematográfico, em oito episódios distintos e
independentes.
Utilizando os conceitos teóricos-metodológicos de Max Weber como
possibilidade de análise, pretende-se discutir as relações de gênero presentes no episódio,
sobretudo o dispositivo estético e amoroso, relacionando-os com a ideia de ação social,
estamento e dominação tradicional.

Por Fora
"É impossível pensar bem, lutar bem,
dormir bem, amar bem,
quando não se jantou bem."
Virgínia Woolf, em: Um Teto Todo Seu.

O episódio, de 63 minutos de duração, dirigido por uma mulher, Ana Lily


Amirpour, conta a história de Stacey (Kate Micucci), uma mulher comum, casada com o policial
Keith (Martin Starr), aparentemente sem filhos e que trabalha em uma agência bancária com um
grupo de mulheres com as quais não se encaixa. Já na primeira cena no ambiente de trabalho, o
desconforto e o não pertencimento de Stacey são visíveis. Mulheres todas muito bem arrumadas,
falando sobre produtos estéticos que ela não conhece, comentando sobre outras mulheres, outros
relacionamentos, corpos, comparações, procedimentos estéticos e ela à parte, sem entender muito
sobre o que está sendo dito, sem saber como participar da conversa e, visivelmente,
esteticamente muito diferente daquele grupo todo. As roupas são simples, não faz uso de
maquiagem, o cabelo está 'desarrumado'. Num momento bastante significante, ela repete o gesto
de passar creme nas mãos, algo que não faz parte de seu repertório, exatamente como a colega
popular Gina, a quem olha com admiração, fazia. Além disso, já nas primeiras cenas, uma
imagem de insegurança é relacionada à figura de Stacey. Ela, sozinha em casa enquanto o marido
trabalha, sente medo ao ouvir os barulhos da casa, e tudo dá a entender que aquela é uma
situação recorrente. Liga para Keith, que a acalma, encontra nele a função desse marido: protetor.
Essa suposta insegurança também será fator determinante pro desenrolar da trama.
Stacey acaba sendo convidada para o amigo secreto de Natal da empresa, na casa
da colega mais popular, pela primeira vez nos muitos anos em que trabalham juntas. Stacey fica
ansiosa e eufórica. Conta para o marido como as coisas estão diferentes, como "aguém como eu,
alguém que nunca se encaixa", agora pode fazer parte, e justo na casa de Gina, com casa, corpo e
vida "de revista"! Já na festa, o desconforto e o não pertencimento são paupáveis e chega a
causar também desconforto em quem assiste. Tudo em Stacey é inadequado praquele grupo.
Definitivamente, não são seus pares. Á parte da roda, dos assuntos, das roupas e maquiagens, os
interesses e até seu presente 'absurdo'. Enquanto as mulheres trocam cosméticos, ela dá de
presente, para o espanto e terror geral, um animal que ela mesma taxidermizou. Tudo nela distoa!
E é ignorado.
Stacey volta pra casa, se desculpando, antes que a festa acabe, porque
acaba tendo uma reação alérgica ao tal creme famoso e de difícil acesso, que Gina dá de presente
para todas, após uma cena irônica de todas passando, quase amorosa e deleitosamente, creme
uma nas outras, bem a "la Xuxa e Monange" numa versão menos acessível. "Claro que sou
alérgica ao melhor creme do mundo. Eu sou a única. Tenho um rosto ruim. Rosto estúpido, feio e
ruim." Keith a acolhe, ainda que superficialmente, e diz gostar dela como ela é, mas volta para
sua comida congelada e televisão, que é só o que faz no período em que está em casa.
A televisão e os programas também são cenários essenciais em como o episódio
se desenvolve. Fica claro o quanto faz parte da cultura e dinâmica da casa e do relacionamento.
Mas enquanto Keith tem interesses específicos, Stacey vaga pelos canais e pelas propagandas. E
não foi diferente na noite após a festa. Nossa protagonista não consegue dormir, em decorrência
da alergia, e vai para a sala, controle na mão. De repente, uma das propagandas parece falar
diretamente com ela! E justamente do tal creme. Ela precisa é de uma mudança de corpo inteiro,
e não interessa a coceira e a ardência, "a dor é a cura. Será modificada de corpo e alma. Mas pra
isso, precisa do pote inteiro e precisará de ainda mais. Dói quando funciona, quando está
sarando! Cuidado, podem haver efeitos colaterais: mudanças de humor, alucinações, medo,
vazio, falta de interesses, de individualização, de opiniões independentes e desinteresse em
atividades antes prazerosas! Mas vale a pena! Stacey precisa daquela mudança, é uma vergonha
