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A aspiração de que políticas públicas sejam executadas de forma integrada é uma ambição
antiga, que vem desde os primeiros textos clássicos sobre implementação de políticas.1 A
realidade é indivisível, mas governos com ela se relacionam de forma segmentada, em
decorrência da forma de se organizarem e de prestarem serviços ao público.
Este capítulo aborda a temática da gestão integrada de políticas públicas sob dois ângulos:
o conceitual e o aplicado. O primeiro ângulo, conceitual, foca em como o debate evoluiu
ao longo de duas décadas. O debate de gestão integrada evoluiu na comunidade
internacional de políticas públicas, em um primeiro momento, para discussões em torno
de policy coherence,2 discussão esta fortemente alavancada pela Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sob o guarda-chuva mais
abrangente do paradigma de governança. Paralelamente, as temáticas de centro de
governo e coordenação executiva passaram a ser objeto de crescente atenção
por scholars pautados pelo debate em torno de development effectiveness e/ou pela crise
de 2008. Finalmente, as discussões passaram a gravitar em torno da problemática de
governança e suas variações: multinível, interativa, colaborativa, inclusiva, horizontal,
vertical, diagonal etc.3
O segundo ângulo, aplicado, explora quatro políticas: (i) o Bolsa Família e seu cadastro;
(ii) o caso do Plano de Ação para Proteção e Controle do Desmatamento na Amazônia
(PPCDAM); (iii) a experiência da UPP Social no Rio de Janeiro; e (iv) a criação do Marco
Regulatório da Internet. Todas essas quatro políticas foram iniciativas intersetoriais e com
alcance que transcenderam as políticas específicas. As duas primeiras acabaram
adquirindo o contorno de programas do Governo Federal, com a participação de outros
atores. A terceira lida com arranjo territorial urbano na esfera municipal. A quarta trata
de um marco regulatório específico, mas cujo alcance transcende o escopo da atuação das
instituições públicas.
Em vinte anos, o debate de gestão integrada de políticas públicas foi se transformando,
influenciado pela evolução das discussões que se seguiram após a onda de ideias e
práticas associadas com o novo modelo de gestão pública desaguar e decantar. Baseadas
em práticas variadas de distintos governos, as temáticas de centro de governo,
coordenação executiva e governança ascenderam aos fóruns internacionais e redefiniram
os termos do debate.
As sociedades atuais são cada vez menos centradas no protagonismo estatal. O poder foi
se fragmentando. O Estado interventor foi dando lugar ao Estado regulador.4 Processos
de descentralização para Estados e Municípios, aumento do papel desempenhado por
instituições e reguladores internacionais, privatizações e transferência de
responsabilidades pela provisão de serviços públicos para o terceiro setor, além de
pressões fiscais crescentes perante responsabilidades complexas, resultaram em uma nova
configuração das relações entre o Estado e a sociedade, na qual o público não se resume
exclusivamente ao estatal.
O presente texto explora o desafio da gestão das políticas públicas, inicialmente na
perspectiva de sua integração, para depois concluir sob o prisma do desafio de sua
coordenação e dos mecanismos de governança que o presidem. O paradigma de
governança abriga, hoje, um vasto conjunto de abordagens e práticas, que possuem em
comum o modo de se governar mais aberto, interdependente e multidimensional, sempre
relativizando o protagonismo do Poder Executivo central na modelagem da política e das
políticas.5
O capítulo tem sete seções, sendo a primeira esta introdução. A segunda é um breve relato
de como a discussão sobre gestão chegou ao estágio atual. As quatro seções subsequentes
correspondem às quatro políticas citadas anteriormente. A sexta faz um balanço dos
achados. Finalmente, o capítulo fecha com uma conclusão.
A categoria “centro de governo” vem sendo utilizada pela OCDE desde os anos 1980,
para se referir às dinâmicas e funções desempenhadas pelo núcleo de governo dos países
que integram a organização. Documentos produzidos pela OCDE problematizam esses
desafios com base na experiência dos países membros: tarefas, capacidades, mecanismos
decisórios, estruturas de monitoramento, políticas públicas baseadas em evidências, visão
estratégica do conjunto do governo e liderança presidencial.6
Esta abordagem influenciou o Tribunal de Contas da União (TCU), que em 2016 produziu
um documento que trata explicitamente da problemática da avaliação da governança do
centro de governo.7 Coordenação é um dos ativos mais escassos de um governo.
