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Ficha de trabalho n.º 2 (Crónica de D.

João I e Farsa de Inês Pereira)

Leia o excerto do Capítulo 148 da Crónica de D. João I.

Parte A
Das tribulações1 que Lixboa padecia per mingua2 da mantiimentos
Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes, gastavom-se os mantiimentos
cada vez mais, por as muitas gentes que em ela havia, assi3 dos que se colherom4 dentro, do
termo5, de homeẽs aldeãos com molheres e filhos, come dos que veerom na frota do Porto; e
alguũs se tremetiam6 aas vezes em batees e passavom de noite escusamente7 contra8 as
5 partes de Ribatejo, e metendo-se em alguũs esteiros9, ali carregavom de triigo que já achavom
prestes10, per recados que ante mandavom. E partiam de noite remando mui rijamente, e al-
gũas galees11 quando os sentiam viinr remando, isso meesmo remavom a pressa sobre eles;
e os batees por lhe fugir, e elas por os tomar, eram postos em grande trabalho.
Os que esperavom por tal triigo andavom per a ribeira12 da parte de Exobregas13, aguar-
10 dando quando veesse, e os que velavom, se viiam as galees remar contra 8 lá, repicavom 14
logo por lhe acorrerem 15. Os da cidade como16 ouviam o repico, leixavam o sono, e tomavom
as armas e saía muita gente, e defendiam-nos aas beestas se compria17, ferindo-se aas
vezes dũa parte e doutra; […]
Em esto gastou-se18 a cidade assi apertadamente19, que as pubricas esmolas come-
15 çarom desfalecer20, e neũa geeraçom 21 de pobres achava quem lhe dar22 pam 23; de guisa24
que a perda comum 25 vencendo de todo a piedade, e veendo a gram mingua 2 dos mantii-
mentos, estabelecerom deitar fora as gentes minguadas 26 e nom perteencentes27 pera de-
fensom; e esto foi feito duas ou tres vezes, ataa28 lançarem fora as mancebas mundairas29
e Judeus e outras semelhantes, dizendo que pois 30 taes pessoas nom eram pera pelejar 31,
20 que nom gastassem os mantiimentos aos defensores; mas isto nom aproveitava cousa que
muito prestasse. […]
Como nom lançariam fora a gente minguada e sem proveito, que o Meestre mandou
saber em certo pela cidade que pam havia per todo em ela, assi em covas 32 come per outra
maneira, e acharom que era tam pouco que bem havia mester 33 sobr’elo conselho?

LOPES, Fernão, 1980. Crónica de D. João I (textos escolhidos; apresentação crítica, seleção, notas
e sugestões para análise literária de Teresa Amado). Lisboa: Seara Nova / Editorial Comunic ação (pp. 193-195)

1. tribulações: adversidades, aflições; 2. mingua: falta; 3. assi: tanto; 4. colherom(-se): recolheram(-se); 5. termo: limite, referência à área do con-
celho de Lisboa; 6. se tremetiam: se metiam dentro; 7. escusamente: secretamente; 8. contra: para, em direção a; 9. esteiros: braços estreitos de
rio; 10. prestes: pronto; 11. galees: galés (dos castelhanos); 12. ribeira: margem; 13. Exobregas: Xabregas, localidade de Lisboa; 14. repicavom:
tocavam (os sinos); 15. acorrerem: socorrerem; 16. como: assim que; 17. se compria: se era necessário; 18. gastou-se: consumiu-se; 19. aperta-
damente: desesperadamente; 20. desfalecer: faltar; 21. geeraçom: família; 22. dar: desse; 23. pam: pão; 24. guisa: modo, maneira; 25. a perda
comum: as privações comuns a todos; 26. minguadas: carentes, miseráveis, deficientes; 27. nom perteencentes: incapazes; 28. ataa: até; 29.
mancebas mundairas: prostitutas (amantes/raparigas mundanas); 30. pois: já que; 31. pelejar: lutar. 32. covas: silos, celeiros subterrâneos; 33.
mester: necessidade.

