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A Doutrina do Sacerdócio de Todos os Crentes Conforme Lutero

A maior contribuição de Lutero à eclesiologia protestante foi a sua doutrina do sacerdócio de


todos os cristãos. Contudo, nenhum outro elemento de seu ensino é tão mal compreendido.
Para alguns, isso significa apenas que não há mais sacerdotes na igreja; é a secularização do
clero. Dessa premissa, alguns grupos, notadamente os quacres, defenderam a abolição do
ministério como ordem distinta dentro da igreja. Mais comumente, as pessoas acreditam que
o sacerdócio de todos os cristãos implica que cada cristão é seu próprio sacerdote, e, assim,
possui o “direito do julgamento privado” em assuntos de fé e doutrina. Ambos os casos
constituem perversões da intenção original de Lutero. A essência de sua doutrina pode ser
expressa numa única frase: todo cristão é sacerdote de alguém, e somos todos sacerdotes uns
dos outros.

Lutero rompeu decisivamente com a divisão tradicional da igreja em duas classes, clero e
laicato. Todo cristão é um sacerdote em virtude de seu batismo. Esse sacerdote deriva
diretamente de Cristo: “Somos sacerdotes como ele é Sacerdote, filhos como ele é Filho, reis
como ele é Rei”. Mais ainda, cada membro da Gemeine tem parte igual nesse sacerdócio. Isso
significa que os ofícios sacerdotais são propriedade comum de todos os cristãos, não a
prerrogativa especial de uma casta seleta de homens santos. Lutero enumerou sete direitos
que pertencem a toda a igreja: pregar a Palavra de Deus, batizar, celebrar a Santa Comunhão,
carregar “as chaves”, orar pelos outros, fazer sacrifícios, julgar a doutrina. Lutero baseou sua
afirmação de que todos os cristãos são sacerdotes no mesmo grau em dois textos do Novo
Testamento: “Vós [...] sois [...] sacerdócio real” (1 Pe 2.9), e “nos constituiu reino, sacerdotes”
(Ap 1.6).

O sacerdócio de todos os cristãos é tanto uma responsabilidade quanto um privilégio, um


serviço tanto quanto uma posição. Deus fez-nos um corpo, um “bolo” (imagem favorita de
Lutero). Nossa unidade e igualdade em Cristo é demonstrada por nosso amor mútuo e nosso
cuidado uns pelos outros. “O fato de que somos todos sacerdotes e reis significa que cada um
de nós, cristãos, pode ir perante Deus e interceder pelo outro. Se eu notar que vocês não têm
fé ou têm uma fé fraca, posso pedir a Deus que lhe dê uma fé sólida.”

Tudo isso implica que ninguém pode ser um cristão sozinho. Assim como não podemos nascer
de nós mesmos, ou batizar a nós mesmos, da mesma forma não podemos servir a Deus
sozinhos. Aqui, abordamos outra grande definição da igreja apresentada por Lutero:
communio sanctorum , uma comunidade de santos. Mas quem são os santos? Não são
supercristãos que foram elevados à glória celeste, em cujos “méritos” podemos conseguir
ajuda nos caminhos da vida. Todos os que crêem em Cristo são santos. Conforme Paul Althaus
disse: “Lutero trouxe a comunidade dos santos do céu para a terra”.

Quando desejar fazer alguma coisa pelos santos, volte sua atenção para os vivos, não para os
mortos. O santo vivo é seu próximo, o nu, o faminto, o sedento, o pobre que tem esposa e
filhos e sofre humilhações. Dirija sua ajuda a eles, comece seu trabalho aqui.
Uma comunidade de intercessores, um sacerdócio de amigos que se ajudam, uma família em
que as cargas são compartilhadas e suportadas mutuamente – essa é a communio sanctorum .

Como Lutero relacionava o sacerdócio de todos os cristãos ao ofício do ministério?

Enquanto todos os cristãos têm parte igual nos tesouros da Igreja, incluindo-se os
sacramentos, nem todos podem ser pastores, mestres ou conselheiros. Há um só “estado”
(Stand), mas uma variedade de ofícios (Amte) e funções.

Lutero considerava o ministério da Palavra o mais alto ofício da Igreja. O próprio título, “sevo
da Palavra divina” ( minister verbi divini ), conota um papel essencialmente fundamental.
Rigorosamente falando, Lutero ensinou que todo cristão é ministro e tem o direito de pregar.
Esse direito pode ser livremente exercido se alguém estiver em meio a não-cristãos, entre os
turcos ou encalhado numa ilha pagã. Entretanto, numa comunidade cristã, não se deve
“chamar atenção sobre si mesmo”, assumindo tal ofício por conta própria. Antes, deve-se
“deixar ser chamado e escolhido para pregar e ensinar no lugar de outros e sob o comando
deles”. O chamado é feito pela congregação, e o ministro continua tendo de prestar contas a
ela. Lutero chegou ao ponto de dizer: “O que lhe damos hoje podemos tirar dele amanhã”. O
rito da ordenação não confere nenhum caráter indelével à pessoa ordenada. É meramente a
forma pública pela qual alguém é comissionado mediante a oração, as Escrituras e a imposição
de mãos, a fim de servir à congregação. Argumentando curiosamente a partir da lei natural,
Lutero excluía mulheres, crianças e pessoas incompetentes do ministério oficial da igreja,
embora numa época de emergência ele pudesse chamá-los a exercer tal ofício, em virtude de
sua parcela no sacerdócio de todos os cristãos.

