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O Enigma do Tempo: Santo Agostinho e a Relação entre Temporalidade e Consciência

O tempo é um conceito notoriamente complexo de se definir. Santo Agostinho estava


ciente disso e, mesmo assim, buscou elucidá-lo, estabelecendo uma conexão entre o
tempo e a consciência humana.

Quando nos referimos a termos como "pão" ou "flor", compreendemos claramente do que
se trata. São objetos tangíveis que podemos ver, tocar, saborear e sentir o aroma.
Entretanto, o tempo é um conceito abstrato, e sua definição tem sido um desafio
para filósofos ao longo dos séculos. No século III d.C., Santo Agostinho de Hipona
(354-430 d.C.) apresentou diversas reflexões acerca do tempo, que influenciaram
inúmeros pensadores até o século XIX. Muitas de suas ideias a respeito do tempo
ainda ressoam na atualidade. Neste artigo, exploramos Santo Agostinho e suas
intrigantes teorias sobre o tempo e a consciência, mais de 1600 anos após sua
primeira publicação.

Uma Visão Geral da Vida de Santo Agostinho de Hipona

Antes de prosseguir, é crucial ressaltar que Santo Agostinho não é apenas conhecido
por suas teorias sobre o tempo (o título "Santo" em seu nome já sugere isso!). De
fato, ele é amplamente reconhecido como um dos mais importantes pensadores cristãos
da história, graças aos seus vastos escritos teológicos.

Agostinho nasceu em 354 d.C. em Tagaste, uma cidade romana situada na atual
Argélia, a apenas 40 milhas da costa africana. Naquela época, o cristianismo
começava a se difundir a partir de sua forte presença no Oriente Médio. Contudo,
durante a infância de Agostinho, ainda não se havia tornado a religião oficial do
Império Romano.

A família de Agostinho tinha uma condição financeira relativamente confortável, e


seus pais asseguraram que ele recebesse uma educação de alta qualidade. Ele se
tornou um estudioso altamente competente que viajou pela África e Itália em busca
de conhecimento. No entanto, com o passar dos anos, sua vida se tornou mais
turbulenta. De forma curiosa para um futuro santo da Igreja Católica, Agostinho
teve alguns relacionamentos com concubinas e até manteve um longo caso com uma
mulher com quem não se casou. Dessa relação, nasceu um filho ilegítimo, Adeodato,
em 372 d.C.

Eventualmente, após anos estudando e flertando com o cristianismo, Agostinho


enxergou a luz e se converteu aos 31 anos, em 386 – seis anos depois de o
catolicismo se tornar a única religião oficial do Império Romano. Ele passou o
restante de sua vida pregando e escrevendo seus pensamentos sobre o cristianismo em
diversos livros, incluindo A Cidade de Deus (426 d.C.). Diferentemente de outros
pais da Igreja primitiva, as cinco milhões de palavras escritas por Santo Agostinho
resistiram ao teste do tempo. Ele é mais conhecido por adaptar o pensamento
clássico grego e romano aos ensinamentos cristãos, o que solidificou sua influência
como um dos pensadores mais respeitados da Igreja.

Investigações de Santo Agostinho sobre Tempo e Consciência

A obra mais renomada de Santo Agostinho, possivelmente, é as Confissões, em que ele


relata sua vida antes e depois de sua conversão ao cristianismo. Além dos detalhes
autobiográficos, as Confissões abordam vários aspectos da filosofia, incluindo
algumas reflexões notáveis sobre a natureza do tempo. Embora muitos filósofos
gregos e romanos já tivessem discutido extensivamente o tempo, Santo Agostinho foi
um dos primeiros a apontar a dificuldade dos seres humanos em definir adequadamente
o tempo.

A célebre investigação de Agostinho sobre o tempo inicia com a pergunta: "Que é,


pois, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me
fizer a pergunta, já não sei". Mesmo hoje, milhares de anos após Agostinho escrever
essas palavras, muitos de nós reconhecemos esse dilema. Sabemos o quão intrincadas
nossas vidas estão no tempo. Diariamente, o sol nasce e se põe antes que a noite
chegue. Observamos as marés fluindo e refluiu, as estações mudando e até mesmo
nossos próprios corpos envelhecendo com o tempo.

Todos esses aspectos físicos parecem confirmar que o tempo está continuamente
"passando". No entanto, quando se trata disso, enfrentamos dificuldades para
definir o tempo, pois não podemos realmente ver o próprio tempo. Não podemos tocá-
lo, cheirá-lo ou prová-lo, embora toda nossa experiência de vida esteja tão
intimamente entrelaçada ao tempo. Conforme Santo Agostinho observa, quando não
precisamos definir o tempo, sabemos exatamente o que ele é. Contudo, encontrar as
palavras para descrever o tempo em voz alta é surpreendentemente complicado.

A Irrealidade do Passado, Presente e Futuro

Agostinho sugere que isso acontece porque é apenas em nossas próprias mentes que
percebemos a presença do tempo. Em vez de ser um fenômeno externo e observável, o
tempo existe dentro de nossa própria consciência: "Então é em ti, minha mente, que
eu meço períodos de tempo". Nossa consciência é uma ferramenta poderosa, pois é
capaz de diferenciar o que aconteceu, está acontecendo e acontecerá.

