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Presidente da República Federativa do Brasil

Dilma Rousseff

Ministro da Educação
Aloisio Mercadante

Presidente da Capes
Jorge Almeida Guimaraes
Universidade Federal de Alagoas

Reitor
Eurico de Barros Lobo Filho

Vice-Reitor
Rachel Rocha de Almeida Barros

Coordenador UAB/CIED
Luis Paulo Leopoldo Mercado

Coordenador Adjunto UAB/CIED


Fernando Silvio Cavalcante Pimentel

Coordenação de Projetos e Fomentos/CIED


Mylena Araujo

Coordenadora do Núcleo de Formação/CIED


Lilian Carmen Lima dos Santos

Coordenação de Tutoria/CIED
Rosana Saria de Araujo

Coordenador do Núcleo de Comunicação e


Produção de Materiais Didáticos/CIED
Guilmer Brito

Responsável pelos Projetos de Design Gráfico/


CIED
Raphael Pereira Fernandes de Araújo

Projeto Gráfico
Luiz Marcos Resende Júnior

Diagramação e Finalização
Lucas Gerônimo Villar
Teoria da Literatura 1

Professor: Disciplina 1
Roberto Sarmento Lima

Revisão Gramatical:
Roberto Sarmento Lima

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 5


Livro de Conteúdo
D1

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Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

INTRODUÇÃO

Prezado aluno:

Antes de tudo, quero felicitá-lo por ter escolhido


fazer o seu curso de Letras na modalidade da Educação a
Distância. Desde já, seu esforço pessoal e sua capacidade de
concentração nos estudos contam como armas fundamentais
no enfrentamento de uma experiência em que a iniciativa
e o desafio de aprender, sem recorrer à cotidiana presença
física do professor, constituem os elementos mais fortes
de aprendizagem. Certamente sua participação efetiva no
processo de educação será determinante nos resultados a
obter, uma vez que o professor, ou orientador, não estará ao
seu lado nos momentos em que se exija maior interação com
ele — situação que é peculiar ao ensino presencial.
A disciplina TEORIA DA LITERATURA 1, que
se inicia agora, pertence ao tronco comum dos cursos de
Letras, integrando qualquer que seja a habilitação nessa área,
parte obrigatória do primeiro período, abrindo, assim, os
trabalhos. Visa primordialmente a fazer refletir sobre o fato
literário: sua história, sua natureza e implicações históricas
de produção, sua destinação, sua maneira de ler textos
poéticos e narrativos. Por ser uma disciplina que estabelece
os fundamentos dessa reflexão, insere-se no campo das
ciências humanas, com as quais interage, e contribui para o
desenvolvimento do sentimento estético e, sobretudo, para
a compreensão desse fenômeno no tocante às suas relações
com a vida social em seu sentido mais amplo.
Transformações históricas e culturais, dos gregos
antigos até o momento atual, levam a considerar que não há
um conceito rígido e válido para todos os momentos em que a
literatura venha a ser apreciada formal e metodologicamente.
Ao contrário: é entendendo essa precariedade dos conceitos
— sua incompletude e resistência a uma definição estanque
— que a investigação sobre ela caminha em várias direções,
solicitando a coparticipação de diversos enfoques, indo de
uma perspectiva imanente, quando a situação interpretativo-
analítica o requerer, a uma discussão mais abrangente e plural

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Teoria da Literatura 1

exigida pelo próprio fenômeno, uma vez reconhecido em sua


historicidade.
O conteúdo programático de TEORIA DA
LITERATURA 1 envolve a compreensão da literatura
como construção da linguagem estética e os sentidos que se
realizam nesse trabalho de linguagem, assim como a aplicação
da noção de gêneros literários (por uma limitação de horas,
contemplaremos apenas os gêneros lírico e narrativo) à leitura
de textos em verso ou em prosa.
A disciplina, aqui programada, divide-se em duas
grandes unidades: (1) Problematização da literatura: da
tradição teórica dos filósofos gregos da Antiguidade aos estudos
literários contemporâneos; e (2) Gêneros literários: o lírico e o
narrativo. A primeira unidade trata de uma reflexão sobre
os fundamentos da disciplina e do seu objeto de estudo,
procurando sistematizar um pensamento que vem de muito
longe, de Aristóteles e Platão, e uma discussão mais atualizada
do problema. Já a segunda unidade enfoca os gêneros
literários. Na verdade, são três gêneros fundamentais, incluído
o gênero dramático, o qual, por uma necessidade de adequar
o assunto ao tempo disponível, 60 horas da disciplina em sua
modalidade a distância, ficou excluído desta programação,
sendo, portanto, apenas contemplados o gênero lírico e o
gênero narrativo. Em razão da maior divulgação e recepção,
entre nós, das espécies líricas e narrativas, acredito que
a arte do teatro, por sua maior especialização, em virtude
da junção, em uma mesma experiência, das artes literária e
cênica, quando não também a musical, mereceria um estudo
à parte.
Espero, assim, que os estudos que se deverão
realizar aqui, mesmo com todas as limitações possíveis que
se possam detectar — de sua proposição, organização e de
sua temática às dificuldades encontradas no percurso para
a sua efetivação —, se deem satisfatoriamente, dentro de
certo padrão de exigência e aceitabilidade. A seu dispor se
encontra uma sugestão de uma lista bibliográfica atualizada,
que deverá integrar-se às discussões, às análises de textos
literários presentes neste material e, enfim, aos exercícios de
aprendizagem, para uma maior consolidação do estudo que
aqui se propõe.

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Teoria da Literatura 1

PLANO DE DISCIPLINA

Curso: Pedagogia UAB


Disciplina: TEORIA DA LITERATURA 1 Disciplina 1
Carga Horária Presencial: 80h
Carga Horária a Distância: 60h
Professor: Roberto Sarmento Lima

Ementa:

Reflexão sobre fundamentos da teoria da literatura e


constituição de seu objeto (processos de construção estético-
verbal, modos discursivos, gêneros), desde a Antiguidade
aos estudos contemporâneos, com base na análise de textos
(teóricos e literários).

Conteúdos:

Unidade I- Problematização da Literatura: da tradição


teórica dos filósofos gregos da antiguidade aos estudos
literários contemporâneos

Capítulo 1: O papel da teoria da literatura: a problematização


do literário
Capítulo 2: Em busca de um conceito de literatura

Unidade II- Gêneros literários: o lírico e o narrativo

Capítulo 1: Introdução à questão dos gêneros


Capítulo 2: O gênero lírico
Capítulo 3: O gênero narrativo

Objetivos:

Compreender os fundamentos teórico-críticos


pertinentes à constituição e delimitação do objeto literatura.

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Teoria da Literatura 1

Objetivos específicos:

1. Problematizar a literatura com base nas noções e


categorias apresentadas por Aristóteles e Platão, na
Antiguidade, como também na contemporaneidade, em
efetivo aproveitamento e revisão dos conceitos mais
conhecidos no âmbito da teoria literária.

2. Refletir sobre a concepção de mimese e representação


tanto no contexto original grego quanto na investigação
moderna e contemporânea.

3. Reconhecer, na constituição do modo discursivo


literário, os níveis do conhecimento, da expressão e da
construção para um melhor alcance do objeto literatura.

4. Relacionar vertentes de teoria literária no tocante à


concepção do objeto literatura.

5. Delimitar formal e historicamente os gêneros literários


com aplicação de suas características à leitura de textos
poéticos e narrativos, de acordo com o seu momento de
produção.

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Teoria da Literatura 1

Referências
Disciplina 1
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética
clássica. Trad. de Jaime Bruna. 7. ed. São Paulo: Cultrix,
1977.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo:


Cultrix; Edusp, 1977.

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo:


Ática, 1985.

CANDIDO, Antonio et alii. A personagem de ficção. 5.


ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO,


Antonio. Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas
Cidades, 1995. p. 235-263.

CANDIDO, Antonio. O mundo desfeito e refeito. In:


CANDIDO, Antonio. Recortes. 3. ed. rev. pelo autor. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 34-40.

CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. São Paulo:


Ática, 1985. (Princípios, 20).

COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles:


mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992.
(Princípios, 217).

CUNHA, Helena Parente. Os gêneros literários. In:


PORTELLA, Eduardo (Coord.). Teoria literária. 2. ed. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. p. 93-130.

DANTO, Arthur C. Obras de arte e meras coisas


reais. In: DANTO, Arthur C. A transfiguração do lugar-
comum: uma filosofia da arte. Trad. Vera Pereira. São Paulo:
CosacNaify, 2005. p. 33-72.

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Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

DIMAS, Antonio. Espaço e romance.São Paulo: Ática,


1985. (Princípios, 23)

FRONTIER, Alain. La poésie. Paris: Belin, 1992.

GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. São Paulo:


Ática, 2006. (Princípios, 6).

GONÇALVES, Magaly Trindade; BELLODI, Zina C.


Teoria da literatura “revisitada”. 2. ed. Petrópolis: Vozes,
2005.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou a


polêmica em torno da ilusão). São Paulo: Ática, 1985.
(Princípios, 4)

LIMA, Roberto Sarmento. O falso da imitação.


Conhecimento prático língua portuguesa, São Paulo:
Escala Educacional, nº 19, p. 47-50, [set./out. 2009].

LIMA, Roberto Sarmento. Existem poemas de amor?


Conhecimento prático língua portuguesa, São Paulo:
Escala Educacional, nº 20, p. 34-39, [nov./dez. 2009].

LIMA, Roberto Sarmento. A cidade de Clarice. In: MONTE-


MÓR, Roberto Luís de Melo (Ed.). Revista internacional
em língua portuguesa: cidades e metrópoles, Lisboa:
Associação das Universidades de Língua Portuguesa, nº 23,
2010, p. 135-151.

LIMA, Roberto Sarmento. As tentações do espelho.


Conhecimento prático literatura, São Paulo: Escala
Educacional, nº 38, p. 10-19, [set./out. 2011].

LIMA, Roberto Sarmento. O cinematógrafo de


Alencar e Machado. Conhecimento Prático Língua
Portuguesa, São Paulo: Escala Educacional, nº 36, [maio/
jun. 2012].

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Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

LIMA, Roberto Sarmento. A ideologia na casa de


bonecos. Conhecimento prático literatura, São Paulo:
Escala Educacional, nº 43, p. 32-43, [jul./ago. 2012].
Disciplina 1
MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. São Paulo;
Ática, 2006. (Princípios, 36).

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários.


São Paulo: Cultrix, 1974.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. A criação do texto literário.


In: PERRONE-MOISÉS, Leyla . Flores da escrivaninha:
ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

PLATÃO. Diálogos III: A república. 25. ed. Rio de


Janeiro: Ediouro, 1999.

POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. de Augusto de


Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970.

SCHWARZ, Roberto. Casmurro abre o jogo. Piauí.


São Paulo: Abril, ano 2, dez. 2008, p. 58-59.

SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura.


São Paulo: Martins Fontes, 1976.

SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo:


Ática, 1989. (Princípios, 166).

SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. São


Paulo: Ática, 1986. (Princípios, 46).

SOUZA, Roberto Acízelo de. Gêneros literários. In:


JOBIM, José Luís (Org.). Introdução aos termos literários.
Rio de Janeiro: EdUerj, 1999. p. 9-67.

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética.


Trad. de Celeste Aída Galeão. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1972. (Biblioteca Tempo Universitário, 16).

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Livro de Conteúdo
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. 3. ed.
Trad. de Flávia Nascimento. Rio de Janeiro: Difel, 2007.
(Enfoques. Letras)
Teoria da Literatura 1

UNIDADE 1:
Disciplina 1

PROBLEMATIZAÇÃO DA
LITERATURA: DA TRADIÇÃO
TEÓRICA DOS FILÓSOFOS
GREGOS DA ANTIGUIDADE
AOS ESTUDOS LITERÁRIOS
CONTEMPORÂNEOS

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Teoria da Literatura 1

1.1 O PAPEL DA TEORIA DA LITERATURA: A


PROBLEMATIZAÇÃO DO LITERÁRIO

Disciplina 1
A teoria literária é uma disciplina que, no nível superior
de estudos, busca, antes de tudo, refletir sobre o fato literário,
apontando os caminhos da sua interpretação, o modo como
se devem encarar as mudanças e divergências conceituais
estilísticas no campo da história e das transformações sociais
que interferem na produção e recepção de um texto. É, pois,
uma ciência da literatura. Nasceu com o nítido objetivo de
teorizar e transformar a literatura num objeto de reflexão e
análise.
No caso específico da composição de disciplinas ligadas
aos estudos literários, em um curso universitário como o de
letras, a teoria literária não raro tem tido o papel de introduzir
a temática e a série dos seus problemas, pois o aluno que acaba
de entrar no curso não conhece os fundamentos dessa ciência
nem mesmo saberia dizer ou explanar as principais questões
que envolvem esse saber. O ensino médio não forneceu esses
dados, não teve e não tem como princípio entrar numa seara
tão particular de discussão. Apenas não se deve perder de
vista que a teoria literária não é uma disciplina que veio
facilitar a vida do estudante, fornecendo-lhe “dicas” de como
ler um texto literário e de como compreender transformações
de estilo e de gêneros. Visa, sim, a problematizar a literatura,
e tal atividade e estudo implica uma reflexão aprofundada
das questões que se põem em discussão, sempre permanente
e carente de uma atualização programática.
O que é problematizar? Em linguagem científica,
problematizar é construir um problema onde o senso comum
não vê problema algum. Uma pessoa pode até gostar muito
de ler, apreciar bons romances, poesias, peças de teatro,
crônicas, mas não tem consciência daquilo que o motivou
a gostar. Então, chegou a hora de criar um problema: saber
por que literatura é um tipo de manifestação que existe em
qualquer sociedade do mundo, por que é lida, consumida, por
que sobrevive aos tempos invadidos pela mídia eletroeletrônica,
cada vez mais dominantes no mundo atual, e por que, apesar
disso tudo, continua nos encantando, mesmo quando os

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Teoria da Literatura 1

textos lidos não são contemporâneos ao leitor. Uma epopeia


ou um romance do século XIX podem ainda atrair o público
de hoje. Por quê?
Comecemos por tentar entender o motivo de alguém ler
o mesmo livro várias vezes, ou consecutivas vezes, ou de uma
fase da vida para outra (por exemplo, uma vez na adolescência
e outra, na maturidade). Pode-se fazer essa pergunta a uma
pessoa qualquer. Ela poderá dar como resposta uma de duas
alternativas: (1) “Li de novo o mesmo romance porque já não
me lembrava de como as personagens acabam na história”;
ou (2) “Apesar de me lembrar de tudo o que foi narrado no
livro, li-o novamente porque ele me agrada bastante, sinto
prazer sempre renovado em lê-lo”. Isso acontece com as
outras artes: o cinema, a pintura, a música. Por que ver o
mesmo filme, às vezes numa mesma semana de sua exibição
no cinema? Por que alguém se posta diante de um quadro,
em um museu, e o fica contemplando por bom tempo, sem
desviar o olhar? Por que se ouve a mesma música, repetidas
vezes, na mesma hora? A resposta pode ser simples demais:
“Acho tudo muito bonito”.
Sim, a arte desperta o senso da beleza no leitor, no
ouvinte, no espectador. O que é a beleza e como esse tema
foi tratado ao longo dos tempos? O que há na beleza que
me leva a repetir o gesto de ler, ouvir, olhar, contemplar? O
que há, nesse tipo especial de beleza, que me comove e me
prende? Responder a essas perguntas significa refletir, pensar,
compreender racionalmente um fato que, quando acontece,
parece ser pura emoção. Mas não é. É um conjunto de ações
— afetivas e intelectuais — que coocorrem: sente-se prazer
(é a resposta mais frequente à pergunta), mas o prazer não é
suficiente para explicar o fenômeno. É necessário também
entender, ou buscar entender, o que se vê, o que se lê. O
homem é sempre a conjunção da sua capacidade de pensar e
da sua capacidade de se emocionar.
Talvez o leitor (ou o espectador) não saiba exatamente
o que ocorre com ele quando busca repetir a experiência de
receptor de arte. O que o motiva a ter tal experiência é, de
início, intuir que algo da construção artística o arrebata e
atrai. Para entender esse processo, convém problematizar
a capacidade, no caso, de a literatura envolver o leitor,

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Teoria da Literatura 1

o que implica conhecer o seu funcionamento. É o início,


portanto, da problematização: ver o problema posto onde
o leitor comum, não especializado ainda, não vê nada de
problemático. Convoca-se, assim, a teoria literária, pois é ela Disciplina 1
quem comanda essa reflexão, munida de seus fundamentos,
categorias de análise e instrumentos metodológicos avaliadores
do fato. Pretende tão somente descrever os fenômenos
conhecidos como literários, dando-lhes uma conformação
de objeto, ou seja, transformando-os de simples coisas que
existem aí, como um livro de poemas ou uma peça de teatro,
em objetos, que, para serem entendidos como tais, solicitam
uma configuração teórica que lhes dê existência concreta no
mundo da investigação científica.
Perguntar a alguém que ainda não passou pelo trabalho
científico da investigação literária o que é literatura pode ser
uma pergunta inútil e ociosa, porque as respostas são as mais
variadas e igualmente inconsistentes, não se chegando a lugar
nenhum. Aliás, mesmo no campo da teoria literária, querer
saber o que é literatura pode ainda criar situações embaraçosas.
“O que é literatura” é uma pergunta enganosa e de difícil
compreensão. Primeiro, é preciso saber se essa pergunta
tem o alcance geral de abranger o fato em qualquer época e
lugar ou, segundo, se a pergunta incide sobre determinado
momento histórico e lugar específico. Em geral, atém-se o
teórico, entre nós, ao modo como pensa hoje o Ocidente e
como já pensava em épocas remotas, como aquelas em que
viveram filósofos gregos, entre os séculos V e IV antes de
Cristo. A pergunta tem, pois, de ser contextualizada. Vejamos
algumas respostas possíveis.

Referências
SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. São
Paulo: Ática, 1986. (Princípios, 46).

No primeiro capítulo desse livro, Souza discute a


distinção entre coisa e objeto, ao falar de literatura. Não se
pode passar para o tópico seguinte sem a compreensão
clara dessa distinção

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1.2 EM BUSCA DE UM CONCEITO DE


LITERATURA

Devemos a Aristóteles o início dessa questão. Foi ele


quem na Grécia antiga se preocupou, pela primeira vez, em
sistematizar o estudo da poesia (aliás, por não existir ainda,
naquela época, o nome “literatura” ou algo parecido, o filósofo
usou o termo “poesia” para, entre outras coisas, designar a
atividade literária, ou a instituição da literatura ou, por fim,
a etiqueta geral “literatura”, como a entendemos hoje). Ele
escreveu um livro, a Arte poética, ou, simplificadamente,
conforme as editoras publicam e nomeiam seu livro, Poética,
com a finalidade de sistematizar esse tipo de estudo. O que, em
seu trabalho pioneiro, Aristóteles diz sobre poesia repercute
indefinidamente no tempo, fazendo-se hoje, de algum modo,
as devidas adaptações aos vários pontos de vista, mesmo que
seja para replicar, contrariar e desdizer o filósofo, mas muito
do que ele escreveu faz sentido ainda, sendo, pois, muito útil
e proveitoso conhecer o seu pensamento.

1.2.1. A PALAVRA “POESIA”: SUA ORIGEM E


SIGNIFICADOS

Partamos da ideia de que “Poesia” — antes mesmo de


esse termo vir parar nos domínios do conhecimento literário
e artístico, da maneira como o fez Aristóteles — é a palavra
grega que, em um plano mais geral do conhecimento, é usada
para designar uma ação humana cujo resultado se conhece e
se separa daquele que a produziu. Essa ação é, por exemplo,
aquela mesma que é realizada por um oleiro, o profissional
que faz tijolos e demais objetos de argila ou cerâmica, para
diversos fins. Essa ação é, pois, no vocabulário grego antigo,
chamada de “poesia”. Uma vez pronto tal produto, este se
separa do produtor, ao desfazer-se a ação que originou tal
resultado. Entre os gregos, uma ação humana desse tipo é o
que se pode chamar de “poesia”, do radical grego “poíesis”,
cujo resultado é o “poíema” (as palavras gregas com essa
terminação, “-ema”, significam resultados obtidos de uma

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Teoria da Literatura 1

ação, que é a poesia). É preciso reter esse significado original ¹ É preciso saber que a palavra “ação”,
grego do termo para mais tarde compreender o quanto de em grego, é designada por duas palavras
ação e de construção existe na literatura e que é justamente distintas: poíesis e práxeis. A primeira,
essa dimensão fabricadora ou fabricante que interessa “poesia”, que nos interessa no momento Disciplina 1
efetivamente à compreensão do literário.¹ e que serviu para nomear a atividade
Sobre isso afirma Stalloni, mostrando que a palavra da literatura e o próprio texto que é
“poesia” — originalmente uma “ação que produz um feito durante essa atividade, foi a que
resultado por efeitos da fabricação de um objeto” — migrou ficou no âmbito dos estudos literários.
para o terreno da teorização do literário, passando a designar Entretanto, o nosso tempo esqueceu-
o rótulo geral “literatura” assim como o texto poético ou se de sua origem grega, e “poesia” —
literário: que era uma ação que originava um
produto, depois que a ação terminava
A palavra poesia tendeu muito rapidamente a —não tem mais esse sentido, perdendo
especializar-se numa acepção literária, mas pode inclusive o seu caráter de ação,
também se aplicar a qualquer tipo de fabricação ou realização, execução. Hoje em dia,
de construção concreta (navios, por exemplo) ou ao evocar o termo “poesia”, ninguém
abstrata (um raciocínio). Em todo caso, segundo mais vai pensar que, na Antiguidade,
o hábito, ela é empregada como um epíteto que o termo implicava a ideia de trabalho.
indica sua caracterização específica em casa caso; Muito pelo contrário: hoje não se
assim, em literatura, poesia trágica, poesia épica, pensa mais que o poeta é aquele que
poesia ditirâmbica etc. (STALLONI, 2007, p. 132) desenvolve uma ação exterior, uma
forma de trabalho. Enfim, perdeu-se o
Quando Aristóteles, à falta de melhor termo para designar, sentido originário do termo.
de modo geral, as espécies ditas literárias conhecidas da sua
época — a epopeia, a tragédia, a comédia e o ditirambo —,
se serviu do termo “poesia” (que, como vimos, se refere a uma
ação humana estruturante de um ser que se objetiva depois
de realizada a ação: o tijolo que sai da ação de manipular a
argila, dando-lhe uma forma e um sentido), a palavra passou
a circular como hoje funciona o rótulo “literatura”. Falar de
poesia, na época de Aristóteles e Platão, era falar também
da atividade literária. Mas, por outro lado, no terreno da
evolução semântica do termo, poesia também significava
“texto poético”, aquele que tenho debaixo dos olhos e que eu
leio, como é, aliás, também hoje em dia, igualmente. Assim,
a palavra “poesia” tinha três sentidos bem distintos: antes
de tudo, era uma modalidade de ação humana (seu sentido,
digamos, original); era sinônimo de literatura, vista como
atividade e como rótulo geral de um acervo de textos ditos
literários; e era, também, para completar, um texto escrito

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Teoria da Literatura 1

em versos. Tinha três sentidos a palavra, mas de algum modo


eles se relacionavam entre eles mesmos.

1.2.2. POESIA É DISCURSO

Poesia, se entendida como texto, não quer dizer, no caso


de este ser escrito em versos, que ele obrigatoriamente passe
a ser entendido como literário ou poético só por causa dos
versos. Aliás, fazer versos não faz de ninguém poeta, como
disse Aristóteles em sua Poética. Poesia, para ser valorizada
como arte da palavra, arte literária, deveria, antes, revelar a
sua capacidade estruturante, sua operação formal, seu valor
construtor, independentemente dos conteúdos que venha
a veicular e dos versos em que venha a se apresentar. A
literatura tem uma camada discursiva que vai além de ser
uma mera informante de conteúdos, embora essa camada
informacional não seja irrelevante. Afinal, precisamos saber
o que diz um poema, que conteúdo ele transmite e o que
entendemos quando o lemos.
No senso comum prepondera a noção de que, ao ler um
poema ou um romance, o leitor tem acesso a uma ideia, um
conteúdo que foi desenvolvido no texto, não se levando em
conta que há um trabalho de linguagem aí que não pode ser
ignorado, mas seriamente compreendido e desfrutado. Ou
seja, ao ler, o leitor se informa, aprende, conhece, e isso é
verdade, sem dúvida. Mas não basta para uma boa e eficiente
apreciação desse texto. Porque, em se tratando de discurso
literário, é mais do que isso que deve ser considerado.
Literatura é feita com palavras, imagens, recursos de estilo,
figuras, linguagem que se elabora com o propósito de se fazer
notar como linguagem por meio de todos os artifícios de que
for capaz. E nenhum artifício é casual ou surge à toa, mas
tem sua razão de ser no texto, senão não é um bom texto
literário, caso o autor não tenha consciência dos elementos
que manipula ao escrever, ao compor.
Como ilustração disso, reproduzo aqui um soneto de
Cláudio Manuel da Costa, poeta mineiro do século XVIII,
do Arcadismo brasileiro, que depois comento:

Entre este álamo, ó Lise, e essa corrente,


Que agora estão meus olhos contemplando,

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Teoria da Literatura 1

Parece que hoje o céu me vem pintando


A mágoa triste, que meu peito sente.

Firmeza a nenhum deles se consente Disciplina 1


Ao doce respirar do vento brando;
O tronco a cada instante meneando,
A fonte nunca firme, ou permanente.

Na líquida porção, na vegetante


Cópia daquelas ramas se figura
Outro rosto, outra imagem semelhante:

Quem não sabe, que a tua formosura


Sempre móvel está, sempre inconstante,
Nunca fixa se viu, nunca segura?

(Cláudio Manuel da Costa, Soneto LXXIX, Obras


poéticas, 1768)

Num reconhecimento banal do poema, o que vemos aí, ² No desenvolvimento da teoria


bem superficialmente, é o eu lírico² constatando que falta literária, chama-se de “eu lírico” a voz
segurança ao mundo (“Firmeza a nenhum deles se consente”), que fala no poema lírico. O eu, apesar
pois é dado como certo que o tronco do álamo, ao menear a de parecer, não é propriamente uma
cada instante, dá a impressão de que vai se quebrar ao vento, pessoa, um ser humano, mas uma
ainda que este seja apenas um “vento brando”, enquanto voz. Às vezes parece, como o próprio
o córrego, que, em igual proporção, partilha com a árvore poeta, ser uma pessoa de carne e osso
essa paisagem natural, parece não ter nunca firmes as suas que está falando; às vezes nem isso,
águas (“A fonte nunca firme”). É aparentemente a ideia de sem identificar-se com nada nem
firmeza que está sendo apresentada, ou, melhor dizendo, a ninguém dentro do poema. Uma voz,
falta de firmeza das coisas neste mundo. Em outras palavras: simplesmente. Também não se deve
ninguém pode se sentir seguro em um espaço em que a confundir a voz que fala no poema
existência é percebida “sempre móvel”, “sempre inconstante”, com o pensamento do próprio autor, o
“nunca fixa se viu”. Numa interpretação rasteira, é isso que o poeta, ser histórico, já que o eu lírico
poema diz. E, se diz só isso, por que então ele é literário? Pois é tão somente uma voz ficcional. Não
um artigo de jornal ou uma reportagem de televisão pode raro o que diz o eu lírico pode estar
chegar às mesmas conclusões e, às vezes, com mais poder de bem distante do que pensa e diz o
convencimento. poeta, o autor do poema.
Desse modo, o texto literário parece que é feito de
camadas. Na camada superior, visível a olho nu, o que se
enxerga é isso: a inconstância das coisas. Nada deixa de ser
afetado pela instabilidade e pela falta de firmeza. A beleza da

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 23


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Teoria da Literatura 1

pastora Lise certamente se alterará com o tempo. O poeta já


prevê tal ação ao reconhecer, no primeiro terceto, que “na
líquida porção” do riacho, onde se pode refletir o semblante
da amada, “outro rosto, outra imagem semelhante se figura”.
Ninguém pode dizer, em sã consciência, que o poeta não
esteja afirmando tais coisas. É isso mesmo que ele diz, sem
dúvida.
Porém — e aí vai o exame de camadas mais profundas e
verticalizantes desse poema de Cláudio Manuel da Costa —,
o eu lírico, desdobrando a linguagem, desfazendo as dobras
que ocultam o que se coloca por trás delas, usa um termo
de grande importância para certa compreensão do literário,
desde Aristóteles e Platão: “cópia” (“na vegetante cópia
daquelas ramas se figura outro rosto”). Esses dois filósofos
disseram, cada um de seu jeito, que a arte era sempre um
caso de imitação. Imitação de quê? Aristóteles disse (depois
vamos ver isso melhor) que se trata de imitação de uma ação
humana, que pode ser boa ou má. Cláudio, nesse soneto, se
serve dessa tradição teórica — diz com toda a clareza possível
que o córrego reflete as ramagens das árvores em suas águas —,
mas trata logo de dizer também que a cópia nunca é perfeita,
porque as coisas são móveis e essa mobilidade, produtora
do sentimento de instabilidade, impede a fixação de um
modelo que tenha eternidade suficiente para ser copiada e
lembrada por sua perfeição. Em outras palavras: o mundo
é movente, não é fixo. E, assim, tudo se transforma. Não
há cópias perfeitas. Aliás, “perfeito” quer dizer “acabado”,
“pronto”. Algo que se move bastante parece nunca estar
pronto e acabado, assim como as águas da fonte, sempre
em movimento. Os elementos da paisagem refletem-se no
lago, por um momento e por outro, enquanto as águas em
movimento, fazendo que nada seja fixo, tiram a possibilidade
de copiar tais elementos. Daí decorre a sensação de que os
seres podem ser semelhantes, nunca os mesmos.
Assim — lendo o poema em outro nível, sabendo que
em literatura há muita ambiguidade no dizer e que, portanto,
nada pode ser levado ao pé da letra —, não estaria aí Cláudio
Manuel da Costa tematizando a própria operação do texto,
dizendo isso de modo figurado, metafórico? Não estaria ele
dizendo que o texto literário é uma construção na qual as

24 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

palavras rejeitam ser mera ilustração da realidade, rebelando-


se contra a harmonia e fixidez do real, uma vez que tudo
que existe — mundo e palavras — termina por subverter-
se e transformar-se sempre em outro ser? E que, portanto, Disciplina 1
reconhecido o princípio de que o tempo altera a feição das
coisas, a noção de cópia, para tentar explicar o fazer da arte,
não estaria, já na sua base, comprometida?
O poeta mineiro, independentemente do estilo que
abraçou, o Arcadismo, e dos fundamentos neoclássicos que
presidem a esse estilo — proporção, serenidade, equilíbrio
—, defende a ideia de que o trabalho de linguagem e com
a linguagem não pode jamais ser considerado cópia fiel das
coisas que existem em torno do homem. A literatura inquieta
o homem, e começa por inquietá-lo ao revelar que entre a
realidade e a palavra há uma espécie de hiato, um fosso,
um obstáculo. A literatura não age em sentido favorável
à realidade; quase sempre a subverte e a transfigura, cria
problemas de percepção. Parece, em outras palavras, que é
isso mesmo que o soneto de Cláudio Manuel da Costa está
nos dizendo.
Foi assim que Aristóteles pensou a poesia, apesar de
dizerem sempre que ele insistiu na noção de imitação. O
termo grego para isso é “mimese”, termo recorrente em sua
Poética, termo também utilizado por Platão para designar a
poesia. É preciso, então, entrar na sua obra e ver o que o
filósofo disse a respeito dessa categoria fundante do literário.
O que é mimese? Imitação ou transfiguração?

Referências
LIMA, Roberto Sarmento. As tentações do espelho.
Conhecimento prático literatura, São Paulo: Escala
Educacional, nº 38, p. 10-19, [set./out. 2011].

Vendo a figura do espelho como recorrente nos textos


poéticos, dos mais antigos aos mais recentes, como forma
de problematizar um conceito de literatura, Lima estuda essa
noção e denuncia suas implicações com a teoria da mimese
de Aristóteles, apresentando os limites dessa teorização.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 25


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Teoria da Literatura 1

a
Atividade de Aprendizagem
1. Leia o conto “O espelho”, de Machado de Assis e diga
em que sentido se pode dizer que está tematizado nesse texto
o conceito de literatura como imitação do real. Comente e
comprove.

2. Machado de Assis defende o primado da realidade


copiada sobre o texto literário que se elabora? Tendo em
vista que esse conto faz parte de sua produção realista de
maturidade intelectual, pode-se dizer que, aí, o escritor
carioca defende esse princípio de composição? Explique e
justifique com base em sequências narrativas extraídas do
conto analisado.

1.2.3. POESIA É CONSTRUÇÃO

Como se pode já perceber, estamos problematizando


a literatura. Ou se acha que fora do circuito de um curso
universitário alguém perceberia a literatura da maneira como
estamos mostrando aqui? Será que alguém, dispensando-se de
fazer uma reflexão teórica sobre o problema poesia, pensaria
realmente em falar de um texto poético alertando para o
fato de que ele tem camadas de dizer e, correlativamente,
é passível de várias interpretações? Não parece assim mais
lógico que o leitor comum se aferre a uma modalidade de
leitura, achando que o que se diz na superfície do texto é
a sua verdade, satisfazendo-se com a superficialidade desse
tipo de leitura? De início, é preciso e imperativo desprezar
que a literatura tenha apenas um nível de leitura. Não, não.
Há vários níveis e caminhos para sua apreensão, que, diga-se
logo, não se esgota jamais. Entretanto, há uma camada de
escrita, especialmente uma, que diz que se deve procurar no
texto aquela que venha na direção de sua autorreferência. Ou
seja, o texto literário termina por dizer, na maior parte das
vezes muito sutilmente, que ele mesmo é objeto construído
e que é essa construção que tem de ser, acima de tudo,
apreciada e valorizada.

26 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

1.2.3.1. OS MEIOS E OS OBJETOS DA POESIA

O discurso da poesia não apenas serve como instrumento


privilegiado para informar alguma coisa, mas também — Disciplina 1
sendo antes de tudo um discurso — é um discurso que tem a
vantagem de referir-se a si mesmo, evidenciando os seus meios
e recursos de expressão. É isso que chama atenção do leitor
em primeiro lugar, a linguagem utilizada pelo escritor. A
primeira coisa a que se referiu Aristóteles, ao falar de poesia,
foram os meios, como vamos ver.
A construção de um texto se revela na leitura ao se
exibirem e se mostrarem relevantes os meios de que ele se
serve para realizar-se. Aristóteles, no primeiro capítulo de
sua Poética, chama atenção para os meios da poesia. A poesia,
como qualquer forma de arte, imita. Mas elas imitam “por
meios diferentes”, pois cada arte tem seus próprios recursos
de realização. Aristóteles destaca as “cores e traços” (o que dá
para pensar que a poesia pode tomar de empréstimo à arte
da pintura seus meios), a “voz” (um meio que pertence à arte
do canto, numa época em que a poesia era declamada ou
cantada), o “ritmo” (próprio da arte da dança), a “palavra”
(meio de uso geral mas que só na literatura encontra lugar
específico) e a “melodia” (meio da arte da música). Esses
meios estão na poesia, ora combinados, ora separados, afirma
Aristóteles.
No soneto que há pouco analisei, o de Cláudio Manuel
da Costa, aparecem nitidamente mencionados os meios das
cores e traços, peculiares à pintura: “Entre este álamo, ó Lise,
e essa corrente, / Que agora estão meus olhos contemplando,
/ Parece que hoje o céu me vem pintando / A mágoa triste que
o meu peito sente”. O eu lírico diz que o céu pinta, mesmo
que seja de forma metafórica, a “mágoa triste” e que o efeito
dessa pintura advém da contemplação que os olhos fazem do
álamo e da corrente que há nessa paisagem. Haveria aí, pois,
uma harmonia entre as cores do ambiente e a emoção que
se diz ter, numa conjunção de sujeito (o ser que observa) e
objeto (o ser observado). A subjetividade e a objetividade se
mesclam, se misturam, ou uma infunde à outra seu caráter,
sua força imagética.

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Teoria da Literatura 1

O meio da “voz” é indispensável para quem declama. A


inflexão certa, a tonalidade vocal e a vibração expressiva das
cordas do aparelho fonador contribuem para dar beleza ao
poema, quando lido em voz alta ou cantado ao som de um
instrumento musical, por exemplo. Não se pode declamar
ou cantar um poema de qualquer jeito; há de se respeitar
a atmosfera da cena descrita, é o que sugere Aristóteles.
Tons alegres em um poema alegre e tons tristes e graves
em um poema que desperte a melancolia, a decepção, o
arrependimento, a devoção, a autocontemplação, entre
outros estados emocionais similares.
O “ritmo” é dado pela necessidade de acentuar este ou
aquele elemento. Como na dança, em que os movimentos do
corpo servem para revelar o ânimo ou a depressão, na poesia
isso também conta muito, associadamente à “melodia”,
elemento constituinte da música. O texto literário, ao
servir-se desses meios — traços, cores, voz, ritmo, melodia
—, guiados pelo meio supremo, que é a palavra, imita um
sentimento e impressiona o leitor, ou o ouvinte, para que
este sinta o que se diz, na medida justa da emoção que se
pretende despertar durante a leitura, durante o ato de ler, ou
na audição do poema.
É nesse sentido que Aristóteles chama atenção para a
importância dos meios da poesia. Com os meios se constrói o
poema. Como na dança, em que “os bailarinos, por meio de
gestos ritmados, imitam caracteres, emoções, ações”, também
na poesia isso ocorre. Note-se que Aristóteles afirma que a
arte imita “caracteres”, ou seja, temperamentos, atitudes,
comportamentos humanos; e que também imita “emoções”,
ou seja, sentimentos; e, por fim, a poesia também imita ações.
As ações, em grego, nesse caso, são práxeis. Ao contrário da
poíesis, outro nome dado à ação, que, como já mostrei, pode
ser, em sua origem grega, sinônimo de “poesia”, práxeis não
é uma ação cujo resultado se separe daquele que agiu, mas
se realiza internamente nele, influindo no caráter moral —
no caso, Aristóteles estava pensando particularmente na
tragédia, foco de sua Poética — e nas reações psicológicas
das personagens. Trata-se, pois, de uma ação interna à mente
e ao pensamento da personagem, não se confundindo com
uma ação que se objetiva em um produto novo, separado

28 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

do produtor (este, sim, é o sentido da ação como poíesis,


fato que já expliquei aqui, na seção “Procurando desvendar
a literatura”). Desse modo, há, entre os gregos, uma ação
observável, visível, aquela que faz brotar um ser novo que Disciplina 1
se visualiza bem (é a poíesis, “poesia”), e uma ação que não
se deixa ver em sua realização nem faz brotar um ser novo
distinto da pessoa que realiza tal ação (é a práxeis, “práxis”).
Os meios usados pelo poeta — espécie de fabricante que
manipula instrumentos de fazer algo, por isso é que ele é
chamado de “poeta” — têm de ser coerentes com a matéria
tratada no texto. Questões de ritmo e sons, cores e tons são
reclamados pelo assunto de que se ocupa o texto. É assim
que o filósofo se expressa para dizer que um tema tem de
ter sua conformação estética: os meios utilizados, que são
meios de expressão estética acima de tudo, ajustam-se ao que
se apresenta. Diz Aristóteles a esse respeito, no começo do
capítulo VI da Poética:

É a tragédia a representação duma ação grave,


de alguma extensão e completa, em linguagem
exornada, cada parte com o seu atavio adequado
[...] Chamo linguagem exornada a que tem ritmo,
melodia e canto; e atavio adequado, o serem umas
partes executadas como simples metrificação e as
outras, cantadas. (ARISTÓTELES, 1997, p. 24)

Entre as ações, os caracteres e as paixões ou sentimentos,


Aristóteles salienta o papel primacial das ações, pelas quais o
homem passa a ter determinados caracteres, e não o contrário.
Como se vê, dos meios evolui-se aos poucos ao que ele chama
de “objetos”, afirmando que, na tragédia e na epopeia, a ação
imitada leva ao que há de superior no homem, enquanto na
comédia ao que há de pior. Homens melhores do que nós e
homens piores do que nós são, respectivamente, objeto da
epopeia e da tragédia, por um lado, e objeto da comédia, por
outro.
Aristóteles, portanto, não diz que a arte imita a natureza
ou a realidade, como se diz vulgarmente por aí, mas que
imita ações humanas que geram caracteres e sentimentos.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 29


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Teoria da Literatura 1

Referências
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética
clássica. Trad. de Jaime Bruna. 7. ed. São Paulo: Cultrix,
1977.

Devem-se ler especialmente os capítulos I e II desse


livro, que tratam respectivamente dos meios e dos objetos da
poesia, comentados nesta seção.

COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mímese


e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992. (Princípios, 217).

Essa autora interpreta os capítulos da Poética. Sobre os


meios e os objetos da poesia vá diretamente ao capítulo 2,
lendo as duas seções iniciais, “Abertura do texto”e “Critérios
distintivos da mimese”.

1.2.3.2. OS MODOS DA POESIA

Reservei para uma seção especial os “modos” da poesia,


que, na Poética, aparecem explicados no capítulo III. Por
que separei? Porque, ao que tudo indica, os modos, surgidos
depois dos “meios” e dos “objetos” da poesia — se o método
aristotélico, anunciado no primeiro parágrafo do livro,
estiver mesmo correto, ou seja, se os assuntos tratados
estiverem seguindo a ordem natural que vai das discussões
mais simples às mais complexas, “como manda a natureza”
—, têm uma importância estética considerável. O que são
os “modos”, segundo Aristóteles? Os modos são os modos
como o discurso é produzido ou construído: se pela boca do
próprio poeta ou se pela boca das personagens.
O discurso produzido pelo próprio poeta — aquilo que
Aristóteles chama de modo narrativo (já dá para perceber que
o termo “narrativo” não tem as mesmas implicações que o
termo tem hoje em dia) — ocorre inteiramente na espécie
poética denominada então ditirambo, uma modalidade

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Teoria da Literatura 1

de poesia de louvor à natureza e à colheita, declamada em


situações como a entrada da primavera. Supostamente, o
ditirambo teria dado origem à modalidade poética definida
como poema lírico, poema de caráter individual, que canta Disciplina 1
as vontades e as emoções particulares de uma voz dita
privilegiada, a do eu lírico, que do começo ao fim do poema
toma conta dele inteiro (o que não impede o surgimento
de poemas líricos dialogados, mas isso não é a norma). Esse
“modo narrativo”, além de existir no ditirambo, existe também
em parte na epopeia, pois na epopeia fala o narrador e falam
também as personagens, em dois tipos distintos de discurso.
Essa divisão discursiva corresponde por aproximação ao que
se classifica atualmente como “discurso direto” (discurso das
personagens) e “discurso indireto” (discurso do narrador que
interpreta o discurso da personagem).
Vejamos, pois, um exemplo de “modo narrativo”,
segundo a definição de Aristóteles, em um poema lírico:

Eu não tinha este rosto de hoje,


Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Esta é a primeira estrofe do poema “Retrato”, de Cecília


Meireles. Pela teoria de Aristóteles, o ditirambo deveria
ter a mesma apresentação discursiva: alguém — que hoje
chamamos de eu lírico (e que não se deve confundir jamais
com a pessoa de Cecília Meireles, seria um erro fatal tal
consideração), e que o filósofo grego chamava apenas de
“poeta” (sem esclarecer exatamente se essa voz vinha do poeta,
homem histórico, ou se era uma voz ficcional, tal como a
teoria literária moderna entende) — assume completamente
o que diz. Fala de si e para si, em seu próprio nome. Pode falar
de outra coisa, evidentemente, pode falar de algo, de outro ser
que não ele próprio; mas tem de assumir que é dono daquela
voz e dos comentários que desenvolve, responsabilizando-se
pelos argumentos e pela emoção que eventualmente pode
chegar a despertar na leitura.
Na epopeia, ocorreria o cruzamento de duas abordagens
vocais: fala o poeta (que é o narrador da epopeia, contando

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 31


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Teoria da Literatura 1

os fatos extraordinários que tem de narrar, como norma


do poema épico) e falam também as personagens. Eis um
exemplo tirado da Odisseia, de Homero:
Depois de terem comido e bebido à vontade,
Ulisses exclamou: “Demódocos, coloco-te acima
de todos os homens mortais! Deves ter aprendido
com a Musa, filha de Zeus, ou com Apolo, seu
filho, pois contas muito bem o destino dos aqueus,
tudo o que eles fizeram e sofreram e as dificuldades
que enfrentaram, como se ali tivesses estado, ou
ouvido de alguém que esteve. Agora, muda de tom
e conta o ardil do cavalo de madeira, como Epeios
o fez com a ajuda de Ateneia, e Ulisses o introduziu
dentro da cidadela, por meio de um estratagema,
cheio dos homens que tomaram Ílion. Depois, se
contares bem a história, declararei sem demora
a todo mundo que Zeus foi generoso contigo e
inspirou teu canto”.

