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Mestrado em Gestão e Estudos da Cultura – 2012/2013

Estudo de Coleções

As duas faces do Astrolábio


Medir os Astros

Docente: Professor Doutor Jorge Branco

Discente: Nuno de Almeida


Resumo
O presente trabalho pretende mostrar as duas faces da mesma peça – o
Astrolábio Aveiro – exposta no Museu da Marinha e mostrada na exposição 360º Ciência
Descoberta.

Ao longo das próximas páginas tenta-se explicar o que é um Astrolábio, o seu


aparecimento e a sua importância enquanto instrumento de navegação mas também o
seu significado no panorama científico, económico e social dos séculos XV a XVII.

Por um lado, a vertente utilitária que demonstra claramente a supremacia dos


portugueses e espanhóis nos avanços das técnicas de navegação que permitiam
viagens mais longas, sem avistamento de terra, utilizando os astros para navegar.

Por outro, o valor associado a este desenvolvimento tecnológico que foi


alcançado. Trata-se de identificar todas as imensas possibilidades com que os
navegadores se deparavam nas suas viagens. Foram novas oportunidades de negócio,
novos produtos que chegavam à Europa ou produtos já conhecidos que vinham por via
terrestre e que agora, por via marítima, apareciam em maior abundância, foram novas
plantas e animais que foram trazidos com as mais diversas intenções (divertimento,
medicinal, comercial, etc.) mas foi também a maneira como a cartografia evoluiu de
forma exponencial graças aos marinheiros e pilotos que, ao chegarem das suas
demandas, contavam tudo o que tinham visto e apresentavam todas as suas notas e
medições.

Para que essa informação chegasse a terra esses homens receberam instrução,
o que era mais uma novidade. Todo o processamento dessa informação possibilitou que
as cartas de marear tivessem cada vez mais rigor e despertassem o interesse de outras
potências europeias.

Palavras-chave
Astrolábio, Navegação, Ciência, Evolução, Descoberta

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Abstract
This paper aims to show the two faces of the same object the Aveiro astrolabe
exposed at the Navy Museum and showed at the 360º exposition – science discovering.

During the next pages we try to explain what’s an astrolabe, how it appears and
his importance as navy instrument but also his meaning in the scientific, economic and
social features of the XV to XVII centuries.

By an hand, his utilitarian feature shows clearly the supremacy of the Portuguese
and Spanish people in the development of navy techniques that allowed longer trips
without seeing land or using the asters to sail.

By another hand, the value associated to this technological development that was
reached. It means to identify all the immense possibilities that the sailors found in their
trips. It was new trade opportunities, new products that arrived to Europe or products
already known that came by land and now came by sea appeared in grater abundance,
were new plants and animals that were brought with several aims (amusement,
medicine, trade, etc.) but it was also the way cartography developed greatly due to the
sailors and pilots that, arriving from their trips, told everything they had seen and shared
all their notes and calculations.

To this information to come to land this men received formation, something that
was completely new. All this information processing allowed that the sealing carts were
more and more rigorous and wake up the interest of another European countries.

Keywords
Astrolabe, Navigation, Science, Evolution, Discovery

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1. Introdução
Estudar a peça de uma coleção que é utilizada numa exposição que não a sua
de origem é um desafio tremendo. Apresentar os dois lados da mesma peça leva-nos
por caminhos que até agora nunca tínhamos equacionado mas que nos obrigam a
conhecer profundamente a peça, a perceber a sua origem e funções e a interpretá-la
em ambos os locais.

Com o passar do tempo e o amadurecer das leituras, começa a ficar tudo mais
claro e é então que entendemos que aquilo que num local é apresentado, e bem, num
contexto meramente científico, noutro nos transporta para raciocínios que só à distância
de mais de 500 anos começam a ser devidamente valorizados, não só pela comunidade
científica nas áreas da astronomia e matemática, mas também pela sociedade que
começa a perceber que esse avanço científico da época que foi o Astrolábio, permitiu
que chegassem até nós novos produtos, que o ensino profissional fosse proporcionado
a pessoas de fracas posses económicas, e que se começasse a valorizar a rapidez com
que circulava a informação e a formação.

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2. Desenvolvimento
Os descobrimentos marítimos protagonizados pelos Portugueses antecederam
de pouco a Revolução Científica. Para eles concorreram o desenvolvimento tecnológico
tanto dos meios navais (nomeadamente a Caravela) como dos meios de orientação no
mar (por exemplo, o astrolábio náutico).

