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Crítica dos partidos políticos

ANTONIO OZAÍ DA SILVA*

Resumo: Os partidos políticos são formas de organização social historicamente determinadas,


isto é, resultam de processos históricos e sociais objetivos e subjetivos. Desde suas origens sempre
foram contestados. A polêmica sobre a própria terminologia da palavra “partido” indica
questionamentos sobre a sua função política e existência. Com a evolução da sociedade industrial
de massas, o crescimento das demandas democráticas, os partidos políticos se fortaleceram e se
afirmaram como imprescindíveis à democracia social. Os partidos sociais-democráticas são a
expressão dessa fase de consolidação da inserção das massas na política e a conquista do sufrágio
universal masculino – só depois de muita luta que as mulheres conquistaram o direito ao voto. Os
partidos políticos passaram a ser concebidos como pilares da democracia representativa. Mas esta
perspectiva não é consensual. Os partidos permaneceram sob contestação. É o que procuramos
demonstrar neste trabalho, a partir da contribuição de autores como Robert Michels e outros
clássicos sobre o tema.
Palavras-chave: Partido político; Social-Democracia; Democracia; Política; Crítica.
Criticism of political parties
Abstract: Political parties are historically determined forms of social organization, that is, they
result from objective and subjective historical and social processes. Since its origins, they have
been contested. The controversy over the very terminology of the word "party" indicates questions
about its political function and existence. With the evolution of the mass industrial society, the
growth of democratic demands, political parties became stronger and affirmed themselves as
essential to social democracy. Social-democratic parties are the expression of this phase of
consolidation of the insertion of the masses in politics and the conquest of universal male suffrage
- it was only after much struggle that women won the right to vote. Political parties came to be
conceived as pillars of representative democracy. But this perspective is not consensual. The
parties remained under challenge. This is what we seek to demonstrate in this work, based on the
contribution of authors such as Robert Michels and other classics on the subject.
Key words: Political party; Social-Democracy; Democracy; Politics; Criticism.

*
ANTONIO OZAÍ DA SILVA é Professor Associado na Universidade Estadual de Maringá
(UEM).

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Introdução sistema político de partidos. De
resto, não é acidente o fato de que,
Há quem argumente que os partidos em todos os países evoluídos, o
políticos são os pilares da democracia partido que primeiro se atribui uma
representativa. Por outro lado, existem organização difusa e um programa
os críticos à democracia “burguesa” que nacional é exatamente o partido
rejeitam a organização partidária – nesta operário-socialista. (CERRONI,
perspectiva, os partidos políticos são 1982, p. 14).
concebidos enquanto sustentáculos da Neste percurso, resgatamos o debate
ordem social capitalista, na medida em terminológico, as definições clássicas
que, mesmo os que contestam a ordem sobre os fins a que se prestam os diversos
estabelecida, legitimam o regime partidos políticos e as críticas à
capitalista. Mas há quem, ainda que organização partidária. O intuito é,
conteste o regime político democrático sobretudo, estimular a reflexão sobre o
burguês, entende que o partido é capaz fenômeno partidário enquanto
de transformar a ordem burguesa, desde contestador e legitimador da ordem
que mantenha o caráter revolucionário. social capitalista.
De qualquer forma, o partido político 1. A polêmica terminológica
carece de prestígio. É patente a
desconfiança e insatisfação em relação à Desde as origens, os partidos foram
política institucionalizada, aos políticos submetidos à crítica, não foram aceitos
e partidos. A abstenção eleitoral e o sem resistência. A polêmica inicia-se
apoio às personalidades aparentemente com a terminologia da palavra partido.
apolíticas e alternativas aos sistemas Se na contemporaneidade a aceitamos
partidários tradicionais, políticos que sem maiores questionamentos, nem
chegam a negar o próprio status de sempre foi assim. Como mostra Sartori
políticos, ou que surgem como (1982, p. 23):
salvadores da pátria, mostram o quanto a O termo “partido” entrou em uso,
política institucional alicerçada na substituindo gradualmente a
organização de partidos é questionada. expressão depreciativa “facção”,
com a aceitação da idéia de que um
Partimos do pressuposto de que os partido não é necessariamente uma
partidos servem à manutenção da ordem facção, que não é necessariamente
social, reforçam o status quo societário um mal e que não perturba
vigente. Por outro lado, os partidos necessariamente o bonum commune,
sociais-democratas (e socialistas) foram o bem-estar comum. A transição de
criados contra a ordem social, enquanto facção para partido foi, na verdade,
depositários do devir pós-capitalista. lenta e tortuosa, tanto no domínio
Partidos, portanto, cuja função e das ideias como no dos fatos. A
motivação era transformar a sociedade, segunda metade do século XVIII
revolucioná-la. Nesta perspectiva, mal havia começado quando
Voltaire escreveu concisamente na
resgatamos a experiência histórica da
Encyclopédie: “A palavra partido
social-democracia. Esta opção segue a não é, em si, repulsiva; a palavra
trilha de Umberto Cerroni, o qual afirma:
Opto por estudar o partido socialista
porque ele se projeta como o
protótipo histórico-teórico capaz de
explicar o nascimento do partido
político moderno e do moderno