ser como ela, alguém que ninguém quer por perto, que ninguém quer ver. E realizar o sonho é
fácil, é simples!" Basta ligar, enquanto o número de telefone pisca gigante e colorido na tela.
"Ligue agora mesmo! Invista em você! Transforme-se: do patinho feio em cisne!"
É fácil e irresistível demais. Stacey compra logo uma caixa gigante, que chega
quase que imediatamente. Começa a usar mais e mais, na mesma medida em que a reação
alérgica também aumenta. É apenas o processo! Deixa de ir ao trabalho e, quando está doendo,
questionando, ou quando Keith a interroga, basta sentar na frente da tv e ser lembrada de que é
aquela mesmo a cura, de que ela tem que continuar, de que precisa de mais e mais. A dor é um
preço pequeno a se pagar pela perfeição! Keith tenta, nos breves momentos em que a enxerga
pralém do trabalho e da televisão, convencê-la a parar, de que não tem nada errado com ela. Ela
pede apoio, diz que ele não entende. Afinal, todo mundo gosta dele e quer estar perto, ele é
homem, não interessa muito como ele se parece. "Tente não coçar, querida" e é assim que Keith
volta pro seu programa de televisão. Mas é apenas o processo! Basta confiar. Não dói mais do
que quando é excluída, ignorada, ou riem dela. Se quer ser bonita, isso vai doer. E ela não está
sozinha. A televisão e o apresentador estão com junto! Use mais!
E assim ela faz. Mais e mais. Ainda que o preço do produto vá aumentando, a
necessidade também vai. A reação alérgica deixa a pele em carne viva. Como ela pode ser bonita,
se tem vontade de arrancar a própria pele? Os momentos de dissociação com a realidade vão
sendo cada vez mais frequentes. Em uma das situações em que sente medo, pede pra que Keith, o
marido protetor, fique em casa com ela, mas bom, ela sabe que ele não pode fazer isso. Num dia,
os tubos de creme, tomam tanto poder e importância que se materializam num corpo, que a
abraçam, a envolvem. A tocam e beijam de uma maneira como ela não é tocada, vista e abraçada.
Mas também a machucam cada vez mais. Keith, ao desviar o olho da tv, a encontra coberta de
creme, e muito machucada. Os olhos estão vidrados. Tenta mais uma vez convencê-la a parar
com aquilo, a procurar um médico, a deixar as preocupações de lado. Parar com aquela
bobagem! Ela é encantadora por dentro, inteligente, gentil. Aquela não é ela. Mas ele não
entende! Ele não apoia! Keith se irrita, ergue o tom de voz, grita para parar! Não vai ter nenhuma
transformação! Numa reação de fúria, Stacey o golpeia violentamente. Ele quer atrapalhar o
processo e a cura! Ele não vê! É ele, afinal, quem não quer mudar e que não aceita também que
ela mude. Não é como ele pensa, aquela é a verdadeira Stacey nascendo. É isso que vai consertá-
la. Por que não fica animado por ela? E assim, dá mais um golpe violento e fatal.
Mais uma cena da televisão e, em seguida, Stacey segue as pegadas de creme
pela casa, atraída, chamada, vai pra dentro da banheira, e imerge o corpo no cosmético
milagroso. Não há como resistir, é sugada, incorporada. Numa mistura de dor e riso e êxtase e
deleite, o expectador tem a impressão de que ali também será o seu fim. Mas não. O milagre
acontece, sua pele se renova, o processo se completa. Está curada! Bonita, jovem, parecida com
as mulheres do trabalho e da revista em suas vidas plastificadas. Corre mostrar pra Keith, morto
e deitado no chão. O leva pro porão, e, empolgada, também o taxidermiza. Depois de pronto, o
coloca no seu lugar de sempre, olhos na televisão, controle na mão. Ali, entre eles e na dinâmica
do casamento, afinal, nada mudou e, assim, poderá amá-lo para sempre! "Tchau, querido, tenha
um ótimo dia!"
E é assim, desfilando, segura, confiante, de vestido chique, maquiagem colorida,
corte de cabelo novo, que reaparece no trabalho. Todas as mulheres ficam impressionadas e
orbitam em volta dela. Praticamente irreconhecível! Seria uma miragem? Todas param. Todas
olham. Como isso aconteceu? Está tão bonita! Parece um anjo! Sempre tivera aquela roupa?
Olha a pele! Como pode ser possível? Pode tocar? Pode olhar de perto? Finalmente! Stacey
agora é como elas, Stacey agora pertence, não é igorada, ainda que esteja vazia por dentro, tal
qual como os animais que empalha. No fim, tudo valeu a pena, está, finalmente, entre pares,
sendo vista, sendo amada! E ao som de risadas plásticas e de "You Sexy Thing, de Zella Day",
entoando "Eu acredito em milagres, de onde você veio, Sexy? Vc sabia que é tudo pelo que
rezei"?, fim do episódio.