O Sacerdócio Universal dos Crentes

Introdução.

Dentre os princípios fundamentais defendidos pelos reformadores do século XVI está o


"sacerdócio universal dos crentes" ou "sacerdócio de todos os crentes." Os outros princípios,
dos quais este decorre, são as Escrituras como norma suprema de fé e vida e a salvação pela
graça mediante a fé, alicerçada na obra redentora de Jesus Cristo.

Embora o Velho Testamento apresente claramente a noção de um ofício sacerdotal exercido


por elementos da tribo de Levi em benefício do povo de Israel, existem passagens que
antecipam um entendimento mais amplo dessa função. Êxodo 19.5-6: "Se diligentemente
ouvirdes a minha voz, e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade
particular dentre todos os povos... vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa." Outro
texto relevante é Isaías 61.6: "Vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, e vos chamarão
ministros de nosso Deus."

No Novo Testamento, o conceito de sacerdócio tem dois aspectos:

(a) Jesus Cristo é o grande sumo sacerdote: todas as funções do sacerdócio da antiga
dispensação concentram-se nele, e são por ele transformadas. Ele é o único mediador entre
Deus e os seres humanos (1 Tm 2.5). Ele é o representante de Deus junto aos homens e o
representante dos homens junto a Deus. Ele é, ao mesmo tempo, o sacerdote e o sacrifício. A
Carta aos Hebreus expõe claramente a superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o
sacerdócio levítico e apresenta o caráter definitivo e totalmente eficaz do seu auto-sacrifício
sobre a cruz (Hb 2.17; 3.1; 4.14s; 5.10; 6.20; 7:24-27; 9:12,26; 10.12). A literatura joanina
também fala repetidamente do sacerdócio de Cristo, como em João 1.29.

(b) Todos os crentes partilham desse sacerdócio: isso se expressa principalmente nas áreas da
adoração, serviço e testemunho. 1 Pedro 2.5: "Também vós mesmos, como pedras que vivem,
sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios
espirituais, agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo." 1 Pedro 2.9: "Vós, porém, sois
raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de
proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz." O
Apocalipse destaca o aspecto governamental desse sacerdócio: 1.5-6: "Àquele que nos ama, e
pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu
Deus e Pai..."; 5.9-10: "Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste morto e
com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação,
e para o nosso Deus os constituíste reino e sacerdotes."

O Novo Testamento não menciona a existência de um ofício sacerdotal na igreja. Essa idéia
surgiu posteriormente, em escritores como Clemente (ministério cristão composto de sumo
sacerdote, sacerdote e levita), a Didaquê (chama os profetas cristãos de "vossos sumos
sacerdotes" e refere-se à eucaristia como um sacrifício) e, mais especificamente, em Tertuliano
e Hipólito, que referem-se aos ministros cristãos como "sacerdotes" e "sumos sacerdotes."

Na Idade Média desenvolveu-se plenamente a idéia do sacerdócio (o clero) como uma classe
distinta dos leigos, dotada de dignidade e direitos especiais. Essa idéia resultou do
entendimento da eucaristia como um sacrifício – a repetição do sacrifício de Cristo –, o que
exigia a figura do sacerdote. Além disso, a noção de que os (sete) sacramentos são canais
quase que exclusivos da graça de Deus e só podem ser ministrados através do sacerdócio, deu
aos sacerdotes, à hierarquia, um enorme poder sobre as vidas dos fiéis. Os leigos tornaram-se
totalmente dependentes da ministração dos sacerdotes para receberem os benefícios da graça
de Deus e, em última análise, a própria salvação.

Um exemplo dos malefícios causados por esses dogmas pode ser visto na prática do interdito
ou interdição, um instrumento utilizado pelos papas e outros líderes religiosos contra os reis
europeus, mediante o qual o clero ficava proibido de ministrar os sacramentos em uma cidade,
região ou país inteiro como um instrumento de pressão político-religiosa.

Em sua peregrinação espiritual, Lutero veio a ter uma compreensão da graça de Deus que
chocou-se frontalmente com esse entendimento da igreja e do ministério cristão. A partir de
1512, quando tornou-se professor de estudos bíblicos na Universidade de Wittenberg, ele
começou a encontrar nas Escrituras uma série de verdades revolucionárias a respeito da
salvação. A salvação fundamentava-se exclusivamente na graça de Deus e na obra expiatória
de Cristo. Mediante a fé ou confiança nessa graça e nessa obra, o indivíduo era justificado, ou
seja, aceito como justo por Deus, sendo que essa fé também era um dádiva do alto. As obras
ou méritos humanos não desempenhavam nenhum papel nesse processo, mas a salvação era,
do começo ao fim, uma dádiva da livre graça de Deus ao pecador arrependido.