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facção sempre é.”1 Com o seu Os termos facção e partido são utilizados
versátil gênio para a síntese, indistintamente. Não obstante, a
Voltaire resumiu nesta frase um terminologia fornece elementos para a
debate iniciado por Bolingbroke em compreensão da recusa e crítica dos
1732 e que se desenrolaria ainda por
partidos políticos. Facção se origina do
cerca de um século.
verbo latino facere (fazer, agir). Por sua
Durante muito tempo o partido foi vez, factio indica um grupo político
identificado com facção, isto é, visto faccioso, isto é, empenhado em facere
como algo prejudicial à nação e num sentido perturbador e nocivo. Já o
concernente aos interesses egoístas e termo partido, do latim partire, significa
particulares de grupos e indivíduos. dividir e tem como antecessor a palavra
Durante a Revolução Francesa, os seita (no latim, secare), que também se
revolucionários rejeitaram o partido refere a divisão, pois significa separar,
político. Como resgata Sartori (ibidem, cortar. De um lado, temos a palavra
p. 31): partido como parte, isto é, que separa e
Condorcet, ao aconselhar os divide. Por outro, a palavra adquire o
girondinos sobre seu projeto significo de partilha, participação, tomar
constitucional argumentou – contra parte em. “A palavra “parte” está no
os partidos ingleses – que “uma das verbo francês partager, que significa
necessidades primordiais da partilhar, tal como entra no inglês
república francesa é não ter partaking (participação, partilha) (para
nenhum”. Danton declarou: “Se não falarmos de partnership
fossemos exasperar mutuamente, [associação] e participation
acabaríamos formando um partido, [participação])”, esclarece Sartori
ao passo que necessitamos de apenas
(Ibidem, p. 24). Assim, a palavra partido
um, o da razão”. Robespierre
afirmou ser “o interesse pessoal” termina por ser incorporada ao
que provoca uma pluralidade de vocabulário político moderno.
partidos, e que “em toda parte onde Semanticamente a palavra partido está
vejo ambição, intriga, esperteza e carregada de significados que tiveram de
maquiavelismo, ali reconheço uma ser superados – ou, ao menos,
facção; e a natureza de todas as
esclarecidos e distinguidos. Contudo,
facções é sacrificar o interesse
geral”. Saint-Just foi ainda mais isto não significa que o debate
drástico: “Todo partido é criminoso. terminológico seja o fundamental –
(...) Toda facção é portanto apenas demonstra o quanto, até mesmo
criminosa. (...) Toda facção procura quando nos restringirmos às palavras,
enfraquecer a soberania do povo”. E houve divergências. A prevalência da
ainda mais concisamente, disse: “Ao palavra partido se impôs histórica e
dividir um povo, as facções factualmente – embora, na atualidade,
substituem a liberdade pela fúria do ainda se compreenda partido de acordo
partidarismo.” 2 com as características definidoras da
facção ou mesmo com a palavra seita,

1
Em nota, p. 51, Sartori observa que: “O artigo séculos, entre os partidos dos guelfos e dos
de Voltaire é sobre “Facção” (Edição de Genebra gibelinos”. É um círculo também vicioso. As
de 1778 da Encyclopèdie, vol. XIII, p. 765). Mas citações também se encontram no Dictionnaire
o artigo sobre “Partido” diz: “partido é uma philosofhique de Voltaire.”
2
facção, interesse ou poder (puissance) A fonte das citações do autor é informada na
considerado oposto a outra”; e um dos exemplos nota 35, p. 53.
dados é o de que a “Itália foi dividida, durante

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ainda que esta última esteja mais Ou seja, a aceitação do partido só se deu
relacionada à linguagem religiosa, após um processo tortuoso e difícil que
especialmente ao sectarismo e fanatismo pressupôs a prevalência da tolerância,
das religiões. quando o dissenso passou a ser aceito
enquanto necessário ao pluralismo
A afirmação do partido político exigiu a
político. Ainda assim, como muita
diferenciação em relação à facção e,
relutância.
consequentemente, uma valoração
positiva. Um dos aspectos que contribui Por outro lado, a discussão terminológica
para a compreensão deste processo diz não é determinante para o
respeito à crescente aceitação da desenvolvimento dos partidos. O
tolerância e do pluralismo. Nas palavras surgimento dos partidos modernos, que
de Giovanni Sartori (Ibidem, p. 33-34): data da segunda metade do século XIX,
Quando Burke chegou a ver que os corresponde às transformações
partidos tinham um uso positivo e econômicas, políticas e ideológicas
necessário, não havia nenhuma determinadas pelo avanço da Revolução
teoria para apoiar sua opinião. Mas Industrial e as consequências da
o terreno já havia sido preparado. A Revolução Francesa. Os partidos
transição da facção ao partido políticos correspondem às condições
baseia-se num processo paralelo: a históricas determinadas. Como nota
transição ainda mais lenta, mais Duverger (1980, p. 19):
enganosa e tortuosa, da intolerância
para a tolerância, desta para a A analogia das palavras não deve
dissensão, e da dissensão para a levar a confusões. Chamam-se
crença na diversidade. Os partidos igualmente “partidos” as facções
não se tornaram respeitáveis porque que dividiam as Repúblicas antigas,
Burke assim tenha declarado. os clãs que se agrupavam em torno
Chegaram a ser aceitos – de um condottiere na Itália da
subconscientemente, e mesmo assim Renascença, os clubes onde se
com uma formidável relutância – reuniam os deputados das
mediante a compreensão de que a assembleias revolucionárias, os
diversidade e a dissensão não são comitês que preparavam as eleições
necessariamente incompatíveis com censitárias das assembleias
a ordem política, nem revolucionárias, bem como as vastas
necessariamente a perturbam. Neste organizações populares que
sentido ideal, os partidos são enquadram a opinião pública nas
correlatos com a Weltanschauung democracias modernas. Essa
do liberalismo, e dela dependem. identidade nominal justifica-se por
São inconcebíveis na visão que um lado, pois traduz certo
Hobbes ou Spinoza tinham da parentesco profundo: todas essas
política, e não são admitidos na instituições não desempenham o
cidade de Rousseau. Só se tornam mesmo papel, que é o de conquistar
concebíveis, e foram concebidos na o poder e exercê-lo? Porém se vê,
prática, quando o “horror da apesar de tudo, que não se trata da
desunião” é substituído pela crença mesma coisa. De fato, os
de que um mundo monocromático verdadeiros partidos datam apenas
não é a única base possível da de um século. Em 1850, nenhum
formação política. E isso equivale a país do mundo (salvo os Estados
dizer que, idealmente, os partidos e Unidos) conhecia partidos políticos
o pluralismo se originam do mesmo no sentido moderno do termo:
sistema de crenças e do mesmo ato encontravam-se tendências de
de fé. opiniões, clubes, associações de

