Você está na página 1de 2

16/03/2023, 22:33 A palavra não é amor, é dengo – Duque dos Banzos

Duque dos Banzos

O blog versa sobre a cultura afro-brasileira: prosas, poesias e ensaios buscam dar conta da
memória, da humanidade, da ancestralidade, da polifonia verbal, rítmica e corpórea que circundam o
universo do negro brasileiro.

A palavra não é amor, é dengo

Por Davi Nunes

O português, a língua imposta pelo colonizador, mesmo depois de séculos de uso, é encaixe
imperfeito no nosso orí, no mutuê. É palavra presa na língua. É a língua represa nas palavras que nos
desencaixam como ser no mundo. Roupa que vestimos e não cabe confortável no nosso corpo. Falo
especificamente da norma padrão, a musa esquálida e pálida, a torre de marfim que é campo de
concentração linguístico para torturar e dissolver gramaticalmente o nosso corpo-língua ancestral.

Observo que os nossos afetos, sentimentos transpostos através das palavras, terminologias,
nomenclaturas organizadas historicamente pela hegemonia branca para nos dominar – a língua como
um ferro quente na boca – demarca o lastro terrível da escravização e racismo, não pode servir como
elemento simbólico, signos, para representar as formas de afeto que ocorrem entre negros e negras.

Penso que a palavra amor tão consagrada pela cultura ocidental desde a “Antiguidade
Clássica" não tão clássica e antiga quanto às clássicas civilizações melanodérmicas e ancestrais, berço
de tudo, seja uma dessas. A palavra amor para nós negrxs é espelho de reflexo falso, não cabe a nossa
imagem nela, que é profusão humana e beleza que extrapola a sua lógica.

A palavra amor se articula no mundo branco como pré-ódio, exemplo: primeiro invadem outras
nações, cometem as mais atrozes barbáries, depois contemporizam com seus tratados filosóficos,
religiões, mitos, literaturas que azorragam a ideia de amor, a flor maior dos sentimentos humanos
segundo eles, para construírem uma sanção positiva das suas humanidades derreadas e exercerem
tranquilamente o poder sobre os outros povos. A palavra amor assim é um embuste de algo sublime que
funciona para eles, pois possui uma função objetiva: criar conforto diante das suas quimeras mais
profundas.

Para nós, negros, ela não funciona, é espelho falso e reflexo bifurcado tragicamente, é desen
caixe cognitivo e afetivo, sofisma que nos adoece, ilusão fantasmagórica que não alcança mos e não
comunga com a extensão abissal de nossos sentimentos, pois desde o início esta mos além. É um signo
que não comporta a densidade e beleza significativa da nossa afetividade, do nosso sentir. É o
desencaixo no coração, okan, e na cabeça, ori.

A palavra que dá conta de acoplar a nossa afetividade, no caso do Brasil, de abarcar a batida
mandingueira do nosso coração, da magia e poesia do encontro ancestral de negros e negras, é a palavra
de origem banto da língua Quicongo, totalmente inserida na variação do portu guês falado
principalmente por negrxs chamada de dengo.  Óbvio que falo aqui do dengo em seu sentido mais
profundo e ancestral, o supremo dengo. Não dá significação subscrita nos dicionários brancos, que
apequena os sentidos das palavras de origem africana.

O dengo durante toda a história de escravização, favelização e racismo nessa diáspora de


angústia, o Brasil, foi o instante eterno de libertação expressado num simples aconchego de esperança
no desconforto cotidiano. A união dos corações em sublimação ancestral, o oriki que arrepia os pelos,
pois ecoa por todo o corpo o axé e o poder dos orixás. Os olhos que se entrecruzam e se fixam, pois há
de haver o beijo, supremo dengo, libelo de libertação expresso no gesto. Os corações que se entrelaçam
para fazerem o “corre” do quilombo íntimo e movimentar os outros mocambos para construir o grande
quilombo. A humanidade que se reconstrói depois de se diluir através do racismo das grandes
metrópoles em frenesi no sorriso da companheira(o) no encontro sagrado depois da batalha enfrentada.
O reencontro dos continentes afastados através de um juntar manhoso de faces azeviches a formarem
destinos.

A palavra dengo é signo portentoso e conjuga em seu interior a palavra chamego, é a família
preta em celebração do quilombo íntimo, é a África na origem, o sopro da criação original no ouvido a
trazer placidez e beleza ao coração.

Davi Nunes é colaborador do portal SoteroPreta, mestrando no Programa de Pós-graduação


em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista e escritor de livros infantis.

Você também pode gostar