Entretanto, trata-se de um recurso a ser usado com parcimônia, uma vez que não se pode
coordenar muitas coisas por muito tempo, mas apenas poucas coisas por pouco tempo. A
demanda do TCU é no sentido de que se institucionalizem instâncias de coordenação no
centro de governo para o enfrentamento e processamento de conflitos intersetoriais que
estão bloqueados por visões sectárias.
O apelo à coordenação traz como argumentos favoráveis o potencial de sinergias, o
aumento da eficiência e da efetividade das iniciativas, o aumento da abrangência e da
visão integrada das políticas em questão. Porém, não se trata de uma panaceia. Há
problemas de sobreposições de competências, barreiras cognitivas, problemas
de accountabiity, custos de transação e questões relacionadas com a especialização que
precisam ser levadas em conta.8
A visão departamentalista, baseada em silos, produz segmentação de intervenções e
isolamento entre setores, mas possui argumentos para defesa de sua aplicação,
especialmente em situações que envolvam preservação do território, individualização da
autoridade, necessidade de visibilidade política, proteção do orçamento, importância do
conhecimento especializado e problemas de jurisdição, entre outros.9
Policy coherence passou a ser uma das principais narrativas de instituições como as
Nações Unidas, a União Europeia e a OCDE, no contexto dos esforços para a consecução
dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. O foco era na problemática da efetividade
do desenvolvimento, posteriormente relacionado com o debate em torno da Agenda 2030.
O conceito é associado à premissa de que há sinergias positivas a serem obtidas – e
negativas a serem neutralizadas – quando há atenção para como políticas públicas
diversas interagem e se configuram no seu conjunto. A abordagem não é isenta de críticas,
sobretudo o risco de um deslocamento da atenção de policymakers da questão do impacto
das políticas públicas para uma eventual busca por consistência entre as mesmas.10
O debate em torno da necessidade de coordenação maior por parte do centro de governo
foi impulsionado no primeiro mandato de Dilma Rousseff por um protagonista
surpreendente: o TCU, mais conhecido pela sua atuação no front de conformidade.
Estranhamente, o Brasil tornou-se um caso idiossincrático em que a discussão sobre
governança entrou no debate nacional pelas mãos do órgão de controle externo. Esse
tortuoso percurso, explicável em parte pelo que ocorreu no país de 2011 a 2016, trouxe
consequências colaterais que merecem registro por duas razões: uma relacionada com o
TCU e outra com o próprio governo.
O protagonismo adquirido pelo TCU na política nacional deslocou um debate nacional
sobre as relações do Estado com a sociedade e sobre o papel do Estado Nacional para a
esfera do controle com consequências indesejáveis e controversas. A confusão dos limites
da atuação do controle externo junto ao Executivo e os efeitos colaterais da atuação do
TCU sobre a proatividade da atuação governamental passaram a ser objeto de atenção
permanente.11
O período 2011/2016 caracterizou-se pelo progressivo enfraquecimento do Executivo,
junto com a aceleração da erosão da autoridade presidencial, fenômenos estes que
culminaram com o processo de impeachment. O esvaziamento das funções coordenadoras
representadas pelo progressivo colapso da Casa Civil a partir de 2014 deveu-se à própria
incapacidade – política e cognitiva – de o Executivo compreender a importância do
fortalecimento do centro de governo, do ponto de vista da articulação intergovernamental.
O Executivo fechou-se em um voluntarismo raso, agravado pela ausência de uma visão
estratégica relacionada com a modernização das estruturas do Estado.
O Governo Temer representou o reverso deste quadro, ao recepcionar todo o esforço que
o TCU vinha fazendo de pautar o Executivo em relação às temáticas de governança e
centro de governo. A materialização desse entendimento tácito se deu a partir da edição
de um ato normativo institucionalizando práticas de governança, da publicação de uma
orientação geral sobre governança para os órgãos do Executivo12 e da produção de uma
série de manuais relacionados com avaliação de políticas públicas.13 A sinalização para a
Esplanada era a de que a Casa Civil encontrava-se em rota de fortalecimento de sua
capacidade de coordenação executiva, em sintonia com as diretrizes e expectativas do
TCU.
No âmbito do Poder Executivo, o tema passou a ser objeto de atenção por parte de
pesquisadores e dirigentes, como indicam publicações do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP).
Ainda que de forma ex-post e tardia, começaram a ser veiculadas análises relacionando
os eventos do período com assimetrias de capacidades e problemas de sequenciamento
de políticas.14 Na segunda década do século XXI, o TCU engajou-se no diálogo
internacional sobre temas estratégicos para a governabilidade contemporânea,
especialmente por meio dos fóruns da OCDE, das Nações Unidas e da Organização
Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores.