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pensamento, grupos parlamentares, obtenção do poder político para o
mas nenhum partido propriamente líder e à ocupação dos cargos
dito. administrativos (partido de
patronato). Ou podem estar
2. Diversidade de partidos e fins orientados predominantemente e
Segundo a clássica definição de Max conscientemente por interesses de
Weber (1999, p. 544), partidos são, estamentos ou classes (partido
“organizações voluntariamente criadas e estamental ou de classe) ou por fins
baseadas no livre recrutamento, objetivos concretos ou por
princípios abstratos (partido
necessariamente sempre renovado, em
ideológico). Mas a ocupação dos
oposição a todas as corporações cargos pelos seus membros costuma
fixamente delimitadas pela lei ou por ser, frequentemente, um fim
contrato”. O partido político tem caráter acessório, e os “programas”
associativo que o distingue de outras objetivos não raro apenas um meio
organizações sociais (sindicatos, de recrutar novos membros
associações profissionais, etc.), pois (Ibidem).
arroga-se o direito de representação dos Os partidos, portanto, servem a fins
interesses universais (diferente das diversos. No entanto, para serem aceitos
instituições que defendem interesses socialmente devem aparecer à sociedade
corporativos e/ou particularistas) e enquanto organizações com objetivos
buscam deliberadamente a conquista e o altruístas e universalizantes. Porém,
exercício do poder político. reconhece Sartori (1982, p. 46), “os
A natureza peculiar do partido enquanto membros dos partidos não são altruístas,
organização que objetiva o poder e a existência de partidos não elimina, de
político, aliada à pretensão universalista, modo algum, as motivações egoístas e
define a sua função. Assim, um partido inescrupulosas”. Ele também admite que
político que não se coloque como os partidos podem degenerar em facções:
objetivo a conquista do poder político é “Se um partido não é capaz de governar
uma anomalia. Por outro lado, exercer o em função do todo, isto é, tendo em vista
poder político significa dispor dos o interesse geral, então não difere de uma
recursos para a direção e controle da facção. Embora um partido só represente
sociedade, de acordo com os objetivos uma parte, essa parte deve adotar uma
traçados e os interesses econômicos abordagem não-parcial do todo”
predominantes que influenciam os (Ibidem, p. 47). Não obstante, ele
indivíduos e a estrutura partidária. Max reafirma a noção de que os partidos são
Weber (1994, p. 188) observa que os fenômenos modernos recentes que se
partidos almejam “proporcionar poder a diferenciam das facções:
seus dirigentes”, a “seus membros As motivações dos políticos para a
ativos” e “oportunidades (ideais ou busca do poder continuam
materiais) de realizar fins objetivos ou constantes. O que varia são o
obter vantagens pessoais, ou ambas as processamento e as limitações
coisas”. Ao definir conceitualmente os impostas a tais motivações. Mesmo
partidos políticos, o sociólogo alemão que o político partidário seja
nos fornece o perfil dos vários tipos de motivado pelo interesse pessoal
partido, definidos pelos objetivos apenas, seu comportamento deve
práticos que buscam: disfarçar – se as restrições do
sistema forem operativas – tal
Na prática, podem dirigir-se, oficial motivação. A diferença está, então,
ou efetivamente, exclusivamente à em que os partidos são instrumentos

