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1. Contextualização da obra
Referências bibliográficas
Para escrever Frei Luís de Sousa, Almeida Garrett partiu de factos reais, passados em
finais do século XVI, época em que se vivia no nosso país uma grande crise de identidade:
Manuel de Sousa Coutinho, nascido em Santarém por volta de 1555 era um
fidalgo, cavaleiro da Ordem Militar de Malta e prestou serviços a Filipe II de
Espanha.
Depois de ter estado em Espanha durante cerca de dois anos, regressou a
Portugal, tendo casado, por volta de 1588, com D. Madalena de Vilhena que tinha
três filhas do primeiro casamento com D. João de Portugal, desaparecido em
Alcácer Quibir, em 1578.
Em 1600, os governadores do reino espanhóis e seus representantes quiseram
instalar-se no palácio de Manual de Sousa Coutinho, em Almada, para fugirem à
peste que então assolava Lisboa. Para não os receber, o fidalgo incendiou o seu
próprio palácio por questões pessoais, como ele próprio reconheceu no prefácio
de Obras Poéticas de Jaime Falcão, que editou nesse mesmo ano.
Em 1613, depois de lhes ter falecido a filha, Madalena de Vilhena e Manuel de
Sousa Coutinho resolveram entrar para o convento. Para esta atitude algo insólita
surgiram várias explicações:
o Uma delas conta que um peregrino regressado da Terra Santa tinha trazido
a notícia de que D. João de Portugal estaria vido, o que, a ser verdade,
tornaria impossível a vida em comum dos conjugues.
Sebastianismo
D. Sebastião nasceu em Lisboa, a 20 de janeiro de 1554. Apesar de ter sido aclamdo rei
em 1557, só viria a governar efetivamente a partir dos 14 anos. Até lá, a regência do reino foi
assegurada pela sua avó, a rainha D. Catarina, viúva de D. João III e, mais tarde, pelo seu tio-
avô, o cardeal D. Henrique.
O cognome “O Desejado” advém do dramático contexto político em que D. Sebastião
foi gerado e em que nasceu: mesmo antes de vir ao mundo, ele já carregava a
responsabilidade de ser a última esperança de que Portugal não viesse, em breve, a ser
governado por um rei castelhano. Daí que o seu nascimento tenha sido rodeado de um caráter
miraculoso, expresso em variados registos da época que terão marcado profundamente o
percurso deste monarca e a sua imagem pública. Foi-se, então, generalizado a ideia de que D.
Sebastião era uma espécie de rei ungido, predestinado para fazer regressar Portugal às glórias
passadas.
O seu reinado cessou, no entanto, brutalmente no dia 4 de agosto de 1578, com a
derrota na batalha de Alcácer Quibir, sem ter deixado descendentes, o que levou, dois anos
mais tarde, em 1580, à perda da independência nacional.
Quando o país é então confrontado com uma profunda crise política e económica,
começa a emergir a imagem idealizada de D. Sebastião como rei salvador que libertará
Portugal dos castelhanos e da sua opressão, restituindo-lhe a sua antiga grandeza.
O mito sebástico é recorrente na História de Portugal, ressurgindo ciclicamente em
épocas de crise de identidade e/ou de lideranças como esperança de melhores dias e de maior
grandeza. “A morte deu-lhe vida ilimitada” como mais tarde disse Afonso Lopes Vieira, e o
mito, como é próprio dos mitos, foi sendo adaptado às realidades de cada momento.
O sebastianismo assume um papel central na nossa cultura e é um dos grandes temas
da nossa literatura, seja como atitude passiva de expectação do herói, seja como o
ressurgimento da fé e da capacidade realizadora dos portugueses.
3. Estrutura da obra
Estrutura
Estrutura interna
externa
ESPAÇO: Palácio de Manuel, em Almada (elegante, luxuoso, com boa
luminosidade devido às largas janelas abertas sobre o Tejo).
TEMPO: 27 de julho de 1599.
Exposição Conflito Desenlace
ATO I Nas cenas I a IV, Nas cenas V a VIII, Frei Nas cenas IX a XII,
(12 cenas) Madalena e Telmo Jorge informa que o durante o incêndio,
fornecem informação palácio será ocupado arde o retrato de
acerca de pelos governadores e Manuel e as
acontecimentos do Manuel de Sousa personagens
passado Coutinho decide abandonam o palácio.
