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INTRODUÇÃO

A aspiração de que políticas públicas sejam executadas de forma integrada é uma ambição
antiga, que vem desde os primeiros textos clássicos sobre implementação de políticas.1 A
realidade é indivisível, mas governos com ela se relacionam de forma segmentada, em
decorrência da forma de se organizarem e de prestarem serviços ao público.

Este capítulo aborda a temática da gestão integrada de políticas públicas sob dois ângulos:
o conceitual e o aplicado. O primeiro ângulo, conceitual, foca em como o debate evoluiu
ao longo de duas décadas. O debate de gestão integrada evoluiu na comunidade
internacional de políticas públicas, em um primeiro momento, para discussões em torno
de policy coherence,2 discussão esta fortemente alavancada pela Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), sob o guarda-chuva mais
abrangente do paradigma de governança. Paralelamente, as temáticas de centro de
governo e coordenação executiva passaram a ser objeto de crescente atenção
por scholars pautados pelo debate em torno de development effectiveness e/ou pela crise
de 2008. Finalmente, as discussões passaram a gravitar em torno da problemática de
governança e suas variações: multinível, interativa, colaborativa, inclusiva, horizontal,
vertical, diagonal etc.3
O segundo ângulo, aplicado, explora quatro políticas: (i) o Bolsa Família e seu cadastro;
(ii) o caso do Plano de Ação para Proteção e Controle do Desmatamento na Amazônia
(PPCDAM); (iii) a experiência da UPP Social no Rio de Janeiro; e (iv) a criação do Marco
Regulatório da Internet. Todas essas quatro políticas foram iniciativas intersetoriais e com
alcance que transcenderam as políticas específicas. As duas primeiras acabaram
adquirindo o contorno de programas do Governo Federal, com a participação de outros
atores. A terceira lida com arranjo territorial urbano na esfera municipal. A quarta trata
de um marco regulatório específico, mas cujo alcance transcende o escopo da atuação das
instituições públicas.
Em vinte anos, o debate de gestão integrada de políticas públicas foi se transformando,
influenciado pela evolução das discussões que se seguiram após a onda de ideias e
práticas associadas com o novo modelo de gestão pública desaguar e decantar. Baseadas
em práticas variadas de distintos governos, as temáticas de centro de governo,
coordenação executiva e governança ascenderam aos fóruns internacionais e redefiniram
os termos do debate.
As sociedades atuais são cada vez menos centradas no protagonismo estatal. O poder foi
se fragmentando. O Estado interventor foi dando lugar ao Estado regulador.4 Processos
de descentralização para Estados e Municípios, aumento do papel desempenhado por
instituições e reguladores internacionais, privatizações e transferência de
responsabilidades pela provisão de serviços públicos para o terceiro setor, além de
pressões fiscais crescentes perante responsabilidades complexas, resultaram em uma nova
configuração das relações entre o Estado e a sociedade, na qual o público não se resume
exclusivamente ao estatal.
O presente texto explora o desafio da gestão das políticas públicas, inicialmente na
perspectiva de sua integração, para depois concluir sob o prisma do desafio de sua
coordenação e dos mecanismos de governança que o presidem. O paradigma de
governança abriga, hoje, um vasto conjunto de abordagens e práticas, que possuem em
comum o modo de se governar mais aberto, interdependente e multidimensional, sempre
relativizando o protagonismo do Poder Executivo central na modelagem da política e das
políticas.5
O capítulo tem sete seções, sendo a primeira esta introdução. A segunda é um breve relato
de como a discussão sobre gestão chegou ao estágio atual. As quatro seções subsequentes
correspondem às quatro políticas citadas anteriormente. A sexta faz um balanço dos
achados. Finalmente, o capítulo fecha com uma conclusão.