As temáticas da coordenação executiva e centro de governo atravessam a transição de
Michel Temer para Jair Bolsonaro, a ponto de em 2019 terem sido adotadas duas
importantes medidas com vistas ao aprimoramento do processo de gestão integrada de
políticas públicas: a edição do Decreto Presidencial 9.834/2019 e o comissionamento
junto à OCDE de um peer review sobre a dinâmica de funcionamento do centro de
governo no Brasil.
Em meados dos anos 1990, no período que se seguiu à estabilização da economia, surgiu
o debate em torno da necessidade de integração das políticas públicas, de modo a garantir
sua maior efetividade. Apesar de vários momentos de discussão no interior do governo
federal relacionados com a unificação de programas sociais voltados para a população de
baixa renda,15 foi somente em 2003, no início do governo Lula, que o Bolsa Família deu
consequência programática a essa agenda.
O Bolsa Família integrou diversos programas existentes (Bolsa Escola, Bolsa
Alimentação, Vale Gás, Cartão Alimentação) e se estabeleceu como o programa federal
de transferência de renda condicionado a parâmetros das áreas de educação e saúde,
definindo vínculos entre as dimensões de curto e longo prazo da vida de famílias em
condições de pobreza. Na dimensão de curto prazo, incidiu sobre o alívio imediato da
pobreza por meio da transferência de renda direta para a família. Em particular, aumentou
a eficiência de gestão ao reduzir a pulverização e os perversos incentivos da concorrência
pela “busca dos pobres” de cada programa e criou condições para o aumento do valor
médio dos recursos transferidos. Na dimensão de longo prazo, contribuiu para a redução
da pobreza entre gerações por meio do cumprimento das condicionalidades, aumentando
a probabilidade de mobilidade social ascendente dos filhos das famílias pobres.
No entanto, além de sua incidência direta, ele permitiria também a articulação virtuosa
com outras políticas públicas referentes às condições de vulnerabilidade das famílias e,
portanto, na dimensão de médio prazo, pretendia contribuir para o desenvolvimento das
capacidades dos beneficiários e reduzir, de forma sustentável, condições individuais e
familiares de vulnerabilidade social estrutural. O cadastro único se configurou como uma
plataforma com potencial para criar condições técnicas e ambiente institucional para a
articulação e coordenação adequadas entre setores da política social e entre entes
federativos.
Após mais de 15 anos de implementação do Bolsa Família, as evidências são positivas
nos campos do alívio da pobreza e da expectativa de mobilidade social das novas
gerações, mas frágeis no potencial de articulação das políticas públicas.
O cadastro viabilizou um mapeamento consistente das famílias em situação de pobreza.
A qualidade do registro está associada ao momento inicial de unificação dos cadastros
existentes até 2002, com limpeza das bases de dados e retirada de sobreposições e,
sobretudo, a uma visão de implementação que equilibra a descentralização da
responsabilidade da coleta de informações por parte dos Municípios com instrumentos de
controle, incentivos e governança instituídos no âmbito do Sistema Unificado da
Assistência Social (SUAS).
Essa plataforma de informações permitiu, por um lado, usar o mapeamento da pobreza
como levantamento inicial para aumentar a qualidade e a complexidade do diagnóstico
das condições múltiplas de vulnerabilidade social de cada família, referenciando no
Número de Identificação Social (NIS) os procedimentos setoriais já instalados nas
diversas áreas da política social, como, por exemplo, a busca ativa e os acolhimentos
institucionais das áreas de saúde e assistência social. Por outro lado, diante de
diagnósticos estruturados, amplos e territorialmente referenciados, permitiu também criar
condições para o cadastro da pobreza realizar um pêndulo de coordenação entre distintas
áreas da política social e entre as três esferas governamentais para a redução sustentável
da pobreza.
Assim, o cadastro da pobreza tem potencial de referenciar a política social colocada a
serviço do aumento da eficiência na provisão de programas e da efetividade no
enfrentamento simultâneo de causas múltiplas de vulnerabilidade social dos mais pobres.
Esse aumento de performance pode se dar, por um lado, pela redução do incentivo à
fragmentação (a qual, quando presente, torna disfuncional a operação de programas na
presença de assimetria de informações e de relações de clientela). Por outro lado, pode
aumentar a coerência interna sistêmica de políticas sociais articuladas ao reduzir os
incentivos à departamentalização segmentada das intervenções setoriais e à sobreposição
de ações e programas relativamente semelhantes de distintas esferas de governos. Por fim,
a função de pêndulo do cadastro permite maior diálogo e coordenação no interior de cada
esfera de governo e entre esferas de governo, aumentando a qualidade do desenho e da
implementação das agendas setoriais e, quando necessário, a identificação e escolha das
instituições locais responsáveis pelos fluxos setoriais de distribuição dos programas.