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de vantagens coletivas, de um fim equívoco de afirmar-se defensor dos
que não é apenas a vantagem interesses econômicos da burguesia, dos
privada dos competidores (Ibidem, banqueiros ou dos latifundiários. Seus
p. 46). programas políticos defendem,
Dissimular as motivações e interesses genericamente, o bem comum: saúde,
particularistas! Parecer, a qualquer educação, emprego, segurança, etc.
custo, que se orienta por ideais e Como observou Max Weber (1999, p.
interesses universais. Eis como, 544):
singelamente, o autor, ainda que com o Seu objetivo é, hoje, sempre a
intuito de defender os partidos, desvenda obtenção de votos nas eleições para
uma das suas funções – o disfarce, a cargos políticos ou em corporações
dissimulação é, enfim, mais sutil e se com voto. Um núcleo permanente de
presta melhor à legitimação. Sartori interessados no partido, reunidos
esforça-se para diferenciar os partidos sob um líder ou um subgrupo de
das facções. Segundo ele (ibidem, p. 46- notáveis, com organização mais ou
47): menos firme e hoje muitas vezes
com uma burocracia desenvolvida,
Os partidos ligam o povo a um cuida do financiamento, com a ajuda
governo, as facções não. Os partidos de mecenas, interessados
estimulam uma série de econômicos, interessados na
possibilidades do sistema, as facções patronagem de determinados cargos
não. Em suma, os partidos são ou mediante contribuições dos
instrumentos funcionais – servem a associados: na maioria das vezes, na
objetivos e desempenham papéis – e base de várias destas fontes. Esse
as facções não. E isso, em última núcleo determina o programa atual,
análise, porque um partido é parte de a forma do procedimento do partido
um todo que procura servir aos e os candidatos. Mesmo no caso dos
propósitos desse todo, ao passo que partidos de massas (que, como
a facção é apenas parte de si mesma. sempre, tem como consequência o
Na prática, porém, os partidos desviam desenvolvimento de um
funcionalismo remunerado), a
de suas funções – teoricamente definidas
grande maioria dos eleitores, mas
– e podem desempenhar o papel de também dos simples “associados”,
facções. “É claro que os partidos podem não participa (ou apenas
ser disfuncionais, razão pela qual formalmente) na determinação dos
também são passíveis de forte crítica”, programas e dos candidatos.
admite Sartori. Mas, alerta o autor, “não
daquela que se aplica às facções – a falta Embora apresentem aspectos comuns, os
de justificativa funcional”. Ainda assim, partidos políticos cumprem funções
adverte que “os partidos bem podem específicas relacionadas aos sistemas
recair em algo semelhante a uma facção. políticos, determinados pela estrutura
Neste sentido, o facciosismo é a sempre econômica-social nas diversas realidades
dos estados-nações e circunstâncias
presente tentação para a organização
partidária e para uma degeneração históricas diferenciadas. O surgimento
dos partidos políticos modernos é
sempre possível” (Ibidem, p. 47).
determinado por processos históricos
À maneira do Estado, os partidos específicos e isto influencia o seu
precisam aparecer para a massa dos desenvolvimento ulterior. Pois, “da
eleitores enquanto defensores dos mesma forma que os homens trazem
interesses gerais e indistintos da durante toda a sua vida a marca da
comunidade. Nenhum partido comete o infância, assim também os partidos

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experimentam profundamente a poderiam ser substituídos por pesquisas
influência das suas origens” de opinião. Mais do que expressar, eles
(DUVERGER, 1980, p. 19). “transmitem reivindicações apoiadas
por pressões”, ou seja, “lança seu
3. Partido: um fenômeno em
próprio peso nas reivindicações a que se
contestação
sente obrigado a fazer eco” (Ibidem, p.
“... os partidos são inevitáveis. Nenhum 49). Segundo Sartori: “Os partidos não
país grande e livre passou sem eles.
Ninguém mostrou como o governo
expressam, apenas, eles também
representativo poderia funcionar sem canalizam”. Eles “organizam a caótica
eles” vontade pública” (Ibidem, p. 50).4
(James Byce) 3
Os partidos são agregadores e
instrumentos de seleção que possibilitam
Em geral, os partidos são aceitos a formação de elites políticas. Expressar,
enquanto organizações políticas canalizar, agregar, selecionar, etc., são
essenciais ao funcionamento da suas funções, as quais alicerçam a
democracia representativa. São democracia representativa. Esta seria a
concebidos enquanto meios de sua função primordial. Mas, em que
intermediação entre o povo e o governo, medida os partidos políticos, em sua
a sociedade civil e o Estado. Assim, são atuação real, confirmam esta
afirmados como organizações expectativa? Eles não funcionam
fundamentais para viabilizar as eleições também como instrumentos de
e, consequentemente, a democracia manipulação da opinião? Sartori admite
enquanto forma de governo. que “em certos casos, desviam e
Considerados enquanto pilares da deformam. E a objeção pode ser
democracia de massas, atuam enquanto reforçada afirmando-se que mais do que
caixas de ressonância dos interesses e expressar e refletir a opinião pública, os
anseios individuais, dos grupos e classes partidos a modelam e, na verdade,
sociais. São, portanto, canais de manipulam. Também se pode admitir
expressão, meios de representação. “Ao isso, com exceção do “mais””. Embora
se desenvolverem, os partidos não o aceite que os partidos “também formam
fizeram – durante todo o século XIX e e manipulam a opinião”, o autor
até boa parte do século XX – para desenvolve uma argumentação
transmitir ao povo os desejos das sofisticada em defesa dos mesmos:
autoridades, mas antes para transmitir às
autoridades os desejos do povo”, escreve Admitindo-se que os partidos sejam
um canal de comunicação nos dois
Sartori (1982, p. 48).
sentidos, disso não se segue que
Nesta concepção, os partidos sejam um canal de transmissão
“desempenham uma função expressiva”, descendente na mesma medida em
ou seja, são “meios de comunicação”. que constituem uma correia
Isto significa que não somente transmissora ascendente. Há
expressam os anseios e interesses que se manipulação e manipulação: e
enquanto os partidos forem partes
propõem a representar. Se os partidos se
(no plural), um sistema partidário
limitassem à função expressiva, presta-se à expressão vinda de baixo

3
In: Modern Democracies, Macmillan, 1921, Press, 1956, p. 397 (apud ibidem p. 50). Nos itens
vol. 1, p. 119, apud SARTORI, 1982, p. 44. 2.1 (p. 60-64) e 3.1 (p. 78-80), Sartori analisa a
4
Sartori cita Sigmund Neumann (org.), Modern “função canalizadora” dos partidos.
Political Parties, The University of Chicago