A partir de 31 de outubro de 1517, Lutero passou a elaborar as implicações mais amplas dessa
nova percepção. Ele o fez principalmente através de uma obra que escreveu em 1520, A
Liberdade do Cristão, onde argumenta que "a alma crente, por seu compromisso de confiar em
Cristo, livra-se de todo pecado, do temor da morte e do inferno, e se reveste com a justiça
eterna, a vida, e a salvação de Cristo, o seu esposo." É isto o que concede plena liberdade ao
cristão.

Diz Lutero: "De posse da primogenitura e de todas as suas honras e dignidade, Cristo divide-a
com todos os cristãos para que por meio da fé todos possam ser também reis e sacerdotes
com Cristo, tal como diz o apóstolo Pedro em 1 Pe 2.9... Somos sacerdotes; isto é muito mais
que ser reis, porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e rogar pelos
outros."

Mais adiante ele pondera: "Tu perguntas: ‘Que diferença haveria entre os sacerdotes e os
leigos na cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’,
‘religioso’ e outras semelhantes foram injustamente retiradas do meio do povo comum,
passando a ser usadas por um pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero.’ A
Escritura Sagrada distingue apenas entre os doutos e os consagrados, chamando-os de
ministros, servos e administradores, que devem pregar aos outros a Cristo, a fé e a liberdade
cristã. Já que, embora sejamos todos igualmente sacerdotes, nem todos podem servir,
administrar e pregar. Como disse Paulo em 1 Co 4.1: ‘Assim, pois, importa que os homens nos
considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus." (A Liberdade do
Cristão, cap. 17).

Os leigos tem a mesma dignidade que os ministros. Todas as profissões e atividades são
igualmente valiosas aos olhos de Deus. Os ministros diferenciam-se dos leigos simplesmente
nisso: foram escolhidos para realizar certos deveres definidos, para que haja ordem na casa de
Deus. Foi esse princípio do sacerdócio de todos os crentes que libertou os homens do temor e
dependência do clero. É o grande princípio religioso que jaz na base de todo o movimento da
Reforma. Não somente Lutero, mas todos os demais reformadores o afirmaram, em especial
João Calvino.

Dessa verdade bíblica, decorrem algumas implicações práticas:

a) O princípio do sacerdócio universal dos crentes nos fala do grande privilégio que temos
como filhos de Deus: cada cristão é um sacerdote, cada cristão tem livre e direto acesso à
presença de Deus, tendo como único mediador o Senhor Jesus Cristo.

b) Todavia, esse princípio jamais deve ser entendido de maneira individualista. A ênfase dos
reformadores está no seu sentido comunitário. Somos sacerdotes uns dos outros, devendo
orar, interceder e ministrar uns aos outros. À luz do Novo Testamento, todo cristão é um
ministro (diákonos) de Deus, o que ressalta as idéias de serviço e solidariedade.

c) Num certo sentido, todos os crentes são "leigos," palavra que vem do termo grego laós, o
povo de Deus. Todavia, a Escritura claramente fala de diferentes dons e ministérios. Alguns
cristãos são especificamente chamados, treinados e comissionados para o ministério especial
de pregação da Palavra e ministração dos sacramentos.

d) Os leigos, no sentido daqueles que não são "ministros da Palavra," também têm
importantes esferas de atuação à luz do Novo Testamento. Os líderes da igreja devem falar
sobre o ministério do povo de Deus, bem como instruir e incentivar os crentes e
desempenharem o seu ministério pessoal e comunitário. A placa de uma igreja nos Estados
Unidos dizia o seguinte: "Pastor: Rev. tal; Ministros: todos os membros."

e) O sacerdócio universal dos crentes corre o risco de tornar-se mera teoria em muitas igrejas
evangélicas. Sempre que os pastores exercem suas funções com excesso de autoridade (1
Pedro 5.1-3), insistindo na distância que os separa da comunidade, relutando em descer do
pedestal em que se encontram, concentrando todas as atividades de liderança e não sabendo
delegar responsabilidades às suas ovelhas, tornando as suas igrejas excessivamente
dependente de sua orientação e liderança, não dando oportunidades para que as pessoas
exerçam os dons e aptidões que o Senhor lhes tem concedido, há um retorno ao
sacerdotalismo medieval contra o qual Lutero e os demais reformadores se insurgiram.

Que o Senhor nos dê a graça de valorizarmos e praticarmos fielmente o princípio bíblico do


sacerdócio de todos os crentes, redescoberto pelos reformadores do século XVI. Dessa
maneira, seguindo a verdade em amor, cresceremos "em tudo naquele que é o cabeça, Cristo,
de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa
cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em
amor" (Ef 4.15s).

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