Como se pode perceber no fragmento acima tirado


de Homero, fala o narrador (“Depois de terem comido e
bebido à vontade, Ulisses exclamou”) e fala a personagem
(“Demódocos, coloco-te acima de todos os homens
mortais!”). A fala da personagem Ulisses é formalmente
indicada no texto com o auxílio das aspas, que abrem o
discurso (“Demódocos, coloco-te...) e fecham encerrando
a fala dessa personagem (“...Zeus foi generoso contigo e
inspirou teu canto”). No romance, o sistema é o mesmo, e,
em geral, a fala das personagens é aberta por um travessão,
mas pode ser que se usem também para isso as aspas, como
é o que está nesse trecho da Odisseia. O resto, excluída a
fala da personagem, é a fala do narrador, que, nesse caso,
não precisa de aspas para ser identificado. Na epopeia, então,
misturam-se os dois modos discursivos: o do narrador e o da
personagem. É uma forma mista, portanto.
Esse modo representativo da fala da personagem é o modo
dramático, em oposição ao modo narrativo. O modo dramático
é exclusivo na tragédia e na comédia, que são representações
teatrais. No texto do teatro, só fala a personagem, dando-
se aí o modo dramático, sem que o poeta (ou o narrador,

32 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

na terminologia de Aristóteles) intervenha. Os atores, no


palco, falam por conta própria, sem precisar que apareça um
narrador para lhes dizer “Agora fala Fulano, depois Cicrano”;
no texto escrito, eles são indicados pelo nome que têm na Disciplina 1
peça. Vejamos, num breve exemplo tirado de Hamlet, de
Shakespeare, o protagonista e a rainha conversando, na Cena
IV do Ato III. Para tal, o poeta não intervém, não aparece,
nunca, deixando apenas as personagens falar:

Hamlet: Não estás vendo nada ali?


Rainha: Absolutamente nada, mas tudo o que há
eu vejo

No texto escrito, o leitor sabe quem vai falar, porque


isso é anunciado com clareza. Os nomes das personagens
aparecem antes da própria fala, como se pode verificar no
exemplo dado acima. Esse é o modo dramático, modo em
que as personagens parecem pular vivas do texto, sem que o
poeta faça alguma interferência.
É interessante registrar que os critérios estabelecidos
por Aristóteles para mostrar o funcionamento das espécies
literárias e lhes atribuir um valor crítico variam conforme o
próprio critério de que se vale em dado momento da análise.
O primeiro critério estudado, os meios, é o mais simples
e o mais geral. Os meios, formados pelos instrumentos de
que se vale o poeta para compor o poema — linguagem,
ritmo, cores, traços, voz —, podem existir em qualquer
espécie de poema, e, portanto, eles não distinguem de forma
decisiva uma epopeia de uma tragédia, ou um ditirambo de
uma comédia. Pois linguagem, colorido e ritmo existem em
qualquer poema, de qualquer espécie ou gênero.
A distinção começa de fato no critério “objetos”, quando
Aristóteles separa, de um lado, formando um só bloco, apesar
das diferenças formais, a epopeia e a tragédia, e, de outro, a
comédia. Nesse momento, nada declara sobre o ditirambo.
O que uniria a epopeia e a tragédia? E por que, sozinha,
ficou a comédia nessa distinção? É que a epopeia e a tragédia
são gêneros nobres, pois imitam ações de homens superiores,
homens melhores do que nós. A finalidade é comover, fazer o
espectador e o leitor purgar suas emoções, conduzi-los a uma

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Teoria da Literatura 1

reflexão séria sobre a própria existência, torná-los melhores


com o auxílio da arte. Já na comédia, em que predominam
o riso e o deboche, o homem é ridicularizado, não podendo
disso sair nenhum exemplo louvável ou satisfatório. O objeto
da comédia são os homens piores do que nós, homens risíveis,
cujo comportamento pode ser reprovado do ponto de vista
social.
Já quanto ao critério “modos”, entretanto, o que estava
separado termina por se unir. A comédia, que é o contrário
da tragédia no tom e nas finalidades, agora se coloca ao lado
desta, formando um único bloco. Pois tanto na comédia
quanto na tragédia o modo é exclusivamente dramático,
pelo qual só falam as personagens, sem a interferência do
narrador ou poeta, em discurso direto. Note-se que, se pelo
critério “objetos” a comédia e a tragédia são antípodas, pelo
critério “modos” se igualam essas duas formas literárias, pois
são ambas representações teatrais, nas quais as personagens
falam diretamente, sem a mediação do poeta. Já a epopeia
é uma forma de modo misto, pois, conforme já vimos, nela
tanto fala o narrador em seu próprio nome (modo narrativo)
quanto falam as personagens (modo dramático).
Esse estudo dos modos discursivos, feito por Aristóteles,
classificando as espécies literárias conhecidas na época dele,
sugeriu uma teoria dos gêneros, a primeira na Antiguidade
clássica. Se hoje se fala com mais clareza em gênero lírico,
gênero narrativo e gênero dramático, isso se deve à tripartição
das espécies literárias, que se distribuem em três modos:
“modo narrativo”, onde ficam abrigados o ditirambo e parte
da epopeia; “modo dramático”, que compreende a tragédia
e a comédia, e ainda parte da epopeia; e, por fim, “modo
misto”, caso peculiar da epopeia.
Convém, no entanto, salientar que o termo “narrativo”,
na época de Aristóteles, não tem o mesmo sentido que tem
hoje. “Narrativo”, hoje, é exclusividade do gênero narrativo,
sua propriedade fundamental — efeito discursivo proveniente
do ato de contar uma história, narrá-la para ouvintes ou
leitores —, enquanto, na Grécia antiga, significava uso da
própria voz para falar em seu próprio nome, sem dividir
a tarefa de falar com ninguém mais, o que seria um traço

34 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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do ditirambo, espécie que se transformaria na poesia lírica,


como é considerada atualmente.
Vejamos como essa explicação se visualiza no quadro a
seguir: Disciplina 1

MEIOS OBJETOS MODOS

epopeia e tragédia 1. dramático:


(de um lado) tragédia e comédia
epopeia e em parte a
tragédia X epopeia
comédia
ditirambo comédia (de outro 2.narrativo:
lado) ditirambo e em
parte a epopeia

Pelos modos,
Os meios não a tragédia e a
distinguem as Os objetos comédia, distintos
espécies poéticas, nobres igualam pelos objetos, se
pois todas podem epopeia e tragédia igualam (só em
se servir, ora (representam parte a epopeia tem
combinados, ora homens modo dramático).
separados, dos superiores), e
mesmos meios: cor, objetos vulgares O ditirambo fica
traço, voz, palavra, caracterizam à parte (a epopeia
ritmo, canto apenas a comédia também se serve
desse modo)

Esse terceiro critério (depois dos “meios” e dos “objetos”)


parece ser o mais maduro da explanação de Aristóteles. Os
modos referem-se não a temas, mas a modos de funcionamento
do discurso: quem fala no poema. E por que fala no poema.
A artisticidade estaria na melhor representação dessas falas,
no fingimento e na imitação artística. O poeta fala por si
próprio no modo narrativo, mas cede sua voz às personagens
quando estas têm de falar, imitando o modo como elas
são. Isso é a porta aberta para a consideração do principal
argumento teórico-crítico de Aristóteles, o da mimese, que

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 35


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Teoria da Literatura 1

ele irá explorar no capítulo IV da Poética e que passaremos


agora a examinar.

Referências
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética
clássica. Trad. de Jaime Bruna. 7. ed. São Paulo: Cultrix,
1977.

Deve-se continuar a ler esse livro, agora no capítulo III,


que trata dos modos da poesia.

COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles:


mímese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992.
(Princípios, 217).

Sobre os modos, busque o mesmo capítulo e a mesma


seção sugeridos para leitura no tópico anterior deste material.

1.2.4.POESIA É MIMESE

Tanto Platão, professor de Aristóteles, quanto o discípulo


trataram da noção de mimese em seus escritos. Platão não
escreveu uma obra específica sobre a poesia, mas, aqui e ali,
em alguns de seus diálogos filosóficos, aborda o problema. Já
Aristóteles escreveu uma obra para tratar exatamente disso: a
Poética. Ambos, professor e aluno, olharam para a poesia de
modo diverso, apesar de usarem às vezes os mesmos termos
classificatórios. Platão, como veremos mais adiante, usou
um critério moralista e filosófico para reconhecer o estado
da poesia, e Aristóteles dissecou-a cientificamente, anotando
seus passos, sua natureza, observando a constituição imanente
da poesia, vista como técnica discursiva. Aristóteles, assim,
diferenciando-se do seu mestre, procurou não levar tanto em
conta as restrições de ordem moral ou intelectiva, que foram o
foco da análise feita por Platão em suas considerações esparsas
sobre a poesia. Ao contrário, Aristóteles elevou e dignificou

36 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

a poesia, enquanto Platão a condenou, especialmente nos


Livros III e X de A república, de que falarei mais adiante.
No capítulo IV da Poética, o filósofo começa por dizer
quais as prováveis fontes da poesia. São duas, diz ele: “Imitar Disciplina 1
é natural ao homem desde a infância — e nisso difere dos
outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir
os primeiros conhecimentos”. Essa primeira causa, que
é biológica, é também cultural, é social, tudo junto. Diz
Aristóteles que, desde o início da sua vida, a criança imita
algo que vê, como forma de identificar-se com a realidade
que o cerca, pois é assim que começa a aprender, a tirar
as suas primeiras lições. E o faz melhor do que os outros
animais porque usa a consciência. A segunda causa, que é
também natural, é o prazer que a imitação provoca. Assim,
Aristóteles usa um argumento biológico, bem próprio a
alguém que, como ele, era filho de um naturalista (médico,
naquela época): um argumento que une o aspecto instintivo
da natureza humana ao cognoscitivo (aprender é uma ação
natural e própria dos seres humanos); e usa também um
argumento afetivo, o prazer e a tendência que o homem tem
para repetir experiências prazerosas.

1.2.4.1. REPRESENTAÇÃO E “IMITAÇÃO” DO REAL

E se a poesia imitar o lado horrível da existência? A morte


e a dor, por exemplo, como vemos em tantas obras de arte? O
prazer diminuiria? Não, responde Aristóteles, pois “das coisas
cuja visão é penosa temos prazer em contemplar a imagem
quanto mais perfeita”. A perfeição — que devemos entender
simplesmente como apuro de elaboração — é do domínio
da arte, modificando assim o original, melhorando-o,
aperfeiçoando-o. O acabamento artístico confere à realidade
imitada uma beleza que talvez inexista na própria realidade
de onde partiu a observação do artista. Isso já revela o quanto
Aristóteles já se afastou da ideia de mimese como imitação
fiel. A poesia, como a pintura e a escultura, não é reprodução,
mas trabalho humano que impõe a marca civilizatória ao
que possa haver de mais horrendo e selvagem no mundo. A
seca do Nordeste, por exemplo, é um quadro desolador, traz
sofrimento para quem vive nela, pois há falta de água e de

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Teoria da Literatura 1

conforto para os mais necessitados. Pessoas e animais podem


morrer à míngua numa situação como essa, mas Graciliano
Ramos, ao tratar disso em um de seus romances, Vidas secas,
criou um quadro de beleza, como se pode conferir no excerto
abaixo:

A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso


salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O
voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor
de bichos moribundos.

O narrador, no dizer de Aristóteles, fala em seu próprio


nome, não atribui a ninguém a responsabilidade de falar
como só ele falou. Temos aí o modo narrativo. Mas, ao falar
como falou, expressando-se como se expressou, o narrador
mimetiza a seu modo a percepção que tem do sertão e do
fenômeno da seca. Primeiro, “a catinga estendia-se”. A seleção
lexical (“estendia-se”) favorece a visão de uma imagem que,
em tudo, lembra logo a de um manto ou de um tapete que
se estende, suave e quase esvoaçante, sobre algo que precisa
ser encoberto. A presença de tal verbo contribui muito para
tirar a dureza dos pedregulhos e acalmar a areia quente
do solo seco, pois estender-se parece um ato preguiçoso ou
indolente ao mesmo tempo que parece querer dizer “macio”.
A paisagem passa a ter a maciez de um vasto lençol, liso e
enorme.
Já o vermelho da terra árida é “indeciso”, não se oferece
à vista do observador por igual, porque, aqui e ali, “manchas
brancas” como que salpicam sobre o manto, lembrando,
nesse ato, o faiscar de estrelas no céu, com a diferença de
que a cor vermelha em nada lembra o firmamento, mas é
como se fosse, a não ser que se tratasse de um pôr do sol.
A beleza do cenário advém de cada palavra selecionada,
desse desdobramento de sugestões imagéticas, de relações
semânticas que podem desdobrar-se mais ainda, como num
grande leque. Mas nem por isso o narrador perde a noção
daquilo que oprime o homem encontrado na mesma situação
adversa dos retirantes do romance Vidas secas, considerada
obra-prima do escritor Graciliano Ramos. Pois, mais adiante,
o narrador afirma que essas manchas brancas são, nada mais,

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Teoria da Literatura 1

nada menos, “ossadas”. Isso, depois do amaciamento e do


encantamento produzido pelas estrelas faiscando no chão,
devolve ao leitor a experiência da dureza, da morte, do
sacrifício: o termo “ossadas” serve para lembrar novamente, e Disciplina 1
irreversivelmente, que se está em terreno duro e visto como
leito de morte por falta absoluta de água. O leitor, assim,
não se perde, volta a se encontrar com a realidade; nem é
função da literatura fazer o leitor se perder ou desviar-se
do relato. A consciência da realidade não se dissolve com a
beleza da linguagem literária. Se “estendia-se” e “manchas
brancas” são expressões que criam uma impressão de ilusão,
o “vermelho” e a “ossada”, contrabalançando, remetem ao
real mais impactante da cena descrita.
A literatura é, antes de tudo, como afirmei na seção 2.2.
deste material, discurso; mas é discurso que se constrói, não
tendo nele nada de espontâneo ou natural, porque se trata de
arte, e arte é trabalho, técnica. O discurso é de fingimento,
de representação (no sentido de que ele finge que é aquilo
de que fala), mas não naquele sentido malévolo de fazer
alguém iludir-se, enganar-se e perder-se nas manhas dessa
linguagem evocativa e atraente. Isso também depende muito
do estilo e da época literária. O fingimento, aqui entendido,
é simulação de um real que só existe no texto: dizer que “a
catinga estendia-se de um vermelho indeciso, salpicado de
manchas brancas” é algo que só vai se encontrar mesmo em
um texto literário. Graciliano não quis iludir o leitor, fazê-lo
achar que a seca é uma coisa boa, positiva, mas expressa o seu
real — que é o real produzido pelo texto — de modo a que
esse real só tenha existência mesmo no texto e não em outro
lugar. O fingimento varia de acordo com o estilo e a época
em que se realiza, podendo assumir graus intensos e muito
elevados; às vezes, porém, não ocorre isso, como é o caso
da narrativa neorrealista de Graciliano Ramos, tornando-
se mais equilibrada a relação entre a linguagem literária e a
mensagem que pretende veicular.
Seja lá como for, mundo e imaginação cruzam-se
sempre; tangenciam-se nas articulações do discurso que se
constrói para esse fim. A realidade social que o texto literário
traz é sempre uma impressão de realidade produzida pela
linguagem literária, por mais que esse real seja contundente

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Teoria da Literatura 1

e estarrecedor, como é o caso do real apresentado em Vidas


secas. Mas o texto literário não apresenta apenas (isso, se
fosse só isso, seria pouco); na verdade, ele representa, cria no
texto um fingimento de realidade, que é, no entanto, apenas
textual.

1.2.4.2. EXECUÇÃO OU REALIZAÇÃO DA


REPRESENTAÇÃO

Aristóteles fala a respeito do prazer da leitura, pela


identificação que se dá ao descobrir qual o referente do
texto literário. O leitor, mesmo que nunca tenha vivenciado
a experiência da seca, reconhece aquilo que é tratado no
texto. Confrontando a realidade natural e social que serviu
de modelo à composição do texto com o que o escritor
diz efetivamente, o leitor percebe que está no domínio da
literatura:

Se a vista das imagens proporciona prazer é


porque acontece a quem as contempla aprender
e identificar cada original; por exemplo, “esse é
Fulano”. (ARISTÓTELES, 1997, p. 22)

Como foi colocado antes pelo próprio Aristóteles, imitar


pressupõe aprender. Reconhecer, nesse caso, é confirmar
valores e afirmar mais uma vez a capacidade cognitiva do
indivíduo, com a diferença de que, no terreno da arte, isso
tudo acontece com prazer, não se tratando de mera experiência
de aprendizagem. Na mesma frase em que Aristóteles diz isso
tudo, diz também o contrário do que acaba de afirmar: pode
ser que, em outro tipo de texto, não ocorra aprendizagem nem
reconhecimento de nada, por absoluto desconhecimento do
modelo que teria dado origem à poesia.

[...] aliás, se por acaso a gente não o viu antes, não


será como representação que dará prazer, senão
pela execução, ou pelo colorido, ou por alguma
outra causa semelhante. (ARISTÓTELES, 1997,
p. 22)

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Aristóteles opõe agora “representação” a “execução”.


Representação é revelar de novo o que de certo modo já
se conhece: re-presentar (o prefixo –re indica repetição de
uma ação). Tornar presente de novo, repetir a experiência, Disciplina 1
embora com o acréscimo do prazer e de modificações formais
necessárias ao trabalho da linguagem poética. O produto
novo é novo porque não é exatamente o mesmo que se viu
antes. Nesse sentido aí é que tem importância o próprio
conceito de poíesis discutido antes aqui. Se poíesis é uma
ação que transforma uma matéria em um produto novo, é
de esperar, portanto, que o resultado divirja do elemento
original, o que serviu de modelo. A ação da poíesis é uma
ação transformadora de fato, não impedindo, porém, que ao
fim de tudo se reconheça o modelo. Apenas o modelo e o
objeto que o representa na poesia não coincidem mais, por
não se tratar de mera imitação de um pelo outro. Talvez, por
isso, se deva empregar o termo imitação, em teoria literária,
sempre entre aspas: “imitação”. O produto poético é novo,
inteiramente novo, embora se possa sempre reconhecer
o objeto que foi representando. Daí é que se conclui que
mimese é, acima de tudo, um caso de poíesis. Aliás, só há
mimese porque há, antes e durante, a própria poíesis. Sem
essa ação transformadora — que é a ação produzida com
a ajuda dos “meios” (linguagem, ritmo, voz, cores, traços)
—, não haveria poesia. É o que se depreende das palavras de
Aristóteles, em texto tão curto e tão lacunar.
Acontece, porém, que, em outra operação, o modelo
pode não ser reconhecido (“aliás, se por acaso a gente não
o viu antes”). E daí? A mimese estaria comprometida,
impossibilitada de realizar-se? Não, declara Aristoteles.
Porque agora o prazer advém da “execução” — não mais da
“representação”, da imitação de algo anterior ao texto —, do
seu colorido, de outra causa qualquer semelhante. Imagine,
caro aluno, que você olhe para um texto e não identifique o
ser de que se fala no poema:

Pelas regiões tenuíssimas da bruma


Vagam as Virgens e as Estrelas raras...
Como que o leve aroma das searas
Todo o horizonte em derredor perfuma.

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Numa evaporação de branca espuma


Vão diluindo as perspectivas claras...
Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras
As estrelas apagam-se uma a uma.

E então, na treva, em místicas dormências,


Desfila, com sidéreas latescências,
Das Virgens o sonâmbulo cortejo...

Ó Formas vagas, nebulosidades!


Essência das eternas virgindades!
Ó intensas quimeras do Desejo...

Este soneto de Cruz e Sousa, do período simbolista da


literatura brasileira, no século XIX, parece não remeter a nada
que o leitor conheça antes de chegar ao texto. O que são essas
“regiões tenuíssimas da bruma”? São localizáveis ou existem
de algum modo na realidade que conhecemos? Regiões, em
geral, têm consistência física, do ponto de vista geográfico.
Mas essas, de que fala o eu lírico, são “tenuíssimas” e são
da “bruma”, parecem levitar no ar, tal a sua transparência e
leveza; uma região, por si só esgarçada e sem durabilidade, sem
localização reconhecida, é realmente de estranhar, criando
obstáculo para o seu reconhecimento, antes e fora do texto
poético. Essas regiões, definidas desse jeito, são lugares por
onde se possa pisar sem ter medo de cair em algum buraco?
Onde será que existe algo parecido com isso no mundo cá
fora?
Certamente o leitor não conhece nada parecido, a não
ser que pense que se trata de névoas e neblinas, como as que
existem em lugares frios e nevoentos (por si sós, no caso
brasileiro, um tanto distantes de quem vive no Nordeste, por
exemplo). Pode o leitor pensar que não se trata de nenhuma
localidade conhecida, mas se trata de um local virtual,
não reconhecível, não identificável na realidade que nós
habitamos. Nelas, transitam “Virgens”, elemento que só pela
inicial maiúscula sugere que não há nada igual no mundo,
dificultando mais ainda a identificação com algo parecido
com isso, pois não se trata, aqui, de mulheres virgens, que

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Teoria da Literatura 1

ainda não tiveram experiência amorosa e sexual, mas são de


outra ordem, completamente desconhecida para esse leitor.
Ainda mais essas “Virgens” andam lado a lado, nessas regiões
“tenuíssimas”, com as “Estrelas”, igualmente misteriosas Disciplina 1
e indefiníveis. Aqui já há quatro perguntas similares: 1. O
leitor sabe que regiões são essas? 2. Sabe que Virgens são
essas? 3. Sabe que Estrelas são essas também?; 4. E por que é
que Estrelas e Virgens andam juntas?
Não, o leitor desconhece completamente essa
realidade. Depois, o termo “estrelas” aparece também com
inicial minúscula, o que só aumenta a dificuldade, ou a
impossibilidade, de reconhecê-las. É dito também que elas se
apagam aos poucos, “uma a uma”. No cenário, para completar
esse clima de profundo mistério para sua decifração, há
perfume de “searas” e “brilhos crus e fúlgidos de tiaras”.
Tudo vai lentamente esmorecendo. O leitor pode chegar à
conclusão de que a atmosfera é feérica, fantasmagórica ou
simplesmente irreconhecível, por mais que se tente entender
de que se trata. Pela explicação de Aristóteles, mesmo diante
de tanta estranheza, continua havendo mimese, “imitação”.
Mas imitação de quê? Que modelo há por detrás dessa poesia
que o leitor não consegue, por mais que se esforce para isso,
distinguir?
Nenhum modelo, pode-se dizer. Mas, ainda assim, há
mimese. Porque, agora, a mimese, ou, se quisermos ainda a
usar o termo “imitação”, é da ordem da execução, não mais
da esfera do “reconhecimento”. O texto se realiza, se escreve
à medida que se lê, é o que parece. O leitor entra em contato
com uma imagem literária cujo modelo se perdeu para sempre
ou não é algo reconhecível, ou facilmente reconhecível. O
prazer da leitura desse poema de Cruz e Sousa ocorre porque
o leitor sabe, nesse pacto, que está num ambiente literário,
fantasioso demais, embora isso não seja critério de definição
do literário, porque a vida está cheia de fatos incríveis e
muitas vezes indiscerníveis e nem por isso se pode dizer que
se está no campo da literatura. Mas a linguagem, o ritmo, a
cor impressionam. A melodia dos versos, o som das palavras,
das rimas, o apagamento da realidade e a produção de algo
que parece ser inteiramente novo são meios também, embora
não recriem o que já é conhecido. O valor do poema vale pela

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Teoria da Literatura 1

sua execução; o que ele quer dizer é que, aqui, já é outra a


³ A categoria “representação”, conceito problematização que envolve o conceito.
básico em Aristóteles, foi discutida Podemos sentir prazer em ver uma tela em que se vejam
mundo afora e ainda o é, apesar de retratadas cenas ou pessoas conhecidas — a representação³
desconfiarem, hoje, da validade teórica de alguém conhecido, familiar, ou de uma situação vivida ou
do conceito, talvez porque o liguem ao próxima disso —, mas também se pode ver uma tela abstrata,
conceito de “imitação”. Arte não imita, cheia de cores e traços aparentemente caóticos, sem que
mas de certo modo imita algo que está nenhum deles sinalize alguma coisa que possamos identificar
fora do texto, porque sempre se pode fora da tela. E, nos dois casos, se pode sentir prazer, quer se
ter a impressão de que aquilo que se identifique, quer não se identifique o que porventura possa
vê no texto foi visto antes, em algum ter motivado a representação. Olhar para as duas telas e
lugar. Às vezes o reconhecimento desse admirá-las é possível, sim. Em uma, o prazer acontece pela
mundo é fácil (caso de Vidas secas), e identificação com o elemento original; em outra, sem poder
às vezes muito difícil (caso do soneto identificar nada que se conheça antes, o prazer de ter contato
de Cruz e Sousa estudado aqui). com a arte nasce com o prazer da harmonia (ou desarmonia)
Nesse último exemplo, vale entender das cores espalhadas na superfície da tela. Mimese é sempre
representação, ou mimese, como poíesis: mas pode derivar tanto de uma identificação quanto
realização da representação e não a de uma execução de meios, sem identificação possível ou
própria representação, evocação de algo plausível.
que pertença à realidade extratextual.
Ou, como disse, Aristóteles,
“execução”, que é mais do que evocar
o mundo conhecido; é mostrar que,
em literatura, a linguagem pode fazer Referências
o que quiser com os meios de que se ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética
utiliza para compor, sem ter de se clássica. Trad. de Jaime Bruna. 7. ed. São Paulo: Cultrix,
subordinar a “imitar” algo conhecido e 1977.
trazê-lo para o texto.
Leia agora o capítulo IV da Poética, onde Aristóteles
estuda especialmente a noção de mimese, suas origens e
significação. Confronte sua leitura com o que foi colocado
nesta seção.

CANDIDO, Antonio. O mundo desfeito e refeito. In:


CANDIDO, Antonio. Recortes. 3. ed. rev. pelo autor. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 34-40.

Nesse ensaio, Candido, mesmo sem citar Aristóteles,


tem, contudo, forte ligação com ele, ao defender que o texto
que se elabora, ao fazer-se, desfaz o mundo anterior, com a

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linguagem, para fazer outro, o mundo que só aparece no texto


literário, que se autonomiza, enfim. Relacione esse texto de
Candido com o capítulo IV da Poética.
Disciplina 1

1.2.4.3. A TEORIA DA MIMESE EM PLATÃO

Platão, ao menos em A república, trata da poesia mais


exemplarmente em dois livros: o livro III e o livro X. Ele
tem uma visão diferente da de Aristóteles, porque vincula a
mimese ao estímulo à produção de imagens sedutoramente
falsas, não condizentes com a realidade da Ideia, perturbadoras
que são da percepção da realidade e da moral instituída,
pervertendo o homem. Platão distingue o mundo racional
da Ideia, onde se produziriam os arquétipos — únicas
realidades passíveis de ser conhecidas —, do mundo sensível,
mundo em que vivemos, imperfeito e deteriorável, prestes
a cair em decadência. O mundo ideal, não; este é eterno
e imutável, não decai nunca, justamente porque lá tudo é
eterno e imutável. O mundo sensível seria a reprodução,
ou a imitação, do mundo ideal. Se no mundo da Ideia só
existe uma árvore, um único exemplar da árvore, no mundo
sensível existe uma infinidade delas, de todos os tipos, cores
e tamanhos, porque este mundo é lugar da multiplicidade,
da variedade. Ninguém pode conhecer o diverso, diz Platão,
porque a diversidade confunde, atrapalha, não tem suas
formas constantes, impedindo o legítimo aprendizado.
A poesia, segundo ele, ocuparia o terceiro lugar da
ordem do conhecimento. De cima para baixo, portanto,
temos, em primeiro lugar, a Ideia, lugar onde os seres são
unos, únicos, perfeitos e eternos; em seguida, caindo um
pouco, aparece o mundo sensível, que seria a imitação do
mundo da Ideia, mas cujos seres seriam todos imperfeitos
e perecíveis, múltiplos e variados, tendo como base a Ideia,
a que nunca consegue se igualar; e, por fim, há a poesia,
lugar da imitação do mundo sensível. A poesia seria, assim,
a imitação da imitação, colocando-se bem longe da Ideia.
Note-se que, em Aristóteles, não há essa divisão de mundos,

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Teoria da Literatura 1

pois a visão desse filósofo é naturalista, como convém a um


filho de médico, mais apegado às coisas experimentáveis e
observáveis. Já Platão prefere ater-se à mimese poética como
instância produtora de cópias, nunca de originais. Por isso,
a arte é provocadora de ilusões, nunca da verdade, pois esta
vive no mundo dos originais, lá na Ideia.
Como Platão vivesse em uma época de formação das
cidades-estado, da formação do homem político em plena
era da democracia grega, esperava-se que toda a sua filosofia
servisse a esse propósito. Portanto, tudo que estivesse
contrário ao cumprimento rigoroso das leis do estado e
da racionalidade — como, por exemplo, a poesia e a arte
de um modo geral, consideradas o reino das paixões e da
manipulação das ilusões, nesse caso — terminaria por afastar
o homem do equilíbrio, devendo ser banido e desprezado. Já
dá, pois, para imaginar o que Platão disse da poesia: lugar da
imitação da imitação, da produção de seres falsos, imperfeitos
e múltiplos. A poesia é má por definição, pois incita a ver e
apreciar o falso, o irreal, o imoral — um atentado contra o
Bem, o Belo e o Verdadeiro, que terminam por ser a mesma
coisa.
No Livro III de A república, Platão condena a mimese
justamente pelo seu lado moral: a poesia perverte o real e o
verdadeiro, fornecendo ao leitor imagens falsas, ilegítimas.
Já no Livro X a condenação segue outra via de explicação:
o conhecimento. Pela poesia não se chega a conhecer nada
com segurança porque a Ideia está bem distante dela, dois
graus acima.
Platão também aborda a questão dos modos, assim como
Aristóteles: igualmente afirma que a epopeia é um gênero
misto, com uma parte do discurso em que o poeta fala em seu
próprio nome e outra, ao contrário, em que as personagens é
que falam, por uma concessão que lhes é dada pelo narrador.
A diferença em relação a Aristóteles é que Platão só considera
mimese a instância em que somente as personagens falam,
chamando a isso de “imitação”, enquanto a parte que é da
inteira responsabilidade do narrador seria a “narração simples”
ou “diegese”, termo que depois seria aproveitado pela teoria
da literatura moderna ao falar do gênero narrativo, servindo
para designar a “fábula” ou “história”, por oposição a “enredo”.

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Teoria da Literatura 1

Por esse critério dos modos, dentro da visão que Platão tem
do problema, só existiria mimese quando o ator fingisse que
era outro, assumindo a sua personalidade e caracteres. Isso,
dentro do que rezam a posição política e a doutrina social Disciplina 1
de Platão, seria um despautério, pois ninguém pode ser
um e outro ao mesmo tempo, sob risco de confundir a sua
identidade e os valores que tem, antes de passar por outro. A
poesia, por estimular a divisão da personalidade, estimularia
a perversão contra a identidade em favor da multiplicidade.
Imitar outro, como sugere a própria expressão, é sair de si
mesmo, desprender-se da própria alma e assumir outra, é
perder a sua racionalidade e corromper ou ameaçar a inteireza
da sua identidade. Na narração simples, o poeta não fala no
lugar de outro, mas apenas fala por si mesmo — nesse caso,
não haveria corrupção identitária (é o caso da “diegese” por
oposição a “mimese”, esta sim, uma ameaça à dignidade
humana). A tragédia e a comédia, e em parte a epopeia, são
formas literárias danosas, por serem imitativas de outrem.
Platão não avança muito nessa teorização, deixa tudo muito
esparso e incompleto, já que não teve objetivo, como o teve
Aristóteles, de escrever uma poética.
Platão opõe, dessa maneira, “narração” (ou diegese) a
“imitação” (ou mimese). Aristóteles, ao contrário, vê todas as
operações formais da poesia como miméticas, sem chegar a
essa distinção que Platão defende. No âmbito da narração, o
homem não corre perigos, é o que sugere a versão platônica
da mimese, pois não haveria aí representação (nem no sentido
teatral nem no sentido da imitação). O perigo era o poeta se
fazer de outro, fingir que tem outra personalidade, a da sua
personagem, por exemplo, entregando-se à ruptura com a
unidade e a indivisibilidade do eu.
No Livro III de A república, Platão chega a reescrever
uma parte da epopeia de Homero para mostrar ao discípulo
Adimanto que seria menos arriscado o poeta manter o tempo
todo a sua voz única, sem cedê-la a outrem, do que fazer a
personagem falar, momento em que o narrador se dispersa de
si mesmo e finge ser a personagem. Diz Platão:

[...] Sem dúvida conheces os primeiros versos da


Ilíada, em que o poeta diz que Crises solicitou a

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Teoria da Literatura 1

Agamenon a libertação de sua filha, que o outro se


irritou e que o primeiro, ao ver que nada conseguia,
invocou a cólera do deus contra os aqueus?
— Claro que conheço.
— Então sabes também que até nestes versos,

“E suplicou a todos os gregos,


Mas em especial aos dois filhos de Atreu,
chefes do povo”

fala o próprio poeta, que não tenta sequer colocar-


se na pele de um outro. Mas a partir dos versos
seguintes fala como se fosse Crises e procura
por todos os meios induzir-nos a crer que quem
pronuncia as palavras não é Homero e sim o velho
sacerdote. [...]
[...] quando o poeta não se oculta detrás de
ninguém desaparece a imitação e a obra se converte
em narrativa simples. (PLATÃO, 1999, p. 59)

Para evitar essa confusão de personalidades, essa divisão


da unidade em seres múltiplos, Platão sugere, no Livro III,
que os poetas — e os demais artistas em geral — sejam
expulsos da república, pelo bem e organização da sociedade:

[...] não teremos de vigiar apenas os poetas,


obrigando-os a expressar a imagem do bem em suas
obras ou a não divulgá-las entre nós; será preciso
fiscalizar igualmente os demais artistas e impedir
que exibam as formas do vício, da intemperança, da
vileza ou da indecência na escultura, na edificação
e nas outras artes criadoras. E aos que não se
conformarem a esta regra será proibido exercer
sua arte em nossa cidade, para que não venham a
corromper o gosto dos cidadãos. Não admitiremos
que nossos guardiães cresçam rodeados de imagens
de depravação moral, alimentando-se, por assim
dizer, de uma erva má que houvessem pascido aqui
e ali em pequenas quantidades, mas dia após dia,
de modo a introduzirem, sem se aperceber disso,

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Teoria da Literatura 1

uma enorme fonte de corrupção em suas almas.


(PLATÃO, 1999, p. 66)

Se a verdade é uma, a Verdade, com inicial maiúscula Disciplina 1


— não existem várias verdades, segundo ele acredita —, a
consciência é também uma só; e, por isso, numa sociedade
ideal, cada um deverá desenvolver apenas um ofício, não dois
ou três. Fazer o contrário, como é o que pensa Platão sobre
a poesia, na qual o poeta finge ser outro, como ocorre no
teatro, é corromper a alma, dividi-la, enfraquecê-la, destruir
a personalidade e a identidade do homem.
Aristóteles jamais sustentaria esse argumento platônico,
pois ele via na poesia o lugar da autodeterminação e
autossuficiência que só a palavra, nessas condições, é capaz
de criar. O poeta, ao entregar a voz a outrem, não se estaria
dividindo nem renunciando à sua própria consciência, como
julgou Platão, não estaria segmentando sua individualidade e
subjetividade, pois a poesia é autônoma em relação ao mundo
da natureza e da realidade social. Poesia e realidade humana
não se confundiriam a esse ponto. Por isso é que Aristóteles
afirmou no capítulo IV que aquilo que a poesia apresenta tem
em geral o poder de comover e seduzir, porque o que existe
na poesia não coincide necessariamente com o que existe
fora dela, podendo o horrível natural (cadáveres, animais
ferozes), por um processo de transfiguração, ser mesmo belo,
por efeitos de sua realização, por efeito dos meios e recursos
utilizados, por efeito de sua execução mimética. A guerra, por
exemplo, é um mundo de tristeza e desolação, de destruição e
horror, mas num poema pode ser tudo muito simples e belo,
como neste minúsculo poema de Mário Quintana, por sinal
intitulado “Guerra”:

Os aviões abatidos
são cruzes caindo do céu.

Então, de tudo isso, nota-se que Aristóteles estima


especialmente a capacidade estética da palavra, não a sua
mera conformação à realidade externa ao texto. A palavra,
em estado poético, revela um mundo melhor ou ao menos
ideal, como ele deveria ser, e não como ele efetivamente é: “os
aviões abatidos”, que caem do céu, quando caem ou enquanto

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 49


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Teoria da Literatura 1

caem, parecem “cruzes”. Deixam, assim, de ser os temíveis


aviões destruidores da vida na terra para se transformar em
símbolos da Cristandade: do horror que a guerra é passa tal
cenário a ser, ilusoriamente, quase uma missa, uma chuva
de traços e de objetos denotadores da fé, que neutraliza a
crueldade e a dureza da experiência bélica. Compõe-se, dessa
forma, uma paisagem de esperança, justamente aquilo que
a guerra mais destrói. E, para chegar a ter esse efeito, nem
seria necessário dizer isso em versos, pois o metro não faz de
ninguém poeta, já que o historiador ou o físico poderiam
também se expressar em versos (ao menos na época de
Aristóteles). Daí, pois, a diferença que o filósofo faz, no
capítulo IX, entre a Poesia e a História:

[...] a obra do poeta não consiste em contar o que


aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer,
possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou
da necessidade.
Não é em metrificar ou não que diferem o
historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser
metrificada; não seria menos uma história com o
metro do que sem ele; a diferença está em que um
narra acontecimentos e o outro, fatos quais podiam
acontecer. Por isso, a poesia encerra mais filosofia
e elevação do que a História; aquela enuncia
verdades gerais; esta relata fatos particulares.
(ARISTÓTELES, 1997, p. 28)

Platão não vê nada disso na mimese. Aliás, o poema de


Mário Quintana, se fosse avaliado pelo filósofo, nem seria um
caso de mimese, porque, como o ditirambo, a poesia lírica
traz apenas uma voz, a do poeta, e este estaria falando em
seu próprio nome, sem cedê-la a ninguém (até porque não
existem personagens na poesia lírica, como acontece com a
tragédia e a comédia). Seria um caso tão somente de narração
simples ou diegese, não de narração imitativa, no dizer de
Platão. Mas, além dessa distinção de maneiras discursivas,
esse poema, como qualquer outro, diria Platão, criaria a
falsa noção de uma guerra, pois foi mudada completamente
a atmosfera que uma guerra produz: da destruição, normal

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Teoria da Literatura 1

nesse tipo de conflito, e dos sentimentos que daí decorrem


se chegaria à redenção. E isso é falso, diria Platão: tal poesia
estaria falseando a real situação de uma guerra, pois esta não
produz a consciência da esperança e da fé cristã, mas a da Disciplina 1
desgraça e do horror, que acarretam a desesperança. Para
Platão, as palavras, em poesia, com seus artifícios e figuras,
com suas imagens ardilosas, não dizem nunca a verdade (nem
sabe o que é isso, pois a arte está longe da Ideia, sendo apenas
a imitação de uma imitação). Isso tudo se dá porque a poesia
está dois graus abaixo da Verdade que só o mundo da Ideia
comporta e pode revelar.
Enfim, os dois grandes filósofos gregos da Antiguidade
têm duas posições completamente contrárias no que diz
respeito ao entendimento da poesia. Como diz Leite,
confrontando os dois filósofos,

No caso particular da Poética, como na sua filosofia


de modo mais geral, Aristóteles afirma o inverso de
Platão. Se neste a poesia era imitação da imitação,
no sistema aristotélico a poesia continua a ser
IMITAÇÃO, porém não entendida como cópia
das aparências, mas, ao contrário,como reveladora
das essências. Imitar, para Aristóteles, é uma forma
de conhecer que inclusive diferencia o homem dos
outros seres vivos e lhe dá prazer. (LEITE, 1985,
p. 8).

Referências
LIMA, Roberto Sarmento. O falso da imitação.
Conhecimento prático língua portuguesa, São Paulo:
Escala Educacional, nº 19, p. 47-50, [set./out. 2009].

Nesse ensaio sobre a questão da imitação vista pelo


prisma dos dois filósofos da Antiguidade, Platão e Aristóteles,
faz-se uma síntese do pensamento de ambos com aplicação
didática da teoria à leitura de textos literários, a fim de estudar
a mimese e seus corolários.

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Teoria da Literatura 1

PLATÃO. Diálogos III: A república. 25. ed. Rio de


Janeiro: Ediouro, 1999.

É preciso ler especialmente os livros III e X dessa obra de


Platão, nos quais ele faz a condenação da mimese como má
imitação, deturpadora da visão lógica das coisas e incitadora
das paixões. No Livro III, Platão condena a mimese do ponto
de vista moral, alegando que ela faz decair a personalidade do
imitador, por fingir que era outro, dividindo e comprometendo
sua identidade; e, no Livro X, na sua acepção intelectual,
mostra que a mimese não gera conhecimento, porque a
poesia está afastada três degraus da Ideia.

