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A abolição do tráfico de escra- negreiro no Brasil .

A oportu :li- declarado ilegal, para os súditos


vos no Brasil - A Grã-Bretanha, dade que lhe coube de explorar britânicos, traficar com escravos
o Brasil e a questão do tráfico largamente, ao longo de duas a parti r de 1. o de maio de 1808.
de escravos, 1807-1869 viagens, o materia l exi stente em "Além das considerações de
entidades brasileiras - Biblio- ordem moral, a Grã-Bretanha
Por Leslie Bethell, Rio de Janei- teca Nacional, Instituto Hi stóri- tinha fortes razões econômicas
ro, Editora Expressão e Cu ltura , co e Geográfico Brasileiro, Ar- para adota r tal política. Priva-
São Paulo, Editora da Un iversi- quivo Histórico do ltamarati, dos os plantadores de açúcar
dade de São Paulo, 1976. 406 p. Arquivo Nacional, Museu Impe- das Anti Ihas Britân icas do seu
rial de Petrópolis - bem como sup rimento regula r de mão-de-
sua familiaridade com os arqui- obra barata, era importante que
vos ingleses - Public Record os seus rivais, principalmente os
Office, British Museum, Insti- de Cuba e do Brasil, que já
tute of Historical Research, Uni- gozavam de muitas outras van-
versity Cot lege London Library , tagens sobre eles, ficassem colo-
inclusive tendo acesso ao Nation- cados no mesmo pé, pelo menos
al Register of Archives- forne- nesse ponto. E, se o continente
ceram-i he excelente base para africano ia ser transformado
um trabalho de informação, re- num mercado para produtos
Leslie Bethel visão e análise do problema do manufatu rados e numa grande
tráfico de escravos. fonte de matérias-primas (além
O objetivo do autor ao lon- de ser 'civilizado' e 'cristianiza-
go dos 13 capítulos escritos em do'), como mui tos, na Grã-
estilo cativante e irônico, com Bretanha, esperavam, era essen-
cerca de 25 a 30 páginas ca da, cia~ que se fizessem todos os es-
foi o de traçar, dentro de um forços para precipitar a total
plano geral, o estudo detalhado destruição do tráfico . . . " (p. 8)
de ,_,m aspecto importante da (gr ifo nos so) . Assim, nada
qL'estão: a luta pela abolição do mais na"tura l que a Grã-Bretanha
Excetuando-se as pesquisas rea- começasse a exercer pressão
co mércio de escravos pa ra o
lizadas pelos historiadores Hélio sobre os pa íses que realizavam o
Brasil. Tendo em mente esta
Si lva e Edgard Caro ne, a grande t ráfico transatlântico de escra-
fi na iidade, pro cu rou responder
ma ioria dos estudos cr ítico- vos com o intuito de fazer com
a t rês quest ões básicas : pri-
info rmati vos da história do Bra- que eles entrassem em acordos
meira, de que manei ra o t ráfico
sil vem sendo realizada por pes- abolicionistas com ela, introdu-
de escravos, um dos pilares da
quisadores estrangeiros - pr inci- zissem e fi zessem cumprir sua
economia brasileira, conseguiu
palmente norte-americanos. As- própria legislação antiescravista
ser declarado ilegal? ; segunda,
sim,_ ao leitor e/ou estud ioso e permitissem à marinha britâni-
por que foi impossível, nos 20
da política e história brasilei ras ca policiar as áreas freqüentadas
anos que se seguiram, sup rimir
não restam muitas al ternativas : pelo comérci o negreiro, em am-
o tráfico após ele te: sido decla-
ou importa, "pagando uma bos os lados do Atlântico.
rado ilegal? ; e terceira, como
nota", o origi nal (geral me nte
fo i ele finalmente abolido ?
em inglês) ou espera por alguns Bethell examina o processo
Além disso afirma, sem falsa
anos até que alguém o edite em de abo lição do t ráfico no Brasil
modéstia, que seu livro pode
port uguês. Tal é o caso do livro quando este ainda era colônia de
dar uma pequena contribuição à
ora resenhado, publicado orig i- Portugal, mostrando a relevân-
história de Portugal, uma vez
na lmente em 1970 pela Cam- cia que tal comércio desempe-
que o tráfico ilegal de escravos
bridge University Press, chegan- nhava para o governo de Lisboa.
para o Brasil, a parti r da década
do até aqu i com um atraso de "Desde meados do século XVII,
de 1830, conti nuo u a faze r-se
seis anos. a co lônia portuguesa de Angola
sob bandeira lusa, sendo a Áfri-
Após minuc ioso tra ba lho de tinha suas exportações baseadas
ca Portuguesa, até o fim, a
pesq uisa nos arq uivos da Ingla- quase que exclusivamente nos
maio r fonte de escravos para as
te rra e do Brasil, Les lie Bethell, escravos . . . e o imposto de im-
terras brasileiras (p. 9).
professor de história do Brasil e portação sobre eles propiciava
da Amé rica Espanho la no Como mostra o livro, em 25 4/5 da receita pública" (p. 15).
Un iversity Co llege de Londres, de março de 1807 , após uma Assim, não era de se estranhar
levantou docu mentos relativos à luta demorada e acirrada, den- que a maioria dos tratados que
história da abolição do t ráfico tro e fora do Parlamento, foi os países realizavam com a Grã-

