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Consumismo, obsolescência, design e o mito da

sustentabilidade.
Algumas estatísticas estipulam que se todas as pessoas do mundo consumissem como a
classe média dos países desenvolvidos, precisaríamos de, se não me falha a memória, mais
dez planetas Terra para prover os recursos e mais cinco só para jogar o lixo.

Se o ideal atual de uma sociedade global igualitária é que todos, sem  exceção, possam ter
um estilo de vida confortável mediano, que seria equiparável ao vivido pela classe média de
tais países desenvolvidos, tal feito já seria impossível, como disse no parágrafo acima. Logo,
para que o padrão contemporâneo de qualidade de vida exista para poucos, tem que existir
pobreza e miséria para muitos, pois é impossível que todos gozem deste privilégio.

Como então seria possível que todos que vivem neste planeta tenham uma boa qualidade de
vida, que seja pelo menos próxima do ideal de sustentabilidade e igualidade social? Ao meu
ver existem, resumidamente, duas maneiras conectadas diretamente ao design:

Reduzir dramática e radicalmente o consumismo e criar bens de consumo que visem


genuinamente a qualidade e durabilidade.

Qual é o papel do designer nisso tudo? Bom, o design é parte fundamental nas fundações do
consumismo, estando envolvido em todos os processos da longa cadeia de desenvolvimento
de qualquer bem de consumo, desde o projeto inicial, o planejamento, o branding até o
marketing publicitário.

Fundamentalmente, o design é a peça principal deste processo; É ele que desperta o desejo
desenfreado de consumo nas pessoas, juntamente com a manipulação propagandista que,
ao longo dos anos, vem condicionando as pessoas a pensar que a posse de coisas é a chave
da felicidade.

Enquanto isso, estamos sempre ouvindo falar da tal sustentabilidade. "Isso ou aquilo é


sustentável", "A sustentabilidade tem que vir em primeiro lugar", dizem os professores de
design pelo mundo afora. Não sei se dizem isso por ignorância, cegueira ou para tentar
vender seu peixe; Só sei que, com absoluta certeza, estão totalmente equivocados.

A tal sustentabilidade não existe. É totalmente utópico pensar-se o contrário dentro do


contexto da sociedade contemporânea. Nossa própria existência, dentro do atual quadro
social e populacional, é insustentável; Nossos próprios inevitáveis dejetos fisiológicos estão
afogando a sociedade em esgoto, basta observar o estado deplorável do Rio Tietê, em São
Paulo, ou o Rio das Velhas, em Minas Gerais.

Em todo caso, em primeiro lugar, como designers, devemos nos questionar o quanto é
sustentável, por exemplo, criar mais uma cadeira ou mesa, e despejar esse produto num
oceano de similares entre os quais, de maneira geral, não existe grande diferenciação
ergonômica ou funcional. Uma cadeira de um Philippe Starck da vida, usando critérios de
análise objetivos, é realmente melhor de se sentar do que uma cadeira comum de plástico,
que já atente a todos os critérios ergonômicos? Por incrível que pareça, muitas vezes é até
pior. Quem aqui já não sofreu tentando permanecer sentado por mais de cinco minutos em
uma cadeira "assinada" caríssima? 

Então, essencialmente, quando o designer deságua mais um produto no mercado, que se


diferencia dos demais somente por algum fator estético, que por mais que seja importante
psicologicamente, não trás nenhum benefício ou inovação tangível ao ser humano, está
criando lixo. É isso mesmo; O design, como é abordado atualmente, cria lixo. Não se iludam
pensando que seu novo produto está trazendo benefícios à sociedade pois, na grande
maioria dos casos, está fazendo justamente o contrário.

A obsolescência programada é uma das principais  peças deste problema; É a filosofia


mercadológica da qual o designer raramente consegue escapar, pelo menos se quiser ganhar
dinheiro o suficiente para levar uma vida confortável.
Existem dois tipos de obsolescência programada; O primeiro é aquele em que os produtos
são projetados para estragar fisicamente depois de um tempo pré-determinado de uso,
obrigando o usuário a comprar um similar novamente. Alguns equipamentos eletrônicos,
como impressoras, possuem chips internos programados para queimar depois de um
determinado número de impressões, inutilizando o aparelho por completo.

O segundo é aquele em que o usuário, mesmo tendo um produto perfeitamente funcional em


mãos, através da manipulação social e propaganda, sente-se socialmente inferior por não ter
o modelo atual do mesmo, levando-o a descartar um produto em perfeito estado de
funcionamento para obter um modelo atualizado, que muitas vezes oferece apenas alguns
incrementos de design a mais em relação ao seu predecessor e nenhum incremento adicional
significante em termos de função. Um grande exemplo são os produtos "i" da famosa Apple.
A pessoa tem um iPhone X perfeitamente funcional, mas sente um desejo incontrolável de
comprar um iPhone 2X no momento do seu lançamento, mesmo que ele não apresente
modificações positivas reais; Arredonda-se uma quina aqui, muda-se o tamanho da tela em
alguns milímetros ali e pronto, está lançado o "novo" iPhone totalmente "inovador" e
absurdamente tentador.