(contextualizam a incendiá-lo para não os
ação). receber.
ESPAÇO: Palácio de D. João de Portugal, em Almada (antigo, melancólico e
escuro; sala dos retratos).
TEMPO: 4 de agosto de 1599.
Exposição Conflito Desenlace
Nas cenas I a II, já na Nas cenas IV a VIII, Nas cenas IX a XV,
sala dos retratos do Manuel de Sousa, Madalena pressente a
palácio de S. João, Maria e Telmo partem desgraça ligada à
ATO II
Maria recorda a noite para Lisboa, deixando fatalidade daquele dia
(15 cenas)
do incêndio, mostra Madalena sozinha com e assiste-se à chegada
especial interesse pelo Frei Jorge, a quem do Romeiro que será
retrato de D. João e manifesta as suas reconhecido por Frei
questiona Telmo sobre inquietações e Jorge como D. João de
aquela personagem. superstições em Portugal.
relação àquele dia (6ª
feira).
ESPAÇO: Parte baixa do palácio de D. João de Portugal (espaço interior
austero e sem ornamentos).
TEMPO: 5 de agosto de 1599.
Exposição Conflito Desenlace
Na cena I, em conversa Nas cenas II a IX, o Nas cenas X a XII, dá-se
com Frei Jorge, Manuel Romeiro identifica-se a o desenlace: o casal
de Sousa Telmo e tenta remediar toma o hábito e Maria
ATO III
(12 cenas) responsabiliza-se pela o mal causado pela sua morre.
situação e decide a chegada, Madalena
entrada do casal para o tenta evitar a
convento. separação, acabando
por se resignar e
aceitar a decisão de
Manuel.
Frei Luís de Sousa é um texto híbrido que sintetiza aspetos da tragédia clássica e do drama
romântico: é um drama pela forma e uma tragédia pela índole1
1
Assunto, tema.
Personagens pertencentes a estratos sociais três unidades da tragédia
elevados. clássica.
Condensação do tempo em que a ação decorre. Exaltação dos valores
Concentração do espaço da ação. patrióticos e da identidade
Ação simples, convergindo para um rápido nacional (sobretudo
desenlace. Manuel de Sousa
Reminiscência da presença do coro da tragédia Coutinho).
clássica2 (Frei Jorge e Telmo Pais). Crença no sebastianismo
Presença de elementos da tragédia clássica: (Maria e Telmo).
o Ananké – o destino responsável pelo Presença de superstições e
desaparecimento de D. João de Portugal agouros populares que
e pela mudança da família de Manuel de retratam a cultura
Sousa para o seu antigo palácio; portuguesa (sobretudo
o Hybris – o desafio presente através do Madalena e Maria).
casamento de Madalena com Manuel de Religião cristã como um
Sousa Coutinho sem a total confirmação consolo.
da morte de D. João de Portugal e Morte de Maria em cena.
através do incêndio ateado pelas A crítica social aos
próprias mãos de Manuel de Sousa ao preconceitos sociais que
seu palácio; sacrificam inocentes
o Agón – o conflito que se manifesta nos (Maria).
dilemas interiores vividos por Madalena
e Telmo;
o Anagnórisis – o reconhecimento do
Romeiro como sendo D. João de
Portugal;
o Peripéteia – a peripécia que consiste nas
consequências diretas do
reaparecimento de D. João: a ilegalidade
do casamento de Manuel de Sousa e
Madalena, a ilegitimidade de Maria e a
morte espiritual do casal;
o Clímax – a tensão emocional que vai
aumentando gradualmente, atingindo o
seu máximo no final do ato II (o
reconhecimento do Romeiro);
o Pathos – o sofrimento das diversas
personagens;
o Katastrophé – a catástrofe concretizada
na morte de Maria e na morte espiritual
do casal.
2
Na tragédia clássica havia a presença de um coro responsável por comentários sarcásticos,
agouros e profecias.
5. Resumo da obra
Ato I
Ato II
O ambiente fechado, sem janelas, com os quadros grandes das figuras de D. João,
Camões e D. Sebastião revelam uma presença indesejada e uma família mais abatida
(algo está para vir);
D. Madalena apresenta-se muito fraca; com a chegada de D. Manuel (que teve de fugir
devido à afronta aos governantes) e a indicação de que estes o tinham perdoado, D.