Weber, ação social, estamento e dominação tradicional.

"Quiseram que eu fosse um objeto, mas eu não obedeço totalmente.


Se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita.
Ninguém me ensinou a querer, mas eu quero!"
Clarisse Lispector, em: Água Viva

Para análise desse episódio, utilizaremos um dos conceitos principais de Weber,


o de ação social. "A "ação social é uma ação na qual o sentido sugerido pelo sujeito refere-se a um
comportamento de outros e se orienta nela, no que diz respeito ao seu desenvolvimento."
(WEBER, 1999, p.400). Podemos, portanto, entender ação social como a que se expressa através
de comportamentos em que o sujeito, através de um sentido subjetivo, o relaciona a outro
indivíduo ou grupo. É uma ação orientada ao outro, levando em consideração atividade de
terceiros. Está em interação. (p.415) Ou seja, pensou na consequência do comportamento ao
considerar o outro/social, é uma ação social.
Chamaremos aqui, portanto, de ação social o comportamento de Stacey em relação
ao uso do tal creme milagroso, orientado e mediado pelo grupo das mulheres do trabalho. Ela,
literalmente, repete os gestos de como passar o creme. A ação é orientada a esses outros, com o
objetivo de pertencer, ser incluída, fazer parte. O comportamento, que antes não existia, aparece e
se transforma a partir da relação com esse social.
Assim como a masculinidade (ainda) está para a virilidade e o provedor, a
mulheridade (ainda) está para o ideal estético e o dispositivo amoroso/materno (ZANELLO,
WOLF). Mulheres são socializadas para a docilidade e o casamento. E para que esse dispositivo
possa se realizar, eis seu maior valor: a aparência! Não suas habilidades, não seu trabalho, não suas
capacidades, mas como ela se parece! Basta observar da menina qualquer à profissional mais
renomada sendo elogiada. Basta observar como mulheres são retratadas pela mídia, a tal mídia
com uma força de ação social tão efetiva quanto a retratada pela série, e, agora, cada vez mais com
o absurdo de informações, filtros e velocidade da internet. Basta observar nossas referências (atuais
e presentes): mães incondicionais, esposas guerreiras e cuidadoras ou, do outro lado, modelos
sexys, amantes 'perfeitas', não cientistas, não intelectuais, e certamente não as referências das
nossas ementas de cursos e instituições. Basta observar os números de procedimentos estéticos por
gênero, ou o espaço estético de uma farmácia destinado para homens e mulheres. Crescemos,
inegavelmente, com esse enquanto nosso maior valor. Para pertencer, para fazer parte, para estar
entre pares, para ser amada.
Como mulheres ainda se mantém nesse dispositivo? Com uma estrutura altamente
organizada e hierárquica, presente em absolutamente todas as nossas principais instituições
formadoras, tendo essa enquanto nossa ação social mais normativa. E só entenderemos isso, se
observarmos as formações estruturais, ao invés de continuar acusando sujeitos individuais.
Também não é disso que falava Weber? O valor de uma mulher ainda é medido por quão bonita e
padrão (branca, magra, jovem) se parece. É isso que aprendemos que será olhado. Segundo Weber,
poderíamos entender como pares àqueles que, em situação, fazem parte de um grupo em comum
de beneficiários, quer seja por interesses e crenças compartilhadas ou reconhecimento e
honrarias-privilégios, se mantém em uma legitimidade própria e reguladora de ações. Códigos
em comum tornam-se necessários para integrar esse 'ethos' de sociabilidade, regras do jogo que
condicionam ações do grupo. Não considerar a força desse outro prejudicaria os próprios
interesses, então, acordos e parcerias mantém-se sem que necessariamente se dependa de uma lei
ou coação orientando formações e internalizações das regras. E Stacey percebe muito bem esse
jogo. Essas mulheres da agência também, certamente, aprenderam isso cedo demais. Esse é o
ethos compartilhado retratado pela série. Meninas são construídas e socializadas para serem
princesas. Esperando para serem salvas por homens como Keith, protetor de Stacey, centrado em