DA GESTÃO INTEGRADA À COORDENAÇÃO EXECUTIVA

A categoria “centro de governo” vem sendo utilizada pela OCDE desde os anos 1980,
para se referir às dinâmicas e funções desempenhadas pelo núcleo de governo dos países
que integram a organização. Documentos produzidos pela OCDE problematizam esses
desafios com base na experiência dos países membros: tarefas, capacidades, mecanismos
decisórios, estruturas de monitoramento, políticas públicas baseadas em evidências, visão
estratégica do conjunto do governo e liderança presidencial.6
Esta abordagem influenciou o Tribunal de Contas da União (TCU), que em 2016 produziu
um documento que trata explicitamente da problemática da avaliação da governança do
centro de governo.7 Coordenação é um dos ativos mais escassos de um governo.
Entretanto, trata-se de um recurso a ser usado com parcimônia, uma vez que não se pode
coordenar muitas coisas por muito tempo, mas apenas poucas coisas por pouco tempo. A
demanda do TCU é no sentido de que se institucionalizem instâncias de coordenação no
centro de governo para o enfrentamento e processamento de conflitos intersetoriais que
estão bloqueados por visões sectárias.
O apelo à coordenação traz como argumentos favoráveis o potencial de sinergias, o
aumento da eficiência e da efetividade das iniciativas, o aumento da abrangência e da
visão integrada das políticas em questão. Porém, não se trata de uma panaceia. Há
problemas de sobreposições de competências, barreiras cognitivas, problemas
de accountabiity, custos de transação e questões relacionadas com a especialização que
precisam ser levadas em conta.8
A visão departamentalista, baseada em silos, produz segmentação de intervenções e
isolamento entre setores, mas possui argumentos para defesa de sua aplicação,
especialmente em situações que envolvam preservação do território, individualização da
autoridade, necessidade de visibilidade política, proteção do orçamento, importância do
conhecimento especializado e problemas de jurisdição, entre outros.9
Policy coherence passou a ser uma das principais narrativas de instituições como as
Nações Unidas, a União Europeia e a OCDE, no contexto dos esforços para a consecução
dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. O foco era na problemática da efetividade
do desenvolvimento, posteriormente relacionado com o debate em torno da Agenda 2030.
O conceito é associado à premissa de que há sinergias positivas a serem obtidas – e
negativas a serem neutralizadas – quando há atenção para como políticas públicas
diversas interagem e se configuram no seu conjunto. A abordagem não é isenta de críticas,
sobretudo o risco de um deslocamento da atenção de policymakers da questão do impacto
das políticas públicas para uma eventual busca por consistência entre as mesmas.10
O debate em torno da necessidade de coordenação maior por parte do centro de governo
foi impulsionado no primeiro mandato de Dilma Rousseff por um protagonista
surpreendente: o TCU, mais conhecido pela sua atuação no front de conformidade.
Estranhamente, o Brasil tornou-se um caso idiossincrático em que a discussão sobre
governança entrou no debate nacional pelas mãos do órgão de controle externo. Esse
tortuoso percurso, explicável em parte pelo que ocorreu no país de 2011 a 2016, trouxe
consequências colaterais que merecem registro por duas razões: uma relacionada com o
TCU e outra com o próprio governo.
O protagonismo adquirido pelo TCU na política nacional deslocou um debate nacional
sobre as relações do Estado com a sociedade e sobre o papel do Estado Nacional para a
esfera do controle com consequências indesejáveis e controversas. A confusão dos limites
da atuação do controle externo junto ao Executivo e os efeitos colaterais da atuação do
TCU sobre a proatividade da atuação governamental passaram a ser objeto de atenção
permanente.11
O período 2011/2016 caracterizou-se pelo progressivo enfraquecimento do Executivo,
junto com a aceleração da erosão da autoridade presidencial, fenômenos estes que
culminaram com o processo de impeachment. O esvaziamento das funções coordenadoras
representadas pelo progressivo colapso da Casa Civil a partir de 2014 deveu-se à própria
incapacidade – política e cognitiva – de o Executivo compreender a importância do
fortalecimento do centro de governo, do ponto de vista da articulação intergovernamental.
O Executivo fechou-se em um voluntarismo raso, agravado pela ausência de uma visão
estratégica relacionada com a modernização das estruturas do Estado.
O Governo Temer representou o reverso deste quadro, ao recepcionar todo o esforço que
o TCU vinha fazendo de pautar o Executivo em relação às temáticas de governança e
centro de governo. A materialização desse entendimento tácito se deu a partir da edição
de um ato normativo institucionalizando práticas de governança, da publicação de uma
orientação geral sobre governança para os órgãos do Executivo12 e da produção de uma
série de manuais relacionados com avaliação de políticas públicas.13 A sinalização para a
Esplanada era a de que a Casa Civil encontrava-se em rota de fortalecimento de sua
capacidade de coordenação executiva, em sintonia com as diretrizes e expectativas do
TCU.
No âmbito do Poder Executivo, o tema passou a ser objeto de atenção por parte de
pesquisadores e dirigentes, como indicam publicações do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) e da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP).
Ainda que de forma ex-post e tardia, começaram a ser veiculadas análises relacionando
os eventos do período com assimetrias de capacidades e problemas de sequenciamento
de políticas.14 Na segunda década do século XXI, o TCU engajou-se no diálogo
internacional sobre temas estratégicos para a governabilidade contemporânea,
especialmente por meio dos fóruns da OCDE, das Nações Unidas e da Organização
Internacional de Entidades Fiscalizadoras Superiores.
As temáticas da coordenação executiva e centro de governo atravessam a transição de
Michel Temer para Jair Bolsonaro, a ponto de em 2019 terem sido adotadas duas
importantes medidas com vistas ao aprimoramento do processo de gestão integrada de
políticas públicas: a edição do Decreto Presidencial 9.834/2019 e o comissionamento
junto à OCDE de um peer review sobre a dinâmica de funcionamento do centro de
governo no Brasil.