Madalena fica mais descansada, mas ao saber por Frei Jorge, um frei do convento dos
Domínicos, que este terá que partir para Lisboa para se apresentar, fica de novo
desassossegada;
D. Manuel parte para Lisboa na companhia de Maria e Telmo, deixando em casa D.
Madalena e Frei Jorge;
Aparece um Romeiro que não se quer identificar ao princípio, mas dá indícios de ser D.
João de Portugal, que voltaria exactamente 21 anos depois da batalha de Alcácer-
Quibir (7 para procurar o corpo + 14 casamento de D. Madalena e D. Manuel);
Ato III
7. As Temáticas Românticas
Eu / sociedade;
Apelo à liberdade;
Valorização das raízes nacionais (tema da história nacional, referência a
acontecimentos históricos e a figuras portuguesas de vulto), do sebastianismo e do
amor à pátria;
A obsessão da morte;
A ligação amor / morte.
8. O Sebastianismo
D. Sebastião e o mito sebastianista
A leitura interpretativa de Frei Luís de Sousa não pode esquecer a atuante presença do
Sebastianismo e o que este mito do "Desejado" significava na conceção de Portugal: uma
nação à procura da sua identidade, assombrada por mitos do passado.
A possibilidade teórica do regresso de D. Sebastião é simbolicamente representada na
peça pelo regresso de D. João de Portugal, na figura do Romeiro. As personagens que melhor
simbolizam a esperança no seu regresso são Telmo e Maria.
Ao longo da peça, são várias as referências expressas à mítica figura de D. Sebastião que,
segundo Garrett, inserem esta obra "(...) no rico intertexto e interdiscurso literário e cultural
do Sebastianismo (...)" (Memória ao Conservatório Real):
No primeiro diálogo entre D. Madalena e Telmo, D. Madalena censura ao velho aio as
suas crendices sebásticas: "(...) as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D.
Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por
quem ainda espera em sua leal incredulidade.", (Ato I, cena II). Telmo acreditava no
regresso do seu velho amo, D. João de Portugal, que acompanhara o jovem monarca
D. Sebastião na sangrenta Batalha de Alcácer Quibir.
As crenças sebastianistas de Telmo são assimiladas pela influenciável jovem Maria de
Noronha que acredita indubitavelmente no regresso do desejado monarca, D.
Sebastião: "(...) que não morreu e que há de vir, um dia de névoa muito cerrada (...)"
— (Ato I, cena III). Esta influência de Telmo no espírito de Maria provoca grande aflição
a D. Madalena de Vilhena: "(...) não vês que estás excitando com tudo isso a
curiosidade daquela criança, aguçando-lhe o espírito (...)" — (Ato I, cena II).
O incêndio da casa de Manuel de Sousa Coutinho permite a mudança de espaço físico,
para o palácio de D. João de Portugal, e o contacto com o retrato de D. Sebastião, que
merece a curiosa e entusiasmada atenção de Maria: "(...) é o do meu querido e amado
rei D. Sebastião" — (Ato II, cena I). Aliás, o incêndio da casa de Manuel de Sousa
Coutinho não é só um viril ato de patriotismo, mas é fulcral para o entendimento do
Sebastianismo na peça: o incêndio espelha a determinada busca de um novo espaço, e
mesmo de uma nova ordem, para uma família assombrada pelo passado que
representa uma nação assombrada por mitos e sonhos, como o do Sebastianismo.
Garrett parece dizer-nos que Portugal não se pode imobilizar na fixidez de um passado
mítico, mas tem de mudar o rumo da sua história, procurar uma nova ordem.
Podemos, então, concluir que o mito do Encoberto assume uma conotação negativa em
Frei Luís de Sousa, sendo perspetivado como sinal de paragem no tempo, de estagnação e de
sacrifício do herói na catástrofe final: Maria de Noronha representa o sacrifício necessário para
expiar os fantasmas do passado e definir o futuro do país.
Com o regresso de D. João de Portugal na figura do Romeiro, o rumo da história altera-se e
precipita-se o aniquilamento da harmonia da família de Manuel de Sousa Coutinho e de D.