1.2.5. LITERATURA É CONSTRUÇÃO DE OBJETOS


AUTÔNOMOS

Como se pode perceber, a teorização de Aristóteles


sobre a poesia incide sobre a natureza e a caracterização
do seu objeto; Platão vai além disso ou simplesmente não
se atém a esse campo de análise, pois relaciona sempre o
discurso poético às condições morais e intelectuais de quem
vive numa sociedade. Motivo de perturbação do homem, a
poesia, para este último, irriga as paixões e divulga mentiras
sobre os deuses, mostra-os como meros mortais, passíveis de
erros e vícios, fraquezas ou vilanias, como se pode ver nesta
passagem de A república, no Livro III:

Ainda mais encarecidamente imploraremos ao


poeta que não represente os deuses a gemer e a
dizer: “Ai de mim, desventurada! Ai de mim, triste
mãe de um herói!”. E, se não respeita os deuses,
pelo menos que não tenha a ousadia de atribuir ao
maior deles uma linguagem tão indigna como esta:
“Ó Céus! Vejo com meus olhos um varão armado a
quem perseguem em volta da cidade, e meu coração
se aflige”. [...] Porque, meu bom Adimanto, se

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Teoria da Literatura 1

nossos jovens ouvirem a sério tais histórias em


vez de levá-las em brincadeira como seria justo,
raros serão os que considerem semelhantes ações
indignas de si mesmos, uma vez que não passam Disciplina 1
de homens mortais; tampouco tratarão de refrear
qualquer impulso que lhes venha de dizer e fazer o
mesmo. (PLATÃO, 1999, p. 55)

A preocupação fundamental do filósofo é, dentro do seu


pensamento utópico, a educação ideal dos jovens e a formação
igualmente ideal do homem político, projeto contra o qual se
poderia colocar a poesia, que voluntariamente, sem intenção
doutrinária alguma, discursa sobre as fraquezas humanas,
chegando mesmo, segundo ele, a estimular tais sentimentos,
divulgando-os e classificando-os de naturais, próprios da
espécie humana, e, ainda por cima e além disso, critica os
deuses, que, pelo respeito que se devia ter pela tradição,
deveriam estar acima de todos os mortais. A ênfase dada por
Platão na explicação do fenômeno poético, como se pode
notar, não recai sobre uma suposta natureza da poesia, mas
sobre os efeitos, para ele nocivos, que ela traria para as ações
humanas em sociedade, afastando o indivíduo do ideal da
comunhão e da agregação social.
Aristóteles não faz esse tipo de consideração, como já
mostrei antes; muito pelo contrário do seu mestre, atém-se
ele aos elementos internos que constituem o texto poético,
pondo em relevo sua capacidade ficcional e sua execução
como linguagem e meios ou artifícios de linguagem. Enxerga
a poesia no seu fazer — poíesis, que vem do radical grego
poiéin, que significa “fazer”, “agir” — e, por isso, enaltece
sua capacidade técnica. Trata-se, pois, de olhar para a poesia
como um discurso, um ser feito de linguagem e outros meios,
que se constrói, se realiza como tal.
Nos nossos dias, o crítico Antonio Candido, em
consonância com a lição aristotélica, também ressalta os
elementos que fazem da literatura um discurso que exibe seu
material e põe a nu sua construção. No ensaio “O direito à
literatura”, por exemplo, afirma o seguinte sobre a literatura
em geral:

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 53


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Teoria da Literatura 1

A função da literatura está ligada à complexidade


da sua natureza, que explica inclusive o
papel contraditório mas humanizador (talvez
humanizador porque contraditório). Analisando-a,
podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela
é uma construção de objetos autônomos como
estrutura e significado; (2) ela é uma forma de
expressão, Isto é, manifesta emoções e a visão
do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela
é uma forma de conhecimento, inclusive como
incorporação difusa e inconsciente. (CANDIDO,
1995, p. 244)
Não se pode deixar de ver aí, nessa definição de literatura
dada por Antonio Candido, o rastro da lição dada por
Aristóteles em sua Poética. O filósofo grego disse que a poesia
(hoje, como Antonio Candido faz, já se pode dizer “literatura”
em vez de “poesia”) resulta da capacidade de o homem
imitar e, assim, adquirir seus primeiros conhecimentos. Sem
dúvida, ao ler, aprendemos algo, de certo modo; adquirimos
consciência talvez do que não demonstrávamos ter antes. Esse
é o patamar da literatura que se define como conhecimento
e que muitos acham ser essa a sua principal contribuição
como discurso. Mas não é. Se fosse assim, que diferença
básica haveria entre um romance e um artigo publicado
numa revista ou jornal sobre o mesmo tema? Nenhuma.
Pois ambos os textos estariam falando da mesma coisa. Mas
cada linguagem fala de uma maneira diferente, e é isso que
interessa a quem estuda e vê de perto o funcionamento e a
natureza da literatura.
Alguns autores, aliás, demonstraram uma percepção
equivocada sobre seu próprio trabalho. Na entrada do
romance Cacau, de Jorge Amado, o escritor põe uma nota
reveladora desse equívoco a respeito do papel da literatura.
Diz ele, em forma de epígrafe:

Tentei contar neste livro, com um mínimo de


literatura para um máximo de honestidade, a vida
dos trabalhadores das fazendas de cacau no sul da
Bahia.
Será um romance proletário?

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Teoria da Literatura 1

Parece até que o autor está envergonhado de escrever


romance quando deveria, ao que parece, escrever um tratado
sociológico sobre a vida dos trabalhadores rurais no sul da Disciplina 1
Bahia, nas fazendas de cacau, arena de brutalidade onde eles
sofreram opressão e exploração econômica. Mas, se Jorge
Amado é um romancista e não um sociólogo formado na
academia, se ele é um literato, um autor de romances e não
um estudioso das ciências sociais, ele é acima de tudo um
“fazedor” de histórias e discursos, sem ter compromisso
direto com a verdade dos fatos que apresenta, ainda que estes
tenham um pé fincado na realidade mais crua da Bahia.
A mimese é uma operação, é uma poíesis, como já vimos.
O que deve, pois, ser ressaltado é a capacidade de meios
linguísticos e outros que entram na composição do texto,
juntos e combinados, serem vistos como o responsável
pela organização e construção desse mundo social, e não
o contrário. O que vem em primeiro lugar é a construção
do romance, que Jorge Amado, espantosamente, chamou
de “mínimo de literatura” (na realidade, não é o mínimo
literário que interessa à leitura crítica da literatura, mas o seu
máximo composicional, que se concentra no próprio texto
literário e não nas suas supostas intenções comunicativas ou
doutrinárias, como é o que parece defender, enganosamente,
o escritor baiano). O que se deve ter em mente, para não se
enganar a esse respeito, é que a forma literária — que não
significa de modo algum “formato” nem “invólucro”, como
se a forma fosse uma caixa que guardasse no seu interior
um objeto — vem entranhada de seus conteúdos. Forma
já é conteúdo, pois se qualquer coisa da forma de um texto
literário for alterada, uma vírgula sequer que seja retirada
ou acrescentada, isso já muda o conteúdo também do texto.
Assim, forma e conteúdo, em teoria da literatura, devem
ser entendidas como categorias intrinsecamente solidárias,
inseparáveis uma da outra. Pois mudar a forma, como acabei
de dizer, seria mudar o conteúdo do texto, uma coisa não
sobreviveria sem a outra. O que Jorge Amado fez, em sua
ingenuidade, naquele momento da sua vida, foi separar
forma e conteúdo. Pensou a literatura como um invólucro de
uma mensagem social, a ponto de chamar esse seu romance

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 55


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Teoria da Literatura 1

de “romance proletário”, como se o adjetivo fosse mais


importante do que o substantivo em um sintagma nominal
como esse; ou fosse, ao menos, primário em relação ao
substantivo, que é, por sinal, sempre núcleo de um sintagma.
A “honestidade” do conteúdo é a honestidade da forma.
E foi isso que Jorge Amado não percebeu, infelizmente, o
que o fez dar esse depoimento pobre e incompatível com os
desígnios da arte. O romance é bom ou convence o leitor de
sua mensagem graças à forma e não apesar dela. A forma não
atrapalha nem obscurece o conteúdo, porque a forma é o
próprio conteúdo; ou, então, isso deixa de ser literatura.
Jorge Amado viu no romance acima de tudo sua
dimensão de conhecimento, como o indica Antonio Candido.
A informação sociológica do romance, inculcando,
convencendo o leitor, falando da legitimidade da sua
mensagem a favor dos proletários contra a classe dominante,
é o que, nessa epígrafe ao romance Cacau, parece falar
primeiro e antes de tudo. A literatura, nessa consideração,
até atrapalharia a eficácia da mensagem junto ao seu público;
daí o autor considerar que a literatura, nesse caso, deveria
se restringir a “um mínimo”, para não comprometer a
veracidade e a honestidade do relato. Não sabia Amado
que a honestidade do texto está justamente na sua eficácia
literária. Ler o romance como romance, e não como tratado
da sociologia, que foi o que ele sugeriu nas entrelinhas, quase
nas próprias linhas, tendo faltado pouco para isso.
A camada do meio, segundo Antonio Candido, é a da
expressão, que também atua junto ao leitor. Lê-se nem sempre
para entender uma realidade ou o cotidiano do próprio leitor,
mas para identificar-se especificamente com o ponto de vista
do autor ou de um grupo quando estes falam de determinada
realidade. O texto expressa, pois, uma perspectiva, que pode
ser individual ou de classe; expressa um sentimento, uma
emoção. Também não é por esse aspecto que a literatura é
importante.
A literatura, sim, é importante porque é uma modalidade
de linguagem que trabalhou o suficiente — nem mais, nem
menos — a sua forma. Há momentos do texto, não em
todas as suas passagens, em que isso se torna mais nítido,
ou pelo menos mais acentuado, sem que o leitor desavisado

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Teoria da Literatura 1

perceba imediatamente. Para tanto, é preciso acostumar o


olhar, treiná-lo para ver aquilo que o leitor comum não vê e,
por isso, sem essa educação do olhar, deixa de ser desfrutado
como deveria. Antonio Candido dá um bom exemplo dessa Disciplina 1
capacidade construcional do texto poético em uma estrofe
tirada da Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga,
do século XVIII. Vou procurar reproduzir o pensamento de
Candido para melhor explicar essa questão. Vamos, então, à
estrofe que o crítico selecionou para isso:

Propunha-me dormir no teu regaço


As quentes horas da comprida sesta;
Escrever teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te de papoulas na floresta.

Como acontece sempre com os poemas árcades, há uma


procurada simplicidade que facilita a leitura de qualquer
leitor. Esses versos foram construídos através de frases na
ordem direta, com vocábulos de apreensão imediata, sem
hermetismos ou artificialismos metafóricos que se podem
achar em outros estilos literários. No arcadismo, a linguagem
chega, propositadamente, a ser deliberadamente banal. E
como encontrar, na estrofe, aquele momento especial em
que a linguagem parece atingir o cume da sua poeticidade,
quando o fazer (o poíein dos gregos, a mimese de Aristóteles)
se revela em alta dimensão? Se olharmos bem as palavras,
em si mesmas, nenhuma é tão especial assim. Antes de
estarem aí, na estrofe de Gonzaga, elas já são conhecidas
do leitor médio: “propunha-me”, “regaço”, “quentes horas”,
“sesta”, “escrever”, “papoulas”, “floresta”. Quem nunca ouviu
tais palavras antes? Quem desconhece o seu significado de
dicionário? Quem nunca as pronunciou antes? Refiro-me a
uma pessoa medianamente escolarizada, que já entrou em
contato com a língua escrita.
Alguém pode assegurar que a estrofe só é literária
porque há versos e que só existem versos no campo da escrita
literária, fora dela jamais hoje em dia! Sim, é verdade. Mas
é verdade também que a literatura, para ser considerada boa
literatura, não precisa ser construída com inversões sintáticas
mirabolantes nem com vocabulário extravagante e de difícil

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 57


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Teoria da Literatura 1

uso. Não, isso não é critério para julgar se um texto é literário


ou não. O olhar crítico do leitor deve perceber, além daquilo
que as palavras informam, onde, exatamente em que lugar, a
tensão indicada pelo termômetro da construção se mostra
melhor e mais acentuada, mais visível, mais sintomaticamente
perceptível.
Releia o poema, caro aluno! Veja onde isso pode ter
acontecido.
Se poesia tem como seus recursos básicos a voz e o canto
— conforme sentenciou Aristóteles quando tratou dos meios
da poesia, no capítulo 1 da Poética —, é de esperar que o som,
não só as palavras, mas o som que as palavras têm, juntas,
unidas, formando uma sequência sonora significativa, faça
certa diferença e se faça notar. Onde isso ocorre nessa estrofe
de Tomás Antônio Gonzaga?
Antonio Candido diz que o quarto verso dessa quadra
foi escrito visando a uma sonoridade particular: “Toucar-te
de papoulas na floresta”. Diz o crítico em seguida:

Tês no começo e no fim, cercando os Pês do


meio e formando com eles uma sonoridade mágica
que contribui para elevar a experiência amorfa no
nível da expressão organizada, figurando o afeto
por meio de imagens que marcam com eficiência a
transfiguração do meio natural. A forma permitiu
que o conteúdo ganhasse maior significado e
ambos juntos aumentaram a nossa capacidade de
ver e sentir. (CANDIDO, 1995, p. 248)

Como se trata de uma cena de namoro entre o pastor


e a pastora, dentro da convenção do estilo árcade, é nesse
quarto verso que se sente o maior calor possível emanado dos
corpos dos dois namorados. As consoantes destacadas, tão
próximas entre si, transitando de uma para outra, com tês nas
extremidades da frase (“Toucar-te” e “floresta”) e pês no meio
dela, podem estar querendo comunicar alguma coisa além do
que já informam as palavras. O que os sons dizem? O que a
melodia da frase diz e as palavras encaradas em si mesmas
não dizem? A palavra é menor do que o som que dela emana?
Por que se diz com o som e não exatamente com o conteúdo

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Teoria da Literatura 1

nocional que vem das palavras, todas dicionarizadas, e com


conteúdo explícito encontrado em qualquer dicionário? Em
poesia há muito disso.
O som, abstraído das palavras, exacerba os conteúdos, Disciplina 1
revela-os mais do que as próprias palavras, integralmente
percebidas, podem sugerir. A música do verso informa
também; como música pura, sugere a quem a ouve um
conteúdo determinado, estimulando a imaginação. Ouve-se
e vê-se o que o texto permite que se ouça e veja, sem forçar
o verso, sem exigir dele o que ele não pode dar. A música do
verso como que mimetiza também um objeto, uma situação
ou um estado de ânimo. Não se trata, pois, de uma cena de
enlevo e prática amorosa? Pois bem. Em situações assim, pode-
se muito bem ouvir o estalo do beijo (e isso não foi sequer
mencionado pelo poeta, por pudor, talvez). O estalo do beijo
vem da reunião dos pês, consoante bilabial. Lábios unidos,
lábios tocando uns nos outros, lábios dos dois namorados
se juntando e dando estalidos. Os tês, envolvendo os pês,
reforçam essa ideia, porque agora aparece uma consoante
linguodental: língua e dentes. As bocas entreabertas — com
língua, lábios e dentes se tocando — são apenas sugeridas
pela forma poética, pois as palavras e as orações não dizem
isso, se o olhar do leitor recair apenas sobre o conteúdo
nocional delas. Se Gonzaga tivesse escolhido outras palavras,
e não estas, não haveria essa impressão dada pela sonoridade
dos vocábulos. Se no lugar de “papoulas”, as flores fossem
“boninas”, e, se no lugar de “toucar-te”, estivesse aí a palavra
“coroar-te”, o efeito produtor da imagem que acabamos de
comentar se teria perdido ou anulado e o verso, dito de outra
forma, não teria revelado a sua tensão construcional e não
teria, portanto, o mesmo conteúdo. É nesse sentido que se
diz que este conteúdo, e não outro, só existe como tal porque
as palavras selecionadas são estas, e não outras.
É nesse sentido também que se diz que, em literatura,
a forma é o conteúdo: uma coisa não está separada da outra.
Forma e conteúdo são uma coisa só. E essa união depende
da sua construção, da organização das palavras na frase, da
relação solidária e mutuamente relacionada que se estabelece
entre elas, avizinhando-se, juntando-se em cadeia, formando
um todo significativo. Por ser uma construção, como a

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Teoria da Literatura 1

própria palavra diz, o ato de construir é o que importa ver em


um texto literário, não tanto assim os níveis do conhecimento
e da expressão. E construir é fazer (o poíein dos gregos, que
originou o termo “poesia”). Isso é construção, é fazer, é
mimese, finalmente. A forma imitou, portanto, o abraço, a
união dos corpos dos namorados, culminando no beijo que
foi sugerido pelo concurso dos sons vindos dos tês e dos pês,
em consórcio. O que não foi dito claramente pelas palavras
foi dito, de modo sugestivo, pelos sons das palavras que
compõem esse verso.
E, como isso só se dá principalmente na escrita e
composição de um texto literário (é improvável que em outro
tipo de texto essa organização de termos provoque esse efeito
ou algo parecido, mas também não é impossível), pode-se
dizer que o objeto que nasce dessa construção só ocorre no
texto literário ou, pelo menos, é nesse tipo de texto que isso se
dá mais frequentemente, e com mais arte, já que é tão difícil
delimitar o campo da escrita literária. Aparecem, assim, com
esse artifício, imagens que só o texto literário permite que
apareçam. São próprias desse tipo de texto. E, por isso, são
autônomas, independentes de qualquer outra coisa. Antonio
Candido, a esse propósito, denomina essa instância do texto
de “construção de objetos autônomos”. Autonomia, nesse
caso, não quer dizer isolamento ou autossuficiência completa,
desligamento do mundo, alienação. Não. Autonomia, no
sentido que quis passar o crítico, quer dizer especificidade.
Se Jorge Amado tivesse tido essa consciência na hora
de escrever Cacau, não teria dito que iria escrever tal
romance com um “mínimo de literatura” e um “máximo
de honestidade”. Porque literatura e divulgação de ideias
socialistas ou qualquer outro conteúdo não são linhas que se
oponham, mas se entrelaçam no texto literário. Ele pensou
que servir-se da literatura poderia prejudicar ou atenuar a
gravidade da denúncia que ele quis fazer, de acordo com
suas intenções socialistas, atrelado que estava ao partido.
Graciliano Ramos, romancista que inicia sua carreira literária
na mesma década, a de 1930, já teve outra percepção da
literatura. Graciliano nunca achou que, por integrar o Partido
Comunista Brasileiro, tivesse de renunciar à artisticidade da
composição para melhor divulgar as ideias do partido a que

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Teoria da Literatura 1

pertenceu e do qual se desligou depois, ao sentir que os seus


dirigentes não entendiam nada de literatura — motivo de
alguns debates e discussões que culminaram com a retirada
estratégica do escritor alagoano de tal legenda. Disciplina 1
Só para ter um exemplo, volto ao fragmento de Vidas
secas que já citei páginas atrás. Quando o narrador diz que
na planície avermelhada da catinga salpicavam manchas
brancas — isso poderia ser uma bela imagem metafórica,
com as “manchas brancas” salpicando no vermelho áspero
da planície da seca, parecendo estrelas brilhando na terra
—, não quis dizer que o céu finalmente se encontrara com
a terra, suavizando a dureza do ambiente rústico e agreste,
hostil ao homem. Não, muito pelo contrário; ele quis dizer
que as manchas brancas, metáfora criada nesse clima de
devastação e agruras, não podem ser manchas brancas e sim
ossadas. Relembre, caro aluno, a parte que comento:

A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso


salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O
voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor
de bichos moribundos.

Tanto faz parte da construção literária introduzir uma


metáfora no texto (mas se ela for simplesmente lançada sem
um planejamento e não revelar sua utilidade e adequação ao
texto, o trabalho de composição estética terá sido inútil e
até mesmo impertinente) quanto também desfazê-la, como
fez Graciliano Ramos naquela parte há pouco comentada
de Vidas secas. Ao enunciar qual o referente da metáfora
“manchas brancas” — “eram ossadas” —, Graciliano Ramos
nos informa que em ambiente e paisagem inóspitos como
esses, tão carentes e tão problemáticos, não há lugar para a
metáfora, que é o recurso que serve para distanciar o observador
da realidade da própria realidade que esquadrinha. Isso é
tudo que o livro Vidas secas não pretende, pois. O romance
de Graciliano, ao contrário, quer manter o leitor preso à dura
realidade dos retirantes da seca, para refletir sobre a miséria,
a fome e a falta de condições básicas de vida, entre outros
objetivos do livro. Sociologicamente falando, o relato é uma
denúncia e tem esse fim; esteticamente, o romance discute,

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 61


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Teoria da Literatura 1

por outro lado, o papel dos recursos estilísticos de que se


serve ou de que deixa de se servir, como é o caso da metáfora.
O escritor aproveita o tema da injustiça social para dizer
que, naquele contexto, a metáfora não é justa, por ser ela
um tropo idealizador da realidade. Só que ele discute isso
literariamente e não teoricamente, como o faria melhor um
teórico ou crítico literário.
Por que Graciliano Ramos, nessa obra, foge das metáforas?
Porque a metáfora é um recurso de estilo que transporta o
observador para um lugar diferente daquele em que está,
lançando-o mais longe da realidade que habita, como nos
informa o teórico francês Alain Frontier a esse respeito:
[...] métaphore signifie d’abord em grec transport
(on voit encore, dans la Grèce, d’aujourd’hui, de
gros camions sur lesquels ce mot est inscrit en
lettres capitales : ce sont des camions de transport,
des voitures de déménagement). Pour un poète
comme André Breton, la poésie est d’abord la
métaphore, et la métaphore opère toujours un
déplacement, nous transporte d’un lieu dans un
autre, nous fait changer d’univers.
Aussi la métaphore peut-elle être un moyen
de fuir une réalité insupportable. (FRONTIER,
1992, p. 83)

[Tradução : [...] metáfora significa inicialmente,


em grego, transporte (veem-se ainda hoje, na
Grécia, grandes caminhões sobre os quais essa
palavra aparece inscrita em letras capitulares: são
caminhões de transporte, carros de mudança). Para
um poeta como André Breton, a poesia é, acima de
tudo, um caso de exploração de metáforas, e essa
figura opera sempre um deslocamento, transporta-
nos de um lugar para outro, faz-nos mudar de
universo.
Também a metáfora pode ser um meio de
fazer fugir de uma realidade insuportável.]

Quando o narrador de Vidas secas revela o referente que se


esconde por trás da metáfora, tira-lhe, claro, o encantamento e

62 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

a eficácia. De repente, a imagem contida na frase “salpicavam


manchas brancas”, inicialmente encantatória, vê-se
desprovida da ilusão que a metáfora em geral produz. É como
se, de repente, as estrelas se apagassem. Ao enunciar, logo em Disciplina 1
seguida, que se trata de “ossadas” e não de outra coisa (muito
menos de estrelas na terra árida), o leitor é devolvido à triste
realidade — que é, sem dúvida, como se sabe, insuportável.
Mas é justamente isso que Graciliano Ramos quer que o
leitor vivencie, ao menos simbolicamente: experimente viver,
de algum modo, nessa realidade desagradável e dura, para
melhor enfrentar a reflexão que o livro propõe. Isso tudo
que acabo de descrever faz parte do que Antonio Candido
chama de “construção de objetos autônomos”, momento
alto do texto literário em que o leitor depara com o método
de escrita daquele autor. Parece que o autor, ao proceder
assim, está dizendo como escreve e como vê a construção
do próprio texto que elabora. A elaboração da composição
literária fica sendo, pois, visível ao leitor, que deve fruir essa
dimensão como usufrui do relato que lê.
Um texto não vale só pelo que relata, pelo que expressa,
pelo que dá a conhecer. Sobretudo, se o texto é literário, ele
tem de mostrar que vale justamente por ser literário. Quantos
textos podem trazer denúncias sociais, não só o romance? Um
artigo de revista ou jornal, um panfleto, um documentário
televisivo, um filme, um arrazoado sociológico, uma tese
de ciências sociais, um debate, um manifesto — todos esses
gêneros textuais podem realizar muito bem a discussão sobre
a fome, a miséria e os efeitos nocivos da seca na vida de um
cidadão. Um romance também pode fazer a mesma coisa,
evidentemente. Então, o que diferencia Vidas secas, por
exemplo, de um documentário ou de um artigo de jornal
— quando todos falam do mesmo assunto (no caso, a seca e
a opressão social e econômica, a falta de oportunidades para
quem não estudou ou é perversamente alijado do processo
educacional e produtivo) — é a sua dimensão de construção
de um objeto que só existe ali e em mais lugar nenhum, ainda
que os conteúdos por aí afora se assemelhem. Só em um
texto literário, além do tema sobre o qual discorre, é que se
podem visualizar da melhor forma os meios de discutir os
próprios recursos de expressão linguística de que se serve o

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 63


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Teoria da Literatura 1

autor, ao mesmo tempo que se apresentam o drama da vida


cotidiana ou outro tema qualquer. Eis um bom diferencial
entre a literatura e os demais gêneros textuais.
Descoberto o segredo do texto, ou o suposto segredo do
texto, o leitor percebe a história que se conta mas percebe
sobretudo como o texto foi elaborado. Voltando ao caso de
Vidas secas, que tomei aqui como exemplo, pode-se começar
a reparar que os títulos dos capítulos são, na sua maioria,
metonímicos, nunca metafóricos (a não ser o título do romance,
Vidas secas, mas que comporta um matiz metonímico
também, porque se toma o efeito da desgraça que se abate
no sertão, a secura, como a totalidade da caracterização da
vida humana naquelas condições deploráveis). Os títulos
“O mundo coberto de penas” ou “O soldado amarelo” são
metonímicos: as penas, uma parte no lugar do todo, as aves;
o amarelo, a cor da farda do soldado, como sinal de sua
posição social, no lugar do todo, o ser humano que ele é. Isso
porque, como diz novamente Alain Frontier, a metonímia é
um recurso que aproxima o observador da própria realidade
em que está, não o deixando fugir — numa operação de
sentidos totalmente oposta ao que faz a metáfora, que, em
vez de aproximar, distancia e ilude a vista.
Vejamos o que diz Frontier sobre isso:

La métonymie ne se contente pas d’une


appréhension globale et abstraite du monde, elle
veut véritablement voir la chose, et la faire voir.
Pour cela elle glisse sur elle, sans la quitter, elle
tourne autour d’elle, cherche le bom angle, le bon
cadrage, comme un photographe qui voudrait en
donner une vue inattendue, s’éloigner de la manière
convenue de la regarder. [...] (FRONTIER, 1992,
p. 74)

[Tradução : A metonímia não se satisfaz apenas


com uma apreensão global e abstrata do mundo,
mas quer verdadeiramente ver a coisa e fazê-la ver.
Para isso, a metonímia desliza sobre a coisa que
focaliza, sem perdê-la de vista; ela dá uma volta
em torno da coisa mesma, busca um bom ângulo

64 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

de visão, um bom enquadramento, assim como


o faz um fotógrafo que quer atingir uma vista
inesperada, distanciando-se dela da maneira mais
conveniente para poder fitá-la.] Disciplina 1

A diferença básica entre a metáfora e a metonímia é que,


enquanto a metáfora idealiza e substitui o mundo objetivo
por outro, distanciando-se do primeiro, apagando-o para
trazer à cena uma realidade segunda e ilusória, embora
entre um e outro haja pontos de conexão e semelhança, a
metonímia, ao contrário, não foge de representar o mundo
que se tem sob a vista, o mesmo mundo, não outro, sem
visar a uma substituição de um por outro, enquadrando-o,
mirando-o em seus detalhes significativos, para melhor dar
conta da representação dessa realidade.
A metáfora, como já foi posto aqui, faz o observador
distanciar-se do mundo em que está para ir em direção
de outro melhor ainda, evitando o sofrimento, buscando
uma realidade que seja suportável, como disse Frontier.
No caso da metonímia, se o observador se afasta do seu
campo de visão, isso não ocorre porque ele queira fugir do
seu mundo para encontrar outro melhor; ele se afasta, mas
provisoriamente, para ter um melhor ângulo de visão, para
melhor enquadrar, como um fotógrafo, a coisa que ele mira.
Não há, assim, outro mundo, mas só um, o mesmo em que
já se encontra, enfrentando-o. É essa a lição de Graciliano
Ramos, sem dúvida. Isso tudo é informado literariamente
por esse autor, ao privilegiar a metonímia no plano da sua
construção estética e, ao mesmo tempo, rejeitar a metáfora
como tropo único de composição

Referências
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio.
Vários escritos. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
p. 235-263.

Nesse ensaio, Candido discute as três dimensões do texto literário:


conhecimento, expressão, construção de objetos autônomos. Sua
leitura é fundamental e imprescindível para entender essa noção.

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Teoria da Literatura 1

BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985.

Bosi também trata do assunto que Candido tratou no ensaio “O direito


à literatura”. Partindo de uma teorização do literário com base no
pensador italiano Luigi Pareyson, ele sustenta a ideia de que a arte é
um fazer, um conhecer e um exprimir.

a
Atividade de Aprendizagem
Texto para aplicação:

Não há obra de arte sem forma e a beleza é um problema de


técnica e de forma. Charles Lalo chega a afirmar que o “sentimento
técnico” é o único a ser diretamente estético por si mesmo. E, com
efeito, todo e qualquer sentimento outro, toda e qualquer verdade,
toda e qualquer intenção, não consegue se tornar beleza, se não
se transformar nesse sentimento técnico, que contempla o amor, a
verdade, a intenção social e lhe dá forma. Forma estética, isto é, a obra
de arte. Não mais a realidade, mas como que o seu símbolo — esse
formidável poder de convicção da beleza que a torna mais real que a
própria realidade. O artista de mais nobres intenções sociais, o poeta
mais deslumbrado ante o mistério da vida, o romancista mais piedoso
ante o drama da sociedade poderão perder até noventa por cento do
seu valor próprio se não tiverem meios de realizar suas intenções, suas
dores e deslumbramentos. Ou então qualquer contista de semanário
religioso seria melhor do que Machado de Assis!

(ANDRADE, Mário de. A raposa e o tostão. In: ANDRADE, Mário de.


O empalhador de passarinho. 3. ed. São Paulo: Martins; Brasília: INL,
1972. p. 101-107.)

Questão:

O texto crítico de Mário de Andrade acima transcrito, a respeito da


concepção de arte e de literatura, casa-se bem com determinada
noção desenvolvida na Poética de Aristóteles e afasta-se bastante da
teoria de Platão sobre a poesia. Defenda esse argumento, comprove
com fragmentos do texto e justifique sua resposta.

66 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

1.2.6. OUTROS CONCEITOS DE LITERATURA

1.2.6.1. CRIAÇÃO, INVENÇÃO, REPRESENTAÇÃO Disciplina 1

Rótulos existem aos montes, e cada um tem uma história


particular que pode ser aqui contada e examinada. Pode-
se dizer que a literatura é uma criação, uma invenção, uma
representação, uma produção. Já houve uma época em que se
falou da literatura como uma criação do espírito, algo que
brota simplesmente da mente privilegiada do escritor, que,
mal olhando o mundo a seu redor, cria do nada o seu texto,
como Deus, também do nada, criou o mundo, no momento
em que achou isso conveniente. É uma forma mítico-religiosa
de encarar a arte, tendo no romantismo o seu momento
mais propício para figurar, já que os românticos se achavam
o centro de tudo, em sua exacerbada individualidade e
subjetividade. Os românticos não se achavam, portanto,
devedores do mundo para receber dele o alimento, ou a
matéria, e a partir disso escrever; na sua ousadia e orgulho
desmedidos, achavam que eles, sim, é que criavam o mundo.
Encarar a literatura como invenção vem logo depois dos
românticos, como explica Perrone-Moisés (1990, p. 101)
a respeito desse conceito. Inventar, termo que sugere uma
genialidade nata do escritor, diferiria de criar porque, para
a invenção, é necessário manipular dados do real, meter a
mão na massa, como se diz popularmente, e, com dados já
existentes e devidamente transformados pelo escritor, este
faria o seu texto, que se destacaria na comunidade de escritores
pela sua capacidade extremamente rara e completamente
inovadora. O termo circulou entre os vanguardistas do início
do século XX, época em que se valorizaram a extravagância, a
transgressão e a superação dos limites, contra tudo que já tinha
sido feito antes, agora considerado um tanto inexpressivo e
antiquado.
Representação é termo velho e já conhecido nosso: vem
de Aristóteles, por exemplo. Ao representar, o escritor toma
como base um real existente e prévio que ele transportaria
para o texto, melhorando-o, dando-lhe uma feição estética.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 67


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Teoria da Literatura 1

Comparando com os conceitos anteriores, tanto o ato de


representar quanto o de inventar são operações que necessitam
de recorrer a algo já existente no mundo. A representação
precisa da realidade, para tomá-la como modelo, sendo-lhe
mais ou menos fiel, para cima ou para baixo; a invenção
precisa do escritor e da manipulação que ele faz de elementos
da realidade, cuja realização ele elevaria a uma condição
superior e supostamente original. Dos três conceitos, apenas
criar é que dispensa o mundo e os dados da realidade, pois,
como Deus, que criou do nada, o escritor precisaria apenas
da sua capacidade intuitiva e iluminadora, tal como ocorre
com os seres extraordinários, quase divinos.
Mas, dos termos mencionados aqui, parece que o termo
produção é o mais adequado para identificar ou designar a
literatura, tal como a entendemos hoje. As razões são várias:
em primeiro lugar, levando em conta o étimo da palavra,
“produção” retoma a ideia de “fazer”, do grego poíein, raiz
de poíesis, que deu “poesia” na Antiguidade, como já vimos
antes, ao tratar dessa noção em Aristóteles, do jeito como
aparece em sua Poética. E essa apropriação do filósofo não tem
nada de arcaica, ao contrário, pode ser atualizada, sempre.
Além disso, “produção” remete à ideia de trabalho, não de
inspiração (que está bem traduzida em “criação”, termo de
fundo mítico-religioso) nem de genialidade (como se pode
ver em “invenção”). Há tempo que já se perdeu o matiz
sagrado do ato literário, que não se faz por acaso nem quando
menos se espera, como se o escritor não precisasse decidir
quando e como escrever. Mas cada vez mais se sabe que o
trabalho da literatura é, primeiro, como o próprio nome diz,
um trabalho; e, segundo, justamente por ser trabalho, resulta
de um esforço cognitivo e racional, na intenção de escrever
um texto que possa ser considerado literário. Produzir, e não
criar, faz pensar que a literatura se realiza quando se quer
de fato realizar, mediante um planejamento, um projeto de
escrita, e não porque se dê magicamente, inesperadamente,
ao sabor dos ventos e da chuva, pegando o autor de surpresa.

68 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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1.2.6.2. PRODUÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO

Produção é também, fora esses sentidos postos acima, Disciplina 1


um termo atual, moderno, condizente com os tempos
industriais, mercadológicos, cujos produtos têm uma feição
coerente com a época em que se produzem. Dizer que um
texto literário é produzido implica dizer que ele faz parte do
chamado mundo da produção e da economia e que um texto,
assim considerado, vale tanto quanto um guarda-chuva.
Leyla Perrone-Moisés deixa isso muito claro ao afirmar:

Essa é uma palavra marcadamente materialista. Em


economia, produção é a criação de bens e de serviços
capazes de suprir as necessidades materiais do
homem. Produção implica quantidade de objetos
e coletividade de produtores e consumidores. Não
tem, portanto, qualquer conotação sobrenatural
[...] Inserido num processo de produção, o texto
fica equiparado a um produto do mundo industrial,
como um guarda-chuva ou uma máquina de
costura. (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 101)

O autor de um texto literário de certo modo diz que


realiza o seu texto, que o produz. Graciliano Ramos deixou
isso subentendido em Vidas secas: revelou que a metáfora,
como já comentei aqui, não convém ao mundo narrado
que ele explana e comenta, mas a metonímia, sim, é que é
o recurso que interessa a esse mundo fabulado. Vejamos este
poema de João Cabral de Melo Neto, “Tecendo a manhã”,
que, já pelo título, dá a entender que o poema é produzido e
não criado magicamente num inspirado sopro de voz. Muito
pelo contrário, Cabral mostra mesmo que o poema é escrito,
pensado, raciocinado, tecido, produzido, fabricado.

Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 69


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e o lance a outro; e de outros galos


que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,


se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra,


1966)

Nesse poema, João Cabral de Melo Neto diz, de modo


metafórico, que um “galo sozinho não tece uma manhã”,
servindo-se, para compor esse verso, de um conhecido dito
popular que diz que “uma andorinha só não faz verão”. No
lugar da andorinha, o poeta pôs o galo. Porque o galo canta,
logo cedo, anunciando a manhã; e, por metáfora, o canto
pode muito bem ser o sinônimo de poema, que um dia já
foi cantado e musicado, acompanhado ao som de uma lira.
Já a manhã, ou a aurora, pode ser metáfora do despertar,
do momento inicial de ir ao trabalho. E esse trabalho é o
trabalho da poesia, portanto. Por esse trabalho ser igual ao do
tecelão, que tece o tecido, o poeta, por analogia, é aquele que
trabalha e tece o texto. Aliás, a palavra “texto” vem de “tecido”.
Hodiernamente, esse sentido perdeu-se, apagou-se; ninguém
mais lembra que tecido, no latim, era textu. Tecido: texto ::
texto: tecido. O substantivo “texto” já não remete a “tecido”,
mas o adjetivo que corresponde a “texto”, que é “têxtil”, sim,
continua a lembrar sua origem etimológica. É só lembrar que
ainda se diz “indústria têxtil” para se referir à indústria que
produz tecidos. Ninguém, ao ouvir tal expressão, imagina
que se trata de uma indústria de produção de textos escritos,
poemas entre eles.

70 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

No poema, para tornar evidente que literatura é um caso


de produção, como outro qualquer, é dito que é necessário
um conjunto de galos para dar conta desse trabalho. Um
trabalho coletivo, pois. Um galo precisa sempre do outro: Disciplina 1
“para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá tecendo,
entre todos os galos”.
O leitor deve ter percebido que as frases, na primeira
estrofe, parecem incompletas, com falhas, lacunas, com
palavras faltando: “De um que apanhe esse grito que ele / e
o lance a outro; de um outro galo / que apanhe o grito que
um galo antes / e o lance a outro; e de outros galos / que com
muitos outros galos se cruzem / os fios de sol de seus gritos
de galo, / para que a manhã, desde uma teia tênue, / se vá
tecendo, entre todos os galos”. Se fôssemos recompor as frases
(apenas como exercício didático, nunca para completar o que
o poeta, propositadamente, deixou em aberto), diríamos:
“(Precisará) de um galo que apanhe esse grito que ele (lançou
antes) e o lance a outro (galo); de um outro galo que apanhe
o grito que um galo antes (lançou) e o lance a outro; e de
outros galos (para) que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde
uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos”.
Se pensarmos que o poema inteiro é, de fato, o tecido
que se vai tecendo aos poucos, entre os dedos do tecelão,
ajudado pela sua antiga máquina de tecer, o tear, podemos
crer, sem exagero algum para a análise, que, no início, os fios
de algodão não se entrelaçam totalmente, deixando espaços
a ser ainda preenchidos. As lacunas no texto — a pressentida
e constatada falta de termos, conforme apontei acima — são
justamente esses “buracos” que o pano tem, no início da sua
fabricação, porque os fios ainda estão se amarrando, não se
amarram de vez. À medida que o tempo, porém, vai passando,
o trabalho vai se completando, se realizando, de modo que
os buracos, que eram muitos no início, vão diminuindo e
tendem a desaparecer, porque, então, o pano, quase ao fim
dessa operação, vai ficando cada vez mais encorpado. Note-
se que a linguagem mimetiza o próprio ato de tecer, fazer o
pano; mas o que se faz é o poema, aos olhos do leitor, como
se diante dele ainda estivesse o poeta escrevendo, compondo.
Pensar o poema desse jeito é pensá-lo como produção, uma

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 71


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ação material que se realiza e que pode ser presenciada, pois a


escrita nunca se dá num jato. Constrói-se aos poucos.
Na segunda estrofe, acabado o tecer do tecido, o poema
se separa do produtor e voa para bem longe, transformando-
se, agora, em outra metáfora: “luz balão”. O poema se
autonomiza, como diz Antonio Candido, não sem ele antes
revelar que se realiza, que se produz, aos poucos, lentamente,
num trabalho muito parecido com aquele do tecelão. A
diferença é que um usa palavras; o outro, os fios de algodão
para formar o tecido. São ambos, porém, produtores de algo,
realizadores de uma ação — a poíen grega — da qual resulta
um produto novo, separado do produtor e da própria ação
produtora, a qual se acaba assim que o produto nasce e se
oferece à vista de todos.
Como tenho procurado mostrar, a ênfase na visualização
do momento da produção do texto (Aristóteles chamaria isso
de “execução”, como está no capítulo IV da Poética, e Antonio
Candido, de “construção de objetos autônomos”) aparece, de
um modo ou de outro, nos textos literários. Cabe ao leitor
aguçar a vista e apreender esse momento tão importante
da produção do texto que deixa suas marcas nas palavras
escolhidas, nos movimentos do texto; e é por esse viés que se
sabe que a dimensão da construção dos objetos autônomos, na
apreciação da literatura, é mais importante do que qualquer
outra dimensão, como a da expressão ou a do conhecimento.
Entender o texto nessa circunstância é entender os mecanismos
de sua produção, cujo reconhecimento por parte do leitor,
em uma leitura crítica e avaliadora da qualidade literária
do texto, importa muito mais do que simplesmente fruir o
poema ou entender a história que se conta em uma narrativa.
O leitor comum, não especializado, decerto preferirá ter seu
prazer de leitura concentrado na camada do conhecimento,
no dizer de Antonio Candido. O leitor crítico, que este curso
está formando, pensará de outro modo, pois preferirá pensar
a literatura como um trabalho ou produção.
Fechamos esta unidade com considerações teórico-
críticas de autores contemporâneos, como Antonio Candido,
Leyla Perrone-Moisés, Alain Frontier. Como se pode
perceber, a teorização de Aristóteles em torno da mimese e
do caráter produtor da poesia — com o que procurei suavizar

72 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

e neutralizar a carga de imitação que o termo grego encerra,


apontando, antes, para o enlace que há entre mimese e poíesis
— não envelheceu. A pecha negativa que recaiu sobre a
mimese começa no alvorecer da chamada era romântica, que Disciplina 1
desprezou propositadamente as lições dos clássicos e, com
certa razão, acentuaram a deturpação do conceito aristotélico
operada pelos renascentistas, desde o século XVI, quando a
mimese foi reduzida a ser apenas imitação, sem que, naquele
momento, se pudesse ou se deixasse enxergar o caráter
produtivo do termo e sua aplicabilidade à leitura crítica da
literatura.
Autores como Antonio Candido ou Leyla Perrone-
Moisés, embora não citem Aristóteles, não negam a sua
influência nos atuais estudos literários. Quando Antonio
Candido fala de “construção de objetos autônomos”, está
relendo o filósofo. Mimese é também execução, produção,
construção — um termo ativo, representante de uma ação
produtora de linguagem. O arrepio que ainda causa o termo
mimese tem muito a ver ainda com a sua condenação pelos
românticos, que, ao invés, preferiram falar de expressão
individual para definir o campo da literatura, justificando a
derrocada da perspectiva clássica em nome da individualidade
criadora tão defendida a partir de então.
No entanto, a história da mimese não acabou; pode ser
revista e redimensionada. Luiz Costa Lima, desde 1980,
com a publicação de Mímesis e modernidade, vem tentando
rever o conceito e aplicá-lo, em consonância com as recentes
pesquisas na área da linguística, da sociologia, da estética,
da história e da antropologia literária de Wolfgang Iser.
Por enquanto, antes de irmos consultar a obra um tanto
movimentada de Costa Lima, que ainda não apaziguou o
conflito da releitura da mimese contra outras modalidades
de compreensão terminológica e científica que a cada dia
se vem somar aos estudos literários, guardemos a noção de
que o texto literário e sua configuração estão em permanente
discussão, renovando sempre seus quadros. E que a teoria da
literatura, como ciência, também testa continuamente seus
próprios dizeres e categorias de análise.
Por ser a literatura um objeto construído, como foi dito
no início desta unidade, e não uma coisa que esteja para

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 73


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Teoria da Literatura 1

sempre definida, e por ser um produto histórico que interage


com a vida social dos homens organizados em uma cultura, é
natural que se entenda que a solução de uma definição esteja
ainda longe de ocorrer. Fiquemos, pois, com a discussão
sobre esse tema, desde os gregos antigos, como Aristóteles,
que tem muito ainda a contribuir, e o diálogo, sempre
produtivo, com os teóricos do presente, que ora invalidam
as conquistas terminológicas e conceituais do passado, ora
as recuperam, no intuito de promover o debate, saudável e
proveitoso, sempre.

Referências
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A criação do texto literário. In: PERRONE-
MOISÉS, Leyla . Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.

Nesse ensaio, a autora discute os vários conceitos de literatura:


criação, invenção, produção, expressão e representação. Analisa-os
criticamente e teoriza a esse respeito.

a
Atividade de Aprendizagem
Texto:

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou


pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento,
duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira
é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto
autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito
ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a
sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre
este livro e o Pentateuco.

(Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, capítulo 1,


publicado em 1881)

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Teoria da Literatura 1

Questão:

Tomando como base o trecho inicial do romance Memórias póstumas


de Brás Cubas, diga em que medida o narrador discute o processo Disciplina 1
mimético, destacado por Aristóteles em sua Poética, e que concepção
de literatura se pode aí perceber, adaptando a discussão feita a esse
respeito por Leyla Perrone-Moisés ao texto de Machado de Assis.
Justifique sua resposta, comprovando.