Nesses termos, um programa unificado de transferência de renda com relevante
focalização associado ao seu cadastro estruturado e integrado a outras dimensões sociais
permitiria uma modelagem sistêmica da política pública que promoveria a coordenação
intra e entre entes federativos, a serviço de um novo patamar de enfrentamento da
vulnerabilidade social da população mais pobre do país.
GOVERNANÇA CLIMÁTICA – O COMBATE AO DESMATAMENTO NA
AMAZÔNIA
ACHADOS E PERDIDOS
CONCLUSÕES
Tensões entre fragmentação e integração, departamentalismo e coordenação,
inconsistência e coerência, governança e forças centrífugas estarão sempre presentes. A
efetividade das políticas dependerá da construção de capacidades que possibilitem a
superação das fragilidades institucionais, que respondem pelos recorrentes impasses que
bloqueiam o desenvolvimento brasileiro.
Arquiteturas de governança distribuídas, combinadas com o intenso uso de tecnologia,
transparência e coprodução de serviços públicos, podem mudar a paisagem da
Administração Pública Federal. Precisarão, de qualquer forma, ser desenhadas,
experimentadas e implementadas. Cabe destacar que os avanços da inteligência artificial
e a ascensão dos algoritmos podem produzir novos avanços dos esforços na trajetória de
gestão integrada das políticas públicas.
Na arena global, a abordagem baseada nos conceitos de governança é, hoje, adotada como
impulsionadora de agendas abrangentes, como as dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS).22 Instâncias globais de problematização dos desafios
contemporâneos, como Nações Unidas, OCDE, Fórum Econômico Mundial, entre outras,
sugerem uma direção: convergência no sentido de integração de políticas, aumento dos
graus de coordenação e coerência das mesmas, com maior atuação proativa do centro de
governo, com vistas à implementação efetiva das políticas públicas.
A pergunta que se coloca para um país como o Brasil é se nos interessa caminhar nesta
direção. Em caso de resposta positiva, é importante a clarificação e explicitação dos
desdobramentos, que incluem a mobilização de outros órgãos – notadamente, a área
econômica – e a persuasão das demais áreas da Presidência e do governo.
A riqueza dos desafios nacionais se constitui em oportunidade para inovações de toda
ordem no enfrentamento dos problemas postos. Se nossas instituições não estão “prontas”
para essas transformações, talvez este seja o momento de reavaliá-las à luz das tendências
postas, de modo a que possam “atalhar” trechos, por meio da internalização de abordagens
inovadoras contemporâneas de processos de mudança.
Hoje, praticamente não há mais políticas públicas encapsuladas em suas policy
communities e isoladas nos seus aparatos organizacionais. A revolução digital – inclusive
com a disseminação de tecnologias de nuvem e blockchain –, combinada com a
irresistível ascensão dos algoritmos,23 estão mudando a natureza dos processos de
governo. Esta pode ser uma janela de oportunidade excepcional para o catching up do
Brasil em termos de desenvolvimento de capacidades estratégicas para os processos de
políticas públicas. As dificuldades existentes, curiosamente, são decorrentes mais de
processos de natureza política do que de insuficiências técnicas.
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1
Pressman e Wildavsky (1984).
2
OCDE (2004).
3
Torfing et al. (2012).
4
Baldwin, Cave e Lodge (2013).
5
Filgueiras (2019).
6
OCDE (2015; 2018).
7
Brasil (2016).
8
Peters, Rhodes e Wright (2000).
9
Hood (2005).
10
Barder (2013).
11
Gaetani (2018) e Serpa (2013).
12
Brasil (2017).
13
Brasil (2018a e 2018b).
14
Nogueira e Gaetani (2018).
15
Barros, Henriques e Mendonça (2000), Camargo e Ferreira (2000) e Henriques (2000).
16
Freeman (1997) e Harper (2009).
17
Este capítulo trata do período das décadas de 2000 e 2010 como um todo, em linhas gerais, e não se detém
especificamente sobre as mudanças em curso em 2019 na matéria.
18
A UPP Social foi implementada, entre 2010 e 2012, em 36 comunidades pacificadas, quase todas
anteriormente sob controle de narcotraficantes e algumas sob controle de milicianos.
19
Henriques (2012) e Henriques e Ramos (2010).
20
Almeida, Getschko e Afonso (2015).
21
Brasil (2018c).
22
OCDE (2019).
23
Yeung e Lodge (2019).