Madalena e a morte de Maria. D. João é o anti-herói, o anti mito, cuja simples presença
provoca destruição. De facto, há nesta obra uma conceção destruidora deste regresso, já que
não conduz à redenção ou salvação, mas origina catástrofe e desgraça. Garrett parece sugerir
que o passado saudosista e a sua passividade prejudicam a dinâmica do Presente, impedindo a
regeneração ativa do país.
Mais do que meras personagens de um drama familiar, na peça de Garrett temos seres
simbólicos, representativos do destino coletivo português, num momento de profunda crise
política, devido à perda da independência. Neste sentido, a resposta “Ninguém!” do Romeiro a
Frei Jorge pode ser associada a Portugal, um país subjugado pelo domínio filipino.
Por isso, a espera sebástica em Frei Luís de Sousa simboliza a problematização do modo de
ser português, a autointerrogação de um Portugal que busca a sua identidade e não se
encontra.
9. A Linguagem
Inovação romântica presente no caráter oralizante e coloquial, construído através de
uma sintaxe afetiva (interrogações, exclamações, frases entrecortadas) e pelo
emprego de um vocabulário corrente, adequado ao estatuto das personagens;
Emprego de alguns arcaísmos que contribuem (tal como as referências históricas, o
cenário e o guarda-roupa) para a criação da cor epocal.
10.Personagens
Relevo
A Personagem Principal
O título da peça poder-nos-á levar a concluir que a personagem principal da obra seja
Manuel de Sousa Coutinho, uma vez que a realidade histórica nos refere que este cavaleiro da
Ordem Militar de Malta, ao tomar hábito, mudou o nome para Frei Luís de Sousa.
Podemos igualmente pensar que Madalena, porque é a personagem que tem mais falas,
Maria, cujo percurso é mais destrutivo, e até D. João, pela sua constante presença / ausência,
reúnem características para serem a personagem principal.
Todavia, será mais lógico apontar a família como personagem principal, porque é à volta
dela (pai, mãe e filha) que se desenvolve toda a ação. Todas as personagens estão marcadas
pelo destino e são conduzidas, logo desde o início, para a catástrofe final.
As Personagens Secundárias
À personagem coletiva principal estão ligados Telmo e Frei Jorge: o primeiro, por serviços
prestados, e, simultaneamente, por laços de amizade e até de amor (Maria); o segundo, por
ligação familiar (Frei Jorge é irmão de Manuel de Sousa). Ambos desempenham a função de
coro da tragédia grega (aconselham, apelam à prudência, são a voz da razão).
O Romeiro, aparentemente um peregrino que desempenha a função de mensageiro nos
moldes da tragédia clássica, revela-se uma personagem de importância fundamental para o
desenvolvimento da intriga e para o desenlace. É de notar que D. João de Portugal está sempre
“presente”: no primeiro ato através dos medos de D. Madalena e nos agouros de Telmo; no
segundo ato, presentificado primeiramente no retrato e, depois, na personagem Romeiro e,
finalmente, como D. João de Portugal ao dar-se a conhecer a Frei Jorge; no terceiro ato, com a
sua presença aniquiladora que determina o destino fatal das personagens.
Com funções de menor relevo tempos, por fim, Miranda, Doroteia, o Prior de Benfica, o
irmão converso, o arcebispo de Lisboa e o coro de frades de S. Domingos.
Caracterização
D. João de Portugal é o primeiro marido de Madalena a quem amava (acto III, cena 5) e,
segundo Telmo, é «Espelho de cavalaria e gentileza, aquela flor dos bons…» (acto I, cena 2).
Nas palavras de Manuel de Sousa Coutinho, é «… D. João de Portugal, um honrado fidalgo e
um valente cavaleiro…» (ato II, cena 2).
Foi feito cativo em Alcácer Quibir e prisioneiro em Jerusalém, durante vinte anos, regressando
ao fim de vinte e um anos de ausência, na figura do Romeiro.
D. João de Portugal é a “ausência mais presente” ao longo de todo o texto. É um fantasma,
uma entidade abstrata, apenas nomeada no ato I, que só existe através das palavras de Telmo
e de D. Madalena; depois vai-se progressivamente materializando no acto II, primeiro pelo
retrato e depois pela presença física (ato II, cena 13).
Esta personagem sofre, ao longo do texto, dois tipos de percursos; o primeiro que se centra à
volta da sua concretização enquanto figura real, o segundo que se relaciona com a sua
humanização.