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muito mais do que à manipulação irreconhecível” (MICHELS, 1982,
feita de cima. Bem pode ocorrer que p. 16).
o povo não tenha opiniões próprias,
ou que suas opiniões sejam em
A crítica anti-partido provém de várias
grande parte formadas pelos que direções. O senso comum rejeita os
influenciam a opinião pública. Essa partidos amparado, muitas vezes, numa
circunstância, porém, apenas postura apolítica que confunde política
confirma as proporções nas quais institucionalizada – da qual os partidos
um impacto manipulador constituem um dos elementos centrais –
multicentrado e entrecruzado, difere com a política enquanto práxis humana
de um tipo de manipulação necessária à convivência em sociedade.
unicentrada e auto-reforçadora, A contestação também se nutre de fontes
indicando com isso que a verdadeira elitistas, conservadoras, de uma
manipulação, ou a “manipulação
determinada concepção individualista
repressiva” surge precisamente
quando o pluralismo partidário
liberal, das ideologias anarquistas, etc.
desaparece (Ibidem). Segundo Charlot (1982, p. 123):

“Eppur si muove!” Parodiando a frase A contestação dos partidos procede


de dois pontos de vista e se nutre de
atribuída a Galileu Galilei: No entanto,
duas grandes correntes ideológicas.
há manipulação! Também os partidos Primeiro ponto de vista: o do
têm interesses a defender. Não é por cidadão individual que os partidos –
acaso que, desde as suas origens, por seu enquadramento – privariam
também são contestados. de seus direitos e deveres de
cidadão. É a crítica liberal dos
4. Crítica à organização partidária
partidos, na linha reta da doutrina de
“Tiveram os partidos políticos de Jean-Jacques Rousseau sobre a
impor-se de fato antes de serem democracia e o bem comum, ou
reconhecidos de direito e, mais ainda a crítica socialista de partidos
genericamente, antes de serem burocráticos que esqueceriam seus
aceitos. Ainda hoje o tema da militantes e seu ideal para salvar sua
substituição dos partidos – pelas organização. Segundo ponto de
“forças vivas”, os “clubes”, a vista: o do conjunto nacional, do
“democracia direta” etc. – é todo político que os partidos –
relativamente frequente e popular”5 divisores por natureza, agressivos
“Mas o princípio da organização, por vocação – comprometeriam.
politicamente necessário, se permite O apartidarismo, portanto, tem diversas
evitar a dispersão de forças, propícia matizes, não necessariamente
aos adversários, envolve alguns confluentes. Nem toda crítica anti-
perigos. Só escapamos de Scyla para partido expressa ideologias à esquerda,
cair em Caarybde. É que a
como também não há convergência entre
organização constitui precisamente
a fonte que as correntes as suas motivações. A literatura sobre o
conservadoras lançam na planície da tema nos apresenta análises que, desde
democracia, e ocasionalmente, as Moïsei Ostrogorski6, enfatizam os
inundações que tornam esta planície limites e consequências da

5
A citação é de CHARLOT (1982, p. 123) – cf. Organization of Political Parties em 1902. Sua
MOSSUZ (Janine), Le Clubs et la politique en obra seminal influenciou os estudos posteriores
France, Paris, A. Colin, (Dossier “U2”, série sobre os partidos político, inclusive Max Weber
Politique), 1970, 128 págs. e Robert Michels.
6
Moïsei Ostrogorski (1854-1919), publicou os
dois volumes de Democracy and the

130
institucionalização e burocratização da órgãos executivos da vontade coletiva,
organização. Ostrogorski, ao estudar os “em breve se tornam independentes das
partidos nos Estados Unidos e na massas, frustrando o seu controle”.
Inglaterra, salienta “os poderes
Essa separação foi facilitada pelos
exorbitantes da Organização que então
efeitos da divisão do trabalho na
se forja e busca os meios de salvaguardar
sociedade capitalista, os quais
o direito dos cidadãos contra os
interferiram nas condições de
partidos”. Para evitar os males dos
organização do movimento operário. Ao
partidos, ele propõe, simplesmente, a
proletário foi reservado o destino de dias
proibição destes enquanto organização
de trabalho intenso e fatigante no interior
permanente e a sua substituição por
da fábrica. O operário de base de um
organismos provisórios, ou seja,
partido não dispõe de tempo nem de
“agrupamentos ad hoc que, uma vez
meios para realizar sua educação
atingido o objetivo específico para o qual
política, para ampliar seus
se formaram, logo se dissolveriam”
conhecimentos teóricos e científicos.
(Ibidem, p. 124). Ostrogorski conclui
Restrito ao mundo da fábrica, ele não
que os partidos, ainda que orientados por
tem liberdade nem condições
objetivos nobres, tendem a perpetuarem-
econômicas de deslocamento. Assim,
se e a degenerarem tão logo são
entre a base do partido e sua direção
formados.
existe um abismo, uma desigualdade
A contestação à organização partidária é determinada pelas condições objetivas.
retomada por Robert Michels (1876-
Dessa maneira, a organização carrega em
1936), a partir da análise da social-
sua gênese os gérmens da oligarquia.
democracia alemã. No início, a
Esta é a tese principal de Robert Michels.
organização social-democrata é formada
Para ele:
por grupos pequenos que não necessitam
de um aparelho complexo de Quem fala em organização fala em
funcionários permanentes. Nos tendência à oligarquia. Em cada
primeiros passos, vigora a democracia: organização, seja um partido ou uma
união de professores, etc., a
não há a divisão do trabalho acentuada; a
inclinação aristocrática manifesta-se
distância entre dirigentes e dirigidos é de uma maneira muito acentuada. O
mínima; e, os dirigentes operários, mecanismo da organização, ao
saídos espontaneamente das lutas, mesmo tempo que lhe dá uma
exercem essa função nas horas “livres”, estrutura sólida, provoca na massa
sem se desligarem do trabalho manual. organizada graves modificações. Ela
Mas o crescimento das organizações de altera completamente as respectivas
massa impõe a complexidade das tarefas, composições de chefe e massas. A
a exigência da especialização e, organização tem o efeito de dividir
consequentemente, a necessidade de um todo o partido ou sindicato
aparelho e de funcionários permanentes. profissional em uma minoria
dirigente e uma maioria dirigida
Esta é raiz mais profunda do fenômeno
(Ibidem).
burocrático. Segundo Michels (1982, p.
21), a especialização técnica tornou O crescimento eleitoral do partido, e a
necessário a “direção dos negócios”. consequente conquista de espaço no
Disso resulta que o poder de decisão foi, parlamento e nas demais instituições do
pouco a pouco, subtraído das massas e Estado, produz a necessidade de manter
concentrado nas mãos dos dirigentes. e ampliar a influência da organização
Estes, que no início tinham a função de sobre a sociedade. A estratégia do