Não tem como negar que existe alguma coisa muito errada nisso tudo, certo? O
documentário "The Light Bulb Conspiracy" mostra como tudo começou.

Logo quando a lâmpada incandescente foi inventada e começou a ser comercializada em


massa, cada uma durava cerca de 100.000 horas. No entanto, por ser um produto tão bom e
duradouro, não estava gerando lucratividade para a indústria, então, todos os fabricantes do
mundo se reuniram e, depois de muito esforço e estudos, determinaram que todas as
lâmpadas comercializadas não poderiam durar mais do que 1.000 horas. De fato, uma
destas primeiras lâmpadas está funcionando 24 horas por dia desde que foi inventada, em
algum museu o qual não me lembro o nome, sem apresentar nenhum problema. 

Imaginem o prejuízo que tal tratado, consagrado entre quatro paredes, trouxe ao mundo,
em termos de desperdício de recursos, durante todo este período; Simplesmente não é
quantificável.

Outro caso clássico é o da meia-calça feminina que, logo quando foi inventada, era tão
resistente que propagandas eram feitas com elas sendo usadas para rebocar caminhões,
sem desfiar um fio. Como a lâmpada, os engenheiros foram ordenados a encontrar uma
maneira de torná-las mais frágeis, em prol da lucratividade da indústria.

Meu ponto é: Onde está a ética nisso tudo? Qual a razão pela qual, ao invés de criar o
melhor produto possível e buscar a lucratividade usando a criatividade para criar um
sucessor ainda melhor, rebaixar um excelente produto à mediocridade para posteriormente
criar produtos um pouco menos medíocres?

Imaginem como a tecnologia de iluminação estaria hoje, se ao invés de deliberadamente


terem piorado as primeiras lâmpadas, estivessem trabalhado duro para torná-las ainda
melhores?

E como o design, e o designer, participam nisso tudo? Fato é que os designers de hoje em
dia, já ficam extremamente felizes por ter um de seus produtos introduzido no mercado, e
não ligam a mínima sobre como tal produto foi produzido e como ele está contribuindo para
a evolução da sociedade e a construção de um mercado um pouco mais saudável. Se uma
empresa internacional resolve produzir, por exemplo, uma de suas luminárias na China,
usando trabalho escravo dentro de uma fábrica com zero controle de emissão de poluentes,
você faria alguma oposição?

E se fosse convidado a trabalhar no setor de design da Apple? Você aceitaria o emprego,


mesmo sabendo que eles poderiam criar um super aparelho de celular que demoraria anos
para ser objetivamente superado, mas preferem criar novos aparelhos com incrementações
placebo, em prol da ganância financeira?

E se fosse convidado a trabalhar no setor de design da Epson ou Canon, desenvolvendo


belíssimos produtos que são criminosamente programados para estragar, forçando o
consumidor a comprar um produto novo periodicamente? Você aceitaria ou faria alguma
objeção?

E como consumidor? Quando você comprou seu iPad, você se preocupou com o fato de que
as condições de trabalho da fábrica que o produz são tão precárias e abusivas, que
instalaram redes de proteção contra suicídio no campus da empresa, como
forma paliativa de frear o grande número de funcionários que preferem se matar do que
suportar mais um dia vivendo naquelas condições, tudo isso pra você ficar passando seus
dedinhos naquela tela o dia inteiro?

É meus amigos, a coisa está feia para o nosso lado; O cerco está se fechando e está se
tornando cada vez mais difícil usar a criatividade para deixar nossa marquinha positiva aqui
neste planeta.

Se houvesse uma espécie de juramento Hipocrático para os formandos em design, como


existe nos cursos de medicina, provavelmente todos nós já o haveríamos quebrado.

Resumindo; Já passou da hora do ensino de design e dos próprios designers repensarem o


nosso papel na sociedade, começando a agir de acordo.

Modelo de sustentabilidade mesmo, só existiu nas sociedades indígenas; Na nossa,


sustentabilidade não passa de um mecanismo de propaganda ilusório e utópico, que
continuará sendo assim enquanto não criarmos uma resolução ética definitiva para a nossa
função, para pelo menos tentar nos aproximar do ideal.

Temos que descartar o ridículo senso de "glamour" que permeia nosso ciclo de
personalidades excêntricas vestidas como pop-stars, e começar a ser realistas. Design é uma
profissão como qualquer outra, cuja a justificativa covarde de que "estou só fazendo o meu
trabalho" pode até enganar os bobos, mas não passa de uma desculpa chula para tentar
diminuir a significância de que estamos usando nossa criatividade para alimentar uma
indústria ultrapassada, irracional e destrutiva.

Pense nisso tudo quando for criar seu próximo produto. Se, por ventura, constatar que o
mesmo não trará nenhum benefício à sociedade, tratando-se de somente mais um belíssimo
pedaço de lixo, talvez seja melhor deixá-lo no mundo intangível da imaginação, para
amadurecer mais um pouco.

E por favor; Não me venham com esse blablabla de sustentabilidade.

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