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UNIDADE 2
Disciplina 1

Gêneros
literários:
o lírico e o narrativo

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2.1. INTRODUÇÃO À QUESTÃO DOS GÊNEROS

O gênero lírico compreende a poesia lírica em suas Disciplina 1


variadas formas e manifestações, como o soneto, a lira, a
nênia, o epitalâmio, o madrigal, o rondó, a balada, a ode,
entre tantas outras espécies. Em geral, o poema lírico, que
surgiu na Antiguidade, é uma expressão individual, em
oposição à epopeia, que é um canto ou celebração de ações
coletivas, em nome de certo ideal de agrupamento humano,
com suas tradições, história e valores de uma raça ou de um
povo. A poesia lírica ignora essa dimensão coletiva e volta-
se exclusivamente a problemas humanos vistos sob uma
perspectiva mais intimista ou peculiar a um sujeito apenas.
Por isso é que, em princípio, o poema lírico traz uma voz
ou uma modalidade vocal privilegiada, única, inconfundível,
que parece falar apenas em seu próprio nome. O ditirambo,
nesse sentido, é considerado o precursor do poema lírico,
como já tinha dito na primeira unidade, quando apontei para
a tripartição dos gêneros, de acordo com a distribuição das
espécies literárias conhecidas na época de Aristóteles naqueles
três modos discursivos (narrativo, dramático e misto).
Há, na teoria literária, divergências quanto a uma divisão
da literatura em gêneros ou de classificação, ainda que se
aceite a divisão clássica em gênero lírico, gênero narrativo
e gênero dramático. Às vezes, no lugar de dizer gênero lírico,
diz-se simplesmente lírica, com o adjetivo substantivado,
em sua forma feminina. Dito desse outro modo, o gênero
deixa de ser um compartimento específico na tipologia dos
gêneros, como se fosse uma gaveta na qual se encontrassem
apenas os poemas que, supostamente, pertencessem a ela e a
ela devessem estar sob sua guarda, para transformar-se numa
qualidade que pode se achar no poema lírico, sobretudo,
mas também em outras espécies não necessariamente e
previamente rotuladas de líricas. Desse modo, pode haver
lirismo em um romance ou em uma peça de teatro, não apenas
no chamado poema lírico. “O lirismo”, assim encarado, “é
uma maneira especial de recorte do mundo e de arranjo da
linguagem” (CARA, 1985, p. 7).

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O que isso quer dizer na prática? Quer dizer que na espécie


literária lírica o mundo ainda interessa, ele não é eliminado,
mas é submetido a uma impressão que dele tem o sujeito
que o observa e sente, refletindo-se isso na linguagem. Afinal,
literatura é um ser de palavras. Selecionadas e combinadas,
as palavras dizem muito pelo seu tom, pelo seu arranjo, pela
sua musicalidade, mais do que pelas palavras significam em
si mesmas, extraídas que são do repertório linguístico de uma
comunidade linguística, de um país, de uma cultura, de uma
região, enfim.

2.1.1. A POSIÇÃO CLÁSSICA

É evidente que, quando se começou a pensar em poesia


e em gêneros, algo ainda meio difuso e esfumaçado — o
pai de todos esses estudos é Aristóteles, sem dúvida —, se
pensou também em fixar os conceitos, tornando-os eternos,
inalteráveis e imutáveis. Os clássicos, sobretudo os clássicos
modernos, que vieram com o Renascimento, encarregaram-
se de tal fixação de modelos e regras, congelando a poética
numa doutrina ou num receituário. Tomando como base
a divisão feita por Aristóteles da poesia em três modos, o
(1) processo narrativo e o (2) processo dramático e, ainda,
o que mistura esses dois, que é o (3) processo misto, os
poetólogos renascentistas, a partir do século XVI, criaram a
tripartição dos gêneros: do modo narrativo, fizeram derivar o
gênero lírico (aquele em que o poeta fala e só ele fala, em seu
próprio nome), e do modo dramático fizeram surgir o gênero
dramático, aquele que nasce das explicações em torno da
tragédia (e, por extensão, da comédia, ainda que Aristóteles
mal tenha se referido a esta última). Já o gênero narrativo
ou épico surgiria da teorização sobre o modo misto, já que
nas espécies narrativas tanto fala o narrador quanto falam as
personagens (caso da epopeia, do romance, do conto e da
novela, principalmente). Para aquele período de investigação
teórica, os gêneros são puros e não se misturam, ou não
devem se misturar jamais, como se fossem caixas em que se
guardassem as espécies literárias, ou gavetas.
Considerar os gêneros trocando linguagens e
características entre eles, intercambiando procedimentos

80 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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e atitudes, já é uma abordagem posterior na história da


literatura; surge com os primeiros românticos que, no afã
de distinguirem-se dos clássicos, promoveram a primeira
revolução anticlássica, em nome do hibridismo dos novos Disciplina 1
tempos, tempos industriais e capitalistas, em que as classes
sociais se misturam, dialogam entre si, confrontam-se, criam
conflitos, debatem-se numa nova ordem econômica e social.
Enquanto duraram os estamentos do velho regime feudal
aristocrático — porções que não se misturavam jamais —,
onde tudo tinha uma face delineada e inconfundível, separada
cada coisa do seu contrário, enquanto durou essa situação
socioeconômica, os gêneros foram tidos por compartimentos
estanques e inalteráveis. Foi apenas com a ideia de revolução,
trazida pela Revolução Francesa, no fim do século XVIII,
que se iniciou uma revisão de valores em todas as instâncias,
inclusive no campo dos estudos literários. A vida é, por
definição, impura e sujeita a intempéries, mudanças,
alterações bruscas (a Revolução que o diga); e, sendo assim,
por que não o seria na área do pensamento e da arte? Não era
mais possível manter a separação e a pureza dos gêneros. Um
texto podia ser narrativo mas de toques líricos, o elemento
trágico e o elemento cômico poderiam fundir-se e daí nasceu
o drama moderno. A comédia, antes uma espécie dramática
menor, começa a crescer esteticamente e tornar-se uma
etiqueta a ser considerada, estudada, praticada, valorizada.
Do romantismo aos nossos dias, a história literária viu
pulverizar-se a rigidez das classificações clássicas e começar a
hibridização das formas. Voltemos a explorar o gênero lírico.
Seja o lírico um gênero, seja uma qualidade da
linguagem sem prender-se a uma etiqueta de gênero, tal
manifestação de linguagem se reconhece sempre que o que
avulta não é a objetividade do relato mas a impressão que
os elementos colocados de fora do sujeito provocam na
intimidade da voz que enuncia. Por isso não importa se o
poema vem na primeira pessoa (um eu que fala, parecendo
simular a presença física de um ser humano) ou na terceira
pessoa (desaparecida a presença física do sujeito, fica apenas
a voz, que, mesmo não dizendo “eu”, mantém a modulação
intimista da consideração que faz ou de si ou das coisas que
estão em volta, a chamada realidade circunstante, objetiva). O

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Teoria da Literatura 1

que importa, por conseguinte, não é a existência gramatical,


no texto, desse eu que se diz e se autoproclama “eu”, mas,
sim, a tonalidade da voz, sua maneira de falar, seu modo de
encarar o mundo ao redor. Daí existirem poemas líricos na
terceira pessoa também, e eles são muitos. Dessa maneira,
antes mesmo de procurar regras rigorosas e definitivas para
isolar e definir o gênero — nosso tempo nem permite mais
tal rigidez e enquadramento preciso das coisas —, é preciso
ter consciência de que, como acontece com a vida, tudo se
mistura e se contamina mutuamente.

2.1.2. A POSIÇÃO DE EMIL STAIGER

Foi talvez por isso que um teórico alemão, Emil Staiger,


em seu Conceitos fundamentais de poética, livro de 1952,
optou por outra saída na hora de falar dos gêneros literários.
Staiger preferiu dizer que se trata de estilos, não de gêneros.
Haveria, desse modo, um estilo lírico, um estilo narrativo e
um estilo dramático, pois

na mesma obra podem confluir diversos gêneros


literários, embora se verifique a predominância
de um deles [...] porque a forma adjetiva evita
as errôneas implicações adstritas às formas
substantivas (ideia de separação estanque, pureza
total etc.). (SILVA, 1976, p. 224).

Staiger acresceu à interpretação dos gêneros uma


dimensão histórica que inexiste nas várias poéticas, antes
preocupadas em falar de técnicas de composição do texto
literário, como se este fosse eterno e desconhecesse os
movimentos do tempo e da história. Centrando sua teoria
na noção de temporalidade, o teórico alemão afirma que a
essência do homem é a temporalidade, na qual, revendo-
se os conceitos tradicionais, o lírico seria uma espécie de
“recordação”, o épico uma “apresentação” e o dramático,
uma “tensão”. Olhando bem os termos, percebe-se que
eles se correlacionam, respectivamente, com o passado, o
presente e o futuro. Fundamentalmente, Staiger quer, com

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Teoria da Literatura 1

isso, evitar repetir o que ele considera erro das várias poéticas:
o congelamento das formas em compartimentos estanques,
eternos e imutáveis, como a Ideia platônica.
Disciplina 1
2.2. O GÊNERO LÍRICO

Acima comecei a delinear a questão dos gêneros — o


nascimento dessa ideia, sua sistematização e organização
nas poéticas, suas relações com a história, sua tendência, no
mundo atual, à hibridização das suas formas mais variadas
— e agora venho dissecar o gênero lírico com mais ênfase e
particularidade.
Seja um gênero, seja, então, um estilo, como quer Staiger,
o lírico é um modo especial de ver o mundo, com o privilégio
de que quem vê o mundo é aquele que reina absoluto nessa
visão, não compartilhando nem dividindo com nenhum outro
ser a percepção do real. É o que se convencionou chamar de
eu lírico. Este não deve ser confundido com a figura empírica
do autor, que é bem distinto e potencialmente diferente
do ser de papel que dirige o olhar de dentro do poema. O
eu lírico, portanto, é um ser ficcional, ser produzido pelo
fingimento literário — regra máxima de composição dos
textos literários.
O que faz ou diz esse eu lírico de uma maneira geral?
Sem ser exatamente uma pessoa representada, é apenas uma
voz; às vezes parece que é alguém de carne e osso, parecido até
com alguém que se conhece fora do texto, mas é tudo ilusão.
Não se trata mesmo de um desenho como o que se faz de uma
personagem de romance, que anda, come, ama, mata, sofre,
chora, viaja, vai para onde quer... Não, não se trata de algo
nem parecido, embora não raro pareça ser exatamente isso,
como se vê neste poema lírico do poeta barroco Gregório de
Matos abaixo transcrito:

Soneto a d. Ângela de Sousa Paredes

Não vira em minha formosura,


Ouvia falar dela todo dia,
E ouvida me incitava, e me movia

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A querer ver tão bela arquitetura:

Ontem a vi por minha desventura


Na cara, no bom ar, na galhardia
De uma mulher, que em Anjo se mentia;
De um Sol, que se trajava em criatura:

Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me,


Se esta a cousa não é, que encarecer-me
Sabia o mundo, e tanto exagerar-me:

Olhos meus, disse então por defender-me,


Se a beleza heis de ver para matar-me,
Antes, olhos, cegueis, do que eu perder-me

2.2.1. FUSÃO DO SUJEITO E DO OBJETO

O eu lírico, como se mostra nesse soneto, parece que


é alguém de carne e osso, de existência real, que conheceu
de perto certa d. Ângela de Sousa Paredes. Mulher fidalga
da Bahia? Amada do poeta? Sua musa inspiradora? Quem
é ela? Não se deve ir por esse caminho de averiguação. Que
importa isso, aliás? Resolve alguma coisa? Não interessa saber
quem é a figura histórica dessa d. Ângela ou saber algum
dado que a possa identificar como alguém que viveu na época
do poeta, caso isso não seja apenas um ardil. Pelo nome e
sobrenome, parece ter realmente existido. Seria ela a mesma
d. Ângela dos versos “Anjo no nome, angélica na cara / Isso
é ser flor e anjo juntamente”? Tudo indica que sim. Mas esse
confronto com a história não importa tanto assim para o ato
de leitura crítica do poema (a não ser que, numa perspectiva
histórica, haja o propósito de recuperar os dados históricos e
biográficos da produção literária) nem, principalmente, para
o reconhecimento de que o texto, mesmo sendo o soneto a
forma empregada, é de fato um poema lírico. Apenas quero
mostrar que, como parte do fingimento, o poeta Gregório
de Matos atribuiu senso de realidade à bela senhora que os
versos evocam e homenageiam.

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Se não vem ao caso a comprovação da existência empírica


de d. Ângela de Sousa Paredes para comprovação do estado
lírico do soneto, há, no entanto, dados verbais que parecem
traduzir o máximo de realidade: “Ouvia falar nela a cada dia”, Disciplina 1
“Ontem a vi”. Ao mesmo tempo impõem-se alusões feéricas
ao desenho que o eu lírico fez dessa mulher: “bela arquitetura”,
“Sol, que se trajava em criatura”, “mulher, que em Anjo se
mentia”. Misto de realidade e imaginação, emerge dos versos
uma figura digna de atenção e homenagem. Ora o eu lírico
se aproxima dela, vendo-a como pessoa que realmente existiu
(“Ontem a vi”), ora a idealiza (“Sol”, “Anjo”), criando o jogo
barroco de contraste entre a mais autêntica cotidianidade e o
que há de mais etéreo e espiritual. Entre a sedução inesgotável
da carne e o chamamento espiritual, neutralizando-se ambos
os polos, explode, por fim, a chave de ouro do soneto em
irrefreável tormento e angústia que o eu lírico experimenta
diante da possibilidade de desfrutar materialmente da beleza,
antes mesmo de chegar ao êxtase, só por poder ver essa
mulher, que concentra em si todos esses contrastes: “Antes,
olhos, cegueis, do que eu perder-me”.
Depois dessa breve consideração, é possível entender
por que o soneto é lírico. Primeiro, porque se trata de
uma experiência de linguagem que não se repete; é única,
é realmente uma visão, por mais simples que seja o objeto
observado. A cena lírica, por sua vez, sempre é algo que
irrompe em dado momento (“Não vi em minha vida a
formosura”, “Ontem a vi”), fazendo de súbito o que parecia
longe e distante tornar-se perto, tão perto, que, sem que
se possa prever, se desfaz aos poucos a objetividade do ser,
que se dilui em favor da subjetividade. O resultado é que d.
Ângela agora não é mais d. Ângela da Sousa Paredes, mas tão
somente uma mulher, sem nome e sem definição empírica,
uma mulher “que em Anjo se mentia”; ou nem mulher mais
é, porque agora, em outro movimento do texto, passa a ser o
“Sol, que se trajava em criatura”.
Dessa maneira, o objeto “mulher” funde-se às nomeações
subjetivas “Anjo” e “Sol”, entremostrando-se ambas as imagens
em hesitação profunda, porque ela ou parece que é de fato
uma mulher ou parece que é o deus Sol, elemento mitológico
pagão. Se é mulher, aparece ao eu lírico como se fosse um

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Anjo; e, nesse caso, ao transformar-se nessa metáfora cristã,


faz parte da idealização, numa fuga de realidade total. Mas,
se é Sol, outra metáfora, surge como uma criatura terrena,
desmetaforizando-se, fazendo o percurso contrário do verso
anterior. O verso e o reverso. É mulher ou Sol? Nos dois
casos, contraditórios ambos, nega-se a condição originária,
pois a mulher “se mentia” em Anjo enquanto o Sol “se
trajava” em criatura. Mentir-se e vestir-se como se fosse outra
são sinais inequívocos de que o poema chama atenção para
a construção do seu objeto, autorreferenciando-se, dizendo
que a linguagem de que se serve é caudatária do fingimento
poético, pois “mentir” e “vestir-se” são referências feitas,
na verdade, à atitude do eu lírico e aos procedimentos de
linguagem que ele toma. Mentir e fazer-se passar por alguém
são expressões que fazem parte do mesmo campo semântico
do fingimento, ou seja, da mimese. Isso significa alterar a
forma, transfigurar-se — atos de que somente a arte é capaz.
Parecendo falar dessa mulher que se mente, se disfarça
ou se transfigura em outro ser, em metamorfoses contínuas,
Gregório de Matos fala verdadeiramente do comportamento
estético do eu lírico: fingir com a linguagem, mascarar-
se continuamente, fazendo um ser estar contido no outro,
num processo ininterrupto (a mulher é Anjo que é Sol que é
criatura). Além disso, o que se vê é que os polos do objeto e
do sujeito — vamos chamar de “objeto” todos os elementos
referenciados no poema, como “mulher”, “Anjo”, “Sol”, de
existência comprovável ou não, e de “sujeito” tudo que se
refere à atitude do eu lírico, como “me incitava”, “me movia”,
“querer ver”, “perder-me”, “minha desventura” — terminam
por se encontrar e se chocar, a ponto de não se saber o que é
pertinente ao objeto e o que é relativo ao sujeito. Pois, a certa
altura do poema, o eu lírico pede aos olhos, aos próprios
olhos — como se estes não lhe pertencessem, fossem
autônomos em relação ao eu lírico, separados do seu corpo
— que ceguem, por meio de uma oração optativa, aquela que
exprime desejo, vontade interior (“Antes, olhos, cegueis, do
que eu perder-me”). Os olhos se separam gramaticalmente
do sujeito, porque se transformam, na frase, em vocativo,
um ser com o qual o eu lírico fala, conversa, dialoga. O que
é peculiar ao objeto se torna sujeito, haja vista que a mulher

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faz o sujeito perder o equilíbrio, desequilibrando a frase


enunciada por esse sujeito, como se vê no primeiro terceto,
que contém uma sínquise, uma das mais violentas inversões
sintáticas: Disciplina 1

Matem-me, disse eu, vendo abrasar-me,


Se esta a cousa não é, que encarecer-me
Sabia o mundo, e tanto exagerar-me.

Não existiria essa sínquise se o objeto (representado por


essa mulher) não atingisse de cheio o sujeito enunciador
do poema (o eu lírico). Aqui, finalmente, os dois polos se
encontram e se contaminam mutuamente: é a fusão dos dois
polos. Sobre esse procedimento estético próprio do lirismo,
diz Soares:

E tudo isso é lírico por quê? Pelo que estudamos


antes, já temos a resposta: porque filtrado pela
emoção, porque construído por uma razão
apaixonada, que aproxima sujeito e objeto.
(SOARES, 1989, p. 28; o grifo é meu).

Há um momento alto no poema lírico que é justamente


o encontro dos dois polos, fazendo diminuir ou desaparecer a
distância que havia entre o sujeito e o objeto. Note-se que, ao
iniciar-se esse soneto de Gregório de Matos, o eu lírico nunca
tinha tido a experiência de ver d. Ângela de Sousa Paredes, só
tinha ouvido falar nela. Distância maior, impossível. Nunca
se viram, não se conheciam. O processo de aproximação
dá-se de modo sutil, quase imperceptível. De tanto ouvir
falar nela a cada dia, o eu do poema (que simula ser uma
pessoa de carne e osso) ficou estimulado a vê-la, desejando
ardentemente encontrá-la. Quando, por fim, a viu, extasiou-
se com a sua beleza. Viu naquela criatura um Anjo, um Sol,
embora a consciência do poema avisasse que tudo era um
grande engano, sedutor engano, pois a mulher se mentia em
Anjo, não era Anjo de fato. Depois, diante dele, ela vira um
Sol, que também não é Sol, porque se vestia de criatura.

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2.2.2. A IMPOSSIBILIDADE DE DISTANCIAMENTO


DO EU LÍRICO

A perturbação começa aí, fazendo a racionalidade


escapar aos poucos, perturbar a consciência do eu lírico e
fazê-lo cometer a sínquise que aparece na terceira estrofe.
Perturbação mental, sinônimo de perturbação sintática.
Mas a sínquise existe porque o eu lírico não se distanciou,
ou não pôde distanciar-se de si mesmo, não pôde olhar para
trás, como ocorre num diário em que alguém se confessa a
si próprio, todo dia, mas a cada dia se vê outro, superado
o momento que se foi. No diário, diz Emil Staiger, se
descreve porque quem faz isso nele, em suas páginas, já se
superou, já se distanciou de si e vê, depois, a si mesmo como
se fosse outro; na lírica, ao contrário, o eu do poema, por
não conseguir superar o momento existencial vivido, torna-
se lírico, não autobiográfico. Daí a distinção que o teórico
alemão faz entre lírica e autobiografia:

[...] quem escreve um diário faz também de si o


objeto de uma reflexão. Reflete, inclina-se sobre o
passado. Se se inclina para trás é porque já deixou
para trás o alvo. [...] O autor de um diário liberta-
se de cada dia, enquanto toma distância e reflete
sobre ele. Se não o conseguir, se expressar-se
diretamente, seu diário soará lírico. (STAIGER,
1972, p. 54)

Isso foi o que o eu lírico do poema de Gregório não


conseguiu, não conseguiu superar a si próprio a ponto de
distanciar-se de si; daí — por estar esse eu tão perto do seu
objeto do desejo —, estarem justificadas, por falta de um
distanciamento mais frio, essa perturbação linguística, essa
inversão brutal que é essa sínquise do primeiro terceto. É
lírica essa impossibilidade de sair de si e ver a si mesmo como
se fosse outro, como ocorre no romance ou no romance
autobiográfico, como salientou Staiger. Para tal, é bom
então confrontar uma passagem de abertura do romance
Dom Casmurro, de Machado de Assis, profundamente

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memorialista. Nele, o velho Bento Santiago, já tornado Dom


Casmurro, por sinal uma divisão do eu narrador, olha para
o adolescente Bentinho como se um e outro fossem duas
pessoas distintas e não a mesma, tal o distanciamento que se Disciplina 1
coloca entre o menino e o adulto. A fórmula que comprova
essa separação entre dois, que na verdade compõem uma
só pessoa, é aquela que, no capítulo II (“Do livro”), opõe o
“rosto” à “fisionomia”:

O meu fim evidente era atar as duas pontas


da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois,
senhor, não consegui recompor o que foi nem o
que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia
é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um
homem consola-se mais ou menos das pessoas que
perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.

Como se vê por esse fragmento de Dom Casmurro, dele


se pode dizer tudo, menos que esta seja uma passagem lírica
dentro do romance, porque o eu do presente não se fundiu ao
eu do passado, mostrando-se ambos estranhos um ao outro,
como se fossem até inimigos. Ao dizer “falto eu mesmo”
no conjunto das recordações é porque aquele eu, o Bento
adolescente, se perdeu de vez, sem remédio, não se fundiu
ao velho Casmurro, ficando apenas “esta lacuna” que jamais
será preenchida, porque os eus não se encontraram e não se
fundiram. O eu do passado é analisado como um objeto que
se separou irremediavelmente do sujeito que examina tudo,
ontem e hoje, com os olhos de hoje. Dom Casmurro livrou-
se de Bentinho, vê a si mesmo como se fosse outro. Por isso
é que, repetindo a celebre fórmula, “se o rosto é igual, a
fisionomia é diferente”.
A solução, no caso específico do poema de Gregório de
Matos, para que se acabe o conflito interior e a consciência
do eu lírico olhe para si como se fosse outro — separando
sujeito e objeto, como ocorre no romance de Machado —
seria, uma vez devolvida a racionalidade, perder a visão, ficar
cego, para continuar se preservando, não se perder de vez,
readquirir o controle da situação. Mas, para isso ocorrer, os
olhos, magicamente, deviam se separar do corpo e virar seu

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 89


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confidente, a quem esse eu solicita que fiquem cegos. Com


a cegueira, ganhar-se-ia em racionalidade, como se deu com
Édipo. Mas o desejo do eu lírico é só um desejo, que vem
em forma de frase optativa, não se concretiza e, portanto,
não se objetiva. Tudo se subordina às emoções vividas, que
comandam tudo, sobretudo a razão. Daí, não se dando a
cegueira desejada, o conflito permanece, ponto máximo da
fusão do sujeito e do objeto.

A atitude fundamental lírica é o não


distanciamento, a fusão do sujeito e do objeto, pois
o estado anímico envolve tudo, mundo interior e
exterior, passado, presente e futuro. Por isso Staiger
denomina recordação a essência lírica, levando em
conta a etimologia da palavra, do latim cor- cordis.
Recordação quer dizer “de novo ao coração”,
isto é, aquele um no outro, em que o eu está nas
coisas e as coisas estão no eu. Tal integração só se
admite numa obra lírica idealmente pura, o que
é inconcebível em termos rigorosos. O poema
tende para esta fusão, que será maior ou menor em
função do estado afetivo. (CUNHA, 1976, p. 98)

Referências
LIMA, Roberto Sarmento. Existem poemas de amor? Conhecimento
prático língua portuguesa, São Paulo: Escala Educacional, nº 20,
p. 34-39, [nov./dez. 2009].

Lima observa nesse ensaio que o tema não é propriedade do gênero,


mas é o modo como é tratado o tema que é propriedade do gênero.
O lirismo existe também na prosa, e o exemplo dado no ensaio é o de
Dom Casmurro, no momento em que Bentinho teima em encontrar
uma metáfora para homenagear Capitu, “olhos de ressaca”.

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a
Atividade de Aprendizagem
Texto: Disciplina 1

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,


Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?


Se é tão formosa a Luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz falte a firmeza,


Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,


E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

(Gregório de Matos, “À instabilidade das coisas do mundo”)

Questão:

Lendo o poema acima, por que se pode classificá-lo de lírico? Que


processos se visualizam nele que justifiquem tal enquadramento?
Comente e comprove.

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2.2.3. O DISFARCE NARRATIVO NO POEMA


LÍRICO

Outra coisa importante a verificar no gênero lírico é que,


nele, o discurso não é montado ou organizado para contar
uma história. O lírico não serve para isso; o mundo exterior
não lhe interessa como tal. Afinal, que história se lê no
poema “Soneto à d. Ângela de Sousa Paredes”, de Gregório
de Matos? Nenhuma. Trata-se apenas de um flagrante, um
recorte súbito como um relâmpago irrompendo na escuridão
(“Ontem a vi por minha desventura”), uma casualidade,
um evento, um acontecimento. O poema começa e acaba
quase no mesmo momento em que se dá tal irrupção do
evento, apresentando-o, sem uma sequência ou linearidade
pronunciada, mas talvez, quem sabe, uma leve sequência,
sem maiores movimentos do tempo linear, estes quase
imperceptíveis. Numa narrativa, ao contrário, as coisas
acontecem diferentemente, há no discurso, como pretendo
mostrar mais adiante, uma temporalidade bem marcada,
com um antes e um depois bem delineados, sintaticamente
configurados.

2.2.3.1. O TEMPO DA POESIA: EVOCAÇÃO E


FLAGRANTE

O tempo, na lírica, é uma evocação que dura enquanto


duram os versos. O fim do soneto de Gregório de Matos que
acabei de analisar não é um epílogo ou um desfecho para
essa pequena, digamos assim, “história”, mas um convite ao
recomeço. Quando o eu lírico se conscientiza de que ver a
mulher pode levá-lo à perdição da alma, por causa de uma
entrega sem limites ao desfrute da beleza, símbolo de toda
a vida material, ele pede aos próprios olhos que ceguem.
Isso significa também perder-se, esquecer. E, esquecendo a
experiência vivida, torna a desejar ver a mortal beleza, num
círculo que não fecha jamais, como se o discurso fosse uma
espiral. Não há, pois, começo, meio e fim. Há uma duração,

92 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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um recorte dentro da linha do tempo. Ou uma recordação


de um flagrante qualquer, como diz Emil Staiger, atitude tão
bem lembrada por Helena Parente Cunha, mais acima, na
seção anterior. E o passado, o presente e o futuro se convertem Disciplina 1
num longo presente, que é o tempo mesmo da duração do
enlevo e da percepção do fato.
Eis o que diz Souza sobre o comportamento escritural do
gênero lírico:

O texto não se propõe contar uma história.


Suas palavras não chegam propriamente a
configurar personagens e a descrever cenários, nem
fazem narração de ações ou de acontecimentos; o
que se passa, apenas, é a captação de um momento
emocionalmente especial, e isto através de um
processo muito mais sugestivo e musical do que
lógico e discursivo. (SOUZA, 1999, p. 50).

Em um bom poema lírico de José Paulo Paes dramatiza-


se uma narração de um acontecimento histórico, mas nem
por isso o lirismo fica ameaçado. O poema persiste lírico.
Examinemos:

Do Novíssimo Testamento

e levaram-no maniatado

e despindo-o o cobriram com uma capa de escarlata

e tecendo uma coroa d’espinhos puseram-lhe na


cabeça e em sua mão direita uma cana e ajoelhando
diante dele o escarneciam

e cuspindo nele tiraram-lhe a cana e batiam-lhe


com ela na cabeça

e depois de o haverem escarnecido tiraram-lhe a


capa vestiram-lhe os seus vestidos e o levaram a
crucificar

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o secretário de segurança admitiu os excessos dos


policiais e afirmou que já mandara abrir inquérito
para punir os responsáveis

(José Paulo Paes. Resíduo. 1989)

A passagem histórica, que o poema relata, é a do


Cristo sendo levado ao Calvário para morrer na cruz. O
poema começa abruptamente, como se tivesse havido um
corte de cenas anteriores e preparatórias da cena que se
estampa nos versos, mantendo-se, contudo, seu caráter
narrativo, com aquela habitual sequência linear dos fatos
descritos, em rigorosa ordem cronológica. A ausência de
rimas até poderia, para quem só o ouvisse, fazer confundir
verso com linha contínua e induzir a pensar que se trata de
um texto em prosa. Por isso é que, modernamente, não se
pode dispensar a participação do canal, no caso, a escrita,
o livro, a página em que se publica o texto poético, pois a
aproximação cada vez maior do verso com a prosa impõe a
leitura do texto, não só a sua audição.
Por que, apesar do aspecto francamente narrativo, o
poema de José Paulo Paes é lírico? Não há aí uma história
que é contada? As frases não se sucedem da mesma forma
que os fatos se sucedem, na mesma ordem em que se deram,
segundo nos revela a conhecida história contida no Novo
Testamento, que o poema supostamente reproduz? Não nos
devemos esquecer de que o poema não contém apenas a
história do Cristo condenado à morte, sacrificado na cruz. A
última estrofe — e isso muda tudo — traz um fato da vida
social brasileira, mais comumente encontrado no período da
ditadura militar, após o golpe de 1964, o qual, registrado
em linguagem visivelmente estereotipada, se mistura à cena
do Novo Testamento, porque entre um fato e outro não há
transição, preparação para a mudança dos tempos históricos.
O que só prova que, na lírica, a linearidade do tempo não
existe.
Percebe-se, então, por essa mescla inopinada de tempos
históricos e ambientes sociais, que não se está no campo da
narração, a não ser que algo justificasse a mistura dos fatos, e
no texto não há nada que possa servir de motivação para tal.

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2.2.3.2. A DESIMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA


CONTADA

Disciplina 1
O texto de José Paulo Paes é breve, e os eventos evocados
não se amarram necessariamente. Falta ao lírico, como sempre,
uma explicação para dizer por que aquilo está sendo dito,
pois tudo parece resultar de uma entrada súbita e imprevista
em um assunto. No texto de Paes, isso é denunciado pela
presença da conjunção coordenativa “e” encabeçando o
poema, como se o assunto tivesse sido surpreendido no meio,
como se houvesse algo antes e não há na verdade, ao menos
não foi enunciado:

e levaram-no maniatado

e despindo-o o cobriram com uma capa de escarlata

Não se sabe o que há antes ou o que poderia ter sido


informado antes desse início abrupto. Apesar de o eu lírico
referir-se a uma história bastante conhecida, tem-se aí um
flagrante, um recorte no meio dos fatos cujo início é apagado
e cujo final também o é, porque logo em seguida, sem
transição alguma ou preparação alguma, também de súbito,
se engata a esse acontecimento outro ainda, situado em
tempo histórico e lugar totalmente diversos dos que vinham
sendo tratados:

o secretário de segurança admitiu os excessos dos


policiais e afirmou que já mandara abrir inquérito
para punir os responsáveis

A linguagem, nesse segmento do poema, aquele, para


ser mais exato, que fecha — aparentemente fecha — o
poema, muda radicalmente. De início, cessa o polissíndeto
(a reiteração monótona da conjunção aditiva colocada
sempre no início das orações e dos versos), dando a entender
que o universo comentado já não é mais o mesmo. Nesse
circuito, o eu lírico como que copia uma frase que faz
parte dos noticiários brasileiros no âmbito da reportagem

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 95


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e da crônica urbana policial, aludindo de certa forma a


momentos cruciais da nossa história, como, por exemplo,
a época da ditadura militar quando era comum dizer que
as autoridades iam apurar fatos ligados à violência dos
aparelhos repressivos e seus excessos. O vocabulário, agora, é
praticamente idêntico ao que se veiculava ou ainda se veicula,
em situações semelhantes, nas comunicações oficiais que o
jornal reproduzia ou reproduz. A frase que constitui os versos
finais do texto é estereotipada, sem nenhuma alteração de
seus termos, relativamente à frase original, mantendo-se a
mesma modulação de voz e a mesma sintaxe ordinária que já
se encontram na linguagem dos jornais e revistas publicados
no Brasil ao tratar desse assunto.
Parecem, pois, dois textos que se colam dando aparente
sequência ao tema da violência policial, vindo um após outro,
como se estivessem apenas se somando, embora se refiram
a dois mundos distintos. No entanto, os dois textos não
apenas se adicionam, mas se cruzam, porque a última estrofe
mantém ligação de sentido com o resto do poema, gerando
uma coerência interna muito grande. A última frase parece
referir-se ao que houve no Calvário. Apesar das diferenças
de tom, há uma conexão — rala e quase imperceptível, é
verdade — entre os fatos referidos, já que ambos incidem
sobre episódios de crime e violência física, seja aqui, seja ali.
Fora tal semelhança e unidade, com a relativa conjunção
de assuntos, os fatos focalizados no poema, apesar da coerência
temática que os une, divergem, entretanto, quanto ao emprego
de termos. Na parte em que Jesus é levado ao sacrifício,
abundam termos e expressões que parecem vir do português
de Portugal: “maniatado” (no Brasil se diz “manietado”),
“escarlata” (entre nós é encontradiço “escarlate”), “coroa
d’espinhos” (melhor, aqui, dizer “coroa de espinhos”, soa mais
natural) e “o levaram a crucificar” (no Brasil a locução verbal
seria “levaram para crucificá-lo”, com ênclise do pronome
oblíquo ao infinitivo). Já na última estrofe, a expressão está
como sempre apareceu nos noticiários de jornal e televisão,
sem tirar nem pôr, o que confirma a cristalização desse tipo
de registro verbal, transformado em um chavão. O eu lírico,
passando por cima de realidades históricas e temporais tão
distintas, está querendo mostrar que o que interessa não é a

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Teoria da Literatura 1

história particular dos homens, mas a sua universalidade: a


dor, de que se fala, não é a de Cristo (aqui, mero exemplo)
nem a dos brasileiros brutalizados nas prisões de uma
ditadura (outro exemplo), mas é a dor dos homens que, em Disciplina 1
qualquer lugar e em qualquer tempo, venham a sofrer tal
injustiça. O eu lírico apenas torna subjetivo o tratamento
que dá a essa dor universal, e fala dela com o máximo de
individualidade, ao fazer — Aristóteles diria: ao “executar”
— tais recortes feitos no tempo linear da História e juntá-
los, inesperadamente, no mesmo espaço textual. Enfim, a
história em si não é importante; o que é importante é como
o eu lírico enxerga o problema que anuncia, o modo como
arranja esse tema e lhe dá configuração estética.
A dicção portuguesa europeia confere à parte que fala
de Jesus e dessa passagem comovente do Novo Testamento
um ar de distanciamento para o leitor de literatura brasileira,
simbolizando uma referência a um episódio tão antigo quanto
alheio à nossa realidade, na qual, no entanto, se intromete um
termo regional, “cana”, tipo de caule de plantas gramíneas,
como a taquara, o bambu e a nossa conhecidíssima cana-de-
açúcar, que se menciona duas vezes no texto, aprofundando
assim, em movimento contrário, a fusão do objeto e do
sujeito:

e tecendo uma coroa d’espinhos puseram-lhe na


cabeça e em
sua mão direita uma cana e ajoelhando diante dele
o escarneciam

e cuspindo nele tiraram-lhe a cana e batiam-lhe


com ela na cabeça

A palavra “cana” representa ao mesmo tempo o cetro


do rei dos judeus, como o chamaram (“e em / sua mão
direita uma cana”), e um dos instrumentos de tortura (“e
cuspindo nele tiraram-lhe a cana e batiam-lhe com ela na
cabeça”). Desse modo, tempos e regiões diversas se cruzam
na linguagem, afetando a pureza do relato, que vai de um
extremo a outro no tempo e na geografia, condensando-se.
Aliás, a condensação é inerente ao método de escrita poética,

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 97


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como lembra Ezra Pound, ao evocar o termo “dichten”,


correlato do latim condensare, com que os alemães designam
a poesia, tida por eles como “a mais condensada forma de
expressão verbal” (POUND, 1970, p. 40).
Condensam-se os tempos, fundem-se o sujeito e o objeto
do poema. O sujeito é a voz lírica, não é ninguém, não é uma
pessoa, mas a voz que é a própria tessitura do texto. Como
diz Cara, em um comentário sobre outra poesia lírica, mas
plenamente ajustado ao que venho comentando sobre essa
poesia de José Paulo Paes,

Se alguém perguntasse onde está o sujeito


lírico desse poema, a resposta poderia ser que ele
ocupa um lugar semelhante ao de um pintor ou
cineasta que fosse escolhendo, cuidadosamente, as
cores, os traços, as imagens e relações entre imagens
para seu quadro ou filme.
O sujeito lírico é o elemento que une todas
as escolhas de linguagem de que é feito um texto.
Há, por exemplo, um andamento especial com
os pontos finais e as pausas mais demoradas entre
uma cena e outra, que vai reforçando no leitor a
expectativa de uma relação de familiaridade com o
que está lendo (CARA, 1985, p. 52; os grifos são
da autora).

Não interessa ao leitor, como já afirmei, o fato narrado


em si mesmo, pois, se interessasse ao poema a história de
Cristo em si mesma, estaria garantido o distanciamento entre
o sujeito lírico e o objeto, o fato da morte de Cristo na cruz.
Se, então, isto fosse realmente o foco do poema, não se teria
misturado um episódio (o de Cristo) ao outro (o da história
do Brasil, em suas páginas policiais). E se misturaram sim,
pois não há marcas definidoras de um e de outro, mas, sim,
ausência completa de fronteiras entre eles. É nesse sentido
que Silva declara a respeito da poesia lírica, que não raro
parte de um dado externo ao sujeito — uma história como
essa, por exemplo — mas que, no poema, apenas serve para
repercutir emocionalmente e provocar sentimentos, não se
tornando o fato em si mesmo o fulcro da percepção:

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O mundo exterior, os seres e as coisas não


constituem um domínio absolutamente estranho
ao poeta lírico, nem este pode ser figurado como
um introvertido total, miticamente insulado Disciplina 1
numa integral pureza subjetiva. O mundo exterior,
todavia, não significa para o lírico uma objetividade
válida enquanto tal, pois representa um elemento
da criação lírica somente enquanto absorvido pela
interioridade do poeta, enquanto transmudado
em revelação íntima. O acontecimento exterior,
quando está presente num poema lírico, permanece
sempre literalmente como um pretexto em relação
à natureza e ao significado profundo desse poema
(SILVA, 1976, p. 230; os primeiros grifos são
meus).

2.2.4. A VISÃO DO EXTRAORDINARIAMENTE


NOVO

Como estamos vendo, o poema lírico pode ser escrito na


primeira pessoa (caso do texto de Gregório de Matos “Soneto
a d. Ângela de Sousa Paredes”) ou na terceira pessoa (o poema
de José Paulo Paes, que acabo de comentar). O assunto pode
ser qualquer um: uma mulher, um fato histórico. Ou alguma
coisa da qual nem sabemos com exatidão. Ilustro com o
poema “Algo”, cujo título já traz a pista dessa tendência:

O que raras vezes a forma


Revela.
O que, sem evidência, vive.
O que a violeta sonha.
O que o cristal contém
Na sua primeira infância.

(Murilo Mendes, “Algo”, em Poesia liberdade,


1947)

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 99


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O eu lírico, mais uma vez, não surge como uma


pessoa que fala, mas como uma voz, ou, como afirma Cara
(1985, p. 52), é apenas o elemento catalisador das escolhas
de linguagem que aí estão. Qual o assunto? Talvez, em se
tratando de gênero lírico — ou, melhor dizendo, de lirismo,
pois atualmente é mais coerente falar do estado lírico do texto
do que de gênero lírico, por parecer que essa denominação
tradicional traz características fechadas e encerradas dentro
do próprio gênero, sem poder migrar para outras experiências
discursivas, muitas vezes até contrárias à manifestação lírica
—, nem sempre seja conveniente responder à pergunta “de
que fala o poema”. Pois o assunto não tem interesse objetivo
para o estado lírico da poesia. Tudo, qualquer coisa, pode ser
motivo para deflagrar o lirismo, um pormenor descritivo, um
incidente, um fato, uma lembrança, um episódio extraído da
realidade conhecida, uma pessoa, um dado da natureza —
enfim, o assunto não é importante.
Mas há de existir um elemento externo do qual derive
a poesia lírica. Murilo Mendes toma o pronome indefinido
“algo” para dar título a um poema seu, que está transcrito
mais acima. Se o termo que serve de título já contém essa
carga máxima de indefinição e de indeterminação (talvez,
em português, não exista outro termo, senão este, com igual
ou superior capacidade de exprimir o inexprimível), o texto
é a própria materialização da vaguidade, contaminando a
sequência das frases e dos versos, num alheamento exemplar
aos princípios de coesão textual e conexão sintática. O
leitor desse poema até poderia trocar a posição dos versos e
nada se alteraria quanto aos significados mais profundos do
poema. Essa alteração da forma dada por Murilo Mendes
(que, aqui, é apenas um teste da confirmação do teste da
vaguidade temática, nada além disso) mostra que, na lírica,
inexiste uma amarração temporal como se pode verificar nos
textos narrativos. A fluidez da expressão e a ausência de nexos
temporais e coesivos só revelam que o estado lírico não passa,
como diz Emil Staiger, de uma “disposição anímica”, um
estado afetivo que desconhece limites temporais e espaciais,
como se tudo, enfim, se confundisse numa mesma expressão.
Poderia ficar assim o poema, digamos, neste exercício didático
que proponho mais abaixo e que não deve, entretanto, guiar

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a análise, porque qualquer alteração da forma original do


texto, em literatura, significa transformá-lo em outro, ainda
que a alteração se limite a uma supressão de vírgula:
Disciplina 1
O que o cristal contém
Na sua primeira infância.
O que, sem evidência, vive.
O que a violeta sonha.
O que raras vezes a forma
Revela.