131
partido torna-se mais abrangente – no desertores burgueses”. Mas, ressalta
sentido de atrair novas camadas sociais Michels, “a maior parte dos cargos são
para além da massa operária. Isto ocupados por homens pertencentes à
provoca transformações internas que classe operária que, com zelo e estudo,
contribuem para a sua integração nas souberam ganhar a confiança de seus
instituições da ordem social que objetiva camaradas” (Ibidem, p. 157).
transformar. Estas circunstâncias Eis os efeitos da divisão social do
induzem ao aburguesamento da direção trabalho. Ao operário só é possível
e da organização. romper a disparidade em relação aos
Para Michels, “o aburguesamento dos dirigentes se ele dispor de tempo e meios
partidos operários” resulta de três que lhe permita apropriar-se do
fatores: “a adesão de pequenos conhecimento e do poder de direção. Isto
burgueses aos partidos proletários”; a significa o abandono do trabalho manual,
organização operária enquanto fator que o afastamento do local de trabalho. O
propicia a formação de novas camadas operário é, então, incorporado ao partido
pequeno-burguesas; e, a defesa contra as e, remunerado, passa a viver da política
perseguições patronais. No primeiro e, somando-se à elite operária que, num
caso, por razões quase sempre eleitorais, processo de “seleção natural”, termina
o partido operário procura o apoio da exercendo “funções diametralmente
pequena-burguesia. Essa aproximação opostas às suas funções ou ocupações
gera consequências que acabam por habituais” (Ibidem).
transformá-lo em partido do “povo” – Para o operário estas mudanças
“Seus apelos não se dirigem mais apenas implicam em vantagens visíveis e
aos “irmãos operários de uniforme”, mas consideráveis. Livre da prisão fabril, ele
“a todo o povo que produz”, a “todo o pode desenvolver suas potencialidades
povo que trabalha”, expressões essas que intelectuais; pode usufruir de meios que,
se aplicam a todas as camadas, salvos os até então, estavam em poder da
ociosos que vivem de suas rendas” militância socialmente vinculada aos
(Ibidem, p. 155). Em segundo lugar, extratos da pequena-burguesia e da
Michels nota que as necessidades burguesia. Mas, ao adentrar neste novo
desencadeadas pela luta de classes ambiente, o operário, pouco a pouco,
produziram “metamorfoses sociais” no afasta-se de sua origem de classe para
seio do partido, pois terminam por elevar-se à condição de pequeno-
arrancar “certos grupos de indivíduos, burguês. Ainda que mantenha contato
numericamente insignificantes, mas de permanente com as massas, está sujeito a
importância qualitativa muito grande”, uma profunda transformação nas
das “profundezas da classe proletária e condições materiais e psicológicas da
elevados à dignidade de burgueses” vida. O caminho de volta torna-se difícil
(Ibidem, p. 156). e, mesmo, impraticável. Isto é ainda mais
Neste aspecto, a social-democracia é acentuado no caso do operário que,
exemplar. Na medida em que se devido à sua atividade burocrática, perde
desenvolve, cresce e se especializa, a o contato com as massas e reduz seu
máquina partidária necessita de mais mundo ao da máquina partidária. De
funcionários “para seu funcionamento e qualquer forma, o determinante é a nova
sua conservação”. Parte das funções são condição social em que este se encontra.
ocupadas pelos intelectuais vinculados Michels fez uma analogia entre a
ao partido, por um “número restrito de importância que o movimento operário