Com efeito, o primeiro contacto físico entre o espectador / leitor e D. João de Portugal revela
uma espécie de anjo vingador, encarregado de castigar o “pecado” e de repor a “ordem”. No
entanto, a partir da cena 5 do ato III e ao saber, por Telmo, que D. Madalena o procurara, D.
João humaniza-se, tenta remediar a situação que (in)voluntariamente desencadeara (acto III,
cena 5). No final, também ele é uma vítima de toda uma situação para a qual ninguém
contribuiu diretamente, mas que acabou por tragar a todos.
D. João de Portugal simboliza o Portugal do passado e, por isso mesmo, o seu carácter inviável.
D. João de Portugal desmistifica o Sebastianismo passadista e fechado de Telmo e Maria,
mostrando a impossibilidade de regresso ao passado.
Nobre honrado, patriota, apaixonado. No diálogo com D. Madalena, ainda disfarçado de
Romeiro (Ato II, Cena XIV), revela-se inflexível, todavia, após Telmo lhe garantir que D.
Madalena tudo fizera para o encontrar, antes de casar com Manuel de Sousa, arrepende-se e
mostra-se justo. (Ato III, Cena V)
Telmo é escudeiro, amigo e confidente de Madalena, que nutre por ele muito respeito e
carinho. Vê nele um pai, uma proteção.
Telmo sente por Maria uma afeição especial, superior ao amor que tem por D. João (ato III,
cena 4) e, tal como Maria, também é uma personagem sebastianista. Por um lado, Telmo
alimenta os remorsos de Madalena e, por outro lado, fomenta as fantasias de Maria.
Simboliza a presença constante do passado que, quando regressa, na figura de D. João,
também o aniquila.
No final, fica só e sem ninguém, sem a família à qual estava ligado por laços afetivos. O
regresso de D. João de Portugal e o conflito interior daí decorrente abalam-lhe as certezas,
destruindo-o também.
Escudeiro leal, aio fiel de D. João de Portugal, o único que nunca duvidara do regresso deste.
Vive um intenso conflito psicológico, consciencializando-se de que o amor que sente por
Maria é mais forte do que o que dedicava ao seu antigo amo. (Ato III, Cena IV)
Frei Jorge é irmão de Manuel de Sousa Coutinho e é um dominicano que impõe uma certa
racionalidade, tentando manter o equilíbrio no meio da família angustiada e desfeita.
Frade da Ordem dos Domínicos. Calmo, prudente, equilibrado, raramente se deixa dominar
pelos sentimentos. (Ato II, Cena XII)
11.O espaço
O Ato II apresenta um espaço nostálgico, um pouco sombrio, triste, onde se impõem figuras
nobres e religiosas de séculos antigos. Um trio de retratos ocupa um espaço privilegiado, numa
cumplicidade onde se misturam o idealismo, o patriotismo, a desgraça e a fatalidade. Camões,
grandioso épico que dedica a D. Sebastião Os Lusíadas, pedindo-lhe que dê matéria a outra
epopeia, incentivando o jovem monarca a cometer grandes feitos no Norte de África para
concretizar ideais elevados (difusão do Cristianismo e engrandecimento da Pátria); D. sebastiõ
que não concretizará o seu ideal, morrendo na mais desastrosa batalha do reino – Alcácer-
Quibir; D. João de Portugal, um dos nobres que integrou o trágico exército, nobre honrado,
patriota, fiel e corajoso, também desaparecido naquele fatídico dia.
O ambiente fechado parece escassamente iluminado, evidenciando-se os reposteiros pesados
de tecidos espessos de amplas dimensões, por um lado, indiciando que ocultam algo, por
outro lado, remetendo para a ideia de que uma vez descerrados, se passará para um outro
espaço que estará ligado a uma qualquer desgraça ou fatalidade. A decoração é, neste ato,
sóbria, triste, sombria, ominosa, anunciando já os acontecimentos funestos que ali ocorrerão.
O espaço do Ato III é marcado pela ausência de decoração. Os elementos presentes são
referências espirituais, próprias da igreja cristã.
Evidencia-se um “esquife”, “uma grande cruz negra” e uma “toalha pendente, como se usa nas
cerimónias da Semana Santa”. Tais elementos remetem para morte, martírio, sacrifício, mas
anuncia-se também implicitamente que, depois da morte (Quaresma), virá a Ressurreição
(nova vida – purificação espiritual); daí a “toalha” para “limpar” os pecados. Assim, o hábito
completo de religioso anuncia a morte para o mundo profano e entrada no mundo espiritual.