É certo que esse exercício que transformou o poema de


Murilo Mendes em outro, inteiramente outro, não vale para a
análise nem tem a menor importância para captar os sentidos
do texto; mas tem ao menos a vantagem de poder mostrar
que, em alguns casos, a coordenação entre orações ou termos
é de tal forma realizada, sem conexões mínimas para garantir
a coesão do texto, que, se dito de outra maneira, alterando
a ordem das frases, o poema nem assim perde seu ponto de
atração. Não nos esqueçamos, porém, que esse exercício só
aparece aqui porque tem a finalidade de esclarecer que há
poemas breves e de expressão absolutamente flexível, gerando
uma frouxidão enorme de sentidos, ampliando, portanto,
a capacidade de diversificar as possibilidades de leitura.
Quanto mais ambíguo o poema, mais ele se enriquece com
as interpretações a que se submete.
Em “Algo”, pode ser que o eu lírico não tenha exatamente
algo a comunicar, sem querer fazer aqui um trocadilho. A
indefinição semântica contida no título do poema de Murilo
Mendes se espalha e se difunde ao longo dos seus versos, que
não propõem uma inteligibilidade das coisas enunciadas —
“violeta”, “cristal”, “primeira infância” — e sim a própria
falta de sentidos que os termos possam encerrar. Não se
trata de desvendar intelectivamente os objetos, como mais
facilmente é possível fazer no gênero narrativo. Como já
vimos, não há sequência nas frases, não há nexos sintáticos
que as amarrem e as façam ter somente aquela ordem. Por
ser carente de logicidade e coesão textual, o poema não
comunica, não informa, mas tem um ritmo que, por si só,
já é uma modalidade de comunicação. As frases se iniciam

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invariavelmente pela expressão “O que”, na qual o pronome


relativo ou é objeto direto (a forma revela o quê? a violeta
sonha o quê? o cristal contém o quê?) ou é sujeito da oração
adjetiva (o que é que vive?). São perguntas indiretas a um
receptor que permanece sem resposta enquanto dura o
poema, nem as poderia de fato dar, porque também não
se sabe o que se está perguntando, graças à indefinição da
expressão “o que”. “Algo” é, portanto, o que se quer saber
ou definir. Ou descobrir o que se esconde nesse pronome
indefinido, o que está sob ele. O mistério é saber manter a
indeterminação e não decifrar jamais os conteúdos implícitos
dos objetos diretos dos verbos “revelar”, “sonhar” e “conter”.
Com esse artifício, o poeta exacerba o esvaziamento
nocional dos seres que cita, pois o lirismo está mais preocupado
em criar uma atmosfera de emotividade do que propriamente
comunicar uma ideia que tenha lógica e sentido imediato.
A violeta e o cristal, respectivamente um ser natural, vivo,
e um ser mineral, simbolizando com essa extensão toda a
natureza possível, aparecem no poema totalmente desligados
de suas determinações e sentidos lógicos, como se estivessem
aparecendo no mundo agora, somente agora, pela primeira
vez, em condição de virgindade absoluta. Como não se chega
a saber o que a violeta sonha ou o que o cristal contém, na
sua primeira infância — pressupondo-se que o cristal contém
algo que ainda não se conhece ou que a violeta sonha com
algo que nunca será definido —, nem isso é uma prerrogativa
do lirismo, isto é, a explicação de um fato ou de um conceito,
o efeito disso é o aparecimento dos objetos com uma feição
inteiramente nova, extraordinariamente nova, simulando
nunca terem sido vistos antes.
Exigir do poema que ele explique ou se explique é pedir
muito. O momento lírico é único e intraduzível, podendo
também ser traduzido, mas não é esta a sua qualidade
fundamental. Pode-se sair da leitura de um poema lírico
sem desvendar o seu conteúdo lógico e tudo continuar na
obscuridade de antes. É desse “algo” que fala Murilo Mendes,
definindo, sub-repticiamente, a poesia. Mas, claro, tudo isso
é convenção do gênero ou do estilo, não ocorre porque o
poeta não saiba explicar o que quer que seja ou não saiba
explicar os motivos de o poema lírico desejar ter essa feição.

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Faz parte da natureza desse tipo de produção poética, nada


tem a ver com inspiração ou impossibilidade de dizer por que
o poeta foi tomado por uma emoção tal que o deixou sem
palavras. Não, nada disso. É uma convenção, repito. Trata- Disciplina 1
se apenas de uma dramatização da linguagem, chamando
atenção para as características do lirismo.
Talvez um dos traços líricos mais importantes já
enunciados aqui foi o que o crítico português Vitor Manuel
de Aguiar e Silva disse e que citei páginas atrás: para o lírico
não interessa o mundo exterior, a violeta ou o cristal, por
exemplo, como símbolos da vida vegetal e mineral em
sua totalidade, mas a realização de um instante vital que
desconhece o antes e o depois. Trata-se da simulação da
existência de um momento raro, raríssimo, que explode e se
mostra de repente:

O que raras vezes a forma


Revela.

O que se revela não vem ao caso nem cabe perguntar


o que é ao poema, pois isso não é discurso que prime
pela logicidade ou pela resolução de um problema lógico.
Daí a importância, no lírico, da música e das sonoridades
evocativas de um estado de ânimo — o que não deve ser
entendido como retirada do mundo ou fuga da realidade,
nem por parte do poeta nem por parte do leitor, porque isso
é apenas estratégia criativa. A poesia lírica finge eliminar a
realidade e restringir a expressão a uma notação sentimental,
suavemente sugerida por sinais de apagamento do real, como
coloca tão bem Murilo Mendes no poema “Algo”:

O que, sem evidência, vive.

Pulsa o mundo dentro do sujeito lírico, mas não é


preciso que haja evidências, comprovações ou maiores
determinações de linguagem. O mundo apenas pulsa; pulsa
e vive, sem evidências. As palavras desfilam no texto como
se não houvesse preocupação alguma em querer significar
— com elas ou por meio delas — alguma coisa, esse
“algo” distante e aparentemente sem preenchimento, sem

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explicação. Daí se imporem aos versos, por falta de palavra


mais consistente, a musicalidade e o ritmo, que falam, antes
mesmo que as palavras digam alguma coisa com sentido.
No texto aqui analisado, a repetição da expressão “O que”,
recorrente por quatro vezes no texto inteiro, em uma sintaxe
dominantemente coordenada, martela ritmicamente no
conjunto, e só isso importa, não sendo, portanto, nem um
pouco necessário que o texto venha a querer significar algo
além do que a música das palavras já diz ou simplesmente
sugere.
Essa lacuna no campo do dizer e das significações não
é sinônima de precariedade verbal, procura deliberada da
singeleza ou pobreza mental; é, antes, a indicação de que a
lógica cotidiana não faz parte do lirismo ou, ao menos, não é
responsabilidade sua, não é sua obrigação. Com esse artifício,
as coisas parecem inéditas, novas, raras, singulares. O poema
pretende estabelecer uma singularidade tal, que, mesmo
quando fala de velhos temas, surge com uma novidade.

Referências
BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 1985.

No capítulo “O encontro dos tempos”, Bosi estuda o poema


lírico como linguagem extremamente singularizada, ainda que se
dispensem os determinantes e os adjetivos que possam definir os
termos substantivos. Por isso é que, segundo esse autor, o poema,
para concretizar seu enunciado e os objetos que participam desse
enunciado, não tem de ser necessariamente icônico, lembrando uma
imagem, como os concretistas gostavam de praticar, na chamada
experiência verbo-visual do verso. Para tal, basta a singularização da
nomeação dos objetos do poema, os quais dispensam repetição (a
não ser quando necessária à situação lírica) e maior determinação
sintática para que possam assim ser considerados.

104 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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2.2.5. A IMPORTÂNCIA DA VERSIFICAÇÃO

Um capítulo importante para quem estuda o gênero Disciplina 1


lírico é a versificação: a escansão dos versos em sílabas
poéticas, o chamado metro. Metrificar o verso é verificar que
tipo de verso se está usando, se se trata de um decassílabo
(heroico ou sáfico) ou de um alexandrino, o de doze sílabas,
ou se são versos redondilhos, menores ou maiores, a medida
velha medieval. Há muito mais a dizer sobre isso, pois há
versos monossílabos, dissílabos, trissílabos, tetrassílabos e
assim por diante. Mas não basta metrificar os versos de um
poema; é preciso ver se têm alguma importância na hora
de interpretar o texto, se a regularidade ou a irregularidade
métrica desempenham um papel na constituição dos sentidos
do texto poético. Caso não se veja nesse exercício nada que
chame atenção para a análise, não vale a pena então escandir
e classificar versos.
Vejamos um poema em que a versificação pode fazer
sentido. É o poema “Retrato”, de Cecília Meireles:

Eu não tinha este rosto de hoje,


assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,


tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,


tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

O eu lírico desse poema de Cecília faz uma constatação


surpreendente: diante da passagem do tempo, não percebeu
a mudança que se deu no semblante, nos olhos, que se
tornaram vazios, nas mãos, tornadas sem força, frias e

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 105


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mortas, nem no próprio coração, que não dá sinais de vida.


O tema é a transitoriedade das coisas no mundo, tema de
que a literatura se ocupou desde a Antiguidade chegando aos
nossos dias, variando apenas, ao longo de todo esse percurso
temporal e histórico, a maneira como o ser humano reage às
transformações operadas no corpo físico e no estado de alma,
simultaneamente.
O poeta barroco, por exemplo, angustiava-se com
a passagem do tempo; era constantemente solicitado e
estimulado pela vida material para seguir o princípio epicurista
da satisfação dos prazeres mundanos, como o exigia uma época
marcada pelo avanço técnico e desenvolvimento urbano. No
entanto, a sombra dos tormentos da alma, martirizada pela
ação de uma época ainda religiosa, o século XVII — quando
a Contrarreforma mais exerceu seu domínio sobre os cristãos,
conclamando-os à espiritualização da vida terrena, levando-
os a arrepender-se dos pecados enquanto havia tempo para
isso —, produzia toda sorte de dilema da consciência. Os
contrastes do corpo e do espírito justificavam transtornos
de estilo, desde que o parâmetro para julgar a sobriedade da
linguagem ainda fosse guiado por princípios estéticos legados
pela Antiguidade clássica que retornam, vitoriosos, na
Idade Moderna, com o Renascimento, portanto. As formas
conflituosas da linguagem barroca, com suas antíteses,
hipérbatos, sínquises (a mais forte das inversões sintáticas),
hipérboles e certo acumulado de metáforas, preenchiam os
vazios da existência, dando em troca a imagem do luxo e
da exuberância verbal, como se, pelo requinte estilístico e
pelo abuso da linguagem figurada de uma maneira geral,
o mundo material pudesse assim continuar preservado,
enquanto o homem, de outro lado, se preparava para uma
vida ascética e piedosa, conciliando polos, por definição,
irreconciliáveis. Era, pois, comum encontrar nos poemas
daquela época literária versos como estes de Gregório de
Matos, em que a consciência da transitoriedade produz
perplexidade e sofrimento. A solução, estética, era distrair o
homem da presença iminente da morte com jogos verbais,
sempre plásticos e sensoriais, lembrando que a vida existe e
é boa:

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Ardor em firme coração nascido;


Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido Disciplina 1

[...]

Se és fogo, como passas brandamente?


Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

O amor não tem a consistência dos bens que duram, se é


que alguma coisa tem esse privilégio, mas passa como, afinal,
tudo passa, lembrado sempre pela sua contingência, da qual
decorrem modos de ser diversos e contraditórios entre si
(“Se és fogo”, “Se és neve”) através de uma representação
conflituosa para designar o mesmo ser (“Mas ai, que andou
Amor em ti prudente!”). Por não poder ser equilibrada
da maneira como era desejada pelos clássicos, dos quais o
barroco destoa frontalmente, a sua expressão literária desliza
da antítese para o paradoxo e os oxímoros, acentuando o grau
de perplexidade (“Incêndio em mares de água disfarçado”).
O lirismo barroco tem uma configuração, portanto, que se
distingue da dos árcades, que aparecem na centúria seguinte,
e da dos românticos também, mais adiante.
Como, então, o lirismo árcade e o romântico vão
enquadrar o mesmo tema da efemeridade? Para os árcades,
no século seguinte, uma vez recuperado o equilíbrio clássico,
a iminência da morte e a impossibilidade de reverter esse
quadro não perturbam, apesar de tudo, a serenidade do
sujeito, como se vê nestes versos de Tomás Antônio Gonzaga,
na Lira XIV de Marília de Dirceu:

Minha bela Marília, tudo passa;


A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.

[...]

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Teoria da Literatura 1

Ah! Enquanto os Destinos impiedosos


Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.

A naturalidade com que o eu lírico acolhe a notícia da


brevidade da vida e da falta de segurança neste mundo —
diante da possibilidade, fatal, de o destino se voltar contra os
amantes, tal a precariedade da existência — não transtorna
a linguagem do poema, nem causa eventuais excessos
estilísticos, como se deu na literatura barroca. Daí, entre os
árcades, a ausência de requintes e exageros formais, pois nada
perturba a consciência, mesmo que se saiba que “a sorte deste
mundo é mal segura”; ao contrário, tal consciência é apenas
um estímulo para aproveitar o presente em sua plenitude, o
que faz que a frase saia límpida e calma, simples, na ordem
direta, clara, sem ornamentos e desvios sintáticos. A expressão
lírica árcade manifesta-se, assim, sem rodeios e mistérios.
O mesmo, porém, não se pode dizer dos românticos,
que, embora sem os exageros formais do barroco, não têm
a tranquilidade expressional dos poetas neoclássicos. Para
o romântico, no início do século XIX, vivendo uma nova
cultura, a burguesa, que transformou tudo em mercadoria e
aviltou a vida social diante do aviso constante de que tudo
tem um preço, um valor econômico, restam apenas, como
modo de fugir a essa vulgaridade, a evasão e o próprio desejo
de morte, dificultando a fruição do presente, fato que ainda
encantava o homem barroco dividido entre realizar os prazeres
e satisfazer as exigências espirituais. O romântico, portanto,
não tem tempo para celebrar a vida, que é sempre considerada
um peso, e prefere morrer a continuar martirizado; e, de
quebra, sua expressão lírica, sem ser conflituosa como a dos
barrocos (estes, sim, hesitantes entre viver prazerosamente e
atender ao chamado dos céus), é marcadamente desleixada,
porque o mundo material já não tem tanto apelo assim, e a
lembrança da morte parece suavizar tudo, inclusive o apego
a uma palavra estilisticamente requintada. Nesse contexto,
Álvares de Azevedo representa bem essa tendência romântica
de entregar-se, sem resistência, à morte, que é ilimitadamente
um conforto ao espírito, algo até para ser celebrado e festejado:

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Se eu morresse amanhã, viria ao menos


Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã! Disciplina 1

Quanta glória pressinto em meu futuro!


Que aurora de porvir e que amanhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n’alva


Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora


A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

Como se vê, o eu lírico romântico não vê sentido na


vida; antes a morte, pois. A glória está no porvir, no amanhã,
e esse amanhã é a morte, que tanto se deseja (“Se eu morresse
amanhã!”). Viver, ao contrário, é estar preso à “dor da vida
que devora a ânsia de glória, o dolorido afã...”. Morrer é,
enfim, libertar-se disso, pois “a dor no peito emudecera ao
menos se eu morresse amanhã”. E o que possibilita essa bela
passagem é a poesia, que os românticos encaravam como
substituta da vida e como lugar mesmo para fugir daquilo
que tanto os incomoda.
Já o eu lírico moderno, presente no poema “Retrato”,
de Cecília Meireles, que escolhi para fazer parte desta seção
de estudos sobre a poesia lírica, é diferente — quanto ao
enfrentamento do tema da transitoriedade do mundo — dos
seus similares barroco, árcade e romântico. Pode-se dizer que
o eu moderno preserva dos clássicos a sobriedade do dizer,
sua naturalidade expressional, e, como eles, quer comunicar-
se com alguma eficiência, fazendo-se entender. Para isso,
afasta-se daquela modalidade dos contorcionismos barrocos
de linguagem como também do sentimento derrotista dos

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românticos, com aquele derramamento subjetivista que tão


bem os caracteriza.
Pode ser tudo isso também muito controverso, já que o
moderno não é exatamente a síntese dos estilos anteriores,
visto que tem sua autonomia em relação a eles e também,
como ocorre em qualquer época literária e artística, busca
se coadunar com a realidade social que lhe é própria, longe,
portanto, dos estilos de vida dos séculos anteriores — que
podem ser muito bem denominados como “um mundo
caduco”, conforme sentencia, aliás, Carlos Drummond de
Andrade em “Mãos dadas”, no livro Sentimento do mundo:

Não serei o poeta de um mundo caduco.


Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.

Como afirma esse eu lírico de Carlos Drummond, o


moderno quer ser a expressão do seu presente: não olha para
o passado clássico, como os neoclássicos do século XVIII,
na tentativa de restaurar a simplicidade da poesia contra
os excessos do barroco, nem olha, saudoso, para o passado
medieval, como os românticos, insatisfeitos com o presente.
O moderno é a personalidade que visa ao presente apenas
— nem pretende recuperar o “mundo caduco” nem almeja
“o mundo futuro”, que não chegou ainda. A dificuldade em
apreender o moderno é que ele tem “sete faces”, para usar
outra expressão de Drummond: a multiplicidade de focos de
visão da nossa era já produziu um João Cabral de Melo Neto,
econômico e objetivista em seu dizer, tirando dos objetos
suas determinações, e uma Cecília Meireles, mais intimista e
mais evocativa, que se expressa numa linguagem metafórica
às vezes evanescente.
Nesse sentido é que se pode afirmar que há, entre os
modernistas, mais especificamente falando, e nos modernos,
de modo mais geral, muitas tendências concentradas,
chegando algumas, ao contrário do que afirma Carlos
Drummond de Andrade, a lembrar o passado literário, nem
que seja por meio da recuperação de formas clássicas, como o
soneto (aliás, o próprio Drummond, ironicamente, fez isso,
aqui e ali), numa revisão do passado com o qual dialogam

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criticamente. Outra hora, voltam-se para um hermetismo às


vezes implacável, na defesa de certo fechamento do poema
em uma entidade autossuficiente, revelando, assim, que se
está em outra sintonia. Nesse aspecto particular, o lirismo Disciplina 1
moderno difere do lirismo romântico, porque, se este ainda
via na arte uma forma de viver e de existir, uma espécie de
compensação para quem está mergulhado no sentimento de
inutilidade por ainda continuar vivendo, aquele enxerga na
arte um exercício de escrita pela qual o eu lírico exibe suas
virtualidades artísticas.
Em “Retrato”, Cecília Meireles, como vimos, fala da
transitoriedade das coisas, a começar pela aparência física
do eu lírico, e defende que isso é bem natural e aceitável,
fato de que não se pode fugir, como está dito com toda a
clareza possível nos versos 9 e 10 do poema: “Eu não dei por
esta mudança, / tão simples, tão certa, tão fácil”. Enfrentaria
bem o moderno o problema da passagem do tempo, como os
árcades, por exemplo? Se o leitor se ativer ao que diz o texto
em sua camada mais superficial, vai achar que o eu lírico se
conforma com a passagem do tempo, mas não se vê nesses
versos de Cecília nenhum convite para o aproveitamento do
tempo que resta, como se viu em Tomás Antônio Gonzaga.
Há, sim, uma estupefação contida no fim do poema: “ —
Em que espelho ficou perdida / a minha face?”
É nesse momento de análise que se torna operacional e
produtiva a recorrência à metrificação do poema. Sabe-se,
de antemão, que os modernistas fazem poemas livres, sem
metrificação regular, como o faziam os clássicos, e preferem
não se prender a regras tradicionais de construção do verso,
em consonância com o novo tempo, o da velocidade,
do motor, do automóvel, do avião, muito celebrados na
literatura do século XX. Essa nova percepção de realidade
teria deixado caduca a obediência de normas clássicas tidas
por cediças e incoerentes com a noção de liberdade que a
tecnologia avançada trouxe ao homem. No entanto, apesar
dessa liberdade formal, é conveniente, mesmo em um texto
modernista, sempre classificar os versos quanto à metrificação,
porque, disso, pode sair alguma informação estética válida à
interpretação do texto, como pode ser também que não saia

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disso nenhum contribuição. Façamos isso agora, nestes doze


versos:

verso distribuição das sílabas poéticas do poema “Retrato” classificação


1 2 3 4 5 6 7 8 9
Eu não ti nha es te ros to de ho octossílabo
1
as sim cal mo as sim tris te as sim ma eneassílabo
2

3 nem es tes o lhos va zi octossílabo

4 nem o lá bio a mar pentassílabo

5 Eu não ti nha es tas mãos sem for octossílabo

6 tão pa ra das e fri as e mor eneassílabo

7 eu não ti nha es te co ra ção octossílabo

8 que nem se mos tetrassílabo

9 Eu não dei por es ta mu dan octossílabo

10 tão sim pels tão cer ta tão fá octossílabo

11 -Em que es pe lho fi cou per di octossílabo

12 a mi nha fa tetrassílabo

Pelo quadro acima, percebe-se que os doze versos


desse poema têm uma distribuição heterométrica — há
sete octossílabos, dois eneassílabos, dois tetrassílabos e um
só pentassílabo —, o que caracteriza, de algum modo, a
produção poética modernista, que aboliu a isometria na
maior parte das vezes, por considerar que o ritmo do poema
não deve ser marcado pela constância da medida e contagem
de sílabas, mas pelo ritmo que emana das próprias palavras,
na combinação delas sobretudo. Vale lembrar que um verso é
metrificado e tem suas sílabas separadas umas das outras até

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chegar à última tônica, desprezando-se a átona final, quando


a sua contagem se dá em versos paroxítonos.
Aparecem algumas figuras fonéticas que ligam uma sílaba
átona a outra, como sinalefa ou ditongação (“tinha este”, “de Disciplina 1
hoje”, “calmo assim”, “triste assim”, “lábio amargo”) e crase
(“que espelho”), que servem para reduzir o número de sílabas
poéticas e atenuam a pronúncia, dando leveza aos sons.
Apesar da heterometria, vê-se que predomina o verso
octossílabo, com sete ocorrências, das quais ele, de início
para o meio do poema pelo menos, se coloca alternadamente,
entre um eneassílabo e um pentassílabo, e mais para o fim
ele se repete por três vezes consecutivas, formando um
bloco octossilábico. Por que fazer esse levantamento, quase
estatístico? Qual a sua utilidade para a análise? É que,
predominando um tipo de verso — no caso, o octossílabo
—, sente-se que o poema almeja paralisar sua sonoridade,
principalmente quando se vai chegando ao término dele,
fazendo emperrar três versos da mesma medida, antes de o
poema se fechar com um tetrassílabo. Se o tema dessa poesia
é a passagem do tempo, este parece querer parar, por decisão
do próprio eu lírico.
Em auxílio a essa ideia, vê-se que há nos versos anáforas,
que são repetições sempre no início de um sintagma.
De início, já na primeira estrofe do poema, encontra-se a
repetição do advérbio “assim” no segundo verso:

assim calmo, assim triste, assim magro

Também a repetição da conjunção aditiva “nem”, nos


versos seguintes da mesma estrofe:

nem estes olhos tão vazios,


nem o lábio amargo

No sexto verso surge um polissíndeto, com a repetição


da conjunção aditiva “e”, que, ao surgir, já que poderia ser
dispensado o recurso, se coaduna com as anáforas, igualmente
figura de repetição:

tão paradas e frias e mortas

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Por fim, no décimo verso, a repetição do advérbio “tão”


completa o grupo de anáforas e repetições:

tão simples, tão certa, tão fácil

Os recursos sintáticos e fonéticos espalhados no poema


e a presença quase que maciça de octossílabos em meio a
versos heterométricos denunciam um estilo moroso e
lento de expressão, vindo na direção contrária ao que diz
claramente o eu lírico. Para este, a passagem do tempo,
por ser simples e certa, inevitável, não pode surpreender,
ainda que as mudanças ocorridas, tanto no físico quanto no
estado de alma, não sejam percebidas ou notadas ao longo
da transformação. O ar de naturalidade com que o eu lírico
afirma isso — mesmo com a pergunta inquietante ao fim do
poema (“Em que espelho ficou perdida / a minha face?”) —
perde sua razão de ser quando se confronta o dizer do poema,
o seu conteúdo mais claro e explícito, com as artimanhas
do discurso poético, que, por meio de recursos retóricos e
literários, desdiz o que se diz em outro nível de linguagem.
Desse modo, o lirismo é um modo enunciativo que só pode
ser detectado quando se apreendem os sentidos da forma
trabalhada pelo poeta, e não pela informação mais superficial
que se encontra na primeira camada da linguagem, aquela
que é detectada sem esforço interpretativo, sem compreensão
do uso dos recursos estilísticos.
Recorrer à metrificação e ao entendimento do que isso
pode contribuir para a leitura do poema e a outros recursos
que, juntos, possam criar uma atmosfera coesa de leitura
constitui tarefa da apreensão crítica desse tipo de linguagem,
desvelada, assim, em sua unidade composicional.

2.3. O GÊNERO NARRATIVO

O gênero narrativo tem uma história longa, com seu


início estimado no período das antigas epopeias gregas, como
as de Homero, a Ilíada e a Odisseia, compostas ou no século
IX a.C. ou no VIII a.C., a depender de alguns tratadistas

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e historiadores que se ocuparam da delimitação de épocas


literárias e que, por falta de um material mais preciso que
comprove datas e séculos em torno da produção homérica,
oscilam ao demarcar balizas temporais. Tais obras tinham Disciplina 1
também valor histórico, ou sobretudo valor histórico, uma
vez que na época em que apareceram ainda não se refletia
sobre a poesia do ponto de vista teórico nem a atividade
dita literária tinha ainda um contorno claro, sendo uma
espécie de mistura de história e literatura; seria preciso que
aparecesse um filósofo como Aristóteles, entre os séculos V e
IV a.C, para dar início a uma investigação científica sobre o
fato literário.
No mundo moderno, a narrativa literária se corporifica
principalmente na prosa, desde, pelo menos, o momento
em que as epopeias foram perdendo fôlego. Na realidade,
o lento e gradual desaparecimento destas — identificadas
com o velho regime aristocrático-feudal, que também foi
decaindo à medida que se ia impondo o modo de produção
capitalista, desde o século XVI ou XVII — não é a causa ou a
melhor explicação do aparecimento do romance e do conto.
Essas formas narrativas em prosa já existiam, até mesmo
na Antiguidade em produções similares, não exatamente
com a feição atual. Na Idade Média, por exemplo, havia o
“romance”, nome recebido por causa da língua romance,
transição entre o latim e as línguas neolatinas, que narrava
fatos ligados à religião ou à vida de reis e nobres — os
chamados “romances de cavalaria”, prosificação das canções
de gesta, sempre em torno de assuntos ligados à guerra.
Mas, entendendo-se proporcionalmente o fenômeno — a
queda da epopeia e o desenvolvimento e avanço paulatino
da prosa romanesca, mesmo em suas formas hoje não mais
identificáveis com o estado atual da prosa literária —, o
ocaso da narrativa em verso fez que o romance assumisse a
dianteira dentro desse gênero e passasse a prender e seduzir
um público ledor cada vez mais numeroso, à medida que a
sociedade burguesa industrial ia crescendo e alfabetizando a
população, antes alijada do processo educacional formal.
O grande marco do aparecimento do romance já
compreendido como narrativa moderna é a publicação,
no século XVII, de Dom Quixote, do escritor espanhol

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Miguel de Cervantes, que toma como modelo o romance de


cavalaria medieval para pôr em crise esse tipo de narrativa. O
surgimento dessa obra dignifica essa espécie literária, visto que
o romance, desde o momento em que apareceu, em formas
ainda tímidas e titubeantes, tanto na Idade Média quanto
no Renascimento, era tido como uma modalidade artística
menor em relação à poesia, que gozava tradicionalmente de
maior prestígio. A narrativa, se escrita em verso — é o caso da
epopeia —, dispõe de outra consideração e valor, por causa
do verso, por causa de sua relação estreita com a vida dos
palácios e a vida dos reis, que precisavam ser homenageados,
cantados, ilustrados por seus poetas, todos áulicos,
sobrevivendo à margem da casa real. Já o romance — espécie
em prosa, então uma modalidade menor de expressão —
implicava uma visão de sociedade em que pontificasse a vida
do homem comum, não de príncipes ou reis, caracterizando-
se antes por tematizar a história particular de uma classe
social, através da representação de certo indivíduo, visto em
suas fraquezas e virtudes, mas, sem dúvida, com toda a carga
de humanidade e senso de realismo, sem o auxílio retórico
das divindades pagãs, como se dava nas epopeias clássicas.
Enfim, a colocação em prosa da história do homem comum,
jogado à própria sorte.

2.3.1. FORMA NARRATIVA ANTIGA: A EPOPEIA

Assim, cabe ao gênero narrativo, de um modo geral, seja


qual for a espécie narrativa, abordar o homem situado em sua
existência social: na epopeia, o homem representa a nação
e a raça, o seu povo, não valendo por sua individualidade,
mas pelo papel que representa, em nobreza e em heroicidade,
na nação na qual se espelha; já no romance, no conto e na
novela, por sua vez, é pintado o homem comum em conflito
com a sociedade em que vive, uma espécie de anônimo
na multidão. Enquanto a epopeia homenageia a vida dos
nobres e serve ideologicamente para cimentar esse tipo de
vida, totalmente alheio ao resto da comunidade, o romance
tem compromisso com o relato do dia a dia, a análise do

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cotidiano, do qual fazem parte pessoas em situações variadas,


tendo sua vida explorada no que toca às aspirações humanas,
desejos, frustrações e medos, aventuras e fracassos.
Se no mundo que a epopeia celebra parece não haver Disciplina 1
desequilíbrio na natureza, pois tudo corre como se a aventura
do herói tivesse de dar certo, para melhor representar o
povo do qual tal herói é integrante e símbolo, tendo a seu
dispor deuses e divindades que o possam ajudar na missão
que lhe é posta, no romance na maioria das vezes a aventura
humana é derrotada, criando conflitos interiores, decepções,
melancolia, discórdias. É que a epopeia é uma espécie feita
e pensada para exaltar os valores humanos por si sós mais
elevados, tidos por definidores de um povo. Não foi à toa que
no Humanismo e no Renascimento, movimentos culturais
e históricos que puseram o homem no centro da criação
divina, este foi visto como aquele que é capaz de mudar a face
do universo e da história, com sua ação civilizadora e dotada
de princípios políticos e transformadores da vida social. Na
esteira do que pregava a Idade Moderna, incentivadora da
técnica, das descobertas marítimas, da colonização de povos
tidos por necessitados de fé e governo, a epopeia constituiu-
se o veículo ideal para cantar os feitos heroicos, aspecto a
que o romance, como prosa da vida diária, se nega, pois o
cotidiano, por definição prosaico, não tem esse alcance.

2.3.2. COMPARAÇÃO ENTRE A EPOPEIA E O


ROMANCE

Para comparar uma espécie a outra, tomo dois exemplos


tirados da literatura narrativa: um trecho da epopeia
portuguesa Os lusíadas, de Luís Vaz de Camões, e um
fragmento tirado do capítulo “Inverno”, de Vidas secas, de
Graciliano Ramos. No texto clássico de Camões, o herói,
Vasco da Gama, é mostrado como um ser superior, capitão
da viagem à Índia, descobridor do caminho marítimo no
final do século XV, evento que se torna, então, a glória de
Portugal. Gama é uma personagem de alto valor, como, aliás,
tinha mesmo de ser, por constituir o que Aristóteles dizia a

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respeito das personagens de uma epopeia ou de uma tragédia:


elas imitariam pessoas melhores do que nós.

2.3.2.1. O HERÓI ANTIGO

No Canto X, o último de Os lusíadas, já no retorno a


Lisboa, Gama faz uma parada na Ilha dos Amores, onde
dialoga com a deusa Tétis, que lhe mostra a Máquina
do Mundo, um globo por onde desfilam as imagens de
conquistas, grandes feitos, viagens e grandezas da nação que
esse valoroso capitão representa:

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,


Se assentam dois e dois, amante e dama;
Noutras, à cabeceira, de ouro finas,
Está co’a bela Deusa o claro Gama.
De iguarias suaves e divinas,
A quem não chega a egípcia antiga fama,
Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos lá do Atlântico tesouro.
Os vinhos odoríferos, que acima
Estão não só do itálico Falerno,
Mas da ambrosia, que Jove tanto estima
Com todo o ajuntamento sempiterno,
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas escumas erguem, que no interno
Coração movem súbita alegria,
Saltando co’a mistura da água fria.

[...]

Cantava a bela Deusa que viriam


Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,
Armadas que as ribeiras venceriam
Por onde o Oceano Índico suspira;
E que os gentios reis que não dariam
A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira
Provariam do braço duro e forte,

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Até render-se a ele ou logo à morte.

Por exigências da própria composição de uma epopeia,


Camões precisa revelar ao leitor um herói que represente Disciplina 1
bem o seu povo e sua nação; e, para isso, sempre se serve de
ações dignas e louváveis para cumprir essa meta, que é para lá
de estética, é social. No Canto X, o último de Os lusíadas, o
poeta — em meio à fartura e à exuberância da vida material
que se vê na Ilha dos Amores, através de “iguarias suaves e
divinas”, capazes de causar inveja à “antiga egípcia fama”,
com seus “vinhos odoríferos”, superiores ao vinho Falerno
da Itália — pinta uma atmosfera de luxo e beleza. Nesse fim
de viagem, o capitão é admirado especialmente por uma
deusa, Tétis, que, tornada sua noiva, vaticina as glórias de
Portugal, por meio de um “globo vão, diáfano, rotundo —
que Júpiter em dom lhe concedeu”, mostrando a Gama o
que está por vir, inclusive o naufrágio que sofreria o próprio
poeta Camões, que leva, “no seu regaço”, os originais de Os
lusíadas, molhados pelas águas do rio em que quase se afoga:

“Vês: passa por Camboja Mecom rio,


Que “capitão das águas” se interpreta;
Tantas recebe doutros, só no Estio,
Que alaga os campos largos e inquieta;
Tem as enchentes quais o Nilo frio;
A gente dele crê, como indiscreta,
Que pena e glória têm, depois de morte,
Os brutos animais de toda sorte.

“Este receberá, plácido e brando,


No seu regaço os cantos que molhados
Vêm do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapados,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquele cuja lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.

Também apresenta a história mais próxima do poeta,


como o descobrimento do Brasil:

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“Mas cá onde mais se alarga, ali tereis


Parte também co’o pau vermelho nota;
“De Santa-Cruz” o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Ao longo desta costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães —, no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade.

Nota-se, pelos episódios narrados e lembrados pelo


poeta, que a epopeia é um texto poético narrativo que celebra
os grandes feitos e acontecimentos nacionais, de alcance até
internacional, como foi o caso da descoberta do caminho
marítimo para a Índia, por Vasco da Gama, o herói de
Os lusíadas. O clima de celebração e de elogio à terra e à
gente portuguesa, nesse caso, é conatural à concepção dessa
espécie literária, que destaca principalmente assuntos ligados
à exploração de territórios e suas viagens, envolvendo cenas
de guerra e de conquista de um povo sobre outro, ações em
que interferem deuses da mitologia pagã, ou para ajudar ou
para atrapalhar o herói, que, com sua força sobre-humana
até, termina por vencer os obstáculos que a natureza e certas
divindades lhe trazem ou mostram no meio de sua trajetória
e de suas aventuras.
Afirma Massaud Moisés a esse respeito:

A poesia épica deve girar em torno de assunto


ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado
a cometimentos bélicos; deve prender-se a
acontecimentos históricos, ocorridos há muito
tempo para que o lendário se forme ou/e permita
que o poeta lhes acrescente com liberdade o
produto da sua fantasia; o protagonista da ação há
de ser um herói de superior força física e psíquica,
embora de constituição simples, instintivo, natural
(MOISÉS, 1974, p. 184)

Com o desaparecimento gradual da epopeia e de


poesias épicas, por volta dos séculos XVII e XVIII — no
Brasil temos os principais poemas épicos no século XVIII,

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O Uraguai, de Basílio da Gama, e Caramuru, de Santa Rita


Durão —, firmou-se o romance como forma narrativa
dominante, encontrando no século XIX seu momento de
maior prestígio. Sempre, porém, que se evocam termos Disciplina 1
como “narrativo” e “narração”, convém trazer de volta a
posição teórica de Aristóteles a esse respeito, para que não
haja confusão na hora de interpretar os termos: a narração,
para o filósofo grego, é um método de composição, não se
devendo confundir “narrar” com o traço fundamental do
gênero narrativo, tal como este é compreendido hoje. Só para
lembrar o que coloquei no início deste curso, na primeira
unidade, Aristóteles refere-se ao narrativo como um modo
composicional, ao lado do modo dramático. Ou seja, o
poeta tem à sua disposição tanto o modo narrativo quanto
o modo dramático. O modo narrativo pode ser encontrado
em sua forma pura no ditirambo, ancestral do poema lírico.
Pois narrar significa, assim, ter o poeta domínio exclusivo de
sua voz e de sua participação no texto que elabora; significa
a presença não compartilhada com outras vozes, situação
em que o poeta não cede a ninguém mais a sua voz, não
compartilha o espaço do texto com nenhuma personagem. A
epopeia teria ao mesmo tempo a presença vocal do narrador,
ou poeta, aquele que comanda e dirige a cena, como também
a presença das personagens que ele criou, deixando-as falar.
Por fim, na tragédia e na comédia, o poeta retira-se da cena e
concede às personagens o domínio total do texto, permitindo-
lhes ocupar por inteiro o plano discursivo.
Aqui, ao tratar do gênero narrativo, a palavra “narrar”
significa, como se pode ver na explicação dada no parágrafo
anterior, outra coisa: contar uma história a um público. Isso
é que é hoje narrar: contar uma história. Ninguém mais
atualmente usa os termos “narrar” ou “narrativo” no sentido
que lhes deram Aristóteles ou Platão. Quem hoje diria que
um poema lírico “narra”? Ninguém. O termo ficou reservado
para o gênero narrativo ou épico, no qual há um narrador,
pronto para narrar ou contar uma história, o que dá no
mesmo.
Imaginemos que, em Os lusíadas, Camões elabora um
narrador que resolve contar a história de Portugal, desde a
sua origem mítica, com os lusos, passando pela sua origem

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histórica, na Idade Média, com o surgimento do seu primeiro


rei, Afonso Henriques, até chegar à história mais próxima do
poeta, a viagem de Vasco da Gama à Índia, transformando
o capitão em herói da narrativa. É pertinente, pois, que,
com essa mudança de concepção teórica sobre o narrar, se
aceite, fazendo os devidos descontos da posição de Aristóteles
sobre esse tópico, que narrar deixe de ser essencialmente um
modo composicional em oposição ao modo dramático e seja
encarado tão somente como a faculdade que o ser humano
tem de contar uma história. E isso pode acontecer tanto por
meio do verso como por meio da prosa. O ato de narrar
desenvolve-se nesses dois planos de comunicação literária.

Referências
LIMA, Roberto Sarmento. A ideologia na casa de bonecos.
Conhecimento prático literatura, São Paulo: Escala Educacional,
nº 43, p. 32-43, [jul./ago. 2012].

Nesse ensaio, o autor estuda a epopeia de Luís Vaz de Camões, Os


lusíadas, mostrando a ligação do texto, desde o momento de sua
produção, aos valores áulicos e da casta da nobreza, situação em que,
como sacrifício da forma, as personagens, impostas a esse regime
ideológico, parecem não ter vida, sem sangue nem temperamento.
Esse mesmo artigo encontra-se em sua versão on-line em www.
conhecimentopratico.com.br/literatura.uol.com.br/literatura/figuras-
linguagem/43/artigo264336-1.asp

2.3.2.2. O HERÓI MODERNO

A entrada definitiva do romance, ou ao menos a sua


solidificação como espécie consagrada do gênero narrativo,
se deve a certa mudança de gosto, atitudes e acontecimentos
sociais operados na passagem do mundo aristocrático
ao chamado mundo moderno capitalista. Agora já não
interessam assuntos e episódios ligados à vida dos nobres.

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O aparecimento de revoluções — a Revolução Francesa à


frente, no final do século XVIII, e a Revolução Industrial,
na Inglaterra, no mesmo período — fez surgir uma nova
realidade socioeconômica que colocava o homem no centro Disciplina 1
da ação histórica, descobrindo nele o senso de humanidade.
O homem revela-se autor da própria vida, aquele que decide
e realiza sem ter de pedir permissão a alguma divindade para
agir. Age segundo suas vontades, sua posição ideológica,
seus propósitos políticos, seu estar no mundo. A noção
de revolução trouxe essa vantagem: pensar a vida como
um campo de escolhas, na maioria das vezes subjetiva,
porque o que o homem quer é melhorar suas condições de
existência material e espiritual. De repente, ele descobre suas
potencialidades: é sujeito da história, pode mudar a face
do mundo, romper com a sua sujeição às leis superiores,
como as divinas, ou supostamente divinas. O Iluminismo,
movimento filosófico dessa época, discute a importância
que passa a assumir a razão, no lugar da paixão e da religião.
A razão conduz o homem à sua libertação: libertar-se das
crenças, crendices e motivações religiosas.
Nesse novo circuito do pensamento, a epopeia perde
força, porque uma de suas prerrogativas era justamente
mostrar o homem controlado por leis divinas, pagãs ou
cristãs. Tal maneira de enxergar a realidade desapareceu com
o triunfo da sociedade industrial, entregue à vontade dos
homens e às leis do mercado capitalista. Como é que seria
possível — a partir desse momento em que o homem mostra
a sua capacidade, por meio da revolução, de transformar o
mundo — manter ainda viva e corrente uma forma literária
como a epopeia, que acentua a heroicidade do homem, mas
sob certas condições, aquelas condições outras, ligadas à
realidade da aristocracia? O herói da epopeia nem podia fazer
tudo sozinho, mas sempre em companhia dos seus parceiros
de viagem, num empreendimento coletivo que só se fosse
desse modo é que poderia funcionar bem. Além disso, o herói
épico despia-se de sua condição de indivíduo para poder
representar a sua raça e o seu povo, não estava agindo em
causa própria, mas era símbolo de uma nação e por ela é que
ele agia. Agora, com a mudança dos rumos da economia e da
gestão política, desde a entrada das revoluções no campo da

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construção da vida em sociedade — no caso, com a ascensão


da burguesia ao poder, trazendo sopro novo à cultura e à
existência como um todo —, o homem fora jogado à própria
sorte e ao calor de suas decisões. Não tinha por quem esperar.
Nem representava mais a coletividade da qual emerge. Ele sai
das lendas e da caracterização mítica para entrar na História,
no mundo governado por homens que buscam superar as
condições de existência. É sempre um esforço individual,
embora a revolução só se concretize socialmente, em comum
acordo entre as partes. Mas não existiria revolução sem que o
homem acreditasse que não pode mais esperar por Deus ou
por qualquer outro ser superior, a não ser na própria vontade
de mudar o mundo.
O herói dessa nova era vê-se solitário, sem a ajuda dos
deuses ou de algo que tenha a mesma importância, tendo
de tomar decisões e lutar contra o meio no qual vive. A
economia capitalista, que é uma economia de mercado, não
mais de subsistência, como fora antes, durante a vigência do
velho regime feudal, exige que o homem trabalhe para poder
se sustentar, pois os nobres são figuras decaídas, de quem
não se pode nunca esperar que se faça justiça para os mais
humildes, se estes mesmos não lutarem para obtê-la. Uma
sociedade fundada na noção de trabalho em série, no interior
das fábricas e das indústrias, vê o mundo diferentemente. Que
lugar haveria, então, para a manutenção da epopeia, se a partir
desse momento não existem mais heróis que representem toda
uma nação? É preciso, pois, que os indivíduos — palavra que
passaria a designar o homem que tem de agir por sua própria
conta — olhassem mais para si e desprezassem a intervenção
divina como meio de solucionar seus problemas diários. A
solução estava no próprio desempenho do homem, em luta
permanente contra o meio e contra os demais indivíduos,
todos procurando uma saída para os dilemas da existência,
sem recorrer ao sagrado ou coisa que o valha.
O romance, pode-se dizer, aclimatou-se bem a esses
novos tempos. Primeiro, porque é escrito em prosa, e essa
modalidade de escrita aproxima-se da língua diária, da
conversa, do discurso jornalístico, historiográfico, sendo a
maneira mais natural de elocução, cumprindo bem os objetivos
de retratar a vida ordinária; e, segundo, porque se trata de um

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tempo em que se valoriza a história dos homens, notabilizada


pelo registro diário dos fatos — época do fortalecimento da
atividade jornalística, com o desenvolvimento dos grandes
centros urbanos e de uma imprensa voltada para a notícia Disciplina 1
da cidade —, situação que não raro fazia cruzar as formas
discursivas própria do jornal e do romance. Ao menos, o
romance, naquela época, era veiculado pelo folhetim, vindo
como uma espécie de suplemento dos principais jornais em
circulação.
O homem tende a analisar a vida burguesa, em suas
contradições: inicialmente mascaradas pelo romantismo,
depois denunciadas cruamente pelo realismo e naturalismo.
Seja qual for o estilo literário, a prosa romanesca apresenta,
em geral, a pintura da sociedade por meio de indivíduos
bem caracterizados, bem determinados e definidos.
Decididamente, não há mais lugar para a exaltação da raça,
do povo ou de um herói quase divino em suas ações. A
epopeia tinha mesmo de ceder o terreno para o romance,
quanto a isso não há dúvida.
Trago aqui, como estudo, o anti-herói épico, em uma
leitura do capítulo “Inverno”, de Vidas secas, de Graciliano
Ramos. Nesse capítulo, aparece Fabiano, o sertanejo rude e
ignorante, que mal sabe falar, na posição de um narrador,
que, numa noite de inverno, resolve contar para os filhos as
aventuras de um herói que busca vencer as adversidades da
natureza. Mas, por não ter recursos linguísticos necessários
à arte de contar uma história, Fabiano revela toda sua
inoperância com o trato das palavras e o seu fracasso ao
desempenhar esse papel de narrador.
Vamos ao texto!