O CADASTRO DOS POBRES

Em meados dos anos 1990, no período que se seguiu à estabilização da economia, surgiu
o debate em torno da necessidade de integração das políticas públicas, de modo a garantir
sua maior efetividade. Apesar de vários momentos de discussão no interior do governo
federal relacionados com a unificação de programas sociais voltados para a população de
baixa renda,15 foi somente em 2003, no início do governo Lula, que o Bolsa Família deu
consequência programática a essa agenda.
O Bolsa Família integrou diversos programas existentes (Bolsa Escola, Bolsa
Alimentação, Vale Gás, Cartão Alimentação) e se estabeleceu como o programa federal
de transferência de renda condicionado a parâmetros das áreas de educação e saúde,
definindo vínculos entre as dimensões de curto e longo prazo da vida de famílias em
condições de pobreza. Na dimensão de curto prazo, incidiu sobre o alívio imediato da
pobreza por meio da transferência de renda direta para a família. Em particular, aumentou
a eficiência de gestão ao reduzir a pulverização e os perversos incentivos da concorrência
pela “busca dos pobres” de cada programa e criou condições para o aumento do valor
médio dos recursos transferidos. Na dimensão de longo prazo, contribuiu para a redução
da pobreza entre gerações por meio do cumprimento das condicionalidades, aumentando
a probabilidade de mobilidade social ascendente dos filhos das famílias pobres.
No entanto, além de sua incidência direta, ele permitiria também a articulação virtuosa
com outras políticas públicas referentes às condições de vulnerabilidade das famílias e,
portanto, na dimensão de médio prazo, pretendia contribuir para o desenvolvimento das
capacidades dos beneficiários e reduzir, de forma sustentável, condições individuais e
familiares de vulnerabilidade social estrutural. O cadastro único se configurou como uma
plataforma com potencial para criar condições técnicas e ambiente institucional para a
articulação e coordenação adequadas entre setores da política social e entre entes
federativos.
Após mais de 15 anos de implementação do Bolsa Família, as evidências são positivas
nos campos do alívio da pobreza e da expectativa de mobilidade social das novas
gerações, mas frágeis no potencial de articulação das políticas públicas.
O cadastro viabilizou um mapeamento consistente das famílias em situação de pobreza.
A qualidade do registro está associada ao momento inicial de unificação dos cadastros
existentes até 2002, com limpeza das bases de dados e retirada de sobreposições e,
sobretudo, a uma visão de implementação que equilibra a descentralização da
responsabilidade da coleta de informações por parte dos Municípios com instrumentos de
controle, incentivos e governança instituídos no âmbito do Sistema Unificado da
Assistência Social (SUAS).
Essa plataforma de informações permitiu, por um lado, usar o mapeamento da pobreza
como levantamento inicial para aumentar a qualidade e a complexidade do diagnóstico
das condições múltiplas de vulnerabilidade social de cada família, referenciando no
Número de Identificação Social (NIS) os procedimentos setoriais já instalados nas
diversas áreas da política social, como, por exemplo, a busca ativa e os acolhimentos
institucionais das áreas de saúde e assistência social. Por outro lado, diante de
diagnósticos estruturados, amplos e territorialmente referenciados, permitiu também criar
condições para o cadastro da pobreza realizar um pêndulo de coordenação entre distintas
áreas da política social e entre as três esferas governamentais para a redução sustentável
da pobreza.
Assim, o cadastro da pobreza tem potencial de referenciar a política social colocada a
serviço do aumento da eficiência na provisão de programas e da efetividade no
enfrentamento simultâneo de causas múltiplas de vulnerabilidade social dos mais pobres.
Esse aumento de performance pode se dar, por um lado, pela redução do incentivo à
fragmentação (a qual, quando presente, torna disfuncional a operação de programas na
presença de assimetria de informações e de relações de clientela). Por outro lado, pode
aumentar a coerência interna sistêmica de políticas sociais articuladas ao reduzir os
incentivos à departamentalização segmentada das intervenções setoriais e à sobreposição
de ações e programas relativamente semelhantes de distintas esferas de governos. Por fim,
a função de pêndulo do cadastro permite maior diálogo e coordenação no interior de cada
esfera de governo e entre esferas de governo, aumentando a qualidade do desenho e da
implementação das agendas setoriais e, quando necessário, a identificação e escolha das
instituições locais responsáveis pelos fluxos setoriais de distribuição dos programas.
Nesses termos, um programa unificado de transferência de renda com relevante
focalização associado ao seu cadastro estruturado e integrado a outras dimensões sociais
permitiria uma modelagem sistêmica da política pública que promoveria a coordenação
intra e entre entes federativos, a serviço de um novo patamar de enfrentamento da
vulnerabilidade social da população mais pobre do país.
GOVERNANÇA CLIMÁTICA – O COMBATE AO DESMATAMENTO NA
AMAZÔNIA