Para o êxito dos descobrimentos muito contribuiu o astrónomo, matemático e


historiador judeu Abraão Zacuto, que serviu na corte de D. João II e exerceu até ao
tempo de D. Manuel II. Este consultou-o acerca da possibilidade de uma viagem por
mar até à Índia, uma ideia que ele logo encorajou. Entre os seus trabalhos destaca-se
o aperfeiçoamento do astrolábio, sendo-lhe atribuída a construção do primeiro astrolábio
metálico. Tinha publicado em hebraico o seu primeiro livro astronómico (Compilação
Magna, 1478). As tabelas de Zacuto mostram os movimentos dos astros, prevendo as
efemérides, isto é, os tempos e as coordenadas astronómicas dos eventos celestes.
Com base nelas era possível, por exemplo, determinar a posição do sol na eclíptica (1)
e a sua declinação, dados relevantes para se saber a latitude do lugar. O livro continha
as tábuas astronómicas entre 1497 e 1500, que foram utilizadas, juntamente com o seu
astrolábio metálico, por Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral nas suas viagens
marítimas.
Em vez do quadrante, inadequado para observar o sol, pois levava ao
encadeamento, os navegadores portugueses começaram a usar o astrolábio. José
Vizinho, que havia traduzido para Latim a obra de Zacuto, desenvolveu um método para
determinar as latitudes com o astrolábio, que foi pela primeira vez usado em barcos
numa sua viagem à Guiné em 1485.

Os astrolábios náuticos serviam para medir a altura dos astros, nomeadamente,


além do sol ao meio-dia, a estrela polar, que deixava, porém, de ser observada quando
se passava ao hemisfério Sul (Fiolhais, 2010).

Para medir a altura dos astros, os antigos navegantes começaram por usar o
quadrante e o astrolábio náutico. Provavelmente, o astrolábio náutico surgiu da
adaptação do astrolábio planisfério.

A possibilidade da determinação da altura, sobretudo meridiana (altura medida


na passagem do meridiano do lugar), usando quadrantes ou astrolábios náuticos,
permitiu fazer uma navegação seguindo a direção leste-oeste, usando um processo de
navegação conhecida por “iguais alturas”.

O astrolábio náutico era um instrumento mais complexo que o quadrante, de


madeira ou latão, usado sobretudo para determinação meridiana da altura do Sol, que
podiam ser determinadas duma maneira indirecta. Assim era formado por um círculo,
suspenso por uma argola. Tinha quadrantes graduados, de 0 a 90 graus, a partir da
argola. Em torno do centro rodava uma alidade (2) com duas pínulas (3) furadas.
Suspendendo o astrolábio náutico pela argola, orientava-se na direção do Sol e rodava-
1 trajetória que o Sol parece descrever na esfera celeste, em sentido direto, durante um ano, e cujo plano
forma com o plano do equador celeste um ângulo de 23°, 27' e 30''

2 régua móvel que faz parte de um instrumento com que se determinam direções em topografia
3cada uma das lâminas metálicas colocadas nas extremidades da alidade, que tem ao meio uma fenda por
onde passam os raios visuais para estabelecer alinhamentos

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se a alidade de maneira que a luz do Sol passasse pelos dois orifícios ao mesmo tempo.
Tomava-se nota das leituras dos quadrantes graduados indicados pela alidade, que
dava a altura do Sol. A vantagem de usar o astrolábio náutico para observar o Sol era
este não ser observado diretamente, não havendo, portanto, perigo para a vista do
piloto. Além disso, como ficava suspenso era mais fácil colocá-lo na posição correcta,
por não sofrer os balanços do piloto.

O astrolábio náutico tinha a vantagem de não necessitar do horizonte, uma vez


que media a distância zenital (4), z, de qualquer astro, ângulo entre a direcção do astro
e o zénite. Como a distância zenital é a complementar da altura, esta podia ser obtida
por uma simples subtracção para 90º (Anjo, 1999).

Em 2006 o número de Astrolábios achados e inventariados em todo o mundo


ascendia a 84 (Garrido, 2006), entre os quais se encontra o Astrolábio Aveiro.