R. Ad m. l:mp., Rio de Janeiro. 16 (4): 72-79, jul./ ago. 1976


Bretanha, no que dizia respeito Em 1838 Lord Palmerston, mi- em lotes separados. . . (p.
ao tráfico de escravos, torna- nistro do exterior, autoriza sua 246-7). Assim, os navios de
va-se letra morta, eram tratados marinha a apresar todos os na- guerra britânicos encarregados
prá inglês ver ... (principalmen- vios de bandeira portuguesa en- da patrulha antitráfico nunca
te aqueles firmados com Portu- contrados transportando escra- haviam gozado de poderes tão
gal, Espanha e Brasil). vos ou equipamentos para o trá- grandes, podendo capturar não
Com a independência brasi- fico de escravos. Em breve, po- só navios negreiros bras ilei ros
leira, D. Pedro assina com a rém, tais medidas também aca- como os "sem nacionalidade"
Inglaterra um tratado antitráfi- bam por ser válidas, na prática, em qualquer ponto do alto-mar
co a 23 de novembro de 1826, para os navios com bandeiras e em qualquer fase de sua via-
estabelecendo que a partir de brasileiras. Assim é que em gem. 1\lo período após 1845
março de 1830 seria ilegal para 1839 são apreendidos e levados (nos cinco anos que se segui-
os súditos do imperador brasi- perante à comissão anglo-brasi- ram) os navios da esquadra da
leiro dedicar-se ao comércio de leira de Serra Leoa nove barcos, África Ocidental e eventualmen-
negros africanos, sendo tal ativi- sendo todos condenados (p. te os da base do Cabo captura-
dade passível de ser julgada 151-75). No período compreen- ram quase 400 navios brasilei-
como pirataria (p. 69). Como dido entre a metade de 1839 e a ros. Entretanto, o tráfico de es-
este tratado praticamente havia metade de 1841 são apresados e cravos continuou firme, devido
sido impingido ao Brasil (assina- condenados em Freetown mais principalmente ao grande desen-
do sem consulta alguma à Câ- 27 navios brasileiros (p. 179). volvimento da cultura do café.
mara) a grita foi geral, por duas Em 1845, em apenas quatro Entre 1846 e 1849 entraram
razões bastante óbvias: em pri- meses, mais 15 barcos tiveram a cerca de 50/60 m iI escravos
meiro lugar, a Câmara já havia mesma sorte. Tornava-se clara, anualmente, todos de maneira
rejeitado várias propostas para portanto, a eficiência britânica ilegal (p. 269-71 ).
extinguir o tráfico negreiro den- no combate a repressão ao trá- Finalmente, a 4 de setem-
tro de um prazo mais razoável fico de escravos. bro de 1850 o projeto de lei an-
(por exemplo: Vergueiro propu- titráfico de Eusébio de Queiroz
sera a abolição após seis anos); Pressionado de todos os tornava-se lei, não sem antes .ter
segundo, a Câmara discordava lados peia Inglaterra, o Brasil
sofrido muita oposição na Câ-
do fato de ser o tráfico de escra- concorda, pelo Bill Aberdeen de
mara e no Senado.
vos tratado como pirataria, ne- 1845, que o tráfico negreiro
gando, conseqüentemente, aos fosse transformado em pira- Estabelecia que todo navio
cidadãos brasileiros, descober- taria, permitindo assim que a brasileiro, onde quer que fosse
tos traficando, o acesso aos seus Grã-Bretanha se valesse do arti- encontrado (e os navios estran-
próprios tribunais, além de su- go 1.o do tratado assinado em geiros descobertos em portos,
jeitá-los à jurisdição de tribunais 1826. Através dele a Inglaterra baías, ancoradouros e águas ter-
britânicos. Era, nas palavras de adquirira o direito de ordenar a ritoriais do Brasil) e que esti-
Clemente Pereira, "o ataque captura de todos os súditos bra- vesse transportando escravos ou
mais direto que se poderra fazer sileiros encontrados em alto- ainda que estivesse aparelhado
à Constituição, à dignidade na- mar traficando com escravos, de para o tráfico negreiro, era pas- 73
cional, à honra e aos direitos in- castigá-los como se fossem pira- sível de captura pelas autorida-
dividuais dos cidadãos brasilei- tas e de dispor de seus barcos e des e navios brasileiros; que a
ros" (p. 74). das mercadorias encontradas a importação de escravos para o
bordo. Começa-se, então, por Brasil era declarada ilegal e os
Entretanto, se os protestos parte do governo britânico, a "principais" envolvidos no cri-
não resultaram em nada de con- emissão de novos mandatos me - o proprietário, o capltão,
creto, praticamente o mesmo para a busca e captura de navios o mestre, etc. - bem como os
poderia se afirmar com relação brasileiros engajados no tráfico "cúmplices" tripulação,
ao cumprimento do tratado por negreiro - e, ainda mais, em quem ajudasse o desembarque,
parte do Brasil. Basta dizer que qualquer fase de sua viagem, já etc. - eram passíveis de puni-
só no ano de 1837 entraram ile- que aos olhos da Inglaterra, ção pela lei de 1831 e pelo Có-
galmente mais de 46 mil escra- todo e qualquer equipamento digo Criminal; que todos os na-
vos, apenas nas províncias do encontrado a bordo constituía vios capturados seriam vendidos
Rio de Janeiro e São Paulo. prova cç)nclusiva de intenções e o produto dividido entre os
O autor nos mostra que negreiras ... e os navios conde- captores (p. 321-2). Além do
paulatinamente vão-se amplian- nados seriam colocados a servi- mais, as autoridades brasileiras
do os poderes britânicos no ço da Grã-Bretanha ou demoli- realmente estavam fiscalizando
combate ao tráfico negreiro. dos e vendidos publicamente o cumprimento da legislação de