No início do governo Lula, começou a funcionar na Casa Civil o Grupo Permanente de


Trabalho Interministerial (GPTI), com a finalidade de tratar da temática de desmatamento
na Amazônia. O Plano de Ação para Proteção e Controle do Desmatamento na Amazônia
(PPCDAM) representou uma inflexão decisiva na postura do país diante da questão da
explosão do desmatamento na região. Na época, foi criado também o Sistema de Detecção
em Tempo Real (DETER), sob responsabilidade do Instituto Nacional de Pesquisa
Espaciais (INPE). Tratou-se, no caso, de um grande esforço de integração operacional
entre áreas diversas de governo.
O PPCDAM é um exemplo de governança colaborativa que funciona há 16
anos.16 Construído sobre os pilares proporcionados pelo IBAMA (MMA) – com a
fiscalização – e pelo INPE – com o monitoramento da evolução das emissões –, o sucesso
do programa é explicado pela aliança perene de um conjunto de quase trinta organizações
que, ao longo do tempo, tem contribuído para os resultados alcançados até o momento.
Desenhada como um programa que abrangia várias áreas do governo, a iniciativa revelou-
se um dos mais bem-sucedidos exemplos de ação multisetorial com repercussões globais
na esfera da mudança climática. Uma série de iniciativas tomadas nos anos subsequentes
representaram o desdobramento das ações exitosas do PPCDAM. Isso inclui a criação do
Fundo Amazônia (em parceria com o governo da Noruega e administrado pelo BNDES),
a Política Nacional de Mudanças Climáticas, a criação do PPCerrado, iniciativas
referentes a áreas embargadas em razão de desmatamento ilegal e a Resolução 3545 do
Banco Central, que condiciona o acesso ao crédito rural à regularidade ambiental das
propriedades rurais na Amazônia.
O combate ao desmatamento na Amazônia é a mais importante contribuição que o
governo brasileiro deu para enfrentar o aquecimento global nos últimos 15 anos. O maior
resultado desse esforço foi, sem dúvida, a redução da taxa anual do desmatamento do
patamar de quase 30.000 km2 para o atual patamar de menos de 10.000 km2.
O papel de coordenação – exercido pela Casa Civil durante o período – contribuiu
diretamente para o sucesso desse arranjo institucional. Embora a importância da Casa
Civil tenha diminuído ao longo do tempo, esta “diluição” foi uma evidência da robustez
do modus operandi forjado ao longo do tempo.17

AÇÃO INTEGRADA EM TERRITÓRIOS URBANOS

No Rio de Janeiro, em 2009, a política de segurança estadual instituiu a Unidade de