seu próprio trabalho e interesses. É essa a ação social do grupo de mulheres do trabalho, e a mesma
força que impacta em Stacey, por consequência. A professora doutora, escritora e psicóloga, das
grandes referências atuais em estudos de saúde mental e gênero, Valeska Zanello, afirma que
mulheres são socializadas na 'prateleira do amor'. Sempre sendo escolhidas. Quanto mais brancas,
magras e jovens. Tal como Gina, a popular, tal como a grande maioria das mocinhas amadas de
nossa mídia. É assim que se legitima a mulheridade, é assim que Stacey se legitimaria e toda dor
valeria a pena. Assim ocuparia um lugar mais alto na prateleira. Não à toa, a obsessão pela
aparência feminina é, também, uma obsessão pela obediência feminina. (WOLF, 1992)
Ao mesmo tempo em que aprendemos que nossa aparência é o mais importante
sobre nós mesmas, e que isso é cobrado e ditado de tantas formas distintas estruturalmente, essa
busca, por outro lado, ainda é vendida como superficial e supérflua, deslegitimando e acusando
mulheres individualmente. Talvez por isso a irritação de Stacey com Keith que não entende, que
acha apenas uma bobagem! Logo ele, que não será determinado por isso, ao menos, não dessa
forma. Como uma questão tão "superficial" como a estética se liga a valores tão essenciais? As
habilidades que nos são incentivadas e como fomos socializadas desde o nascimento. A ligação
estreita e profunda com o dispositivo amoroso, o casamento, a maternidade e a autorização ou não
à sexualidade. A desvalorização dos trabalhos e capacidades femininas, a não admiração e
referenciação à mulheres por suas intelectualidades e fazer científico/acadêmico, mas sempre e só
aos seus corpos. O ódio a esse mesmo corpo sempre vendido como inadequado e que movimento
bilhões dessas indústrias (normalmente, direto pros bolsos masculinos!) Os mesmos conjuntos de
repertórios e de ações sociais vendidas como essencialmente femininas, serem as mesmas
consideradas tão inadequadas e avessas aos cargos de liderança ou política! Nosso gasto de tempo
e dinheiro com essa prática, a normalização da dor e da violência aos corpos em nome desse
pertencimento. A sexualização desse mesmo corpo objetificados em absolutamente todos os
contextos. "A forma pela qual as honras sociais são distribuídas numa comunidade, entre grupos
típicos que participam dessa distribuição, pode ser chamada de "ordem social". (WEBER, 1999, p.
212). Eis a nossa ordem social!
Outro conceito Weberiano que poderia ser utilizado aqui, é o de "estamento",
relacionado às honrarias e reconhecimentos que se recebe dos pares nesse jogo social, passando
pelo poder financeiro, mas não só. O estamento tem, portanto, regras próprias. E, apesar de
serem mais fechados que, por exemplo, as classes ('em situação', mobilidade, incorporação de
novos valores), também se desenvolvem e movimentam. "A honraria estamental não precisa,
necessariamente, estar ligada a uma situação de classe, normalmente se opõe às pretensões de
simples propriedade." (p.218 e 219) A honra estamental é expressa por um estilo de vida
específico e restrito que pode ser esperado daqueles que desejam pertencer. E Stacey desejava
pertencer! Estava sedenta por fazer parte desse status e honrarias. As distinções estão, então,
asseguradas não simplesmente por leis e convenções ou poder econômico simplemente, mas
também por esses rituais, exigências convencionais que um estamento cria para a conduta. O
ritual do creme na casa de Gina, os assuntos privados desse grupo, o acesso aos presentes, tudo
isso pode ser entendido dentro desse rito específico do estamento. As regras passavam por
repertórios e comportamentos, que não faziam parte do mundo de Stacey. "Os 'estamentos' se
estratificam de acordo com os princípios de seu consumo de bens, representado por "estilos de
vida" especiais." (WEBER, 1963, p.226) O rito da beleza seria esse estilo de vida especial que
garantiria o acesso a esse mundo que Stacey precisava, avidamente, pertencer. Afinal, fora pra