A primeira intervenção arqueológica de âmbito náutico na área ocupada pela Ria


de Aveiro foi realizada pelo arquiteto Octávio Lixa Filgueiras, em 1973. Esses achados
acabaram por ser abandonados sem qualquer tipo de tratamento ou levantamento. No
início do século XXI, porém, um conjunto de outros achados tornaram a Ria de Aveiro
um campo privilegiado de investigação em arqueologia naval e subaquática. Esta
situação resultou, por um lado, das descobertas originadas pelas intensas obras
portuárias, mas por outro, das condições favoráveis que o ambiente lagunar
proporcionou para a preservação dos vestígios arqueológicos.
Vários destes sítios foram escavados no âmbito de intervenções de arqueologia
preventiva ou estudados no quadro de projetos de investigação, o que permitiu a
constituição de uma amostra sem precedentes em todo o território nacional (Bettencourt,
2009).

No livro “A Saga dos Astrolábios”, o Astrolábio Aveiro é descrito desta forma:


Diâmetro – 197 mm; Espessura – 15mm (topo), 19mm (base); Peso – 2770 gramas;
Escala – 90-0-90; Data – 1575; Proveniência – Museu da Marinha; Inventário – IN-II-
166. Achado em 1994 por Victor Manuel Paiva Santos, na Ria de Aveiro, local de fundo
lodoso anaeróbico que proporcionou o excelente estado de conservação que apresenta.
Foi fabricado em Portugal, facto atestado pela marca constituída por cinco pequenos
círculos em cruz, inscrita no anel graduado, no ano de 1575. É o astrolábio datado mais
antigo que se encontra em Portugal. (Garrido, 2006, pp. 50)

O nome dos Astrolábios náuticos deriva do nome do navio ou do local onde foram
achados ou onde se encontram. (Garrido, 2006, pp. 16)

Na exposição 360º Ciência Descoberta encontramos o Astrolábio Aveiro no


terceiro núcleo – Do Mediterrâneo ao Mundo Todo. Ora este título transporta-nos para
uma realidade que era desconhecida dos portugueses e do Mundo no século XV. Toda
a navegação marítima dá um salto de gigante a partir do momento em que se torna
possível navegar tomando os astros como guias.

Esta novidade tecnológica, assim a podemos chamar, foi durante séculos


esquecida dos manuais escolares, pelo que a Exposição 360º Ciência Descoberta vem
dar um contributo decisivo no reconhecimento da comunidade internacional para o
trabalho desenvolvido por portugueses e espanhóis.

4ponto da esfera celeste que, relativamente a cada lugar da Terra, é encontrado pela vertical levantada
desse lugar

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Isto mesmo foi sublinhado pelo curador da exposição, Henrique Leitão, em
declarações publicadas na Newsletter da Fundação Calouste Gulbenkian. Este
responsável destacou o papel dos povos ibéricos na transformação da ciência do
conceptual para o real, dando como exemplo o desenvolvimento da cartografia que só
foi possível graças a um grande plano de formação de técnicos intermédios, que indo a
bordo dos barcos que descobriam um mundo novo, à chegada aos portos ibéricos,
despejavam grandes quantidades de informação sobre o que viram mas, sobretudo,
sobre o que mediram e registaram.

A escolha desta peça foi, inicialmente, apenas um impulso sobre algo que
desperta a curiosidade. Rapidamente essa curiosidade foi sendo saciada e ao mesmo
tempo alimentada em busca de mais e mais informação que explicasse e
fundamentasse todos os aspetos tocados, já que as implicações de poder navegar para
maiores distâncias sem ter em linha de vista a costa, fez com que um novo mundo de
oportunidades se abrisse à frente dos olhos dos navegadores.

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3. Discussão
Em nossa opinião, o astrolábio, na exposição 360º assume um papel de
protagonista da saga da expansão tecnológica e, consequentemente, de todas as outras
áreas que eclodiram devido às viagens marítimas (económica, medicinal, social,
cultural, etc.).

Na exposição de origem do Astrolábio Aveiro, que é o Museu da Marinha, em


Belém (Lisboa, Portugal), a peça é mostrada num outro contexto. Em primeiro lugar está
junta com outros astrolábios e outros instrumentos de navegação, o que à partida nos
poderia remeter para o mesmo significado da exposição patente na Fundação Calouste
Gulbenkian. Mas a verdade é que está rodeado de outros símbolos e objetos que nos
remetem para o imaginário das viagens de conquista, de carácter militar. Podemos ver
um canhão à sua frente. Duas réplicas de fragatas. Vitrinas com manequins militares.
Vitrinas com outros instrumentos de medida. Ali todas as peças têm a respetiva legenda
mas não nos é proposta qualquer forma de interpretação ou leitura que não seja a de
identificação do objeto.