Polícia Pacificadora (UPP), com o objetivo de desfazer as fronteiras armadas de domínio
(sobretudo dos narcotraficantes) e retomar o controle territorial em comunidades
populares da cidade. Essa agenda de pacificação abriu caminho para a implementação da
Unidade de Política Pública Social (UPP Social) com o objetivo de integrar as áreas
beneficiadas pelas UPPs ao conjunto da cidade e alcançar patamares de cobertura e de
qualidade dos serviços públicos compatíveis com os oferecidos na cidade como um
todo.18
Estes territórios, apesar de compartilharem parâmetros comuns de vulnerabilidade, são
bastante heterogêneos entre si e no seu próprio interior. Assim, um programa que buscava
considerar os desafios concretos de vulnerabilidade de indivíduos e famílias, em
territórios factuais, teria de ser capaz de dar conta das especificidades locais e dos campos
de possibilidade de diálogo entre governo e sociedade. A hipótese era que aplicar o
mesmo “pacote” de programas em todos territórios evidentemente aliviaria as condições
de pobreza, mas não permitiria produzir soluções sustentáveis de transformação social e
de integração urbana.
A possibilidade de integrar setores e atores passava pela estruturação da gestão do
programa em três pilares: territorial, informacional e institucional. A Gestão Territorial,
com equipes dedicadas à interlocução cotidiana com organizações e lideranças de cada
comunidade, identificava demandas e estabelecia novos canais de participação e diálogo
com o poder público, procurando garantir comunicação, mobilização e engajamento
local. Em paralelo, realizava o detalhamento crítico e aferição de consistência sobre as
informações de infraestrutura urbana, equipamentos e oportunidades sociais nos
territórios. Por fim, facilitava a cooperação entre agentes públicos e a sociedade civil e
monitorava em tempo real a execução das ações municipais. Essa equipe produzia
relatórios de campo diários e participava de reuniões semanais para balanço e
reprogramação das atividades.
A unidade de Gestão da Informação promovia análise técnica contínua das informações
quantitativas e qualitativas disponíveis, qualificando as demandas identificadas nas
interações locais e a adequação das possibilidades de oferta a cada território. Assim,
criavam-se condições consistentes de planejamento distribuídas no tempo, definindo o
que poderia e não poderia ser ofertado em cada território e estabelecendo uma curva de
distribuição de prioridades entre os setores governamentais e, portanto, alinhando as
condições de oferta às demandas identificadas como factíveis e tecnicamente consistentes
para cada território.
Por fim, o núcleo de Gestão Institucional coordenava uma rede formada por técnicos das
secretarias e empresas públicas municipais, responsáveis pelas agendas em cada órgão.
Esta equipe, com reuniões ordinárias quinzenais, mapeava as ofertas existentes e
potenciais de cada setor e desenhava compromissos exequíveis para responder às
demandas prioritárias identificadas em cada comunidade. O Instituto Municipal de
Urbanismo Pereira Passos (IPP) coordenava o programa UPP Social e realizava o papel
de um escritório de projetos responsável por monitorar a implementação, analisar as
condições objetivas de alinhamento entre oferta e demanda local e qualificar as evidências
técnicas e práticas para basear o processo de tomada de decisão.
O programa se organizava, portanto, a partir de uma gestão matricial e multisetorial, com
um sistema de governança que permitia olhar para o território como prioridade e criar
condições para tomada de decisões baseadas em evidências válidas e diagnósticos
específicos de cada localidade. A ritualística da governança era estruturada na unidade
central de governo, envolvendo diretamente o prefeito, secretários e presidentes de
autarquias em reuniões ordinárias mensais, com apresentação dos relatórios de
monitoramento do IPP permitindo tomada de decisões em tempo real, garantindo
correções de rota frequentes e redefinindo, quando necessário, prioridades e
sequenciamento de intervenções a serem implementadas.
Assim, a UPP Social instituiu um novo ambiente e um conjunto de práticas de gestão
orientadas diretamente para os territórios, criando condições concretas para avanço
contínuo na adoção de políticas orientadas às realidades específicas de indivíduos e
famílias nessas comunidades, com alto grau de integração setorial e participação social.
Essa abordagem permitia dar consequência à dinâmicas capazes de lidar com as
heterogeneidades territoriais e as potencialidades das agendas setoriais voltadas para a
ação integrada.19
No entanto, apesar de conquistas efetivas, as resistências à implementação foram
proporcionais à suas características inovadoras de tecnologias sociais e de governança. O
processo de priorização implicava alterar sequências de decisões setoriais e, portanto,
“furar a fila” de decisões prévias. Assim, a combinação entre o mapeamento efetivo das
necessidades dos beneficiários e o caráter impessoal na provisão de serviços enfrentou
várias resistências, ao lidar com uma cultura de pessoalidade e de apropriação da coisa
pública. Além disso, a máquina pública, os gestores e os políticos resistiam em reconhecer
a multidimensionalidade das vulnerabilidades, buscavam destacar sua autoria segmentada
de soluções locais e, em geral, fortaleciam a departamentalização das políticas.