A luminosidade do ambiente é escassa; no entanto, é possível interpretá-la simbolicamente.
Mergulhado na penumbra, o cenário, apenas iluminado por “tocheiras”, “tocha acesa e já
gasta”, “vela acesa”, propicia uma introspeção profunda onde tudo indicia a “entrada” para a
vida religiosa, para a ordem religiosa Dominicana, informação clarificada pela presença das
“alfaias e guisamentos de igreja” e pelo “hábito completo de religioso domínico”.
3
Cavaleiro: homem honrado que luta por ideais elevados, pertencente à Ordem de Malta, que
difundia a religião de Cristo.
“Uma grande cruz negra de tábua com o letreiro J. N. R. J.” (Jesus Nazareno Rei dos Judeus)
evoca o profundo sofrimento, sacrifício, martírio e morte para a vida mundana (“tocha acesa e
já bastante gasta”); a “vela acesa” pode relacionar-se também com o “hábito completo de
religioso domínico”, porquanto aquele que envergar o hábito, professar na Ordem dos
Domínicos, terá uma vida iluminada, buscando a purificação da alma, redimindo-se dos seus
pecados, tendo ainda a esperança da salvação eterna na religião de Cristo. O jogo
penumbra/luz afigura-se, pois, altamente significativo. O ambiente secreto, intimista, de
intenso recolhimento, possibilita o encontro do eu com ose mais recônditos lugares do seu
espaço psicológico.
A sobriedade e a pobreza material que caracterizam o cenário, onde o “esquife” ganha
particular relevo, contribuem para a solenidade de um espaço que se fecha hermeticamente,
numa prefiguração de uma morte simbólica – a morte para o mundo do prazer carnal e dos
bens materiais. Estrutura-se, deste modo (entrada para uma Ordem Religiosa), a solução ainda
possível e anunciadora da verdadeira salvação para os que “pecaram”, mas se arrependeram
das suas ações.
12. O Tempo
Em Frei Luís de Sousa, podemos verificar que a ação decorre no período de (mais ou
menos) uma semana e que os seus antecedentes apresentam grande amplitude temporal.
A obra não respeita a unidade de tempo na tragédia clássica, pois não decorre num
período de 24 horas – Garrett usou a liberdade reivindicada pelos românticos na duração da
ação.
No Ato I, cena II, D. Madalena conta os antecedentes da ação: D. João de Portugal tinha
desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir, no dia 4 de agosto de 1578, tinha ela 17 anos;
durante 7 anos, “incrédula a tantas provas e testemunhos da sua morte”, mandara emissários
por todos os lugares onde eventualmente pudessem encontrar D. João de Portugal; gastara
”grossas quantias”, tendo os embaixadores de Portugal e de Castela “ordens apertadas” de o
procurarem por toda a parte; pedira aos religiosos e aos mercadores que seguissem a pista “do
mais leve indício” que pudesse desmentir a notícia da sua morte logo após a funesta batalha.
Assim, depois de inúmeras tentativas e, embora o corpo nunca tivesse aparecido, D.
Madalena casou com D. Manuel de Sousa Coutinho, com a aprovação das famílias (inclusive da
família de D. João). Deste casamento nasceu Maria de Noronha, que conta já 13 anos quando a
ação se inicia, no dia 28 de julho de 1599.
Dimensão trágica do tempo
Considerando os antecedentes da ação que nos são dados a conhecer logo no Ato I,
verificamos uma progressiva concentração temporal, como se pode observar no esquema:
13. A Simbologia
Atende-se na simbologia dos números e de outras notações temporais:
Evocação dos antecedentes da ação (ato I, cena II): amplitude temporal que
abrange 21 anos, estruturada em ciclos de 7 anos;
Concentração temporal da ação no dia 4 de agosto de 1599 (21 anos depois da
batalha de Alcácer-Quibir que teve lugar no dia 4 de agosto de 1578): neste dia, o
Romeiro identifica-se com D. João de Portugal e a família é aniquilada: Maria
morre, D. Madalena e Manuel de Sousa professam de madrugada (ato II, cena SV e
ato II, cena XII).