A família estava reunida em torno do fogo.


Fabiano sentado no pilão caído, Sinha Vitória de
pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros
aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no
chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas
que se cobriam de cinza.
Estava um frio medonho, as goteiras
pingavam lá fora, o vento sacudia os ramos das

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 125


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Teoria da Literatura 1

catingueiras, e o barulho do rio era como um


trovão distante.
Fabiano esfregou as mãos satisfeito e
empurrou os tições com a ponta da alpercata.
As brasas estalaram, a cinza caiu, um círculo de
luz espalhou-se em redor da trempe de pedras,
clareando vagamente os pés do vaqueiro, os joelhos
da mulher e os meninos deitados. De quando em
quando estes se mexiam, porque o lume era fraco
e apenas aquecia pedaços deles. Outros pedaços
esfriavam recebendo o ar que entrava pelas
rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por
isso não podiam dormir. Quando iam pegando no
sono, arrepiavam-se, tinham precisão de virar-se,
chegavam-se à trempe e ouviam a conversa dos
pais. Não era propriamente conversa: eram frases
soltas, espaçadas, com repetições e incongruências.
Às vezes uma interjeição gutural dava energia
ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum
deles prestava atenção às palavras do outro: iam
exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito,
e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não
havia meio de dominá-las. Como os recursos de
expressão eram minguados, tentavam remediar a
deficiência falando alto.
Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou
uma história bastante confusa, mas como só
estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto
passou despercebido. O menino mais velho abriu
os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do pai,
compreenderia talvez uma parte da narração,
mas assim no escuro a dificuldade era grande.
Levantou-se, foi a um canto da cozinha, trouxe de
lá uma braçada de lenha. Sinha Vitória aprovou
este ato com um rugido, mas Fabiano condenou
a interrupção, achou que o procedimento do filho
revelava falta de respeito e estirou o braço para
castigá-lo. O pequeno escapuliu-se, foi enrolar-se
na saia da mãe, que se pôs francamente do lado
dele.

126 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

— Hum! hum! Que brabeza!

Aquele homem era assim mesmo, tinha o


coração perto da goela. Disciplina 1

— Estourado.

Remexem as brasas com o cabo da quenga


de coco, arrumou entre as pedras achas de
angico molhado, procurou acendê-las. Fabiano
ajudou-a: suspendeu a tagarelice, pôs-se de
quatro pés e soprou os carvões, enchendo muito
as bochechas. Uma fumarada invadiu a cozinha,
as pessoas tossiram, enxugaram os olhos, Sinha
Vitória manejou o abano, e passado um minuto as
labaredas espirraram entre as pedras.
O círculo de luz aumentou, agora as figuras
surgiam na sombra, vermelhas. Fabiano, visível
da barriga para baixo, ia-se tornando indistinto
daí para cima, era um negrume que vagos clarões
cortavam. Desse negrume saiu novamente a
parolagem mastigada.
Fabiano estava de bom humor. Dias antes
a enchente havia coberto as marcas postas no fim
da terra de aluvião, alcançava as catingueiras, que
deviam estar submersas. Certamente só apareciam
as folhas, a espuma subia, lambendo ribanceiras
que as desmoronavam.
Dentro em pouco o despotismo de água ia
acabar, mas Fabiano não pensava no futuro. Por
enquanto a inundação crescia, matava bichos,
ocupava grotas e várzeas. Tudo muito bem. E
Fabiano esfregava as mãos. Não havia o perigo da
seca imediata, que aterrorizara a família durante
meses. A catinga amarelecera, avermelhara-se, o
gado principiara a emagrecer e horríveis visões de
pesadelo tinham agitado o sono das pessoas. De
repente um traço ligeiro rasgara o céu para os lados
da cabeceira do rio, outros surgiram mais claros, o
trovão roncara perto, na escuridão da meia-noite

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 127


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Teoria da Literatura 1

rolaram nuvens cor de sangue. A ventania arrancara


sucupiras e imburanas, houvera relâmpago em
demasia — e Sinha Vitória se escondera na
camarinha com os filhos, tapando as orelhas,
enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade
findara de chofre, a chuva caíra, a cabeça da cheia
aparecera arrastando troncos e animais mortos. A
água tinha subido, alcançado a ladeira, estava com
vontade de chegar aos juazeiros do fim do pátio.
Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível
que a água topasse os juazeiros? Se isto acontecesse,
a casa seria invadida, os moradores teriam de subir
o morro, viver uns dias no morro, como preás.
Suspirava atiçando o fogo com o cabo da
quenga de coco. Deus não permitiria que sucedesse
tal desgraça.

— An!

A casa era forte.

— An!

Os esteios de aroeira estavam bem fincados


no chão duro. Se o rio chegasse ali, derrubaria
apenas os torrões que formavam o enchimento das
paredes de taipa. Deus protegeria a família.

— An!

As varas estavam bem amarradas com cipós


nos esteios de aroeira. O arcabouço da casa resistiria
à fúria das águas. E quando elas baixassem, a família
regressaria. Sim, viveriam todos no mato, como
preás. Mas voltariam quando as águas baixassem,
tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto da
casa.

— An!

128 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

Sinha Vitória moveu o abano com força para


não ouvir o barulho do rio, que se aproximava. Seria
que ele estava com intenção de progredir? O abano
zumbia, e o rumor da enchente era um sopro, um Disciplina 1
sopro que esmorecia para lá dos juazeiros.
Fabiano contava façanhas. Começara
moderadamente, mas excitara-se pouco a pouco
e agora via os acontecimentos com exagero e
otimismo, estava convencido de que praticara
feitos notáveis. Necessitava esta convicção. Algum
tempo antes acontecera aquela desgraça: o soldado
amarelo provocara-o na feira, dera-lhe uma surra
de facão e metera-o na cadeia. Fabiano passara
semanas capiongo, fantasiando vinganças, vendo
a criação definhar na catinga torrada. Se a seca
chegasse, ele abandonaria a mulher e filhos, coseria
a facadas o soldado amarelo, depois mataria o juiz,
o promotor e o delegado. Estivera uns dias assim
murcho, pensando na seca e roendo a humilhação.
Mas a trovoada roncara, viera a cheia, e agora as
goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos
das paredes.
Fabiano estava contente e esfregava as
mãos. Como o frio era grande, aproximou-as das
labaredas. Relatava um fuzuê terrível, esquecia
as pancadas e a prisão, sentia-se capaz de atos
importantes.
O rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros.
Não havia notícia de que houvesse atingido — e
Fabiano, seguro, baseado nas informações dos mais
velhos, narrava uma briga de que saíra vencedor. A
briga era sonho, mas Fabiano acreditava nela.
As vacas vinham abrigar-se junto à parede
da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os
chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto
novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as
árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria.
Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois
filhos e a cachorra Baleia. Talvez Sinha Vitória

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 129


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Teoria da Literatura 1

adquirisse uma cama de lastro de couro. Realmente


o jirau de varas onde se espichavam era incômodo.
Fabiano gesticulava. Sinha Vitória agitava
o abano para sustentar as labaredas no angico
molhado. Os meninos, sentindo frio numa banda
e calor na outra, não podiam dormir e escutavam
as lorotas do pai. Começaram a discutir em voz
baixa uma passagem obscura da narrativa. Não
conseguiram entender-se, arengaram azedos, iam-se
atracando. Fabiano zangou-se com a impertinência
deles e quis puni-los. Depois moderou-se, repisou
o trecho incompreensível utilizando palavras
diferentes.
O menino mais novo bateu palmas, olhou as
mãos de Fabiano, que se agitavam por cima das
labaredas, escuras e vermelhas. As costas ficavam
na sombra, mas as palmas estavam iluminadas e
cor de sangue. Era como se Fabiano tivesse esfolado
um animal. A barba ruiva e emaranhada estava
invisível, os olhos azulados e imóveis fixavam-se
nos tições, a fala dura e rouca entrecortava-se de
silêncios. Sentado no pilão, Fabiano derreava-se,
feio e bruto, com aquele jeito de bicho lerdo que
não se aguenta em dois pés.
O menino mais velho estava descontente.
Não podendo perceber as feições do pai, cerrava
os olhos para entendê-lo bem. Mas surgira uma
dúvida. Fabiano modificara a história — e isto
reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto.
Estirou-se e bocejou. Teria sido melhor a repetição
das palavras. Altercaria com o irmão procurando
interpretá-las. Brigaria por causa das palavras —
e a sua convicção encorparia. Fabiano devia tê-las
repetido. Não. Aparecera uma variante, o herói
tinha-se tornado humano e contraditório. O
menino mais velho recordou-se de um brinquedo
antigo, presente de Seu Tomás da bolandeira.
Fechou os olhos, reabriu-os, sonolento. O ar que
entrava pelas rachas das paredes esfriava-lhe uma
perna, um braço, todo o lado direito. Virou-se, os

130 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

pedaços de Fabiano sumiram-se. O brinquedo se


quebrara, o pequeno entristecera vendo as peças
inúteis.Lembrou-se dos currais feitos de seixos
miúdos, sob as catingueiras. Agora a lagoa estava Disciplina 1
cheia, tinha coberto os currais que ele construíra.
O barreiro também se enchera, atingia a parede
da cozinha, as águas dele juntavam-se às da lagoa.
Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas de
losna, Sinha Vitória saía pela porta da frente, descia
o copiar e atravessava a porteira da baraúna. Atrás
da casa, as cercas, o pé-de-turco e as catingueiras
estavam dentro da água. As goteiras pingavam, os
chocalhos das vacas tiniam, os sapos cantavam. O
som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos
sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza.
Tudo estava mudado. Chovia o dia inteiro, a noite
inteira. As moitas e capões de mato onde viviam
seres misteriosos tinham sido violados. Havia lá
sapos. E a cantiga deles subia e descia, uma toada
lamentosa enchia os arredores. Tentou contar as
vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com certeza
havia uma infinidade de sapos nas moitas e nos
capões. Que estariam fazendo? Por que gritavam
a cantoria gorgolejada e triste? Nunca vira um
deles, confundia-os com os habitantes invisíveis
da serra e dos bancos de macambira. Enrolou-se,
acomodou-se, adormeceu, uma banda aquecida
pelo fogo, a outra banda protegida pelas nádegas
de Sinha Vitória.
O abano agitava-se, a madeira úmida chiava,
o vulto de Fabiano iluminava-se e escurecia.
Baleia, imóvel, paciente, olhava os carvões e
esperava que a família se recolhesse. Enfastiava-a o
barulho que Fabiano fazia. No campo, seguindo
uma rês, se esgoelava demais. Natural. Mas ali, à
beira do fogo, para que tanto grito? Fabiano estava-
se cansando à toa. Baleia se enjoava, cochilava e
não podia dormir. Sinha Vitória devia retirar os
carvões e a cinza, varrer o chão, deitar-se na cama
de varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 131


Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

na esteira, por baixo do caritó, na sala. Era bom


que a deixassem em paz. O dia todo espiava os
movimentos das pessoas, tentando adivinhar coisas
incompreensíveis. Agora precisava dormir, livrar-
se das pulgas e daquela vigilância a que a tinham
habituado. Varrido o chão com vassourinha,
escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia,
adormeceria no calor, sentindo o cheiro das cabras
molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o
tique-taque das pingueiras, a cantiga dos sapos,
o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono
iriam visitá-la.

O capítulo “Inverno”, retirado de Vidas secas e transcrito


acima vale por um conto, uma narrativa curta, de rigorosa
unidade de ação: o foco do texto recai sobre a cena em que
Fabiano, numa noite de inverno, conta uma história aos filhos,
para distraí-los, e não consegue fazê-lo a contento, por causa
dos parcos recursos linguísticos e de sua extrema inabilidade
de lidar com a palavra, causando no seu auditório dispersão
da atenção e desconsideração por parte dos filhos em relação
ao pai, que se sente desautorizado e desprestigiado. Imagine-
se, por comparação, se isso seria possível numa epopeia, onde
o herói era, como diz o nome, heroico em tudo, inclusive no
manejo da linguagem. Vê-se logo, só por esse introito, que
estamos no campo da narrativa moderna, nunca no âmbito
da narrativa de uma epopeia.
No mais, as observações que o narrador faz sobre a
realidade mais próxima, circundante, interpretando o
pensamento das personagens, Sinha Vitória, o menino mais
novo, o menino mais velho e até Baleia, giram em volta do
assunto principal, a história mal contada por Fabiano aos
filhos. Como se vê, o capítulo tem unidade de ação (um só
assunto), um só espaço (a casa humilde, fria e prestes a ruir) e
um só tempo (a noite de inverno em que Fabiano conta uma
história). Aliás, é bom frisar, o romance Vidas secas, antes de
constituir-se um romance, tal como é conhecido desde a sua
publicação, em 1938, foi primeiramente pensado como um
conjunto de contos. Daí a aparência de um livro de contos
que tem esse romance de Graciliano Ramos, composto de

132 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

pequenas narrativas (na verdade, capítulos) relativamente


autônomas.
O objetivo dos comentários que tecerei a seguir é outro:
comparar os fragmentos colhidos de Os lusíadas, de Luís de Disciplina 1
Camões, e esse capítulo de Vidas secas; e, por meio da análise
de sua linguagem e atmosfera geral das duas composições,
chegar a uma diferença entre o que é uma narrativa em verso
(caso ilustrado aqui por Os lusíadas) e uma narrativa em
prosa, seja um romance, seja um conto (o exemplo de Vidas
secas).
As duas narrativas têm a finalidade de contar uma
história: Os lusíadas trazem a história de Portugal, desde suas
origens míticas e históricas até o momento em que Vasco
da Gama, pintado como um herói que representa toda a
gente do lugar, enche o país de glória ao descobrir o caminho
marítimo para a Índia; já em Vidas secas o herói Fabiano,
na verdade, nada tem de heroico. É um pobre-diabo, sem
recursos, sem linguagem, sem direção na vida, andando ao
léu pelo sertão estorricado, sem ter um lugar onde possa se
abrigar permanentemente com a família, igualmente carente
e desprotegida. Já dá para perceber que uma epopeia canta
as proezas do herói e sua quase divindade no mundo dos
homens, enquanto o romance (ou, de modo geral, a narrativa
em prosa) traz o homem comum, com toda a sua precariedade
existencial, em meio às agruras oferecidas pela realidade, cujo
enfrentamento nunca é plácido ou sereno, podendo acabar
quase sempre em frustração. O herói romanesco não tem
virtudes que o singularizem em face dos outros homens nem
importância alguma para o seu país; pelo contrário, é alguém
que vive em regime de anonimato, sem rumo, sem saída,
embora as maneiras de isso existir sejam várias.
Mesmo que a personagem de um romance seja alguém
vindo da classe social mais privilegiada, mesmo essa terá
problemas ao tentar uma solução para os seus problemas.
É só lembrar personagens como Bento Santiago, de Dom
Casmurro, e Brás Cubas, de Memórias póstumas de Brás
Cubas. Personagens como essas, da burguesia, de família
tradicional, são, apesar disso, totalmente arruinadas em
suas expectativas e desejos. Bentinho tem seu casamento
destruído por um ciúme doentio e mal explicado, já que não

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 133


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Teoria da Literatura 1

se sabe se Capitu o traíra ou não, só ele mesmo tinha tal


certeza; Brás Cubas, apesar de rico e ter estudado direito em
Coimbra, nunca foi uma pessoa ocupada com o trabalho e
com as responsabilidades da vida adulta, preferindo viver de
aventuras amorosas que não lhe acrescentavam nada, o que
resulta no capítulo final do livro, chamado “Das negativas”,
no qual, fazendo um balanço da sua vida, chega à conclusão
de que nada produzira de positivo, ficando com a sensação
de vazio.
A narração feita em prosa aponta para um plano bem
diferente daquele que é vivido pelo herói da epopeia, o qual
tinha uma grande missão a cumprir. Suas personagens, como
o atestam os exemplos de Bentinho e Brás Cubas, vivem no
absurdo da vida, ou no seu vazio, ou no seu conjunto de
enganos, numa espécie de vida falsa, sem profundidade, sem
meta, sem consistência, em luta contra o outro ou contra
si mesmo, enfrentando contradições de toda ordem. No
caso de Fabiano, do excerto acima transcrito do romance, o
capítulo “Inverno”, a personagem se revela um incapaz em
todos os aspectos desde o início, mas principalmente no que
toca à questão linguística e expressional:

Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se,


tinham precisão de virar-se, chegarem-se à trempe e
ouviam a conversa dos pais. Não era propriamente
conversa: eram frases soltas, espaçadas, com
repetições e incongruências. Às vezes uma
interjeição gutural dava energia ao discurso
analógico. Na verdade nenhum deles prestava
atenção às palavras do outro: iam exibindo as
imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens
sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de
dominá-las.

Só por esse fragmento do capítulo “Inverno” dá para


notar que o gênero narrativo é bem diferente do gênero
lírico. Enquanto neste as cenas que aparecem porventura em
um poema são meros flagrantes, sem se saber o que motivara
a cena e o que viria depois dela, sempre se dando a impressão
de que o que é dito foi pego pelo meio, num momento

134 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

considerado relevante, no narrativo, ao contrário, tudo se


desenvolve no tempo. Antes de Fabiano decidir contar uma
história para os filhos — fato que acontece na metade do
capítulo —, o narrador de terceira pessoa tratou de preparar Disciplina 1
a situação: disse que estavam as personagens em uma noite de
inverno, que os meninos, mesmo em frente a uma fogueira,
sentiam muito frio, que a casa era uma construção precária,
com suas paredes rachadas, com gretas na janela. Nenhum
detalhe desses é ornamental, mas serve para compor um
ambiente, uma atmosfera, permitindo que a cena principal
possa ser desenvolvida e justificada. Por fim, declara que os
pais conversam e que aquilo “não era propriamente conversa”,
porque o despreparo linguístico deles todos — “frases soltas,
espaçadas, com repetições e incongruências” — impediria,
realmente, Fabiano, de conseguir dar conta de narrar uma
história.
Desse modo, o herói do romance é, em geral, o oposto do
herói da epopeia. Nesta, o narrador define uma personagem
em tudo forte, invencível, capaz, em todos os sentidos. É
aquele que, enfim, vai trazer glórias à sua gente, à nação da
qual é um representante legítimo, escolhido por deuses para
realizar uma missão quase impraticável. Já as personagens
do romance não têm essa força sobre-humana nem essa
capacidade de vencer todos os obstáculos que a vida oferece.
Os temas romanescos são os da procura, da dúvida, da
intolerância, da incapacidade, da solidão, da miserabilidade
da existência, com todos os problemas possíveis, e quase
todos são insuperáveis, vendo-se o herói, ao final, torturado
por seus limites de ação e por seu infortúnio. Só para lembrar
alguns romances bastante conhecidos na literatura brasileira,
em Iracema, de José de Alencar, a personagem-título morre e
deixa o filho aos cuidados de Martim, que se vai embora; em
Dom Casmurro, de Machado de Assis, a possível adúltera é
desterrada para a Suíça, onde morre, e Bentinho, amargurado,
transforma-se em um homem casmurro, buscando, através
da escrita das memórias, compreender o que viveu e o que
sofreu, sem obter êxito nisso; em São Bernardo, de Graciliano
Ramos, o narrador Paulo Honório é um homem de espírito
rude e selvagem que brutaliza a todos que vivem ao seu
redor, inclusive a sua esposa, Madalena, cujos pensamentos

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 135


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Teoria da Literatura 1

e ideais humanitários se chocam com a insensibilidade do


marido, a ponto de ela, não resistindo a tanta diferença de
temperamentos, decidir pelo suicídio, fato que torna Paulo
Honório, a partir daí, um derrotado, perdendo sua energia
empreendedora e entregando-se à letargia e ao imobilismo.
A atmosfera nas espécies narrativas em prosa,
especificamente no romance, é de quase sempre desesperança,
quando não de angústia. O herói toma consciência do seu
estar no mundo e revolta-se, ou cede e foge do centro do
problema, caindo no ensimesmamento e até na loucura, ou,
ainda, no suicídio. O mundo não é glorioso, porque o que
se pinta é a sociedade em todas as suas contradições: classes
sociais em luta, embate entre homem e mulher em desgaste
mútuo de relações que já nasceram problemáticas, gerações
que não se compreendem e partem para o enfrentamento
difícil e doloroso, conflito de ideias e formação cultural de
personagens, entre tantos outros temas, que têm em comum
o dilema do existir e a incapacidade de resolver ou pacificar a
contento as adversidades que se impõem ao plano individual
de ser feliz. É, enfim, a oposição entre o homem solitário em
sua busca incessante e a sociedade com todas as suas regras
e limitações. Não há deuses para ajudar; não há elementos
míticos — o chamado elemento maravilhoso da epopeia
— que venham interferir positivamente no destino das
personagens. A realidade que se pinta na narrativa em prosa
(refiro-me sempre, ao mencionar tal expressão, ao romance,
à novela e ao conto, em oposição à narrativa em verso,
corporificada na epopeia) é sempre uma dura realidade, que
não se desfaz, ou na maioria das vezes se torna ainda mais
pesada e violenta.
Por isso, Fabiano e sua família, no texto transcrito
aqui, vivem um momento de dificuldade, a começar pelo
relacionamento entre eles, mesmo quando estão buscando
relaxar, se divertir, em uma reunião à beira de uma fogueira.
“A família estava reunida em torno do fogo”, mas ali ninguém
prestava atenção a ninguém. A comunicação era impossível,
pelos rudimentos do dizer, de modo que

Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou


uma história bastante confusa [...]

136 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

[...]

Fabiano contava façanhas. Começara


moderadamente, mas excitara-se pouco a pouco Disciplina 1
e agora via os acontecimentos com exagero e
otimismo, estava convencido de que praticara
feitos notáveis. Necessitava esta convicção.

Fabiano coloca-se na posição de um contador de histórias:


a toda hora ele é interrompido, ou porque não lhe estão dando
a atenção de que precisa, ou porque Sinha Vitória intervém
com um assunto prático, apoiando o menino mais velho que
foi à cozinha pegar uma braçada de lenha para alimentar a
fogueira. Ao contrário do que acontece na epopeia, onde o
herói, que de repente deseja narrar um acontecimento de
grande importância, é ouvido solenemente, considerado e
respeitado por seu auditório, nesse romance de Graciliano
Ramos o herói não é ouvido, não é considerado. Não
consegue sequer começar a contar a história que pretendia:

[...] Fabiano condenou a interrupção, achou que


o procedimento do filho revelava falta de respeito
e estirou o braço para castigá-lo. O pequeno
escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mãe, que se
pôs francamente do lado dele.

— Hum! hum! Que brabeza!

Aquele homem era assim mesmo, tinha o


coração perto da goela.

— Estourado.

Além disso, Fabiano misturava os fatos que narra com os


acontecimentos pessoais, sua própria experiência, como se,
ao querer contar uma história com façanhas supostamente
inventadas a respeito de seu herói, ele se purgasse e conseguisse
a felicidade que não tinha efetivamente no apequenado
e miserável mundo da seca. Simbolicamente, a chuva e a
enchente insuflavam na sua cabeça os ecos positivos de que

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 137


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Teoria da Literatura 1

precisava para sair daquela situação de aniquilamento físico e


mental. No relato que faz, as águas davam-lhe conforto súbito
e repentino, deixando-o motivado para contar e narrar, como
se aquilo que lhe faltava na vida que levava fosse suprido pela
narrativa que mal engendra:

Fabiano estava contente e esfregava as mãos. Como


o frio era grande, aproximou-se das labaredas.
Relatava um fuzuê terrível, esquecia as pancadas e
a prisão, sentia-se capaz de atos importantes.

O rio subia a ladeira, estava perto dos


juazeiros. Não havia notícia de que os houvesse
atingido — e, Fabiano, seguro, baseado nas
informações dos mais velhos, narrava uma briga de
que saíra vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano
acreditava nela.

Ainda que animado com a chuva, o fato de seu relato


— explorando a fartura e a capacidade de desenvolver “atos
importantes” ou narrar uma briga “de que saíra vencedor”
— não ter alguma correspondência com a vida real, ficando,
pois, o discurso restrito ao plano simbólico, torna Fabiano
frustrado por não atingir seu objetivo, vindo novamente à
cabeça a sombra dos desejos não realizados nem resolvidos,
entre eles os problemas de comunicação:

Começaram a discutir em voz baixa uma passagem


obscura da narrativa. Não conseguiram entender-
se, arengaram azedos, iam-se atracando. Fabiano
zangou-se com a impertinência deles e quis
puni-los. Depois moderou-se, repisou o trecho
incompreensível utilizando palavras diferentes.

Como não se coadunassem os episódios sonhados


por Fabiano com a realidade dura e implacável da família,
todos eles de repente questionaram, dentro dos limites de
comunicação verbal de que dispunham, o andamento da
narrativa. Fabiano achou que o problema não era tanto a
invencionice que perdia aos poucos sua verossimilhança

138 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

e sim a sua credibilidade como narrador, desrespeitado


pelos filhos, que nem o ouviam mais. Em outras palavras,
tem-se, aqui, a representação de um narrador que não é
acreditado, por não ter os recursos de linguagem necessários Disciplina 1
a esse empreendimento. Por isso, Fabiano misturou vida
pessoal (“Fabiano zangou-se com a impertinência deles e
quis puni-los”) com capacidade narrativa (“repisou o trecho
incompreensível utilizando palavras diferentes”).
Graciliano Ramos, muito especialmente nesse capítulo de
Vidas secas, tematiza a eficácia do próprio discurso narrativo,
servindo-se da personagem Fabiano, que não tem a menor
condição de se transformar em narrador. Fabiano tenta de
tudo para convencer seu auditório, mas isso é vão:

Fabiano modificara a história — e isto reduzia-lhe


a verossimilhança. Um desencanto. [O menino
mais velho] Estirou-se e bocejou. Teria sido melhor
a repetição das palavras. Altercaria com o irmão
procurando interpretá-las. Brigaria por causa das
palavras — e a sua convicção encorparia. Fabiano
devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante,
o herói tinha-se tornado humano e contraditório.

O que talvez torne Vasco da Gama, o herói de Os


lusíadas, nada humano e, assim, superior aos homens comuns
é que ele mais parece um boneco fabricado pelo narrador,
visto não aparecer na epopeia como um homem real que
na verdade foi, que existiu de fato e que foi o descobridor
do caminho marítimo para a Índia, encarado agora, nos
versos camonianos, sem sua humanidade e, por isso, sem as
aparentes contradições que se detectam no homem comum
que se conhece fora da épica. O que os filhos de Fabiano
estão discutindo, sem o saber, provavelmente, é que o pai
se desviou do ideal épico — o da grandiosidade do herói
— e o rebaixou até fazê-lo chegar, finalmente, ao nível do
herói da narrativa romanesca, o qual, ao contrário do herói
da epopeia, tem sua humanidade preservada e apresenta
contradições. Em uma só palavra, é mais humano.
De modo bastante intrínseco, esse capítulo de Vidas secas
discute, subliminarmente, sem estardalhaço metaficcional, a

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 139


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Teoria da Literatura 1

queda do herói da epopeia no mundo moderno e, ao mesmo


tempo, defende a entrada, na literatura, do herói romanesco,
herói que os filhos de Fabiano não entendem nem aceitam,
porque o menino mais velho e o menino mais novo estão,
aqui, encarnando o papel do leitor ingênuo, aquele leitor
que nada entende de arte nem de contexto social de que a
arte é elemento constituinte. O leitor que não reflete sobre o
que lê espera que a narrativa seja da mesma forma o tempo
todo; não percebe que os novos tempos não abrigam mais
o herói invencível e poderoso, que não perde uma batalha.
Enquanto o herói épico é grandioso e parece que não sofre
nem tem nunca uma dor de barriga — esse é o ideal de herói
do menino mais velho e do menino mais novo —, o herói do
romance, muito pelo contrário, é castigado pela vida e, assim,
surge mais autêntico aos olhos do leitor contemporâneo, ou,
pelo menos, se mostra mais coerente com a realidade social
que vivemos.
O que se diz, no fim de tudo, é que não há mais lugar
para a epopeia no mundo capitalista industrial. Somente um
meio cultural muito atrasado e amesquinhado — como o é
a realidade do sertão seco que Graciliano tão bem delineia
no romance Vidas secas — é que, diante de personagens
vivendo nesse atraso e descompasso com o mundo moderno,
é capaz de ainda ter leitores, digamos assim, confiantes
na narrativa épica, leitores atrasados, sim, alheios à noção
de que literatura anda lado a lado com a sociedade em
que é produzida. Desde o romantismo, por exemplo, essa
consciência histórica aflorou mais imediatamente, já que,
para os clássicos, a literatura deveria ter características eternas
e imutáveis. Trata-se, a partir do romantismo, do homem
jogado à própria sorte, sofrendo todo tipo de adversidade,
da qual dificilmente escapa. O herói épico realmente não faz
mais sentido hoje. Daí o seu desaparecimento da literatura
junto com a forma literária que lhe deu vida e sustentação.
Triunfa, pois, o romance.
Com isso também se torna cada vez mais evidente que
o gênero narrativo, ao contrário do gênero lírico, acentua
a separação que deve haver entre os fatos apresentados e o
lugar de observação de quem pratica o ato narrativo. Ou seja,
Fabiano, ao representar esse narrador, esse observador de

140 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

fatos, peca por querer aproximar-se tanto assim da vida que


tem, tentando fazer coincidir o seu herói consigo mesmo. O
resultado não poderia ser outro: o relato ficou incompreensível,
ainda mais porque ele não tem os dotes linguísticos exigidos Disciplina 1
para desempenhar o papel de narrador. Ao menos ele devia
levar em consideração que, mesmo coincidindo narrador
e figura empírica do narrador, o relato era ficcional e não
compensador de suas dificuldades materiais. Não se narra
para esquecer ou para realizar-se como pessoa, parece que é
isso que Graciliano Ramos está querendo dizer:

A briga era sonho, mas Fabiano acreditava nela.

Fabiano não tinha consciência de que o ato de narrar,


dentro do campo da literatura e do romance, é tão ficcional
quanto os episódios que “inventa”. Portanto, o narrador não
pode acreditar neles; deve dizê-los tendo certeza de que são
ficcionais, ainda que de fato a origem dos fatos “inventados”
tenha um pé na realidade vivenciada. Pois literatura não
existe para resolver problemas pessoais, nem no âmbito do
autor nem no do leitor. Interpõe-se sempre entre o narrador
e o mundo representado uma distância que faz preservar o
sujeito (o próprio narrador) e o objeto (as aventuras do herói
que Fabiano cria para contar uma história). Quando se diz que
“Fabiano acreditava nela”, na briga que narra, confundindo
narrativa ficcional com sua vida e problemas do dia a dia, a
distância necessária ao gênero épico fica ameaçada. O que se
espera do narrador é que ele mantenha, ou se esforce para
manter, o campo de observação um tanto afastado.

1.1.2. O DISTANCIAMENTO ÉPICO

Quando o sujeito e o objeto, em uma narrativa, se


aproximam muito, esta tende a cair nas malhas do lirismo.
Isso aconteceu a Bentinho, de Dom Casmurro, no momento
em que ele, ainda adolescente, namorando Capitu às
escondidas da mãe, olha para os olhos da namorada tentando
decifrar o seu mistério e, em seguida, formular uma expressão

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 141


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Teoria da Literatura 1

poética que servisse para defini-la, uma vez que não tinha
gostado nada da metáfora que José Dias encontrara para
ela, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. Isso se dá no
capítulo XXXII, intitulado “Olhos de ressaca”. Nessa cena,
Bentinho dramatiza e testa a capacidade máxima de lirismo
que um texto pode ter. Certamente, Capitu deve ter achado
que aquele olhar demorado do namorado sobre ela era sinal
de encantamento e enlevo, típico de quem está apaixonado.
Mas o que pretendo mostrar é que Bentinho vai em outra
direção, muito mais conceitual e intelectual do que mesmo
afetiva. Vamos ao texto:

Tinha-me lembrado a definição que José


Dias dera deles, “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada”. Eu não sabia o que era oblíqua, mas
dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar
assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me
perguntava o que era, se nunca os vira; eu nada
achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas
conhecidas. A demora da contemplação creio que
lhe deu outra ideia do meu intento; imaginou que
era um pretexto para mirá-los mais de perto, com
os meus olhos longos, constantes, enfiados neles,
e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos,
crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma


comparação exata e poética para dizer o que foram
aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem
capaz de dizer, sem quebra de dignidade do estilo, o
que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá,
de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico,
uma força que arrastava para dentro, como a vaga
que se retira da praia, nos dias de ressaca.

Esse episódio do romance combina duas atitudes


aparentemente contraditórias e excludentes entre si:

(1) elevação do sentimento amoroso, conferindo


destaque aos irresistíveis olhos de Capitu, tidos

142 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

então por enigmáticos, arrebatadores e profundos


(“Tinham não sei que fluido misterioso e enérgico,
uma força que arrastava para dentro, como a vaga
que se retira da praia, nos dias de ressaca”); e Disciplina 1

(2) um desejo incontido de nomear esse olhar,


determiná-lo melhor, configurá-lo, classificá-lo
poeticamente.

Bentinho pretende homenagear esses olhos com uma


imagem, que, entretanto, não lhe ocorre logo, ficando à
espera de que aconteça, situação dramatizada pela presença
das reticências (“com tal expressão que...”). Mas, quando a
imagem vem por fim, depois de Bento pedir, inutilmente,
a ajuda e intervenção da retórica dos namorados (“Não me
acode imagem capaz de dizer o que eles foram e me fizeram”),
pareceu-lhe que a metáfora que ele acabou de achar não era
das melhores, chegando a mostrar-se um tanto desapontado
(“Olhos de ressaca? Vá, de ressaca”).
Tal processo de achamento da imagem não deriva dos
próprios sentimentos do protagonista, mas, certamente, da
luta que trava com as palavras. A procura da poesia não é,
assim, movida a paixão (no que Drummond concorda com
Machado, ao dizer, em “Procura da poesia”, que, antes de
escrever o poema, o poeta, sem indagar, sem se aborrecer e
sem fazer careta de gozo ou de dor, tem de visitar as palavras
em estado dicionário). Escrever o poema, mesmo o de amor,
é um ato muito racional e inclui um apelo consciente —
porque não há mágica para isso — ao conhecimento técnico
literário (“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação
exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de
Capitu”).
Bentinho, como narrador do chamado período realista,
sabe que não pode contar com soluções que extrapolem os
níveis da racionalidade. Daí pretender uma “comparação exata
e poética”. Ou poética, porque exata. Sem transbordamentos
afetivos. Isso lembra Djavan, que, na canção “Pétala”,
também nos passa semelhante lição de construção literária:
“Por ser exato / o amor não cabe em si / por ser encantado /
o amor revela-se”.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 143


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Para deixar representar-se no texto literário, o amor


curiosamente deixa de ser amor, sacrificando-se em sua
essência; e, ato contínuo, encanta-se, esfumaça-se, some
como tal. O que ocorre só quando tem de se transformar —
revelar-se, diz Djavan — em discurso, contrariando a lógica
ordinária segundo a qual a poesia, de todas as manifestações de
linguagem, é a que consegue traduzir bem o amor, porquanto
literatura e emoção, nessa visão ingênua, se confundiriam.
Foi esse o problema, ou um dos problemas de Fabiano ao
tentar contar uma história: ele quis conjugar vida pessoal,
seus sentimentos e esperanças de ter água abundante, com
as façanhas do seu herói. Esse herói não era crível, ao menos
pelo critério de recepção dos seus filhos.
Querer fazer coincidir ficção e realidade — cada uma
dessas esferas tem ontologia própria — pode gerar confusões
de concepção literária e de recepção também (que o digam
o menino mais velho e o menino mais novo). Talvez porque
ainda não se tenha compreendido bem que o simples
gesto de submeter o sentimento ou qualquer outra coisa à
linguagem altera esse dado do real, seja o sentimento, seja
outro elemento. Desse modo, se o leitor admitir que todo
texto literário termina por ser um autoexame de seus próprios
recursos expressivos, não há mesmo poemas ou textos de amor
nem de nenhum outro assunto. Se esse argumento não bastar
ainda, volte os olhos, caro aluno, para o primeiro parágrafo
desse excerto de Machado de Assis que analisei acima e verá
que Bentinho afirmou, com todas as letras, que, ao examinar
os olhos da amada, nada neles viu de extraordinário. Então
um adolescente apaixonado não se deixaria levar pelo enlevo
e pela miragem de olhos tão encantadores? Não nesse caso, é
a resposta que eu dou. Porque Bentinho, além de autoridade
narratorial, sabe, talvez por isso mesmo, que literatura não
tem por fim, precipuamente, estimular ou desencadear a
explosão de sentimentos. Se assim fosse, qualquer semanário
religioso, como sentenciou Mário de Andrade, seria superior
a Machado de Assis.
O que Bentinho queria mesmo era contrapor a metáfora
de José Dias, “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, a uma
possível versão metafórica sua a respeito dos mesmos olhos. E,
para isso, precisava “mirá-los mais de perto”, como o faria um

144 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

cientista em laboratório com o seu objeto de estudo, numa


contemplação que deu a Capitu outra ideia do intento. Pobre
menina, que, como leitora, não percebeu que estava diante
de um narrador arguto e meticuloso; julgou, por excesso de Disciplina 1
confiança em si mesma, que aquele rapazinho era apenas um
prisioneiro de seu fascínio.
Note também o leitor, em apoio à noção que aqui
defendo, como são abundantes nesse fragmento as palavras
e expressões de cunho racional e cognitivo: “definição que
José Dias dera deles”, “Eu não sabia o que era oblíqua, mas
dissimulada sabia”, “queria ver se se podiam chamar assim”,
“a cor e a doçura eram minhas conhecidas”, “creio que lhe deu
outra ideia do meu intento”, “e a isto atribuo”, “dá-me uma
comparação exata e poética”, “imagem capaz de dizer”.

Eis aí: definir, saber, conceber, reconhecer, dizer, atribuir.


Enfim, uma busca consciente e incessante — no reino da fala
e da razão — de uma metáfora que tem de ser dita, explicitada,
produzida, para ser confrontada com aquela primeira, com a
qual Bentinho não concorda, ao menos nesse momento da
narrativa.
E, para isso, Bentinho teve de ser mais fingido e
dissimulado do que Capitu, que, com toda sua esperteza, não
alcançou a verdadeira causa daquela muda contemplação,
julgando-se, orgulhosa, objeto de desejo e amor desmedido.
Na verdade, o narrador faz do discurso amoroso disfarce
da declaração das artimanhas e dos artifícios do discurso
literário. Fingindo falar de amor, o texto fala de como é
possível construir uma imagem... de amor. Se Bentinho, na
vida, parece ter sido vítima da ardilosa Capitu, motivo de
sua casmurrice, ela é que foi vítima do marido na armação
do enredo e da linguagem que ele mesmo construiu. Não
é à toa, por conseguinte, que a teoria literária designa o
ato narrativo de trama: mistura de entrecho, urdidura,
maquinação consciente. Com isso revela-se a dimensão de
jogo, ficcionalidade e representação da escrita literária. Já a
história é outra coisa, não tem caráter artístico nem é medida
ou avaliada por esse critério, porque é aquilo que se conta,
espécie de matéria, assunto, não o tratamento literário da
linguagem. Toda narrativa tem, pois, uma história e uma

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 145


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trama. A história e a trama trazem os mesmos fatos narrados,


mas só a trama é instância que merece ser verificada do ponto
de vista literário, e não a história.

Eis aí um par conceitual que interessa muito a quem


estuda gênero narrativo: “trama” e “história”. É uma distinção
que procurarei explicar na seção seguinte.

a
Atividade de Aprendizagem
Texto:
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-
se na rede (não tinha ali outra cama), D. Severina, na sala da frente,
recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou
alguma cousa. Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas há ideias que
são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda,
elas tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que
entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de
buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta
outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou então
os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente,
e mais outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.

(Machado de Assis, “Uns braços”, in: Várias histórias, 1896)

Questões:

1. O texto narrativo acima transcrito apresenta uma situação amorosa


vivida, ao menos supostamente, por suas personagens. Esclareça o
motivo por que esse texto não pode ser entendido como texto lírico e
sim narrativo. Justifique e comprove.

2. Se esse texto de Machado de Assis tivesse sido escrito em verso


e não em prosa, constituiria um caso de epopeia, ou, pelo menos, de
poesia narrativa? Por quê? Justifique sua resposta, comprovando.

146 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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2.3.4. A HISTÓRIA E A TRAMA

Estudar a narrativa por dentro, em seus mecanismos Disciplina 1


e funcionamento, exige, desde já, que se distingam muito
bem duas instâncias fundamentais que, em geral, são muito
confundidas, trocando-se uma pela outra, ou simplesmente
são ignoradas, pois no senso comum não existiria diferença
alguma entre história que se conta e modo com que se conta
essa história. Procure você, caro aluno, fazer uma experiência
com pessoas que têm hábito de ler literatura, sobretudo
porque gostam, perguntando-lhes por que, por exemplo,
leem um romance e o leem às vezes mais de uma vez. Em
geral, a resposta ouvida, em situações assim, informais, é que
leem porque a história agrada, dá prazer, traz lembranças
de fatos vividos, evoca situações que gostariam de viver,
compensatoriamente. Não se diz que o que agradou foi a
maneira de contar a história, mas a própria história foi que
encantou tal leitor. Nesse caso, chamam sempre atenção para
a história, justamente a dimensão do texto literário que não
tem capacidade artística. E, assim, perde-se muito ao ler um
romance, porque se fixam naquilo a respeito do qual, dentro
da perspectiva dos estudos literários e da fruição necessária
do texto, não se tem muito o que dizer.
Por que se leem livros como Dom Casmurro ou Vidas
secas? Uns dirão acerca do primeiro que querem descobrir
— como se isso fosse possível — se Capitu traiu ou não
traiu Bentinho; e sobre o segundo livro certamente dirão
que querem ver como se vive numa região seca do país,
em condições subumanas, e como o autor, Graciliano
Ramos, fez essa denúncia social. Nas duas respostas está-se
sempre olhando para a periferia do texto, para a parte que é
secundária, menos importante. Não se percebe, por exemplo,
que Machado de Assis, ao falar de dúvidas de paternidade e de
ciúme, está também falando de certa concepção de literatura.
Vou transcrever aqui um fragmento de um ensaio do crítico
Roberto Schwarz (2008) em que se pode pensar melhor a
esse respeito. Trata-se do texto “Casmurro abre o jogo”. Mas,
antes, transcrevo o capítulo I desse romance, “Do título”,
que serve de apoio à análise que Schwarz faz desse trecho:

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Teoria da Literatura 1

Uma noite destas, vindo da cidade para o


Engenho Novo, encontrei num trem da Central
um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista
e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé
de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou
recitando-me versos. A viagem era curta, e os
versos pode ser que não fossem inteiramente maus.
Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado,
fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou
para que ele interrompesse a leitura e metesse os
versos no bolso.

– Continue, disse eu acordando.

– Já acabei, murmurou ele.

– São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez


do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado.
No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes
feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro.
Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos
reclusos e calados, deram curso à alcunha, que
afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a
anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça,
chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom
Casmurro, domingo vou jantar com você.” – “Vou
para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma
da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho
Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.”
– “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o
dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui
na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe
cama; só não lhe dou moça.”
Não consultes dicionários. Casmurro não
está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que
lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.
Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de
fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não

148 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

achei melhor título para a minha narração; se


não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este
mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que
não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, Disciplina 1
sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua.
Há livros que apenas terão isso dos seus autores;
alguns nem tanto.