Resenha bibliográfica
forma mais rigúrosa. Assim, o pio: o tratado entre Brasil e In- Organizations and t heir mem-
tráfico de escravos para o Brasil glaterra começou a entrar em bers: a contingency approach
começou a agonizar. Algumas vigor em 1931) e de palavras
tentativas de desembarque de emendadas, semelhantes a Por Jay W. Lorsh e John J.
escravos transportados ilegal- extensos substantivos alemães, Morse. New York, Harper &
mente são realizadas, mas a provando que a edição não rece- Row Publishers, 1974. '177 p.
maioria é frustrada pelas autori- beu os mel hores cuidados. Cre- US$ 12.95.
dades. E já na década de 1850 mos que o livro do Prof. Bethe\1
cerca de 130 mil imigrantes eu- é leitura indispensável aos estu-
ropeus chegam ao Brasil para diosos do período e aos interes-
trabalhar na lavoura de café, sados nos problemas do tráfico
principalmente. E em abril de de escravos. E o autor anuncia-
1869 o governo britânico revo- va (em 1970) que estava traba-
gou a Lei Aberdeen. Nas pala- lhando em mais um volume,
vras do autor, "esse gesto pode este sobre a luta para a abolição
ser tomado como marcando o da escravidão no Brasil, na se-
fim da questão do tráfico de es- gunda metade do século XIX.
cravos e de um importante capí- Aguardemos. •
tulo na história das relações
anglo-brasileiras" (p. 365). Num Afrânio Mendes Catani
minucioso apêndice contendo
uma estimativa dos escravos tra-
zidos para o Bras iI de 1831 a
1855 o Prof. Bethe\1 afi r ma que
mais de 486 mil escravos para
cá vieram.

Em nossa opinião o livro O trabalho em questão relata


poderia ser também considera- pesquisa com a qual se pretende
do como uma contribuição para estender a teoria da contingên-
a história das relações exteriores cia, inicialmente exposta no
da Inglaterra, pois munido de livro de Paul Lawrence e Jay
farta documentação, descreve e Lorsh, à interface indivíduo-
analisa as démarches diplomá- organização. O trabalho ante-
ticas e burocráticas entre a Grã- rior centrava suas investigações
Bretanha e o Brasil. Em mo- na interface organização-meio-
mento algum da narrativa o ambiente. O foco da teoria da
autor tenta "botar panos quen- contingência é a negação da ma-
tes" nds sempre tensas relações neira excelente de organizar
74 entre ambas as nações e analisa, (the one best way), advogada
sem se engajar, o clima antibri- em administração tanto pelos
tânico existente na população e teóricos e praticantes da admi-
nas Câmaras, principalmente nistração científica, como pelos
quando das apreensões e/ou ata- partidários das relações huma-
ques a navios e barcos que se en- nas. Isto permite colocar no
contravam em águas territoriais mesmo grupo Frederick Taylor,
brasileiras. Fala, também, da ar- G. Elton Mayo, Chris Argyris e
bitrariedade dos britânicos no Rensis Likert. O que a teoria da
que tange ao apresamento e con- contingência afirma é que em
denação de navios com bandei- administração tudo depende.
ras brasileiras ("cada caso era Não há maneira excelente de
um caso, diferente dos demais"). organizar, ou talvez exista, só
Por vezes o autor chega a ser que ela não é universal, ou seja,
um pouco cansativo, ao entrar para cada organização ou grupo
em minúcias fatuais que pode- de organizações há uma maneira
riam ser deixadas de lado. Há não só de delinear a estrutura,
que se lamentar apenas os inú- como de gerir o elemento
meros erros de datas (por exem- humano.

Revista de Administração de Empresas

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