132
teve para a classe trabalhadora e o trabalhadores (ex.: os antigos albergues
significado que a Igreja Católica teve insalubres).
para setores da pequena-burguesia e da Comentando a proposta de Ostrogorski –
população rural: ambos se tornaram “por um sistema de associações
meios de ascensão social. Quanto mais temporárias que só seriam formadas em
se amplia e torna-se complexa a máquina vista da realização de um fim
burocrática, maiores as chances de determinado e se dissolveriam uma vez
muitos elevarem-se acima da sua atingido esse fim (league system)” –
condição social. O Partido Socialista Robert Michels é contundente:
teria “a tarefa involuntária de afastar do
proletariado alguns dos seus elementos Ora, a análise dos partidos políticos
mais capazes e mais perspicazes” nos termos submetidos até aqui
(Ibidem, p. 161). autoriza-nos a duvidar da eficácia
desse meio. Sua adoção não
Por outro lado, ele reconhece que muitos constituiria um progresso sensível,
operários, embora tenham alcançado mesmo que fosse possível suprimir
uma situação econômica e social melhor, através de um simples decreto os
não permanecem “profundamente organismos que fizeram nascer a
ligados à causa socialista. Mas nesse evolução histórica e a necessidade
caso, o operário é, a exemplo do burguês, (Ibidem, p. 216).
um “ideólogo”, pois sua mentalidade não A crítica de Robert Michels à
se ajusta com o lugar que ele ocupa na organização tende ao fatalismo. Em sua
sociedade”, afirmou Michels (Ibidem). concepção, a organização explica por si
O terceiro fator de aburguesamento é a mesma a vitória da burocracia. Michels
“defesa patronal” (Ibidem, p. 162-165). coloca a questão como um impasse
Perseguidos pelos patrões e governo e irresoluto. Mas a tendência ao
lançados ao desemprego, muitos burocratismo também inclui em seu
operários veem-se impelidos a cerne contra tendências anti-
montarem um negócio como meio de burocráticas. Esta é a promessa do
sobrevivência e resistência à ação anarquismo crítico à organização
repressiva patronal. Com o tempo, partidária, mas não necessariamente
munidos deste pequeno negócio, onde oposto a qualquer organização – salvo o
vendem mercadorias ou um serviço anarquismo individualista. Aliás,
qualquer e sustentados por uma clientela Michels reconhece aos anarquistas “o
oriunda do próprio movimento, estes mérito de terem sido os primeiros a
operários independentes transformam-se insistir com energia sobre as
em pequenos comerciantes e elevam-se à consequências hierárquicas e
condição de pequeno-burgueses, de oligárquicas das organizações de
participantes da classe média. partido” (Ibidem, p. 213). Mas, critica-os
igualmente, na medida em que passaram
Ao mesmo tempo, estes ex-proletários, a adotar formas coletivistas de
“em nome de um direito moral superior”, associação:
esperam que seus camaradas continuem
Não obstante, o anarquismo, que é
sustentando-os com suas compras e
um movimento libertador fundado
resistem a qualquer modificação que o no direito inalienável do homem
partido procure impor nestas relações sobre a sua própria pessoa, sucumbe,
mercantis – mesmo quando estes na mesma medida que o partido
negócios são prejudiciais aos próprios socialista, à lei do autoritarismo,
desde que abandona o campo do

133
pensamento puro e desde que seus enfraquecimento das tendências
prosélitos se reúnem em associações oligárquicas” (Ibidem, p. 240-241).
que têm por fim o exercício de uma
atividade política qualquer (Ibidem, A análise de Robert Michels é polêmica
p. 215). e facilmente caracterizada como
pessimista.7 As opções políticas do autor
“Quem diz organização, diz oligarquia”, acirraram ainda mais o debate sobre sua
conclui Michels. Portanto, obra, inclusive com a tentação de
Toda organização de partido desqualificá-la. Não obstante, ainda que
representa uma potência oligárquica não concordemos com a exposição e
repousada sobre uma base conclusões, constitui um clássico na
democrática. Encontramos em toda literatura política.8Ao revelar os
parte eleitores e eleitos. Mas impasses e paradoxos da democracia e da
também encontramos em toda parte
organização social-democrata, seu
um poder quase ilimitado dos eleitos
sobre as massas que elegem. A estudo permanece atual e contribui para
estrutura oligárquica do edifício a reflexão sobre os limites e dificuldades
abala o princípio democrático dos partidos políticos no contexto
fundamental (Ibidem, p. 238). democrático.
A intenção de Robert Michels era Não por acaso, a contestação do
“demolir algumas das fáceis e fenômeno dos partidos modernos é
superficiais ilusões democráticas que recorrente. Década depois da publicação
confundem a ciência e induzem as de Democracy and the Organization of
massas ao erro” e “trazer à baila algumas Political Parties (Ostrogorski) e
das tendências sociológicas que se Sociologia dos partidos políticos
opõem ao reino da democracia e, numa (Robert Michels), Simone Weil retoma a
medida ainda maior, ao do socialismo”. proposta de supressão dos partidos
Contudo, ainda que enfático na políticos. Ela enumera suas
afirmação da tendência oligárquica, o características básicas:
que compromete a própria democracia, Um partido é uma máquina de
ele ressalta que não intenta negar “que fabricar paixão coletiva. Um partido
todo movimento operário político é uma organização
revolucionário, animado de sincero construída de modo a exercer a
espírito democrático, não esteja em pressão coletiva sobre o pensamento
condições de contribuir para o de cada um dos seres humanos que
dele são membros. O fim primeiro, e

7
No prefácio da edição francesa – da qual foi Ultrapassada certamente em alguns pontos a obra
traduzida a edição brasileira citada – Robert é profética em outros. Merece a reputação de ser
Michels defende-se das críticas: “Muitos um clássico. Esclarece acontecimentos
qualificaram meus estudos de “ciência posteriores: ao observar, por seu intermédio, o
pessimista”. Outros viram nisso o mérito, funcionamento da Social-Democracia, explica-
considerando o otimismo em ciências sociais se, por exemplo, que Rosa Luxemburgo tenha
como mera mentira. Alguns até mesmo contra a rigidez do aparelho e combatido sem
admitiram que o pessimismo decorre fatalmente trégua a burocracia do Partido. Ajuda também a
da constatação dos fatos existentes no livro. Mas, compreender de que modo esta mesma Social-
com respeito a este ponto, dirigiram-me críticas Democracia foi incapaz de opor-se eficazmente à
sérias, embora às vezes um tanto ingênuas” maré do Nacional-Socialismo, paralisada como
(MICHELS, 1982, p. 9). estava pelo peso de sua própria organização, a
8
O prefaciador da presente edição – não concentração de responsabilidade, a perda de
identificado – escreve: “Os próprios fatos que iniciativa” (Ibidem, p. 6).
deveriam condená-lo, voltam-se em sua defesa.