O MARCO REGULATÓRIO DA INTERNET

A Presidente Dilma Rousseff sancionou, em abril de 2014, a Lei do Marco Civil da


Internet. Isso ocorreu três anos após sua entrada no Congresso, como projeto de lei de
autoria do Executivo, mas em reação a outras iniciativas: uma de origem legislativa – o
Projeto de Lei de Cibercrimes de 2007, do então senador Eduardo Azevedo – e outra em
discussão no âmbito internacional – um acordo internacional que tratava de patentes e
direitos autorais. A proposta foi desenvolvida de forma colaborativa, por meio de
um blog que recebia contribuições de todo o país. A abordagem adotada foi baseada em
um modelo de multistakeholders,20 com atenção especial para protagonistas como o
governo, empresas do setor privado, comunidade acadêmica, comunidade de práticas
(experts) e organizações da sociedade civil. Valorizou-se muito, então, a integração a
partir do compartilhamento de visões e informações.
Vários elementos de políticas públicas, que vinham sendo tratadas separadamente nos
ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação, Justiça, Secretaria de Direitos Humanos
e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, entre outros, foram canalizados para
a discussão do Marco Civil da Internet, onde essas preocupações foram recepcionadas e
traduzidas em dispositivos legais específicos.
Os temas objeto de tratamento legal nas discussões incluíram neutralidade da rede,
direitos digitais dos cidadãos, privacidade, liberdade de expressão, acesso a dados,
disseminação de conhecimento, responsabilidades de usuários e provedores e soberania
tecnológica. O vazamento, em julho de 2013, de que conversas da própria Presidente da
República, bem como de outros líderes globais, eram objeto de espionagem eletrônica
precipitou o andamento do projeto. Este passou a ter o engajamento decisivo da
Presidência da República – em oposição ao lobby das telefônicas, que defendia interesses
próprios na condição de provedores.
Observadores internacionais, presentes à Conferência Internacional NETmundial,
realizada em abril de 2014, chamaram a atenção para o fato de que a legislação brasileira
era um exemplo de como a atuação de governos, atuando de forma coordenada e
interativa, podia operar para a promoção e proteção dos direitos da web, preservando-a
aberta e dinâmica.
Nos anos seguintes, no decorrer do difícil período que culminou no impeachment de 2016
e no subsequente governo Temer, ocorreram surpreendentes avanços na esfera digital. O
governo elaborou uma estratégia digital para o país21 e comissionou um peer review junto
à OCDE relacionado com a transformação digital no âmbito do Poder Executivo federal.
Nos dois casos, porém, tratou-se de iniciativas governamentais, sem o grau de
participação e protagonismo de outros atores públicos e privados.
O que chama a atenção, na experiência do Marco Civil da Internet, é o fato de que o
processo de integração das políticas, até então dispersas por vários ministérios, foi
conduzido – até o incidente do grampeamento internacional – pelo então Ministério da
Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), em bases horizontais no
Executivo e abertas no que diz respeito ao setor privado e à sociedade civil. Trata-se de
um interessante exemplo de governança colaborativa, que mostra que nem sempre a
coordenação precisa originar-se no topo da estrutura hierárquica do governo.

ACHADOS E PERDIDOS

Os quatro casos abordados sinalizam a possibilidade de se trabalhar de forma integradora


e articulada. Os fatores críticos de sucesso para uma bem-sucedida experiência
integradora abrangem: (i) a capacidade de compreensão de sua importância; (ii) a
mobilização dos meios necessários para seu exercício; (iii) a liderança catalisadora; (iv)
a retroalimentação virtuosa ao longo dos estágios iniciais; e (v) a sustentabilidade do
esforço de coordenação. A institucionalidade construída nos casos do Cadastro Social,
UPP Social, PPCDAM e Marco Civil da Internet sugere que a coordenação bem-sucedida
pode produzir arranjos institucionais capazes de transcender a alternância de dirigentes e
governos.
As quatro iniciativas discutidas anteriormente apresentaram resultados efetivos durante
um certo tempo, até perderem “momentum” e/ou serem deslocadas do plano das
prioridades governamentais. Cadastro Social, PPCDAM e Marco Civil da Internet
continuam a ser implementados, embora sem a tração que caracterizou seu período inicial
e sem exercer a potência de alinhamento e coordenação que lhes estava associada. Trocas
de governo, rotatividade de equipes, deslocamento da atenção prioritária do Presidente,
envelhecimento e esclerose são alguns dos elementos que comprometem a
institucionalidade dos esforços de coordenação ao longo do tempo.