isso que fomos criadas. O 'aclamado' Nietzsche, em "Vontade de Potência", por exemplo, dentre
tantos outros clássicos admirados, já dizia que não deveríamos aspirar a ser mais do que belos
bibêlos. Bibêlos belos e calados é que nos querem!
Além disso, se estamos dizendo que não existiu uma lei ou uma coação expressa
que determinou o comportamento de Stacey, em Weber, poderíamos também recorrer a ideia de
dominação tradicional, em que certos comportamentos são 'aceitos, validados' pelo grupo
dominado, aqui, Stacey e, de forma geral, as mulheres e o ideal estético, se mantendo e
perpetuando na ação das pessoas. Stacey dá seguimento a esse jogo a partir do momento em que
entra, 'voluntariamente', nele. A dominação tradicional pode ser compreendida pela probabilidade
de encontrar, na obediência, no seguir das tais regras, a possibilidade de receber 'vantagens,
ganhos'. Não à toa toda a dor de Stacey é, no fim, validada ao atingir o padrão de beleza e ser
aplaudida pelas colegas de trabalho, agora, maravilhadas e à sua volta. É por isso que os
incorpora, ainda que não tenha sido, expressamente, coagida. Porém, só porque não há uma lei,
ou porque a coação não é fisicamente ou explicitamente imposta por esse outro, deixa de ser
coação? Como bem nos lembra Butler em "Problemas de Gênero" (2003), quem segue o script, o
ideal de comportamento, de forma adequada, é recompensado (eis Gina popular, com a vida de
revista, cercada de atenção e 'amigas'), e quem não segue é punido (basta olhar Stacey à parte dos
grupos, se autoodiando, querendo arrancar a própria pele do seu rosto 'ruim, feio e estúpido'). Se
fosse uma mulher, ou um homem não branco escrevendo, teríamos continuado chamando a essa
dominação de "legítima"? Há realmente possibilidade de escolha, quando aquele produto não se
encontra na prateleira? Há liberdade, se a punição, ainda que não aparente e explícita, acontece?
Há universalidade, se somos sempre o outro nesse ideal de mundo e referências?
"No momento em que as mulheres começam a tomar parte da elaboração do
mundo, esse mundo ainda é um mundo que pertence aos homens. Elas bem o sabem, eles mal
duvidam. Tudo o que os homens escrevem sobre as mulheres deve ser suspeito, porque eles são,
a um tempo, juiz e parte. Escolhe-se num mundo em que as impõe condição de outro. Pretende-
se torná-las objeto." (BEAUVOIR, 1980). O que sei é que se nossas narrativas fossem outras,
feitas de outros corpos; nossa História, nossa Psicologia, nossa Ciência, nossos currículos,
grandes clássicos, nomes e conceitos, certamente seriam outros. Assim sendo, nossos objetivos,
possibilidades, nossa ação social e nossos ethos e scripts de comportamento, também seriam.
Talvez seja chegada a hora, que, na verdade, já passa faz tempo. Como diria Conceição Evaristo,
não é sobre ser a primeira, mas sobre abrir caminhos. Abro, aqui, talvez, trazendo Weber, pra
questões e corpos que ele jamais se debruçaria. E sim, entendo-o como homem de seu tempo,
tempo esse que não se estruturaria com condições diferentes.
Mas, e hoje?
Referências Bibliográficas
BEAUVOIR, S. A Força das Coisas. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1995.
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,
1980.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de
Renato Aguiar. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003
O GABINETE de Curiosidades. Guillermo Del Toro. Netflix, 2022.
WEBER, M. Ensaios de sociologia. Organização e introdução de H. G. Gerth e C. Wright
Mills. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1963.
WEBER, M. Metodologia das ciências sociais. Tradução de Augustin Wernet. Introdução à
edição brasileira de Maurício Tragtenberg. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
WOLF, N. O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
WOOLF, V. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
ZANELLO, V. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação.
Curitiba: Appris, 2018.

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