1. Explicite o «grande trabalho» (l. 8) em que se envolviam, por vezes, «Os da cidade» (l. 11),
atendendo ao conteúdo dos dois primeiros parágrafos.

2. Face à fome na cidade, foi tomada a decisão de expulsar algumas pessoas.


Explique o critério utilizado na seleção dessas pessoas.

3. Mostre como, no contexto das «tribulações» vividas na capital, se evidencia a consciência coletiva. Fun-
damenta a tua resposta com elementos textuais.

4. Refira o valor expressivo da interrogação retórica presente no último parágrafo.


Leia o texto. Se necessário, consulte as notas.

Mãe Tomai aquela cadeira. Inês E isso hei de ter na mão?


Pêro E que val aqui uma destas? Pêro Deitai as peas10 no chão.
Inês (Oh, Jesu! Que João das bestas! 1 305 Inês As perlas pera enfiar,
Olhai aquela canseira! 2) três chocalhos e um novelo,
5 Assentou-se com as costas pera elas e diz: e as peas no capelo...
E as peras onde estão?
Pêro Eu cuido que não estou bem...
Pêro Nunca tal me aconteceu!
Mãe Como vos chamais, amigo?
40 Algum rapaz m’as comeu;
Pêro Eu Pêro Marques me digo,
que as meti no capelo,
como meu pai que Deus tem.
e ficou aqui o novelo,
10
Faleceu (perdoe-lhe Deus,
e o pentem não se perdeu.
que fora bem escusado)
e ficamos dous ereos; Pois trazia-as de boa mente.
45 Inês Fresco vinha aí o presente
porém, meu é o mor gado3.
Mãe De morgado4 é vosso estado? com folhinhas borrifadas.
Pêro Não, que elas vinham chentadas
15 Isso viria dos céus!
cá em fundo no mais quente.
Pêro Mais gado tenho eu já quanto 5,
Vossa mãe foi-se? Ora bem,
e o maior de todo o gado,
digo maior algum tanto. 50 sós nos leixou ela assi?
Cant’eu quero-me ir daqui,
E desejo ser casado,
não diga algum demo alguém...
20 prouguesse ao Espírito Santo,
Inês Vós que me havíeis de fazer?
com Inês; que eu m’espanto
quem me fez seu namorado. Nem ninguém que há de dizer?
55 (O galante despejado!)
Parece moça de bem,
Pêro Se eu fora já casado,
e eu de bem er também.6
d’outra arte havia de ser,
25 Ora vós er ide vendo
como homem de bom pecado.
se lhe vem melhor alguém,7
a segundo o que eu entendo. Inês (Quão desviado este está!
Cuido que lhe trago aqui 60 Todos andam por caçar
suas damas sem casar,
peras da minha pereira;
e este, tomade-o lá!)
30 hão de estar na derradeira8.
Tende ora, Inês per i9.
 
Pêro Vossa mãe é lá no muro?
Inês Minha mãe, eu vos seguro,
65 que ela venha cá dormir.
Pêro Pois, senhora, eu quero-me ir
antes que venha o escuro.
Inês E não cureis mais de vir.
Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira,
Porto, Porto Editora, 2014, pp. 24-28

NOTAS
1
Que João Palerma! Que parolo!
2
Vejam o esforço que ele faz para se sentar na cadeira.
3
A maior parte do gado.
4
Primogénito, herdeiro de todos os bens familiares.
5
Tenho muito gado.
6
E eu, por outro lado, também sou homem de bem.
7
Se aparece alguém melhor do que eu.
8
No fundo do capelo.
9
Inês, segurai no capuz.
10
Cordas com que se prendem os animais.

5. Indique dois traços caracterizadores de Inês no excerto apresentado, fundamentando cada um deles com
uma transcrição pertinente.

6. Explicite o sentido da pergunta do verso 15, bem como o motivo que leva a personagem a colocá-la.

7. Explique em que medida a atitude de Inês Pereira se distingue da atitude da Mãe.

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