Deve-se ler com muita atenção o capítulo inicial de Dom


Casmurro e verificar que, em literatura, as palavras não valem
exatamente pelo que dizem, em sua aparência, mas podem
estar dizendo outra coisa, bem diferente, adquirindo novos
sentidos. Quando Bentinho fala de “pai” ou “filho” pode estar
falando de “autoria” e “livro”, que é isso que vamos ver na
análise feita desse trecho do romance por Roberto Schwarz:
Diz o crítico, explicando inicialmente quem são essas
personagens:

Não vamos esquecer que essa passagem é uma


explicação do título do livro, oferecida pelo próprio
autor, ou pseudo-autor. De início assistimos à
tensão ligeiramente cômica entre dois cavalheiros
num vagão de trem, uma espécie de guerrilha de
esnobismo.
Um, o mais velho, que é o narrador, quer
que o deixem tranquilo. Outro, mais jovem, quer
entabular conversação. O mais velho é reservado
e distinto, e preza a privacidade a que as pessoas
civilizadas têm direito num trem. Ele se defende
dos passageiros metidos.
O mais moço é um morador do bairro e
se comporta com a familiaridade normal entre
vizinhos, familiaridade à brasileira, que não
incomoda senão os pretensiosos. Mas sem-
cerimônia não é inferioridade, e também ele aspira
à distinção, à condição superior, de gentleman: a
conversa sobre a lua e os ministros e a declamação
de versos – tudo chavões acanastrados, que indicam
a gente distinta – são a prova disso.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 149


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Teoria da Literatura 1

Noutras palavras, a distância que o primeiro


cavalheiro quer impor ao segundo é uma
arrogância descabida. Ele fez por merecer o apelido
de Casmurro.
O apelido tem sorte e pega. Os demais
vizinhos do bairro, que nutrem o mesmo
ressentimento contra o cavalheiro que não quer
conversa, adotam o nome com prazer, para marcar
a irritação com a pretensão aristocrática.
Pois bem, o viajante mais velho não se zanga
e conta a história de suas desventuras de bairro aos
amigos elegantes que vivem no centro. As futricas
da periferia são assunto de conversação para a gente
superior. Por sua vez, os amigos elegantes também
se divertem com o apelido e passam a usá-lo.
Em consequência o próprio Dom Casmurro
o acha simpático e decide adotá-lo como título das
memórias que começa a escrever.
Recapitulando, o apelido a) se deve ao
encontro casual entre dois passageiros; b) ele se
firma devido a uma antipatia social, que opõe um
bairro a um cavalheiro calado ou pretensioso; c) o
apelido viaja a outro bairro mais fino, levado pela
tolerância elegante desse mesmo cavalheiro, que
gosta de contar a história; d) o apelido firma-se
também no bairro mais fino, graças ao humorismo
da roda dos amigos bem-postos; e) nessa altura a
vítima do apelido acha graça nele, perdoa a intenção
insultuosa e o adota em espírito de conciliação com
o companheiro do trem.
Assim, o processo através do qual nasceu o
título do livro é uma ostensiva lição de tolerância:
ele envolve a superação da animosidade entre duas
pessoas, uma animosidade que tem conotação de
classe; envolve também a superação da birra entre
bairro e centro da cidade; e mostra enfim que há
gosto e charme em superar essas pequenas tensões.
Noutras palavras, o título do livro é o
resultado de um processo em várias etapas, com
acento na conciliação e na conservação: o apelido

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Teoria da Literatura 1

retém e combina algo dos diferentes instantes,


das diferentes pessoas, das diferentes classes, dos
diferentes bairros que o fizeram existir. Sem que
as oposições se apaguem, nada se perde, tudo se Disciplina 1
conserva vivo e contribui à sua maneira, o que mal
ou bem é um exemplo de harmonia.

Como se pode ver, o narrador explica o título do


romance e caracteriza muito bem as duas personagens: a si
próprio, Bento Santiago, chamado então de Dom Casmurro
pelo jovem poeta que encontra sempre no trem, e o próprio
poeta, que se aborreceu com o velho morador do Engenho
Novo, por este lhe ter desdenhado os versos. Por enquanto,
Schwarz está apenas fazendo referência a acontecimentos
que o romance narra; é o que se pode chamar de plano da
história. Por esse plano, tem-se apenas o relato do que está
acontecendo no texto, o que ele traz de fundamental, aquilo
que qualquer leitor diria a alguém que não leu ainda o livro
e que passa a saber.
Em seguida, Schwarz vai para os meandros do capítulo,
analisando o tecido e os fios mais íntimos que constituem
e encorpam o tecido textual. Nesse ponto, o crítico vai aos
poucos abandonando o conteúdo explícito do texto —
afinal, já informou, para quem não sabe, o que diz o primeiro
capítulo de Dom Casmurro e quem são as personagens que
aparecem inicialmente, não havendo mais o que dizer sobre
isso — para se dirigir à maneira da organização do texto, seu
processo de composição:

Até agora, o nosso comentário dessa tolerância


do narrador, com o seu cavalheirismo particular,
se deteve [sic] a três linhas do final do capítulo,
quando o tom do argumento muda sensivelmente.
Na linha anterior à mudança, completando
o processo de conciliação, o autor dizia: “Também
não achei melhor título para a minha narração; se
não tiver outro daqui até o fim do livro, vai este
mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo
que não lhe guardo rancor.” Ou seja, o poeta do
trem incomodou o cavalheiro reservado, mas este

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 151


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Teoria da Literatura 1

aproveitou para título o apelido implicante que o


primeiro lhe tinha posto, e ficam elas por elas.
Em seguida, contudo, entra a nota diferente,
de escárnio: “E com pequeno esforço, sendo
o título seu, poderá cuidar que a obra é sua.” A
ironia sugere que é bem possível que o poeta do
trem seja displicente, seja folgado em questões
de propriedade, e isso naturalmente seria algo
como uma apropriação, para não dizer um roubo.
O narrador, que não viu problema em tomar
emprestado um título, logo em seguida imagina
que lhe possam roubar a obra.

Bento Santiago explica agora o processo de composição


(na linguagem de Antonio Candido, eu diria que Bento
explica agora o processo de construção de objetos autônomos,
e eu digo isso sempre que me refiro aos bastidores da ficção,
não ao que se acha explícito no texto literário): “Também
não achei melhor título para a minha narração; se não tiver
outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo”. Que título?
O que foi dado, sem que soubesse, pelo poeta do trem? O
apelido “Dom Casmurro”, que terminou pegando. Note-
se que Bentinho deixou de falar de si mesmo e do poeta
do trem, para poder falar da concepção do livro e de seu
título. Note-se que, acompanhando esse desenvolvimento
da narrativa em seu começo, Roberto Schwarz sugere que,
possivelmente, mesmo sem dizer a palavra, Bentinho esteja
falando de “apropriação” — um tema ligado à usurpação
do texto ou das ideias alheias para escrever, como ocorre no
plágio (termo que nem Machado de Assis nem Schwarz,
interpretando Machado, chegaram a usar, mas de modo
algum deixaram pairando no ar). Diz o crítico, justificando
que não se trata de plágio, ainda que o medo de usurpação
da obra seja considerado um risco, sempre: “O narrador, que
não viu problema em tomar emprestado um título, logo em
seguida imagina que lhe possam roubar a obra”.
Como se pode notar, o narrador, segundo a análise que
faz Roberto Schwarz desse capítulo de Dom Casmurro, está
investigando agora o próprio ato de narrar, os bastidores do
ato narrativo, o que está por trás da cena principal, que é a

152 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

cena que houve entre Bento Santiago e o poeta do trem da


Central. Fala — ou falam tanto Bentinho quanto Schwarz,
interpretando o primeiro — de conceitos como “narração”,
“autoria”, “apropriação”, se não de forma declarada, com Disciplina 1
todos esses termos ditos com clareza cristalina, mas de todo
jeito de modo implícito. Isso significa dizer, no terreno da
teoria da literatura, que a trama da narrativa está se tornando
visível, saindo da obscuridade, escondida que estava pela
história, que parecia narrar a si própria. Agora, veja-se
bem, os fundamentos da narrativa — o ato de narrar e seus
implícitos, como autoria e plágio — sobem à superfície
da narrativa, revelando-se inteiramente. Isso é a trama
aparecendo, enquanto a história desce ao segundo plano. Pois
a história em si mesma não tem importância para a teoria
literária; afinal, por que esse romance de Machado de Assis é
importante? Porque fala de um velho que virou um casmurro
por causa da mulher supostamente adúltera? Nada disso.
Histórias como essa existem aos milhares por aí e nem por
isso encantam como encanta essa narrativa de Machado. O
que encanta, na verdade, é o modo como essa história foi
tratada.

Referências
SCHWARZ, Roberto. Casmurro abre o jogo. Piauí. São Paulo: Abril,
ano 2, dez. 2008, p. 58-59.

Schwarz analisa os fundamentos da trama detectáveis no primeiro


capítulo do romance Dom Casmurro, confrontando com o que diz a
história, no plano mais explícito da narrativa. O crítico mostra como
aquilo que está mais recôndito no texto literário pode conter a verdade
do texto. Essa distinção entre história (por alguns chamada de “fábula”
ou “diegese”) e trama (categoria também conhecida como “enredo”ou
“discurso”) é bastante operacional e elucidativa para quem pretende
estudar a narrativa literária.

MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. São Paulo; Ática, 2006.


(Princípios, 36).

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 153


Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

A autora estuda detidamente o enredo (ou trama), fazendo as


distinções necessárias entre essa categoria narrativa e a noção de
história ou fábula. Esse livro deve ser lido integralmente

2.3.5. O TRATAMENTO DO TEMPO NA NARRATIVA

Trama também pode chamar-se enredo ou discurso, ou


plano de enunciação; história, por sua vez, também é conhecida
pelos termos fábula, diegese ou plano do enunciado. Sendo a
dimensão responsável por dados artísticos de uma narrativa,
a trama organiza a massa verbal do texto da forma como
convier aos propósitos da ficção. A trama, portanto, não é
apenas aquela camada da escrita que chama atenção para o
seu fazer, o fazer da literatura, como acabei de mostrar na
passagem citada de Dom Casmurro, com base na crítica bem
montada de Roberto Schwarz, que mostra um Bentinho,
repentinamente afastado da sua posição de contador de
história, capaz de especular sobre a questão da apropriação
de ideias de outrem para poder compor o seu texto.
Da mesma forma, de acordo com o que eu disse sobre
o capítulo “Inverno”, retirado de Vidas secas, o narrador,
representado por Fabiano, também alude à instância
narradora, discutindo os passos da narração, alterando o
rumo dela, mudando as palavras, buscando maior interação
com os seus ouvintes, o menino mais velho e o menino mais
novo. Além de tudo isso, a trama — ou o enredo, como se
diz mais frequentemente — é a camada verbal que toma
certas iniciativas composicionais. Por exemplo, pode querer
iniciar uma narrativa no meio dos acontecimentos, e não
pelo começo, como normalmente se faz quando alguém quer
contar uma história. Em geral, sempre se parte do começo de
tudo, do início dos fatos. Mas, em literatura, as coisas nem
sempre são assim, e o tempo pode ser revertido, antecipado,
anunciado, prorrogado — tudo que não acontece no
chamado mundo real, mas que a literatura permite que
aconteça. O narrador, se quiser, inicia a narração pelo meio,
processo chamado in media res (expressão latina que quer

154 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

dizer “no meio das coisas”). Vejamos isso no conto “A causa


secreta”, de Machado de Assis:

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Disciplina 1


Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para
o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía
um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos
que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do
dia, que estivera excelente — de Catumbi, onde
morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde,
que adiante se explicará. Como os três personagens
aqui presentes estão agora mortos e enterrados,
tempo é de contar a história sem rebuço.

Nesse primeiro parágrafo do conto de Machado de Assis,


é ressaltado de forma expressiva demais o papel da trama na
narrativa. Em primeiro lugar, o narrador intervém, revelando
sua presença no texto, apesar de não ser personagem, ao dizer
que “adiante se explicará” o assunto “casa de saúde”. Também,
no último período do parágrafo, totalmente distante já da
posição de contar a história, o narrador faz uma referência
mais longa ainda, maior do que a primeira (“adiante se
explicará”), à necessidade de revelar o que pretende mesmo
revelar: “Como os três personagens aqui presentes estão
agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem
rebuço”. Em passagens como essas, o narrador avulta como
um observador de fatos, um comentador do próprio ato de
narrar, em manifestação metalinguística evidente. Ou seja, ao
refletir sobre o próprio andamento e intenções da narrativa, o
narrador se volta para o plano da linguagem que ele mesmo
tece — essa é a função metalinguística da linguagem, um
dobrar-se da linguagem sobre si mesma para que ela se
explique a si própria — e, ao fazer isso, suspende a narração,
isto é, deixa de contar a história, porque, nesse momento,
prefere explicar por que está narrando. A trama, aí, revela-se
completamente, mostra o seu papel de organizar o texto.
Quando o conto se inicia, há três personagens, todas elas
mudas, caladas, isoladas uma da outra, cada uma fazendo
uma coisa diferente, mas sem se comunicar entre si, como
se nem se conhecessem. Garcia estava em pé numa sala,

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 155


Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

mirando e estalando as unhas; Fortunato (que o leitor não


sabe ainda quem é, como não sabe ainda quem é quem e o que
desempenham efetivamente na narrativa) estava sentando em
uma cadeira de balanço, olhando o teto; e Maria Luísa, por
fim, costurava junto à janela. É evidente que algo acontecera,
algo bastante desagradável, a ponto de deixar essas três
pessoas numa sala praticamente incomunicáveis, como se
um não pudesse encarar o outro ou, por alguma razão que o
leitor ainda não sabe, não pudessem sequer trocar um olhar
ou uma palavra, numa situação de estudada indiferença. O
que os teria deixado assim? O leitor não sabe. E não sabe
porque a narrativa, ao invés de começar pelo começo de tudo,
começou pelo meio dos fatos, através do processo narrativo
chamado in media res.
No segundo parágrafo, o narrador retoma sua posição
de contador de história; deixa por enquanto de fazer a trama
se referir a si mesma, como ocorreu no fim do primeiro
parágrafo, e volta a comentar o que fazem aquelas três
personagens no campo exclusivo da história (ou “fábula”
ou “diegese”, se quisermos aqui um usar um sinônimo para
“história”):

Tinham falado também de outra cousa, além


daquelas três, cousa tão feia e grave, que não lhes
deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e
da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito
foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria
Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no
rosto de Garcia uma expressão de severidade, que
lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou
foi de tal natureza, que, para fazê-lo entender, é
preciso remontar a origem da situação.

Caro aluno, se você prestou bem atenção a esse segundo


parágrafo do conto, deve ter percebido que, aqui e ali, o
narrador volta a referir-se ao ato narrativo, suspendendo
subitamente o curso da história que vinha contando para
evidenciar de novo a dimensão da trama. São duas as
passagens nesse parágrafo em que isso ocorre, precisamente
nos dois últimos períodos: “Agora mesmo, os dedos de Maria

156 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de


Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual”
e “Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que, para
fazê-lo entender, é preciso remontar a origem da situação”. Disciplina 1
O narrador já tinha avisado no fim do primeiro parágrafo
que as três personagens já estavam mortas e, por isso, poderia
contar a história delas sem disfarce. E o que acontece no
segundo parágrafo? Até parece que as três personagens estão
todas vivas, muito vivas, pois o narrador, ao dizer em que
momento se dá o constrangimento da conversa que tiveram,
diz “Agora mesmo”. Agora mesmo quando? Que “agora”
é esse? É o tempo da narração, ou do enredo, ou da trama.
Sim, porque não existe apenas um tempo da história, que é
o tempo em que os fatos se desenvolveram; existe também
o tempo da trama, que é o tempo do discurso, o tempo em
que o narrador resolve contar uma história que se deu anos
antes e que ele finge ter presenciado e diz claramente que
vai fazer isso, ou já está fazendo. Ao dizer, portanto, “Agora
mesmo”, dando à expressão um ar de circunstância atual,
de ação presente, que transcorre no exato momento em que
se diz “agora mesmo”, evidencia-se mais ainda a trama, que
se vê reforçada no plano da linguagem, mais ainda pelo uso
dos verbos, que saem do passado (tempo privilegiado das
narrativas, segundo a convenção) e vão para o presente do
indicativo: “parecem”, “há”, “é”.
No último período desse parágrafo, o narrador é ainda
mais explícito e diz ao leitor que este, para conhecer melhor
os fatos que estão sendo tratados, deve dirigir-se ao passado,
ir para “a origem da situação”, ou seja, o próprio narrador
anuncia ao leitor que irá sair desse tempo narrativo e ir para
outro, anterior. Isso é crível, pois já se sabe que o narrador
começou a narrar exatamente pelo meio dos acontecimentos,
pelo processo in media res, e que, por decisão sua, vai
conduzir o leitor aos momentos iniciais da história. Assim é
que o narrador, no terceiro parágrafo do conto, apresenta as
duas personagens mencionadas em primeiro lugar, logo na
abertura: Garcia e Fortunato.

Garcia tinha-se formado em medicina, no


ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 157


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Teoria da Literatura 1

Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira


vez, à porta da Santa Casa; entrava quando o outro
saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim,
tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro,
poucos dias depois. Morava na Rua de D. Manuel.

Até agora estamos distinguindo fábula (ou história)


de trama (ou enredo). O tratamento dado ao tempo, no
conto, dá ensejo a que essa distinção se torne cada vez mais
clara, desde que se entenda que “história” é o conjunto dos
acontecimentos narrados e que “trama” é a própria narração
desses acontecimentos, o próprio ato de narrar, que, por
vezes, chama atenção para seu modo de declarar a finalidade
e natureza do próprio narrar. Se observarmos desde o começo
do conto, as referências temporais já dão indícios evidentes
de que ora é a história que importa, ora é a trama que se
autoevidencia, iluminando-se. Façamos, aqui, um quadro,
separando essas duas instâncias e reparemos bem que a
história tem um tempo que é só dela, envolvendo os fatos
e as personagens que realizam esses fatos, e a trama tem um
tempo que também é só dela, referenciando o momento em
que o narrador chama atenção para a sua própria presença
no meio da narrativa. Esses tempos ora vêm marcados com
datas, dias, meses, horas, minutos, ora vêm denunciados
pelo tempo verbal. Em geral, o tempo pretérito é o tempo da
história, enquanto o tempo presente é o tempo que melhor
diz respeito à trama ou enredo. Isso porque, ao dizer “Havia
já cinco minutos que nenhum deles dizia nada”, o narrador
está dizendo que houve um intervalo de cinco minutos entre
a última conversa — a partir da qual Garcia, Fortunato e
Maria Luísa emudeceram, ficando feito estátuas na sala, um
de pé, estalando as unhas, outro sentado, mirando o teto, e
ao lado dos dois Maria Luísa concluindo uma costura, perto
da janela da sala — e o momento em que o narrador parece
tê-los flagrado nesse silêncio constrangedor. O narrador não
é personagem, é apenas alguém, também ficcional, que narra
os fatos e que parece estar o tempo todo presente às cenas,
anotando o que vê, presenciando, julgando o comportamento
das personagens.
Vejamos o quadro:

158 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

TEMPO DA HISTÓRIA TEMPO DA TRAMA

Havia já cinco minutos que ... e de uma casa de saúde,


nenhum deles dizia nada que adiante se explicará Disciplina 1

Tinham falado também de Como os três personagens


outra cousa, além daquelas aqui presentes estão agora
três, cousa tão feia e grave, mortos e enterrados, tempo
que não lhes deixou muito é de contar a história sem
gosto para tratar do dia... rebuço

Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda


trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão
de severidade, que lhe não é habitual.

Garcia tinha-se formado


em medicina no ano
anterior, 1861

No de 1860, estando ainda


na Escola, encontrou-se Em verdade, o que se passou
com Fortunato foi de tal natureza, que, para
fazê-lo entender, é preciso
Fez-lhe impressão a figura; remontar a origem da
mas, ainda assim, tê-la-ia situação
esquecido,

se não fosse o segundo


encontro, poucos dias
depois

Vamos interpretar o quadro. O tempo da história é


marcado por datas, menção a meses ou horas ou minutos
na vida das personagens. O verbo no pretérito indica que
o fato narrado já aconteceu e que é apenas relembrado
pelo narrador. Já o tempo da trama é o tempo que implica
a presença não das personagens mas do narrador: este diz
que “explicará” mais adiante o que vem a ser esse episódio
da casa de saúde, ou seja, um fato que é também passado,

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 159


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Teoria da Literatura 1

no que toca à história, é, no entanto, futuro (daí o uso do


futuro do presente) no que diz respeito ao aparecimento
dele no discurso. Um antes que se torna futuro, pois só é
mencionado depois. E é a trama quem decide isso, decide
em que momento da massa verbal do texto deve dizer tal
coisa. Já se pode notar, pois, que a trama é responsável por
deslocamentos temporais: fatos passados não são ditos logo,
mas depois, quando convém dizer; o conto abre-se com um
episódio no meio, não pelo início de tudo. A história é que é
linear, tem começo, meio e fim, mas não vem narrada nessa
ordem, quase sempre não em toda a literatura conhecida. A
trama interrompe, antecipa, desliza para o passado, aponta
para o futuro, faz cortes na narrativa. Este é o papel da trama
ou do enredo; é um papel de edição de textos, como se diz
na área do jornalismo televisivo. O narrador edita o texto,
o qual, pela ordem natural das coisas, tem começo, meio
e fim bem determinados, mas nem sempre é assim que os
fatos se dão a conhecer ao leitor, por essa ordem natural
dos eventos. Ele só vai ter acesso aos fatos narrados quando
estiver lendo a narrativa, na ordem que a trama resolveu dar
a eles, subvertendo, por vezes, a chamada ordem natural dos
acontecimentos.
Mas, conforme se vê no quadro, há uma passagem que é
comum às duas instâncias: “Agora mesmo, os dedos de Maria
Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de
Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual”.
Os termos grifados em itálico servem para salientar o tempo
da trama, pois “agora mesmo” ou “parecem ainda” são
expressões temporais do presente do narrador. Com isso, o
narrador dá a impressão ao leitor de que a cena está tão viva,
tão presente na mente dele que, mesmo estando mortas essas
personagens, elas parecem que estão ainda por ali, à frente
desse observador privilegiado, que é o narrador. Ao mesmo
tempo que essa cena de “A causa secreta” pertence ao plano
da história — a descrição que o narrador faz dos dedos de
Maria Luísa, trêmulos, e da expressão severa no rosto de
Garcia é um dado verbal que se dá a conhecer na história e só
a ela interessa —, parece que também pertence ao plano da
narração, instância do narrador, porque o narrador, em vez
de ficar distanciado do que apresenta, aproxima-se de suas

160 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

personagens (que ele mesmo declarou já estarem mortas) e


finge estar ao lado delas, rompendo a barreira do tempo e
da morte. Com isso, o narrador — servindo-se das leis da
ficção e não das da natureza — mostra que é ele quem manda Disciplina 1
na narrativa, pois, quando quer ou acha conveniente, ele se
distancia da cena narrada e, quando quer também, aproxima-
se daquilo que descreve. O narrador e a trama são faces da
mesma moeda; ao se relevar como agente da narração, o
narrador evidencia o papel da trama, que é o de conduzir os
fatos narrados.
Prestemos atenção agora a outras frases colhidas do conto:
“Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior,
1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se
com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa”.
Essas datas são curiosas e marcam o tempo da história — não
da trama. O narrador dá a entender que Garcia e Fortunato
se conheceram formalmente e de fato no ano anterior, 1861,
quando um passou a visitar o outro. Ano anterior a qual ano?
O ano de 1862, claro. E que ano é esse, 1862? O ano em
que está a cena inicial da narrativa, aquela cena que abre o
conto: “Garcia em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato,
na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto
da janela, concluía um trabalho de agulha”. Nesse começo,
as três personagens estavam visivelmente constrangidas.
Mas com quê? O leitor só saberá mais adiante, assim que
ultrapassar as primeiras páginas do conto, avançar na leitura
e for parar no momento oportuno para descobrir que “cousa
tão feia e grave” é essa. O conto, portanto, começa in media
res: há algo antes e algo depois, momentos que precisam,
evidentemente, ser esclarecidos. O fato anterior é o que se
situa em 1861, o “ano anterior” a 1862, quando realmente
começa a narrativa. Em 1861, Garcia e Fortunato, como já
observei, se conheceram. Já no ano seguinte, 1862, depois que
a amizade ficou consolidada entre ambos e o médico então
formado passou a fazer visitas constantes à casa do amigo,
que tinha acabado de casar-se com Maria Luísa, ocorreu um
fato sumamente desagradável que levou as três personagens
a ficar mutuamente estranhas, constrangidas, pondo um
pedra no meio dessa amizade. Depois, virá o desfecho da
narrativa, com a morte de Maria Luísa, que contraiu a tísica.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 161


Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

Esse resumo que acabei de fazer mostra que o início do conto


é o meio da história, como já afirmei. E o leitor, que não
sabe ainda dos antecedentes (como os dois se conheceram,
afinal, e em que circunstâncias?), precisa ser informado disso,
para não se perder. Daí a necessidade de ir às origens dos
fatos, o que foi anunciado pelo narrador no fim do segundo
parágrafo.
O narrador, ao voltar ao passado, ano de 1861, um ano
antes da cena inicial da narrativa, serviu-se do procedimento
narrativo chamado analepse, ou seja, um retorno no tempo,
uma operação discursiva, própria desse gênero, através da
qual o narrador, ao fazer isso, explica fatos precedentes. A
analepse é um tipo de anacronia, ou seja, uma interrupção
do fluxo narrativo e do tempo da narração. O narrador,
ao recorrer a esse artifício, dirige-se ao passado da história,
buscando acontecimentos anteriores ao momento em que se
está narrando. Se o conto começa em 1862, com a cena das
três personagens caladas, constrangidas, há necessidade de,
em certo momento, retroceder para dar a conhecer ao leitor
os motivos dessa situação. Foi, então, necessário dizer como
se conheceram Garcia e Fortunato e tudo o mais que poderia
levar a entender melhor o fato referido, que se situa no
meio da história narrada. Assim, o narrador começa a narrar
um fato — o leitor nada compreende ainda desse presente
narrativo, daí ser praticamente obrigatório, em uma narrativa
tradicional do realismo, o retorno ao passado — e vai para a
origem dos acontecimentos para depois voltar ao ponto em
que estava para, então, só depois prosseguir, desse meio dos
fatos em diante, até chegar ao desfecho da narrativa.
Em 1860, ano em que tudo começa, Garcia aproxima-se
de Fortunato, após ter tido com ele um encontro casual na
saída da casa de saúde onde o estudante estagiava. Logo em
seguida, por uma dessas coincidências, encontra-o no teatro
para assistir a uma peça.

Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S.


Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia;
ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava
acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos
ousavam estender os passos até aquele recanto da

162 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu


ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

O estudante de medicina percebeu que, em cenas teatrais Disciplina 1


dramáticas e dolorosas, Fortunato acompanhava tudo com
satisfação e bastante interesse, mas se mostrava entediado se
o que vinha depois do drama era uma comédia. Fortunato
gostava de dramas, não de comédias. Assim que Fortunato
deixou o teatro, Garcia foi atrás dele, observando-o a certa
altura e ficou ainda mais intrigado com o que viu. Fortunato
agredia cães na rua como quem estivesse disperso e alheio ao
que estava ao seu redor; parecia não ver mais nada, além do
seu alvo mais imediato:

A peça era um dramalhão, cosido a facadas,


ouriçado de imprecações e remorsos; mas
Fortunato ouviu-a com singular interesse. Nos
lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos
iam avidamente de um personagem a outro, a tal
ponto, que o estudante suspeitou haver, na peça,
reminiscências pessoais do vizinho. No fim do
drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou
por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato
foi pelo Beco do Cotovelo, Rua de S. José, até o
Largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando
às vezes, para dar uma bengalada em algum cão
que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando.
No Largo da Carioca, entrou num tílburi, e seguiu
para os lados da Praça da Constituição. Garcia
voltou para casa sem saber mais nada.

Com esses traços mal delineados da personalidade de


Fortunato — que se delicia com cenas de dor sofrimento
representadas por atores no teatro e, ainda por cima, bate
em cães que dormem ao relento na rua —, o narrador pinta
o retrato de um homem que certamente tem algum desvio
comportamental, quase patológico, pode-se dizer. Sabe-se,
depois, num ponto da narrativa, quase chegando ao desfecho,
que Fortunato é um sádico, que se interessa vivamente pelo
sofrimento alheio (físico ou moral), porque isso lhe traz um

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 163


Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

bem-estar enorme. A cena que causou constrangimento em


Garcia e em Maria Luísa foi a cena em que Fortunato mata
um rato aos poucos, sem pressa, só pelo prazer de ver um ser
vivo morrer aos poucos, sofrer muito antes de morrer. A cena
é esta:

Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao


Fortunato queixar-se de um rato que lhe levara um
papel importante; mas estava longe de esperar o
que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia
no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um
prato com espírito de vinho. O líquido flamejava.
Entre o polegar e o índice da mão esquerda
segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato
atado pela cauda. Na direita, tinha uma tesoura.
No momento em que o Garcia entrou, Fortunato
cortava ao rato uma das patas; em seguida, desceu
o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e
dispôs a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia
cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

— Mate-o logo! disse-lhe.

— Já vai.

E com um sorriso único, reflexo de alma


satisfeita, alguma cousa que traduzia a delícia
íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a
terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo
movimento até a chama. O miserável estorcia-se,
guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não
acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois
voltou-os novamente, e estendeu a mão para
impedir que o suplício continuasse, mas não chegou
a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha com
medo, com toda aquela serenidade da fisionomia.
Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a
muito devagar, acompanhando a tesoura com os
olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato
meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a

164 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para


salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

Garcia, defronte, conseguiu dominar a Disciplina 1


repugnância do espetáculo para fixar a cara do
homem. Nem raiva, nem ódio; tão somente um
vasto prazer, quieto e profundo, como daria a
outro a audição de uma bela sonata ou a vista de
uma estátua divina, alguma cousa parecida com a
pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade,
que Fortunato havia-o inteiramente esquecido.
Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo
mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser
que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de
sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o
focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo.
Afinal, deixou cair o cadáver no prato, e arredou de
si toda essa mistura de chamusco e sangue.

Ao levantar-se, deu com o médico e teve um


sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra
o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera
evidentemente era fingida.

“Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela


necessidade de achar uma sensação de prazer, que
só a dor alheia lhe pode dar; é o segredo deste
homem”.

Enfim, a causa secreta é revelada: Fortunato compraz-se


com o sofrimento dos outros. É um sádico. Em razão disso
— só agora o leitor compreende melhor as atitudes desse
homem tão singular — é que ele gostava de assistir a peças
onde houvesse drama e lágrimas e desprezava a comédia,
por esta ser leve e provocar riso, e não dor. Esse fato, o da
tortura do rato, culminando com a morte do animal, foi que
deixou aquelas três personagens sem ter o que dizer naquele
dia. Constrangimento e pesar causados pela súbita revelação.
Como se pode perceber, o leitor chega ao meio da história
(quando começou o conto já se estava aí, no meio, mas foi

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 165


Livro de Conteúdo
Teoria da Literatura 1

necessário, por meio de uma analepse, fazer um retrocesso


no tempo narrativo e dizer como Garcia e Fortunato se
conheceram e passaram a ser amigos). Esse episódio do
rato — colocado no meio dos fatos — é, aliás, enunciado
pelo narrador, que, como sempre, intervém no conjunto da
massa verbal do texto, fazendo o enredo (ou trama) adquirir
realce e consciência de seu trabalho de organizador dos
acontecimentos narrados. Um pouco antes de Garcia chegar
ao gabinete e presenciar, horrorizado, a cena que não saiu da
cabeça, o narrador introduz a situação dramática, fazendo a
trama convergir para ela mesma, ao dizer, entre travessões,
que o dia em que isso ocorreu é “exatamente o dia em que os
vemos agora”.
Certo ar de tempo presente retorna à narração; o verbo
“ver” vai para o presente do indicativo e, como reforço a isso,
aparece o advérbio de tempo “agora”, que indica presente,
momento atual, o mesmo momento em que se faz referência
a algo que acontece simultaneamente a esse dizer. Mas se
trata do “agora” do discurso, não do “agora” da personagem.
Esse “agora” situa, no discurso, o narrador, que, de propósito,
deixou para o final do conto uma cena que, ao abrir-se a
narrativa, já tinha ocorrido. Mas, se o narrador tivesse dito
logo isso poderia ter comprometido a curiosidade do leitor.
O narrador preferiu fazer suspense e evitar enunciar com
antecedência o que é considerado o fator mais importante
da história: o fato que desmascara Fortunato e apresenta
sua “causa secreta”. Por isso é que se diz que, enquanto a
história é linear (dentro da sequência começo, meio e fim),
a trama pode não ser, já que a trama é quem organiza os
fatos, podendo desarrumá-los completamente, fazendo um
ato do passado aparecer bem depois, evocado pelo plano
da narração. Um episódio que ocorreu antes, no plano da
história, pode vir depois, bem depois, no plano do discurso
ou da trama:

Dois dias depois — exatamente o dia em que


os vemos agora — Garcia foi lá jantar. Na sala,
disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete,
e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no
momento em que Maria Luísa saía aflita:

166 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

— Que é? perguntou-lhe.

— O rato! o rato! exclamou a moça sufocada


e afastando-se. Disciplina 1

A trama é a parte artística do texto, a história não. A


história pode ser resumida, dita por outras palavras, contada
por alguém a outra pessoa que não leu o texto. Dentro desse
raciocínio, a trama (ou enredo) não pode jamais ser resumida
ou contada por alguém que leu, dizendo o que leu com suas
palavras. A trama não respeita as conveniências de tempo e
de linearidade (é só lembrar que o conto “A causa secreta”,
por exemplo, começa pelo meio dos fatos para em seguida
retroceder no tempo e ir à origem da situação, chegando
depois ao meio até chegar ao fim da história). A história,
sim, é que tem de ser compreendida obedecendo à ordem
lógica dos acontecimentos. Uma pessoa que vai contar a
outra uma história começa necessariamente pelo começo
(nunca pelo meio nem pelo fim) e desenvolve o que exige
a linearidade rigorosa e exata. No senso comum é hábito
confundir história com enredo. Diz-se por aí, sem reflexão
alguma, que se pode contar o enredo ou que o enredo de um
romance é simplesmente sinônimo de história. Essa confusão
tem de ser evitada por quem estuda criteriosamente gênero
narrativo, dentro dos padrões da terminologia disponíveis na
teoria da literatura mais confiável. Confira-se, então, o que
disse Mesquita ao confrontar a história (ou fábula) à trama
(ou enredo):

O enredo não é a fábula, mas a elaboração


estética do que diz a fábula, mediante uma instância
narrante.
A fábula representa um conjunto de vivências
de personagens, em suas conexões internas, sem
sua sequência temporal, causal.
O enredo, na obra literária, é a disposição
artisticamente construída daquelas vivências.
A fábula pode não ser criada pelo autor
de uma narrativa literária. O enredo, não. Este

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 167


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Teoria da Literatura 1

é essencialmente uma construção literária.


(MESQUITA, 2006, p. 22)

Imagine-se que esse narrador tenha começado sua


narrativa seguindo a ordem natural das coisas: do começo
dos fatos ao fim deles. Teria tirado do leitor a curiosidade,
ao menos a suspeita, do que poderia ser a “causa secreta”.
O texto perderia sua eficácia, se este tivesse começado
dizendo que Garcia, estudante de medicina, tinha conhecido
Fortunato à porta de uma casa de saúde e que, logo em
seguida, acidentalmente, se teriam os dois encontrado no
interior de um teatro, assistindo ambos a um dramalhão,
a que Fortunato demonstrava ter dado atenção especial,
retirando-se da sala de espetáculos assim que começou uma
comédia; e, se, também, o narrador tivesse dito que esses dois
homens, apesar das diferenças de personalidade, passaram
a ter relações de amizade, que logo em seguida Fortunato,
aos 40 anos, se casou com Maria Luísa, moça nervosa e de
compleição frágil, e que, no âmbito de tal relação matrimonial,
o marido já demonstrava singularidades de caráter, a ponto
de torturar e matar um rato, para só então chegar à cena em
que, após o jantar, as três personagens indiciam sinais claros
de mútuo constrangimento. O meio da narrativa, dito no
exato meio da massa verbal, não teria sentido nenhum. O
extraordinário da narrativa está, logo no começo, como o
planejou Machado de Assis, em apontar um problema de
comportamento, deixando no ar a suspeição do que poderia
ser. O procedimento in media res vem a propósito nesse
conto. Criou expectativas. Gerou curiosidades. Surpreendeu,
por fim, o leitor. Isso é a trama quem faz, porque a história,
em si mesma, tem começo, meio e fim bem delineados. O
que o narrador faz é tão só distorcer essa ordem e dar aos
fatos a ordem que achar mais conveniente. Por isso é que
enredo (ou trama) não é sinônimo de história (ou fábula).
Uma história pode chegar ao conhecimento do escritor
— Machado bem pôde ter ouvido falar de um cidadão como
esse Fortunato —, mas essa história só vira literatura no
momento em que o escritor põe isso no papel, transformando
o que é pré-literário em composição literária, que é o enredo.
O enredo só existe quando a história se transforma em texto;

168 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

a história pode ficar para sempre na cabeça do escritor sem


nunca passar a ser um texto.

Disciplina 1

Referências
Ler o conto “A causa secreta”, de Machado de Assis, do volume Várias
histórias, desse autor. A leitura desse conto interessará também ao
estudo da seção seguinte.

2.3.6. A VELOCIDADE DO ATO DE NARRAR: AS


ANISOCRONIAS

Com base ainda no conto “A causa secreta”, da coletânea


Várias histórias, de Machado de Assis, mas com outras
intenções teóricas a respeito do tempo, veremos agora
como o narrador tem um tempo próprio, que é só dele e
que não se confunde com a noção de tempo da história. O
narrador dessa pequena obra-prima machadiana se desloca
fundamentalmente no tempo como se fosse um pequeno
deus, estando aqui e ali, ao mesmo tempo, em tudo que é
instância da narrativa.
Começa o narrador, como já vimos ao falar desse
conto, por apresentar suas três personagens, de uma forma
didaticamente compreensível para que o leitor não se
confunda. Por isso, há um enxugamento de recursos e a
redução da linguagem ao mínimo necessário à captação da
informação, como se o narrador redigisse uma reportagem
de jornal ou escrevesse uma rubrica de teatro:

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas;


Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o
teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um
trabalho de agulha.

Depois, o narrador, parecendo assistir à cena, afirma,


também em estilo direto e preciso, que

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 169


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Teoria da Literatura 1

Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia


nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente
— de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e
de uma casa de saúde, que adiante se explicará.

Só depois de passados esses cinco minutos é que se


diz de que assuntos eles trataram, antes de ficarem todos
silenciosos durante os tais cinco minutos: o dia, Catumbi
e — suspense! — uma casa de saúde. Lógico que os dois
primeiros temas em nada acrescentariam ao conto, que
deve ser naturalmente exíguo; falar deles seria contrariar a
imposição da brevidade ao gênero. Mas, isso sim interessa,
uma misteriosa casa de saúde aparece no campo de visão
do leitor, avisado de que, mais tarde, se falará disso mais
detidamente. Este futuro do presente, “se explicará”, não
pertence ao tempo da história. O que será explicado e que
o leitor não sabe ainda é na verdade algo que as personagens
já sabem — é seguramente algo desagradável, por isso estão
mudos, visivelmente constrangidos, não conversam mais nem
se olham, preferindo fazer coisas que os tornem mutuamente
alheios. O narrador, que é onisciente, também já sabe o que
houve. Quem desconhece é o pobre leitor, que precisa de
um guia para lhe revelar as partes palpitantes da história mas
que o enredo só esclarece na hora em que acha isso mais
apropriado. O momento não chegou, e o leitor que tenha
paciência e aguarde! À medida que for lendo, o leitor vai
vencendo o tempo que efetivamente o separa do narrador,
embora este procure tornar o leitor seu cúmplice, fingindo
que está perto dele, quase pegando na sua mão para guiá-lo.
Note-se que o tempo da história não é o mesmo tempo do
leitor. Na história, o fato que envolve a casa de saúde já se
deu. No enredo, isso ainda vai acontecer, porque o enredo é
construção verbal, não coincide com a linearidade dos fatos
da história, conforme já disse antes. É o enredo, montado
pelo narrador, que decide quando o leitor deve saber de certas
coisas. Por isso adia, provocando curiosidade e estimulando
o andamento da leitura, que segue. Os fatos são os mesmos,
tanto os da história quanto os do enredo, mas alguns deles,
nesse caso, o enredo só torna visíveis depois. Isto é, enuncia-os

170 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

em um tempo posterior ao que já efetivamente se desenvolveu


no passado.
O tempo é, pois, uma categoria fundamental da
narrativa. No gênero lírico, o tempo que existe é o tempo Disciplina 1
do poema, mesmo quando este busca falar de um tempo
histórico, como o sacrifício e morte de Cristo, como foi visto
no poema “Do Novíssimo Testamento”, de José Paulo Paes,
estudado aqui quando tratei do gênero lírico. Como o espaço,
o tempo pode ser analisado ora pela perspectiva da história,
das personagens que vivem essa história, ora pela perspectiva
da trama ou enredo. Pela perspectiva da história, o tempo é
claro, como se vê em passagens tais: “Garcia foi lá domingo”,
“Fortunato saiu pouco antes de uma hora”, “Decorreram
algumas semanas”, “Garcia tinha-se formado em medicina,
no ano anterior, 1861”, “Dous dias depois — exatamente o
dia em que os vemos agora — Garcia foi lá jantar”. Nessa
última frase, há um misto de tempo da história (“Dous dias
depois”) e tempo da trama ou enredo (“exatamente o dia
em que os vemos agora”), porque “esses dois dias depois”
se refere a dois dias após um fato narrado, ao qual se segue
outro, com o intervalo de dois dias, sendo, pois, o tempo da
história que se conta, ao passo que, na sequência “exatamente
o dia em que os vemos agora”, o presente do indicativo,
“vemos”, mais o advérbio “agora” incidem sobre o próprio
tempo da narração, situando o narrador em relação ao fato
que vai começar a narrar. É como se, ao narrar efetivamente,
o narrador avisasse ao leitor que estava narrando e que essa
narração tem um tempo, o presente narrativo. O tempo da
história, ao contrário, não se dá no presente porque o fato
que se pretende apresentar, salvo raríssimas exceções, nunca é
contemporâneo do ato de narrar.
Além do tempo da história e do tempo da trama, impõe-
se reconhecer que o narrador, ao narrar, pode acelerar ou
retardar o tempo de apresentação do fato. O narrador pode
agilizar a narrativa, correr, passar por cima de detalhes, ser
genérico, como se estivesse apressado ou achasse que o que
tem a dizer não merece mais do que cinco ou seis palavras.
Ou, então, caso contrário, pode demorar-se e passar páginas
e páginas narrando a mesma sequência narrativa. Como
estou usando a maior parte do tempo o conto “A causa

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 171


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Teoria da Literatura 1

secreta” para exemplificar, vou transcrever momentos da


narrativa que reflitam bem essas anisocronias, entendendo-
se por anisocronia a velocidade que o narrador imprime ao
ato de narrar, acelerando-o ou retardando-o. Anisocronia é
particularidade do tempo do discurso, da trama ou enredo,
não da história ou diegese. Uma cena longa pode ser
acelerada, caso o narrador ache conveniente não se demorar
nela por alguma razão e, por isso, prefira passar por cima de
detalhes. Quando isso ocorre, a anisocronia recebe o nome
de “sumário”. É o caso abaixo:

Ela tossia, tossia e não se passou muito tempo


que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica,
velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até
deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a
notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a
seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe
perdê-la.