134
em última análise, o fim único de perder no caminho e abandonar o
todo partido político é seu próprio objetivo inicialmente delimitado, ou
crescimento, e isso não tem limites substituí-lo por outros.
(apud in CHARLOT, 1982, p. 124).9
Paradoxalmente, a ação política que
No centro das preocupações de Simone almeja revolucionar a sociedade na qual
Weil encontra-se a defesa da liberdade se insere é condicionada pelo status quo.
individual, a qual tende a ser cerceada e Na medida em que se fortalece enquanto
suprimida pela organização partidária. organização e força política, impõe-se a
Embora influenciada pela experiência do necessidade de flexibilizar, fazer
nazismo, Weil segue a trilha aberta por concessões e adaptar-se. As conquistas
Rousseau e Moïsei Ostrogorski, os quais resultam na adaptação à ordem vigente.
receiam a consolidação dos grupos, “pois O objetivo da transformação radical da
o espírito de grupo, deforma a livre busca sociedade é substituído pela conquista
pessoal da verdade e a descoberta gradual de reformas. A revolução é
comunitária do interesse geral” (Ibidem, postergada ao futuro incerto, mas
p. 125). Seja na opinião do senso permanece a retórica socialista. A
comum, em análises teóricas trajetória da social-democracia
requintadas, ou mesmo na permanência comprova-o.
da crítica anarquista, a contestação
permanece atual. Historicamente, a trajetória da Social-
Democracia confirma que os partidos
Considerações finais políticos servem fundamentalmente à
On ne détruit réellement que ce manutenção do status quo. A estratégia,
qu’on remplace, dizia o poeta em geral, foi afirmarem-se enquanto
Baudelaire: só se destrói, realmente, imprescindíveis à democracia
aquilo que se substitui. Enquanto a representativa – mesmo nos países em
substituição não se opera, que predominou o partido único, a
permanece uma certa abstratividade organização pareceu inerente à
na negação. Sublevar-se pode ser
necessária canalização e comunicação
uma manifestação de generosidade,
porém a eficácia transformadora entre governantes e governados.
depende do encaminhamento de um É certo que outras forças políticas
projeto que possa viabilizar-se e recusaram o caminho da adaptação à
criar um novo quadro, uma nova sociedade burguesa e permaneceram na
realidade (KONDER, 2009, p. 46). senda da revolução. Dissidentes da
São as contradições do ser no mundo, da ordem burguesa, terminaram por
ação que objetiva transforma a realidade. protagonizar revoluções – a Revolução
Os que almejam transformar a realidade Russa de 1917 ilustra esta perspectiva.
social são “inevitavelmente marcados Em outras palavras, seria preciso analisar
pelas sociedades” que se empenham em as forças políticas que, organizadas
negar e contra as quais se insurgem. enquanto partidos, permaneceram fiéis à
Trazem “na consciência tanto a abertura perspectiva revolucionária, à
para o futuro a ser criado quanto as taras contestação da ordem societária
do passado e as distorções ideológicas do burguesa. Este legado permanece atual e
presente” (Ibidem, p. 240). Na dialética seus objetivos são perseguidos pelos
entre o ser e o vir-a-ser, há o risco de se

9
A crítica da autora na íntegra encontra-se em:
“Pela supressão dos partidos políticos” (2016).

135
diversos partidos que se autodenominam questionados, seguem cumprindo a sua
revolucionários. função essencial: sustentar o status quo.
Sob o impacto e influência da Revolução
Russa (1917), a formação dos diversos Referências
partidos comunistas objetivava resgatar
CERRONI, Umberto. Teoria do partido
e atualizar os compromissos originários político. São Paulo, LECH, 1982.
dos primeiros revolucionários sociais-
democratas. A vitória da Revolução CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos.
Brasília, Editora a UnB, 1982.
Russa fortaleceu esta perspectiva.
Porém, de uma perspectiva histórica, DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos.
Rio de Janeiro: Zahar; Brasília: Editora da UnB,
esta alternativa também se revelou
1980.
fracassada – na medida em que a
generosidade da utopia anunciada KONDER, Leandro. A derrota da dialética: a
recepção das ideias de Marx no Brasil, até o
resultou em um sistema autoritário do começo dos anos 30. São Paulo: Expressão
partido único. O stalinismo é a sua Popular, 2009.
expressão cabal. Também neste caso, o
MICHELS, Robert. Sociologia dos partidos
partido que subverteu a ordem, tão logo políticos. Brasília, Editora da UnB, 1982.
alcançou o poder e sentiu
SARTORI, Giovanni. Partido e sistemas
suficientemente forte, procurou, de todas partidários. Rio de Janeiro: Zahar; Brasília:
as formas, garantir o status quo, ainda Editora da UnB, 1982.
que sob o preço da contrarrevolução.
WEBER, Max. Economia e sociedade:
Com efeito, o legado da Revolução fundamentos da sociologia compreensiva. (Vol.
Russa permanece presente na 1) Brasília, DF: Editora da Universidade de
constituição de partidos cujo objetivo é Brasília, 1994.
fazer a revolução. Em certa medida, __________. Economia e sociedade:
também são herdeiros da social- fundamentos da sociologia compreensiva. (Vol.
democracia revolucionária em seus 2) Brasília, DF: Editora da Universidade de
primórdios. Não obstante, dado o escopo Brasília, 1999.
do texto, não é possível se deter na WEIL, Simone. Pela supressão dos partidos
análise dos partidos comunistas. políticos. Editora Âyiné: Veneza-Itália; Belo
Horizonte-Brasil, 2016.
De qualquer forma, seja nas
“democracias burguesas” e/ou nos
regimes de partido único, o século XX Recebido em 2020-03-27
foi o século da consolidação do sistema Publicado em 2020-03-28
de partidos. Estes, ainda que

136

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