Ora, temos assim, duas histórias para contar, dois lados da mesma peça, duas
interpretações legítimas, dois contextos distintos.

O contexto de origem, podemos chamá-lo de mais cru, mais incisivo na utilização


estrita do Astrolábio enquanto instrumento técnico de navegação. Na Exposição 360º a
função do Astrolábio é apenas o pretexto para nos proporcionar uma leitura mais ampla
do que foram os desenvolvimentos tecnológicos, do que foram as viagens marítimas e
das suas implicações na vida do país e da Europa.

Há que referir o aspeto do chamado “Efeito Museu”, descrito por Barbara


Gimblett, que preconiza que coisas simples ao serem expostas num Museu se tornam
especiais assim como a experiência proporcionada a quem visita um Museu ao
encontrar esse objeto simples elevado a um estatuto que o levou a ser colecionado e,
por essa via, a ser autenticado.

No caso presente estamos longe de se tratar de um objeto simples que adquiriu


importância ao ser exposto. É, sem dúvida, um objeto importante e que
necessariamente teria de estar exposto para glorificar o seu desenvolvimento pelos
portugueses a partir de um instrumento árabe assim como para elevar o trabalho de
arqueologia náutica necessário para que voltasse a ver a luz do dia, depois de séculos
submerso.

Podemos concordar com Macdonald (2006) ao afirmar que a coleção cria um


pensamento. Na ótica deste autor, os museus são importantes neste contexto porque
recontextualizam os objetos: removendo-os do seu contexto e colocando-os num novo
contexto de coleção, relacionando-os com outros objetos. Os objetos ganham um
significado adicional pelo facto de estarem numa coleção. Tendo em conta que as
coleções são pensadas a longo prazo estabelecem uma fase terminal na biografia dos
objetos e tentam dar-lhes uma vida e significado mais duradouro.

Em nossa opinião, no Museu da Marinha o Astrolábio Aveiro é apresentado na


sua vertente útil, enquanto instrumento de navegação. Por outro lado, na Exposição
360º Ciência Descoberta é apresentado o seu lado do significado. “E é assim não só
no caso dos objectos. A procura do significado, a tendência a estabelecer e a
reforçar os laços com o invisível, faz-se sempre em detrimento da utilidade (…)”
(Pomian, 1984).

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4. Conclusão
Face ao exposto julgamos que é admissível dizer-se que qualquer peça de uma
coleção tem mais do que o lado que é apresentado habitualmente.

Não conseguindo afirmar qual dos lados deve ser trabalhado em primeiro lugar,
considera-se que ambos são de elevada importância para contar a história do objeto. E
inventariação e respetiva catalogação são o primeiro passo para que seja considerada
uma peça de coleção, mas o descobrir o seu significado e interpretá-lo é igualmente
importante em termos patrimoniais.

A nossa história não se conta só com factos mas também com o que eles
representaram na altura em que ocorreram e que repercussões têm no presente e no
futuro.

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Bibliografia
ANJO, António, PINTO, Paulo. Cálculos de posicionamento usados pelos capitães do
bacalhau no início do século XX. Universidade de Aveiro. 1999

BETTENCOURT, José António. Arqueologia Marítima da Ria de Aveiro: uma revisão


dos dados disponíveis. IGESPAR. 2009.

FIOLHAIS, Carlos, MARTINS, Décio. Breve História da Ciência em Portugal. Coimbra.


2010. Gradiva.

GARRIDO, Álvaro. A Saga dos Astrolábios. Museu Marítimo de Ílhavo. Aveiro. 2006.
Âncora Editora.

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Cultures: The Poetics and Politics of Museum Display, ed. Ivan Karp e Steven Lavine,
Washington, D.C.: Smithsonian Institution, pp. 386-443.

LEITÃO, Henrique (Coord.). 360º Ciência Descoberta. Catálogo. Fundação Calouste


Gulbenkian. Lisboa. 2013

MACDONALD, S., 2006, Collecting Pratices, in: Sharon Macdonald, org., A Companion
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POMIAN, Krysztof (1984). Colecção. In Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional,


Casa da Moeda

Webgrafia
Alidade In Infopédia (Em linha). Porto: Porto Editora, 2003-2013. (Consult. 2 Abr. 2013).
Disponível em http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/alidade

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Disponível em http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/ecl%C3%ADptica

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(Consult. 31 Mar. 2013). Disponível http://www.gulbenkian.pt/media/files/FTP_files/NL/
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