Com efeito, ao longo de milhares de anos e em muitas (mas não todas) culturas, os
seres humanos tendem a dividir o tempo em passado, presente e futuro. É por meio
desses tempos que geralmente caracterizamos o tempo como "fluindo". Sem esses três
estados, nada ao nosso redor existiria da maneira que conhecemos. Agostinho
escreve: "Se nada passa, não há tempo passado, e se nada chega, não há tempo
futuro, e se nada existisse, não haveria tempo presente". O tempo se move
constantemente do passado para o futuro, e sabemos disso por causa das mudanças
físicas que observamos constantemente. Vemos coisas novas surgindo o tempo todo,
que não estavam lá antes, como sementes germinando ou pessoas passando pela nossa
janela. Enquanto isso, outras coisas tornam-se "passado" quando desaparecem da
existência, como quando uma folha cai de uma árvore e eventualmente se desintegra
em pó.

No entanto, passado, presente e futuro apresentam alguns problemas para Agostinho.


Por quê? Porque nenhum deles realmente existe! O passado definitivamente não existe
mais, e o futuro ainda não ocorreu. Em vez disso, o passado e o futuro existem
apenas em nossas mentes. Afinal, podemos nos lembrar de momentos felizes em nossa
vida ou fazer planos para o próximo fim de semana. O passado é algo lembrado em
nossas mentes, enquanto o futuro é antecipado em nossa imaginação. Portanto, esses
dois estados temporais existem apenas em nossa consciência, pois no mundo físico
externo, eventos que já ocorreram não existem mais, enquanto eventos futuros ainda
não surgiram.

Enquanto isso, Agostinho argumenta que é verdadeiramente impossível para os seres


humanos compreenderem o momento presente: "Se pudermos conceber um fragmento de
tempo que não possa ser dividido nem mesmo nos menores instantes, isso é o que
podemos chamar de 'presente'. E esse tempo voa tão rapidamente do futuro para o
passado que se torna um intervalo sem duração". Assim que pronunciamos a palavra
"agora", já se passou um tempo considerável desde que nosso cérebro iniciou o
processo de falar até o som final "w" escapar de nossa boca. Aristóteles certa vez
comparou o presente a "uma lâmina de faca sem espessura" cuja única função é
conectar passado e futuro. Essa incapacidade de identificar um momento no tempo e
afirmar que este "agora" é o presente: este é um problema irresolúvel para a mente
humana.

A natureza enigmática dessas ideias remete à ênfase de Santo Agostinho sobre o quão
difícil é para os seres humanos explicarem claramente o que realmente é o tempo. E,
em geral, Agostinho está satisfeito em deixar as coisas dessa maneira. Ele nunca
apresenta uma definição definitiva do tempo, preferindo destacar os diversos
problemas que surgem de nossa percepção temporal. Outro dilema envolve a diferença
entre nossa capacidade mental de perceber o tempo em todos os seus aspectos versus
os efeitos externos do tempo no mundo ao nosso redor.

Considere o corpo humano, por exemplo. O tempo afeta nossos corpos, causando rugas
na pele, enfraquecendo-nos e deixando nossos cabelos grisalhos. Não podemos fazer
nada para impedir esse processo, mas estamos profundamente conscientes dele e
podemos refletir sobre isso por um longo tempo. É por isso que Agostinho também
chama o tempo de distentio animi ou "expansão da mente". A mente é capaz de se
estender ou se afastar dos limites do momento presente e de seus efeitos físicos em
nosso corpo, para pensar conscientemente sobre como isso nos afetará no futuro
também (incluindo todas essas preocupações com cabelos grisalhos!).

A Compreensão Humana do Tempo em Contraste com a Eternidade de Deus

No final, Agostinho não nos oferece uma resposta definitiva sobre a verdadeira
natureza do tempo. Em vez disso, ele destaca o caráter peculiar do tempo, que
parece não existir e, ainda assim, é extremamente significativo para os seres
humanos. Contudo, como um homem de fé cristã, suas investigações eventualmente o
levam a refletir sobre como o tempo deve ser no plano de existência de Deus.

Santo Agostinho defendeu que o tempo terreno (que faz parte da criação divina) deve
ser substancialmente diferente da natureza da existência de Deus. Deus é eterno, e
a eternidade ou "o tempo de Deus" é algo que nós, seres humanos, jamais
conseguiremos compreender. Refletindo sobre a natureza da eternidade, Agostinho
indaga: "Quem acalmará o coração humano para que eu possa ver como a eternidade, na
qual não há futuro nem passado, permanece imóvel e dita os tempos futuros e
passados? Minha mente tem força para isso?"

A eternidade é insondável para os seres humanos. Enquanto nosso tempo é


caracterizado por um fluxo constante através das três divisões temporais, a
eternidade nas Confissões é descrita como um eterno momento presente. Ele compara
as "gotas de tempo" que percebe na vida cotidiana (as 'gotas' em questão fazem
referência a um relógio de água, contando o tempo constantemente) à eternidade de
Deus, na qual "nada é transitório, mas tudo está presente". Na eternidade, não há
tal coisa como transição do passado para o presente e para o futuro. A eternidade é
simplesmente um único momento presente.

O duradouro impacto de Santo Agostinho na filosofia do tempo

A investigação de Santo Agostinho sobre o tempo, a consciência e a eternidade


exerceu influência em inúmeros filósofos ao longo dos séculos. Pensadores, desde
Tomás de Aquino até Ludwig Wittgenstein, se debruçaram sobre os escritos de Santo
Agostinho, e suas reflexões continuam a permear os estudos acadêmicos sobre o tempo
atualmente. A despeito de nunca definir precisamente o tempo, talvez seja essa
ambiguidade que resuma de forma adequada nossa experiência humana cotidiana. O
tempo é algo que assumimos como existente, uma vez que aparentemente testemunhamos
evidências dele constantemente. No entanto, ao examinarmos as coisas mais
detidamente, o tempo parece existir somente em nossas próprias mentes.

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