CONCLUSÕES
Tensões entre fragmentação e integração, departamentalismo e coordenação,
inconsistência e coerência, governança e forças centrífugas estarão sempre presentes. A
efetividade das políticas dependerá da construção de capacidades que possibilitem a
superação das fragilidades institucionais, que respondem pelos recorrentes impasses que
bloqueiam o desenvolvimento brasileiro.
Arquiteturas de governança distribuídas, combinadas com o intenso uso de tecnologia,
transparência e coprodução de serviços públicos, podem mudar a paisagem da
Administração Pública Federal. Precisarão, de qualquer forma, ser desenhadas,
experimentadas e implementadas. Cabe destacar que os avanços da inteligência artificial
e a ascensão dos algoritmos podem produzir novos avanços dos esforços na trajetória de
gestão integrada das políticas públicas.
Na arena global, a abordagem baseada nos conceitos de governança é, hoje, adotada como
impulsionadora de agendas abrangentes, como as dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS).22 Instâncias globais de problematização dos desafios
contemporâneos, como Nações Unidas, OCDE, Fórum Econômico Mundial, entre outras,
sugerem uma direção: convergência no sentido de integração de políticas, aumento dos
graus de coordenação e coerência das mesmas, com maior atuação proativa do centro de
governo, com vistas à implementação efetiva das políticas públicas.
A pergunta que se coloca para um país como o Brasil é se nos interessa caminhar nesta
direção. Em caso de resposta positiva, é importante a clarificação e explicitação dos
desdobramentos, que incluem a mobilização de outros órgãos – notadamente, a área
econômica – e a persuasão das demais áreas da Presidência e do governo.
A riqueza dos desafios nacionais se constitui em oportunidade para inovações de toda
ordem no enfrentamento dos problemas postos. Se nossas instituições não estão “prontas”
para essas transformações, talvez este seja o momento de reavaliá-las à luz das tendências
postas, de modo a que possam “atalhar” trechos, por meio da internalização de abordagens
inovadoras contemporâneas de processos de mudança.
Hoje, praticamente não há mais políticas públicas encapsuladas em suas policy
communities e isoladas nos seus aparatos organizacionais. A revolução digital – inclusive
com a disseminação de tecnologias de nuvem e blockchain –, combinada com a
irresistível ascensão dos algoritmos,23 estão mudando a natureza dos processos de
governo. Esta pode ser uma janela de oportunidade excepcional para o catching up do
Brasil em termos de desenvolvimento de capacidades estratégicas para os processos de
políticas públicas. As dificuldades existentes, curiosamente, são decorrentes mais de
processos de natureza política do que de insuficiências técnicas.

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1
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4
Baldwin, Cave e Lodge (2013).
5
Filgueiras (2019).
6
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7
Brasil (2016).
8
Peters, Rhodes e Wright (2000).
9
Hood (2005).
10
Barder (2013).
11
Gaetani (2018) e Serpa (2013).
12
Brasil (2017).
13
Brasil (2018a e 2018b).
14
Nogueira e Gaetani (2018).
15
Barros, Henriques e Mendonça (2000), Camargo e Ferreira (2000) e Henriques (2000).
16
Freeman (1997) e Harper (2009).
17
Este capítulo trata do período das décadas de 2000 e 2010 como um todo, em linhas gerais, e não se detém
especificamente sobre as mudanças em curso em 2019 na matéria.
18
A UPP Social foi implementada, entre 2010 e 2012, em 36 comunidades pacificadas, quase todas
anteriormente sob controle de narcotraficantes e algumas sob controle de milicianos.
19
Henriques (2012) e Henriques e Ramos (2010).
20
Almeida, Getschko e Afonso (2015).
21
Brasil (2018c).
22
OCDE (2019).
23
Yeung e Lodge (2019).

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