Note-se que, no excerto acima, o narrador contou de


forma abreviada que Maria Luísa contraíra tuberculose e que
o marido tomara um susto com a notícia da doença da mulher.
Não se mostrou como isso se deu nos detalhes e pormenores.
Que palavras foram trocadas por ambos, se ela chorou ou
não, como estava o marido fisicamente, se a notícia foi dada
rapidamente ou por partes, se ambos estavam no quarto do
casal, ou na sala, ou no jardim, a que horas do dia, antes
ou depois do jantar. Nada disso se sabe porque a sequência
narrativa foi rápida, curta, dita em forma bastante resumida.
Por isso é que essa anisocronia se chama “sumário”, que é a
mesma coisa que “resumo”.
O contrário do “resumo” é a “cena”, anisocronia em que
o narrador se demora bastante para contar que algo ocorrera,
independentemente se a duração foi de minutos ou de horas.
O plano da narração revela-se em seus detalhes, como o
mostra a sequência narrativa abaixo, também tirada de “A
causa secreta”:

De noite, indo repousar uma parenta de


Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na

172 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos


pensativos; mas o próprio marido estava fatigado,
o médico disse-lhe que repousasse um pouco.
Disciplina 1
— Vá descansar, passe pelo sono uma hora
ou duas; eu irei depois.

Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da


saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos
depois, acordou, quis dormir outra vez, cochilou
alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala.
Caminhava nas pontas dos pés para não acordar
a parenta, que dormia perto. Chegando à porta,
estacou assombrado.
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara
o lenço e contemplara por alguns instantes
as feições defuntas. Depois, como se a morte
espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na
testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou
à porta. Estacou assombrado; não podia ser o
epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes,
note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe
não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade,
que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou
assombrado, mordendo os beiços.
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para
beijar outra vez o cadáver, mas então não pôde
mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos
não puderam conter as lágrimas, que vieram em
borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável
desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou
tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa,
muito longa, deliciosamente longa.

Essa passagem, que encerra o conto, é uma “cena”,


anisocronia que só serve para retardar o discurso, fazê-lo ficar
mais lento, mais arrastado, sem agilidade, porque não há
pressa para contar e sim, ao contrário, morosidade, lentidão,
porque o narrador entendeu que esse desfecho tinha de
ser contado em seus pormenores. Se fosse um sumário,

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 173


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Teoria da Literatura 1

o narrador diria, muito depressa e em poucas linhas, que,


na noite do velório de Maria Luísa, Garcia, aproveitando-
se da ausência de Fortunato, que tinha ido tirar um sono
na sala ao lado da sala onde estava o cadáver da mulher,
chorara sobre o corpo dela, sem suspeitar que estivesse
sendo observado. E que Fortunato, mesmo diante de um
momento de dor, ou justamente por causa disso, tinha tirado
proveito da situação, sentindo-se confortável, saboreando as
lágrimas incontidas de Garcia. E pronto. Mas não foi esse
o tratamento discursivo dado por Machado de Assis ao
desfecho do conto. O narrador mostra a cena viva, detalhe
por detalhe. Há até falas de personagens, como se o leitor
tivesse tido acesso ao que se passou (“Vá descansar, passe
pelo sono uma hora ou duas; eu irei depois”); há repetição de
frases (“estacou assombrado”, “estacou assombrado”, “olhou
assombrado”), enfatizando uma reação psíquica de Fortunato
ao deparar com o sofrimento do amigo e deliciar-se com isso;
há movimentos sutis, pequenos, quase imperceptíveis, mas
indispensáveis à formação de uma atmosfera de resguardo e
silêncio (“Caminhava nas pontas dos pés para não acordar
a parenta, que dormia perto”); analisa-se o comportamento
da personagem por dentro, revelando o que se passa na sua
mente (“Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo
essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa,
deliciosamente longa”).
Outros casos de anisocronia são a elipse e a pausa:
a primeira, assim como o sumário, serve para acelerar
a sequência narrativa; já a segunda, assim como a cena, é
usada pelo ficcionista para retardar o ato narrativo, criando
condições para que o leitor tenha a sensação de estar vendo
o que se passou, como se tudo se desenrolasse à sua frente,
com riqueza de detalhes. Na elipse, como diz o próprio nome
(elipse = desaparecimento), suspende-se uma cena qualquer,
omite-se, aliás, não há mesmo o que dizer; daí o narrador
pular de uma sequência narrativa para outra, dizendo, por
exemplo, algo parecido com “tempos depois, estando já
formado, e morando na Rua de Mata-cavalos, perto da do
Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola”. Não se sabe
o que aconteceu entre a sequência anterior e a atual sequência.
E o que indica essa suspensão temporal é a expressão

174 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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“tempos depois”, que cria um espaço de ação impossível de


ser enunciado, pois, simplesmente, não há o que dizer. O
intervalo ficou elíptico, sem ser descrito, mencionado sequer.
Já no caso da pausa, como a própria palavra indica, Disciplina 1
tudo para, uma sequência fica praticamente imobilizada. E
pausar significa retardar a ação, por causa dessa paralisação.
E o que, em textos narrativos, tem o poder de paralisar
uma narração? A descrição de uma paisagem, um local, de
uma personagem. Toda sequência descritiva é um caso de
pausa, porque, quando se descreve alguém ou alguma coisa,
a narrativa não progride, não anda, não sai do lugar. Veja-se
o exemplo, também tirado de “A causa secreta”:

Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe


um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em
companhia da senhora, que era interessante. A
figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas
chapas de estanho, duras e frias; as outras feições
não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios,
porém, se não resgatavam a natureza, davam
alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa
é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos.
Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha
vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove.
Garcia, à segunda vez que foi lá, percebeu que entre
eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca
ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher
para com o marido uns modos que transcendiam
o respeito e confinavam na resignação e no temor.
Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a
Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em
que ele conhecera o marido.

— Não, respondeu a moça.

— Vai ouvir uma ação bonita.

— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 175


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— A senhora vai ver se vale a pena,insistiu o


médico.

No interior dessa sequência que recortei da massa verbal


do conto de Machado acha-se um bom exemplo de pausa, com
uma apresentação das personagens Fortunato e Maria Luísa,
sob o olhar atento de Garcia, indo da descrição física deles
dois à caracterização dos seus aspectos morais e atitudinais.
A sequência começa com “Garcia foi lá domingo. Fortunato
deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em
companhia da senhora, que era interessante”. Parecia até que
o narrador ia dizer como tudo se passou nesse jantar. Mas,
de repente, ele interrompe a movimentação da sequência
— aliás, isso poderia evoluir para uma cena, mas o narrador
preferiu não realizá-la agora, atendo-se à apresentação dos
caracteres físicos e morais de Fortunato e Maria Luísa —, ao
iniciar, na frase seguinte, uma descrição física de Fortunato
(“A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas
de estanho, duras e frias”), passando pela referência à sua
personalidade (“Os obséquios, porém, se não resgatavam
a natureza, davam alguma compensação”). Depois o olhar
do narrador pula em direção a Maria Luísa, também a
descrevendo fisicamente (“Maria Luísa é que possuía ambos
os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos
e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de
dezenove”).
O narrador continua emperrando a história, que não
anda. Mantém-se no papel de observador da cena, sem
movimentá-la, sem dizer que ações foram realizadas naquele
jantar, pois toda a atenção dele recai sobre a descrição das suas
personagens. Eis, porém, que ele retoma a história e, ao fim do
parágrafo, volta a narrar; fala, então, de outro encontro entre
as três personagens, não mais esse jantar no domingo, que
foi o primeiro jantar de aproximação entre elas. Nesse outro,
a narração começa com um convencional “Um dia, estando
os três juntos”, maneira bastante conhecida em narrativas
tradicionais com que o narrador abre nova sequência
narrativa. Nesta, Garcia revela a Maria Luísa que conhecera
Fortunato num momento de extrema dedicação do marido
à causa humanista. Daí segue-se um diálogo introdutório e,

176 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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depois, um sumário que resume tudo aquilo que o leitor já


conhece. Mas, na verdade, o que quero salientar com tudo isso
é que — entre “Garcia foi lá domingo” e “Um dia, estando os
três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia Disciplina 1
das circunstâncias em que ele conhecera o marido”, começo
e fim do mesmo parágrafo — intervém uma descrição de
Fortunato e de Maria Luísa e que tal descrição interrompe
o fluxo narrativo, fazendo a história parar, interromper-se,
deter seu curso natural, sua progressão lógica. A descrição é,
como pretendi mostrar, uma pausa, uma suspensão de ações
na narrativa.
Assim, de um lado, pode haver ritmo acelerado no ato
narrativo e, de outro, ritmo mais lento. Quando escolher
uma ou outra forma de narrar? Quando isso for conveniente
à apresentação dos fatos que se sucedem na história, por
motivos exigidos pelo enredo. Interessa, pois, acelerar
quando se quer resumir o que o leitor já conhece, não
precisando repetir com a mesma intensidade o que o leitor
já viu (afinal, para que repetir o conhecido, a menos que isso
traga algum efeito narrativo surpreendente?), ou quando o
que se tem a dizer não tem essa importância toda para a visão
global da narrativa (um fato de pouca ou reduzida valia para
a compreensão da história). E, por outro lado, cabe tornar
mais lenta a narração, quando, por exemplo, o fato tiver
tanto peso que tenha mesmo de ser dito em detalhes (é o caso
da cena do rato, em “A causa secreta”, a cena que irá revelar
a verdadeira personalidade de Fortunato) ou quando a cena
merecer reflexão maior, de acordo com as intenções da ficção.
Mais fácil para o escritor é medir o tempo da história,
mas medir o tempo do discurso — a instância narrante,
aquela de que se serve o narrador para transmitir ao leitor
uma sequência narrativa, se de grande extensão, ou se de
extensão reduzida — é algo que só se sabe mesmo na hora de
construir o texto, o enredo.

Referências
SOARES, Angélica. Gêneros literários. São Paulo: Ática, 1989.
(Princípios, 166).

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 177


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Nesse livro deve-se ler, para entender melhor esse tópico em


que se discutem as anisocronias, o capítulo 3, “O texto, a teoria”,
especialmente a seção “O romance e seus elementos básicos”, entre
a página 42 e a 54.

2.3.7. O ESPAÇO NARRATIVO: NARRADOR E


PERSONAGENS

O romance lida com categorias fundamentais: a


personagem, o tempo e o espaço. Vimos o tratamento dado
ao tempo; agora passemos à análise do espaço narrativo. O
espaço pode ser visto como o local em que se desenrolam
as ações narrativas, chegando a haver romances em que o
espaço é tão ou mais importante do que as personagens —
caso de O cortiço, de Aluísio Azevedo, com a pintura das
primeiras favelas cariocas no centro da cidade, em Botafogo
sobretudo, e caso também de Germinal, de Émile Zola, com
as minas de carvão que brutalizam os homens, livro cujo
método escritural tanto inspirou Aluísio. Acham-se também
aí muitos romances de Jorge Amado, os que tratam de
questões sociais ligadas à terra, como Cacau e Terras do sem
fim, e outros, que são verdadeiras crônicas da vida cultural
da Bahia, como Gabriela cravo e canela e Dona Flor e seus
dois maridos, por exemplo. Nesses romances, a personagem
é apenas parte do lugar, uma representação cultural do local,
não podendo jamais ser compreendida fora dos limites
da região e dos costumes que simbolizam e retratam tal
cultura. Já em Vidas secas ou em São Bernardo, de Graciliano
Ramos, apesar de a região ter importância no conteúdo das
discussões sobre o lugar e a personagem, esta tem primazia,
pois é o mundo humano que se situa em primeiro lugar: a
história dos desvalidos, dos oprimidos, dos vencidos, como
a do bruto fazendeiro, do poder de uma personalidade forte
sobre as demais, causando a destruição do outro e de si
mesmo, do ponto de vista psicológico. Portanto, é preciso
ter muito cuidado na hora de decidir pela importância dada
primordialmente ao espaço em um romance: o espaço pode

178 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

ser pano de fundo, pode integrar-se à psicologia e formação


de uma ou mais personagens e pode, também, de modo quase
absoluto, tomar o lugar da personagem e constituir toda a
reflexão que se possa fazer no interior da trama narrativa. Disciplina 1
O espaço pode ser estudado em outro sentido também,
não aquele ligado essencialmente à história, mas à trama. No
que diz respeito à história (ou fábula), o espaço é o lugar
em que se movem as personagens, seja no sentido estrito
de espaço, seja no sentido de ambientação. Dimas (1985)
apropria-se dessa distinção feita pelo escritor Osman Lins,
cujo livro Lima Barreto e o espaço romanesco (São Paulo,
Ática, 1976) esmiúça as diferenças no entendimento do que
seja espaço no romance. Segundo Lins, o espaço é o lugar
exato em que se dá a cena narrativa: um quarto, uma casa,
uma floresta. O espaço é denotativo, preciso; não há dúvida
de que O cortiço se passa em Botafogo, na parte pobre do
bairro. Já a ambientação é conotativa, impregnada de valores
humanos, como quando Machado de Assis fala, em Dom
Casmurro, por meio do narrador Bentinho, da casa em que
este, adulto, morou, no Engenho Novo, feita para reproduzir
e reviver a casa de Mata-cavalos, onde ele passara a infância
e a adolescência. Ele chega à conclusão de que, ao reproduzir
o ambiente em outra fase da vida, tal operação não lhe foi
capaz de fornecer a vida que ele teve e que ele tanto desejava
para si, na tentativa de obscurecer o desastre conjugal, como
está dito no capítulo II, “Do livro”:

Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir


no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga
Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto
e economia daquela outra, que desapareceu. [...]
Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo
contraste da vida interior, que é pacata, com a
exterior, que é ruidosa. O meu fim evidente era
atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor
o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é
igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem
os outros, vá; um homem consola-se mais ou
menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo,
e esta lacuna é tudo.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 179


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Teoria da Literatura 1

A casa pode ser espaço apenas, se ela for vista como


algo físico, que abriga uma pessoa, uma família, mas sem
criar ressonâncias de personalidade nas paredes e nos
cômodos dessa casa. Para ser espaço, a casa precisa ser tão
somente casa, mundo exterior. Mas, como no caso acima
citado, tirado de Dom Casmurro, a casa é, com efeito,
prolongamento da personalidade da personagem, e aí temos
um caso de ambientação, como diria Osman Lins. O mesmo
se dá quando Bentinho compara a passagem da Glória ao
Flamengo como se esse trânsito fosse o corredor de sua
casa, de sua intimidade, como aparece no capítulo CXVII,
“Amigos próximos”:

Enquanto [Escobar] viveu, uma vez que estávamos


tão próximos, tínhamos por assim dizer uma só
casa, eu vivia na dele, ele na minha, e o pedaço de
praia entre a Glória e o Flamengo era um caminho
de uso próprio e particular.

Também carregada de simbologia é a cidade em certa


narrativa de Clarice Lispector, o conto “Amor”. Nesse conto,
a protagonista e narradora, Ana, vive uma vida morna, tanto
social quanto conjugal, desempenhando todo dia as mesmas
atividades concernentes à rotina de uma casa. Um dia, precisa
ir à rua comprar ovos. Com a sacola na mão, já de volta para
casa, toma um bonde. Este, ao frear subitamente em frente
a um ponto, onde se encontra um cego, de óculos escuros,
mastigando chiclete, um leve sorriso nos lábios, empurra-a
para a frente. Com o solavanco que sofre no interior do bonde,
Ana tem uma súbita manifestação interior: a clarividência
de toda a sua vida até ali. Ela acorda para a realidade e vê,
como nunca pôde enxergar, a mesmice da vida que levava,
sem sobressaltos, mas também sem nenhum tipo de emoção,
como se estivesse anestesiada desde que nasceu, incapaz de
abrir-se para o amor com a força que esse sentimento requer
do ser humano, em sua plenitude de realização. No mesmo
instante em que sente o solavanco dentro do bonde e explode
sua consciência para a revisão que instantaneamente passa a
fazer da sua vida, os ovos que segurava na sacola quebram-
se. Simultaneamente, o cego, de pé, diante dela, no ponto

180 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

de ônibus, olha para ela (ela pensa que ele olha para ela)
com um sorriso inexprimível, como se a estivesse querendo
alertar para uma nova percepção da realidade. Ana tem essa
sensação, porque é ela que andava cega, sem nada ver com Disciplina 1
nitidez ao seu redor, apenas fazendo o que se espera de uma
dona de casa, sempre pronta para atender os filhos e o marido,
dentro das conveniências sociais. Esse resumo do conto serve
apenas para situar a personagem de “Amor” e mostrar como
elementos da vida exterior — a metrópole, o ar de segurança
e bem-estar aparente do bairro do Jardim Botânico, o bonde,
o cego, a sacola de ovos quebrados — funcionam não apenas
como elementos do espaço, mas interagem vivamente com
a personagem feminina, simbolizando estados afetivos. Os
ovos, símbolo do início da vida, ao quebrarem-se, mostram
que se rompe ou se esgota uma fase da vida, sem consciência,
fazendo brotar outra, a da consciência da insatisfação e da
solidão na grande cidade, mesmo em meio às reuniões com
familiares e amigos. Eis um exemplo como o ambiente, no
sentido dado por Osman Lins, é representado pela narradora
criada por Clarice Lispector:

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora


da tarde as árvores que plantara riam dela. Quanto
mais precisava de sua força, inquietava-se. No
entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu
corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo
como cortava blusas para os meninos, a grande
tesoura dando estalidos na fazenda.

Como se vê desde a literatura romântica, onde, aliás,


esse processo de união indissociável entre personalidade e
natureza se intensifica, não só na poesia, mas também na
prosa romanesca, as árvores riam da personagem, que se
inquietava com o desdém da paisagem, o que aumentava
a sua solidão na cidade. Não só a natureza, mas também a
paisagem urbana, aquela que foi construída pelo homem —
ruas, carros, bonde, prédios —, parecem ser-lhe indiferente
também; e é essa cidade, com sua aspereza de pedra, no
entanto, que faz ruir o aparente mundo tranquilo e reservado
da personagem, jogando-a de vez na realidade da consciência

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de si e do outro, a ponto de libertá-la da mesmice. E, depois


do episódio do bonde, ela sente a cidade palpitar, agora,
indiciar perigos que ela não via, sugerir revoluções que ela
não pressentia, porque a maior revolução foi a que ela sentiu
intimamente, desde que o bonde dera um solavanco e, ato
contínuo, os ovos se quebraram nas suas mãos e o cego olhou
para ela, sorrindo enigmaticamente. Instala-se, pois, a crise:

O que chamara de crise viera afinal. E sua


marca era o prazer intenso com que olhava agora
as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara
mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes
mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia
prestes a rebentar uma revolução, as grades dos
esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego
mascando chicles mergulhara o mundo em escura
sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência
de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-se
com o vigor que possuíam.

Como ocorre no processo lírico, numa mistura de afetos


e sentimentos e objetos do mundo concreto, fundindo-se por
vezes, mas sem se fundirem de vez — pois o resultado disso
seria cair o texto no campo da lírica, afastando-se do gênero
narrativo, que, apesar de tudo, mantém a objetividade do
discurso e das coisas relatadas a todo custo —, o espaço assim
tratado tem a dimensão de uma ambientação, no dizer de
Osman Lins, já que o tratamento humanizado da realidade,
recebendo os objetos o influxo do sujeito, faz o espaço
significar por suas conotações. Acrescento a isso, como fiz
ver no ensaio “A cidade de Clarice”, publicado na Revista
Internacional de Língua Portuguesa, em 2010, a contribuição,
para a teoria literária, de uma nova distinção, a que faz um
geógrafo, como Bertrand Westphal, entre “lugar” e “espaço”:
lugar, categoria muito semelhante à de espaço, proposta por
Osman Lins, é a localidade precisa, histórica visualizada na
narrativa (a cidade do Rio de Janeiro no conto de Clarice)
enquanto “espaço” é o resultado de uma construção humana,
por vezes simbólica, que só tem valor e validade no texto no
qual se coloca. É o caso da cidade que fez Ana despertar para

182 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

a revelação da inutilidade da vida que levava até o momento,


ao receber o empurrão no vácuo provocado pela freada
brusca do bonde, ao quebrar os ovos e ao deparar, enfim,
com o cego que lhe sorri enigmaticamente. Disciplina 1
Mas o espaço pode ser encarado, na narrativa, sob outra
óptica. Pelo enquadramento da trama propriamente dita,
sendo da responsabilidade do narrador modular a visão
que ele tem dos acontecimentos, mediante o espaço virtual
do plano narrativo em que venha a se colocar. Ou seja, o
narrador revela em que parte do espaço ele está para melhor
ver o que narra e melhor comunicar (ou não) o que narra. O
narrador, ou a instância narrante, como se queira dizer, é uma
posição, antes de tudo, uma posição que se instala no texto,
mostrando estar perto ou longe (uma noção de perspectiva,
pois) do fato narrado — já que o narrador (no caso especial
do narrador de terceira pessoa) não é uma pessoa, mas uma
voz, uma instância da narração, assim como o eu lírico, na
poesia lírica, é uma voz apenas. Esclareço agora esses dados
relacionados ao espaço: o papel do narrador, seu estatuto, sua
posição no ato de narrar.
Em um ensaio meu, “O cinematógrafo de Alencar e
Machado” (LIMA, 2012), adaptado para este material,
o narrador de um romance ou de um conto não é uma
pessoa de carne e osso, conforme já afirmei, mas apenas um
ser que só existe no papel, tão ficcional quanto qualquer
personagem. Dizer isso hoje chega até a ser banal, por se
tratar de um rudimento dos mais comezinhos da teoria
literária: o narrador é, de fato, uma voz que ecoa ao longo da
massa verbal do texto. Às vezes, no entanto, o narrador é bem
delineado: tem nome, profissão, casa-se, tem filho, morre de
ciúmes da mulher, quer ela dê motivos quer não, briga com
ela, expulsa-a de casa, duvida da paternidade, fica viúvo...
Este é o caso de Bento Santiago, o narrador emburrado de
Dom Casmurro, de Machado de Assis, romance que já citei
várias vezes neste material por ser esta uma das narrativas
mais propícias a uma demonstração dos elementos de uma
narrativa.
Mas o narrador também pode se reduzir a uma sombra:
sem rosto, sem imagem, sem rastro. Desse último tipo de
narrador só se fica sabendo que é ele quem conta a história,

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mais nada, refestelando-se em seu confortável anonimato. É


o caso, em geral, do narrador de terceira pessoa, aquele que se
mantém mais distanciado dos fatos que narra, como é o caso
do narrador de O cortiço, de Aluísio Azevedo. No entanto,
mesmo restrito a uma pessoa gramatical, esse narrador de
terceira pessoa pode, não contente com isso, surgir com
ímpetos de ser reconhecido e, logo de entrada, se apresenta
e se dá um nome, como acontece com o narrador Rodrigo
S. M., de A hora da estrela, de Clarice Lispector. Tal narrador
julga, avalia, comenta, fala de si mesmo, fala de Macabéa,
a heroína do romance, constrói duas histórias paralelas,
combinando a história da personagem com a dele próprio,
aparecendo várias vezes em uma escrita de primeira pessoa,
como se participasse dos eventos narrados em terceira pessoa.

O narrador, confiante na sua onipotência — refiro-


me muito especialmente ao narrador de terceira pessoa —,
faz de sua escrita um laboratório de criação cujo alcance de
visão não raro lembra aquela que só se pode ter com a ajuda
de uma lente cinematográfica, parecendo antecipar, em anos
e anos, o aparecimento dessa tecnologia de arte tão avançada.
Evoco aqui, para comprovação disso, José de Alencar, nosso
bom “cineasta” cearense. No primeiro capítulo de Iracema,
livro de 1865, o narrador pinta um grande espaço natural, a
perder de vista:

Verdes mares bravios de minha terra natal,


onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;
Verdes mares, que brilhais como líquida
esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando
as alvas praias ensombradas de coqueiros;
Serenai, verdes mares, e alisai docemente
a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro
manso resvale à flor das águas.

Belo exemplo de exaltação da paisagem nativa, como


o exigia o programa romântico de nacionalização das letras
mergulhado em seu idealismo. A tela de cinema abre-se, e
o espectador depara logo com uma tomada ampla e vistosa
de cores e formas em que o verde do mar prepondera. O

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plural utilizado nos termos substantivos básicos da descrição


(“mares”, “praias”, “águas”) só serve mesmo para ajudar a
compor essa marinha exuberante, enquanto as comparações
(“verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda”) incitam Disciplina 1
o leitor a imaginar: como é que pode, pergunta-se o neófito
nesse tipo de leitura, uma esmeralda ser líquida, se não for
pela necessidade de exagerar a beleza do mar? E como podem
os mares — ou simplesmente aquele pedaço de mar à frente
do espectador — ouvir a exortação do narrador (“Serenai e
alisai”), se os mares continuam sendo mares?
O narrador, com sua câmara cinematográfica, ora está
bem junto do leitor, como se fosse a sua sombra, avistando
à sua frente a imensidão do mar, ora coloca-se longe dele,
mas perto de Martim, que viaja, em mar aberto, em uma
inverossímil jangada, acompanhado do filho pequeno e de
um cão. Nessa situação, o narrador expressa de modo enfático
a mesma dúvida do leitor, simulando (mas só simulando
mesmo) não saber o que está acontecendo de fato, fingindo
saber tanto quanto o seu narratário, ou seja, quase nada a
respeito do destino final das personagens. Daí as indagações
retóricas:

Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a


costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?

Onde vai como branca alcíone buscando o


rochedo pátrio nas solidões do oceano?

Mas, ao situar-se longe do leitor, parecendo ter dado um


voo, como se fosse um espírito, vai pôr-se ao lado de Martim
e dos outros dois companheiros de viagem naquele frágil
lenho:

Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora


o sangue americano; uma criança e um rafeiro
que viram a luz no berço das florestas, e brincam
irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.

Como pode ter certeza o leitor de que o narrador, agora


— exatamente agora, neste ponto preciso da cena —, está

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pisando a mesma jangada em que se encontra o aventureiro


português fazendo o caminho de volta à Europa? Examine-
se o fragmento que se segue, parágrafo subsequente ao que
acabei de transcrever:

A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante,


que ressoa entre o marulho das vagas:
— Iracema! (grifo meu)

O narrador, que, antes, na praia, perguntava aonde ia


a jangada audaciosa “que deixa rápida a costa cearense”,
passa, a partir deste momento, a dizer que também — ou
somente ele (e Martim não?) — ouve o vento que vem
da praia, vibrando e pronunciando o nome daquela que
ficou para sempre na terra americana, enterrada em algum
lugar da mata, a mulher de Martim, a virgem dos lábios de
mel, que morre ao dar à luz o menino Moacir. Portanto, o
narrador não está mais na praia. O uso da preposição indica
a posição daquele que fala em relação aos objetos disponíveis
na cena; serve para indicar o lugar onde ele se encontra na
hora de dizer o que diz, conferindo valor dêitico ao adjunto
adverbial, que, tornando-se mais do que um termo que
exprime circunstância de lugar, mostra (de dêixis, “mostrar”)
que o enunciador se encontra na cena, e não fora dela.
Se, inicialmente, o narrador, por meio de um símile,
nomeia a jangada de “branca alcíone” que busca “o rochedo
pátrio nas solidões do oceano” é porque não estava na
jangada, e sim no litoral, pois, vendo a embarcação de longe,
teve a impressão de que ela esvoaçava, trêmula, ao sabor dos
ventos e das ondas. E essa impressão só se pode realmente ter
de longe, nunca de perto. O que comprova que, exageros à
parte, a metáfora e outras figuras do campo da analogia não
são meros enfeites ou atavios retóricos, mas informam que
visão se teve e por que se teve em dado momento do texto.
Vista de longe, a jangada não é, pois, uma jangada: paira
sobre o mar, balança-se, voeja como um pássaro. Alencar
tinha plena segurança dos recursos expressivos que utilizava.
Já quando, porém, põe o pé na jangada, o narrador a vê
como tal, como de fato ela é, com mastro e jirau, numa
descrição mais próxima da realidade, que motiva um senso de

186 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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observação mais apurado, tornando as metáforas, ao menos


nesse momento, inadmissíveis ou inúteis, ou até mesmo
descabidas:
Disciplina 1
O moço guerreiro, encostado ao mastro,
leva os olhos presos na sombra fugitiva da terra;
a espaços o olhar empanado por tênue lágrima
cai sobre o jirau, onde folgam as duas inocentes
criaturas, companheiras de seu infortúnio. (grifos
meus)

Mastro é mastro, jirau é jirau, pois o narrador fala


de perto da coisa observada, recorrendo a boa dose de
precisão, obrigando-se a expressar-se, pois, com maior
grau de objetividade e denotação. Como em uma tomada
cinematográfica em close, o narrador, colocando-se bem
junto de Martim, capta-lhe “os olhos presos na sombra”
que ele dirige à terra. Veem-se, assim, de perto, os olhos do
português, enquanto a terra, já distanciada do observador,
aparece apenas como uma impressionista “sombra fugitiva”,
a esta altura percebida como um espectro, mal delineado,
dada a distância entre ele e a praia. E o narrador, com a
mudança de posição, não vê só os olhos do viúvo triste;
surpreende nele também, em close, “o olhar empanado por
tênue lágrima”, que vai morrer no jirau. Isso tudo só pode ser
visto de muito perto.
Diante de tudo isso, acredita-se que o narrador de
terceira pessoa é, pois, um ser que desconhece limites de espaço,
pois não é mesmo de carne e osso, é uma voz apenas e, como
tal, ignora as leis da física que regem os corpos compactos.
É, simuladamente, uma lente de câmara cinematográfica,
que desliza por fios invisíveis caprichosamente montados
por exigências da composição do cenário naquela sequência
do filme. A finalidade da simulação desses movimentos do
corpo e do olhar é criar, no leitor, vivacidade e ilusionismo
diante da representação. O leitor, por exemplo, só fica
sabendo desses detalhes fisionômicos de Martim, além dos
seus sentimentos — a lágrima que cai, a vista embaralhada,
a posição cabisbaixa do rosto —, porque o narrador, num
abrir e fechar de olhos, se deslocou da praia para o barco,

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 187


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vencendo distâncias em menos de um segundo, e o soube


informar bem.

2.3.8. FOCO NARRATIVO E FOCALIZAÇÃO

Por fim, quero abordar a questão do foco narrativo e das


focalizações. Uma história ou diegese pode ser contada por
alguém que é personagem ou por alguém que não participa
da história, limitando-se a ser mero observador dos fatos.
Chame-se ponto de vista, ou foco narrativo, ao lugar por
onde se veem os fatos narrados. Esse lugar é uma posição, um
posicionamento do narrador em face dos acontecimentos que
ele mesmo seleciona e apresenta. Portanto, narrar depende
de quem vê os fatos e de que perspectiva se vê. Isso influi
— a depender de quem é que vai narrar — no aumento
ou na diminuição do distanciamento que deve haver,
necessariamente, nas manifestações do gênero narrativo ou
épico. Se o relato for feito por alguém diretamente ligado aos
fatos, deles participando ativamente, o grau de intimidade
com eles é maior, comprometendo a objetividade do
discurso, uma vez que ele é um interessado na interpretação
dos acontecimentos, contando-os ao seu modo, fazendo-
os reais e concretos de acordo com o interesse que ele tem
em contar. É sempre um risco maior para a manutenção do
distanciamento fazer o narrador escrever a própria história,
porque aí ele vai querer impor sua posição, seu ponto de
vista, chegando até a falsear a objetividade.
Em Dom Casmurro o narrador é, ao mesmo tempo, o
protagonista, o Bentinho, que, ao contar a própria história,
indo da adolescência à velhice, se defende de tudo que viveu
e da desgraça — a ruína do casamento e da família — que
se abateu sobre ele, encontrando, para isso, uma culpada,
Capitu, a mulher que, segundo esse narrador, o traiu com o
melhor amigo. Se esse romance de Machado de Assis tivesse
sido escrito na terceira pessoa — uma voz anônima, não
identificável, sem nome e sem a concretude de uma pessoa,
sem mostrar algum interesse no que diz —, a impressão
do possível adultério certamente seria outra. Talvez o leitor

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saísse do romance com alguma certeza, a de que, no campo


da diegese ou da história, houve adultério. Ou, então, de
que não houve. A ambiguidade só persiste, porque, sendo o
narrador o marido de Capitu, ele fez de tudo para mostrar Disciplina 1
indícios de que ela viria um dia a traí-lo; ele foi quem não
viu isso com clareza enquanto durou a fase do namoro. Daí,
na vida adulta, os argumentos virem todos nessa direção.
Implacável e torturante, Bento Santiago condena a mulher,
não lhe dá chance de provar o contrário, pois ele é o dono
da história e, por isso, a conduz da maneira que melhor lhe
convém. O romance só existe porque ele, Bento, decidiu
contar sua história, gerando uma peça de ares jurídicos de
valor condenatório, não sendo, pois, à toa que Bentinho
é um advogado. Vendo indícios de crime em toda parte,
constrói provas definitivas — para ele mesmo, chegando a
influenciar, como o faz um bom advogado, seu auditório (no
caso, os leitores).
Já em “A causa secreta”, o narrador é de terceira pessoa,
busca manter-se mais distanciado dos fatos, se o parâmetro
de comparação for, por exemplo, Dom Casmurro, em que
a presença de um narrador de primeira pessoa, diretamente
envolvido nos fatos, implica já um comprometimento
desse distanciamento. No conto já estudado aqui, o
narrador apresenta as personagens com maior objetividade,
procurando não influir no julgamento que o leitor possa vir
a fazer delas. Afasta-se o mais que pode dessa capacidade de
julgar e convencer e, para isso, deixa Garcia, um psicólogo
nato, assumir indiretamente a responsabilidade de descobrir
a “causa secreta” de Fortunato. Em um momento do conto, o
narrador parece entregar essa responsabilidade de ver e julgar
a Garcia, para eximir-se disso, já que é um narrador objetivo,
típico narrador do realismo literário. Diz o narrador a esse
respeito:

Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço


possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os
homens, de decompor os caracteres, tinha o amor
da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo,
de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o
segredo de um organismo.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 189


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Teoria da Literatura 1

O narrador de terceira pessoa de “A causa secreta” quer


manter seu afastamento das cenas que narra, para não se
comprometer, para não perder a confiança do leitor, que
julga os fatos por si mesmo. Mas, como isso é praticamente
impossível, uma vez que, ao falar de destinos humanos, não
se pode manter assim tão intacta a imparcialidade, como
seria desejável, esse narrador, sutilmente, introduz nas cenas
narradas, para disfarçar possíveis deslizes de subjetividade, a
intromissão de Garcia, que assiste a tudo e, como observador
dos fatos que é, julga do seu lugar:

[Garcia] Contou o caso da rua de D. Manuel.


A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente,
estendeu a mão e apertou o pulso ao marido,
risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-
lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas
não ouvia com indiferença. No fim, contou ele
próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos
os pormenores da figura, dos gestos, das palavras
atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria
muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A
dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e
franco.

“Singular homem!”, pensou Garcia.

Nessa passagem do conto, Garcia resolve contar para


Maria Luísa, na presença de Fortunato, o que presenciara
de suas atitudes aparentemente tão humanas. Não conhecia
ainda, é claro, a verdadeira razão de tanto esse homem se
aproximar dos que sofrem. Sem conhecê-lo bem, tinha-o
na mais alta consideração. Trata-se do episódio em que
Gouveia, um funcionário do arsenal de guerra, fora, certa
noite, agredido por capoeiras ao voltar para casa. Na ocasião,
Fortunato, passando por ali, salvara-o do ataque e o levara,
ferido, até onde a vítima morava. Por uma dessas coincidências
do destino, tão exploradas pela literatura realista, o prédio era
o mesmo em que vivia Garcia, que, por estar-se preparando
para ser médico, fora também ajudar o Gouveia. Foi nessa
hora que o então estudante se surpreendeu com a ação

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Teoria da Literatura 1

aparentemente piedosa e humanitária de Fortunato, que não


titubeou em ajudar um desconhecido na rua, livrando-o do
perigo. Aproveitando-se, por conseguinte, da onipresença
de Garcia, cujo olhar vigilante, muito bem construído Disciplina 1
pelo enredo, serve de desculpa para a manutenção do
distanciamento do narrador em face dos fatos — não se deve
esquecer que essa narrativa é do período do realismo —, o
rapaz é caracterizado como aquele que analisa e julga o que
presencia ao longo da narrativa:

A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao


mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar
que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e,
se era desinteressado como parecia, não havia mais
que aceitar o coração como um poço de mistérios.

O que o conto, porém, vai provar, mais adiante, é que


o coração continua e deve continuar sendo considerado um
“poço de mistérios”, pois Fortunato realmente não fazia nada
desinteressadamente. Garcia ainda estava iludido em seu
julgamento a respeito da personalidade de Fortunato. Tinha-o
já visto em situações anteriores, todas muito rápidas — na
porta da casa de saúde, sempre apressado e ligeiro, depois
no teatro, assistindo a um dramalhão —, mas agora, em
câmera lenta, dentro de uma anisocronia como a cena, passa
a admirar o homem que se aproxima de doentes e feridos,
sem saber que disso tudo ele extraía um prazer enorme. É
nesse sentido que Garcia se faz às vezes de guia do leitor,
papel que é confiado, na verdade, ao narrador, seguindo os
passos de Fortunato, observando-o a cada instante, como se
tivesse assumido a responsabilidade de relatar.
Note-se que, na passagem em que Garcia, inocentemente,
faz Maria Luísa conhecer esse lado humanitário do marido,
o narrador transfere ao médico a autoridade narratorial,
escolhendo bem o verbo com que lhe atribui a função: “Contou
o caso da rua de D. Manuel”. Garcia conta, narra, apresenta,
dá a conhecer a outrem o que viu, e julga, comenta, analisa,
como o fez esplendidamente depois, de forma definitiva, na
cena do rato, assim que descobre o sadismo do amigo:

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 191


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Teoria da Literatura 1

Garcia, defronte, conseguia dominar a


repugnância do espetáculo para fixar a cara do
homem. Nem raiva, nem ódio; tão somente um
vasto prazer, quieto e profundo, como daria a
outro a audição de uma bela sonata ou a vista de
uma estátua divina, alguma cousa parecida com a
pura sensação estética.

De qualquer forma, a narrativa de terceira pessoa é


ainda aquela cujo foco narrativo pode inibir a subjetividade
do relato, mantendo boa dose de objetividade. É o que
acontece em “A causa secreta”, por mais que o narrador de
terceira pessoa, aqui e ali, jogue a bola para Garcia. Mas,
mesmo assim, não se pode afirmar que Garcia vá para
a dianteira dos fatos; ele não é, de fato, o narrador, no
máximo um disfarce do narrador de terceira pessoa. Só se
sente a fragilidade de Garcia, nesse sentido, no fim do conto,
quando deixa de observar os outros e passa à condição de
observado. Ele não percebe que, então, é Fortunato quem
o observa e se delicia com ele, chorando diante do cadáver
de Maria Luísa, durante o velório. O narrador de terceira
pessoa, por fim, abandona as personagens à própria sorte e
faz ele mesmo o julgamento final. Enquanto Garcia chora
convulsivamente, sem notar o olhar do outro, Fortunato
assiste a tudo, “tranquilo”, radiante, por mais “essa explosão
de dor moral”.
Além do foco narrativo, interessa também analisar os
casos de focalização, que se dão aos pares. Segundo Soares
(1989, p. 52-53), tomando como base o estudo de Vitor
Manuel de Aguiar e Silva (1976):

Vitor Manuel de Aguiar e Silva, no minucioso


capítulo sobre o romance, de sua Teoria da
literatura, nos apresenta uma classificação do foco
narrativo suficientemente detalhada e operacional,
com base em duplas antitéticas:

a) Focalização heterodiegética (em que o


narrador não é um dos atores da diegese romanesca)
versus focalização homodiegética (em que o narrador

192 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

participa como agente da diegese narrada). Na


focalização homodiegética, o narrador pode ser o
protagonista (narrativa em primeira pessoa, caso
em que recebe o nome de focalização autodiegética, Disciplina 1
como em Dom Casmurro, de Machado de Assis), ou
pode ser uma personagem secundária, aparecendo
como uma testemunha dos acontecimentos.

b) Focalização interna (quando o narrador


apresenta o que se passa na interioridade das
personagens) versus focalização externa (quando
o narrador apresenta somente o que aparece:
fisionomia, vestuário, hábitos, havendo, por isso,
uma valorização dos diálogos).

c) Focalização onisciente (quando o narrador


conhece tudo em relação às personagens e aos
eventos) versus focalização restritiva (quando o
narrador se atém ao que determinadas personagens
veem e sabem).

d) Focalização interventiva (quando o narrador


intervém com comentários) versus focalização
neutral (sem qualquer tipo de intervenção
do narrador — o que se torna praticamente
impossível, pois o simples uso da adjetivação já
indica participação do narrador, podendo este,
no entanto, tender para uma focalização bastante
despersonalizada).

Voltando às narrativas mais comentadas neste material, o


conto “A causa secreta” e o romance Dom Casmurro, podem-
se dar exemplos de focalização. Esses dois textos diferem
na primeira classificação (heterodiegética/homodiegética)
e também na terceira (onisciente/restritiva): enquanto “A
causa secreta”, narrativa escrita na terceira pessoa do discurso,
é de nítida focalização heterodiegética (pois o narrador não
é personagem, ele é diferente da diegese, no sentido de que
não a integra como agente que atua no conjunto dos fatos
narrados, mantendo-se o tempo todo por detrás deles), sendo,

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 193


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Teoria da Literatura 1

por isso, de caráter onisciente (pois o narrador sabe tudo da


vida das personagens, o que lhes aconteceu, o que pensam
inclusive), o narrador de Dom Casmurro, ao contrário, tem
focalização homodiegética (o narrador é igual à diegese, da
qual participa e à qual anda colado) e focalização restritiva
(embora seu narrador pense que sabe tudo, mas na verdade
não sabe).
Enquanto, pois, o narrador de “A causa secreta” sabe
tudo, sabe desde o início qual vai ser o desfecho da história,
o ponto de vista de Dom Casmurro é limitado ao que pode
saber esse narrador de primeira pessoa, é restrito a ele mesmo
pelo simples fato de Bentinho ocupar ao mesmo tempo as
funções de narrador e personagem, não lhe sendo facultada
a vantagem, como a nenhum ser humano em situação de
pura normalidade, de saber o que os outros pensam. Por isso,
Bentinho, por mais que tenha certeza da traição da mulher
— não se sabe de onde ele tira tanta certeza, pois o romance
foi construído para montar e preservar essa ambiguidade, e
não para resolvê-la, como o fazem por aí, irresponsavelmente,
os professores em escolas de ensino médio, numa leitura
diversa da que se espera seja uma leitura crítica —, não pode
mesmo ser considerado um narrador onisciente, pois ele
está no interior da fábula, é participante dos acontecimentos
narrados. O leitor, muito menos, pois tudo que este sabe
vem das informações dadas por esse narrador essencialmente
limitado e restrito, de alcance reduzidíssimo. A empáfia desse
narrador está em arrogar-se o direito de ter certeza de algo de
que não se pode ter certeza em tais condições, ainda mais nesse
caso, dada a fragilidade das pistas arroladas pelo narrador. É
só ler o livro para ver que Bentinho narra obsessivamente os
fatos vividos, com uma ideia fixa na cabeça, a de condenar
Capitu. Além de ser homodiegético esse tipo de focalização,
é também autodiegético, pois o narrador é protagonista.
No que diz respeito à segunda classificação de Vitor
Manuel, ambos os textos têm focalização interna, visto que
o narrador sempre analisa aspectos internos, emocionais,
afetivos das personagens, vendo-as como seres psicológicos.
E, no que toca à quarta classificação, também têm esses textos
focalização interventiva, já que esses narradores intervêm no
conjunto da massa verbal comentando situações e fatos.

194 Licenciatura em Ciências Sociais a Distância


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Teoria da Literatura 1

Assim, prezado aluno, encerramos nosso curso de Teoria


da Literatura 1, que focalizou os antecedentes da especulação
teórica da literatura desde o tempo dos filósofos gregos, Platão
e Aristóteles, com a contribuição que deram a esses estudos, Disciplina 1
e a questão dos gêneros literários, principalmente no que
concerne aos gêneros lírico e narrativo. Espero que aproveite
bem esse material, enriquecido com sugestões bibliográficas
— de leitura indispensável — e com exercícios, motivando-o
a uma reflexão sobre o que foi estudado.

Licenciatura em Ciências Sociais a Distância 195


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