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Entrando na correnteza

“O caminho que pode ser dito não é o verdadeiro, o que pode ser visto não é
verdadeiro e nem o que pode ser ouvido, somente o que é vivido com clareza é o
verdadeiro caminho.”

Do príncipe Gautama

Certa vez o Buda contou aos bhikkhus a seguinte história (Sedaka


Sutta - SN XLVII.19):
“Bhikkhus, certa vez no passado, um acrobata, tendo levantado um
poste de bambu, se dirigiu ao seu ajudante, Medakathalika: ‘Venha,
estimado Medakathalika, suba nos meus ombros e fique em pé
sobre o poste de bambu.’ Tendo respondido, ‘Sim, mestre,’ o
aprendiz Medakathalika subiu sobre os ombros dele e ficou em pé
no poste de bambu. O acrobata então disse para o aprendiz
Medakathalika: ‘Você agora me proteja, estimado Medakathalika, e
eu o protegerei. Assim, guardando um ao outro, protegendo um ao
outro, mostraremos nossa arte, receberemos nossa recompensa e
com segurança desceremos do poste de bambu.’ Quando isso foi
dito o aprendiz Medakathalika respondeu: ‘Esse não é o modo de
fazer isso, mestre. Você se proteje, mestre, e eu me protegerei.
Assim, com cada um guardado e protegido, nós mostraremos a
nossa arte, receberemos a nossa recompensa e com segurança
desceremos do poste de bambu.’
“Esse é o método nesse caso,” o Abençoado disse. “É exatamente
aquilo que o aprendiz Medakathalika disse para o seu mestre. ‘Eu
me protegerei,’ bhikkhus: assim devem ser praticados os
fundamentos da atenção plena. ‘Eu protegerei os outros,’ bhikkhus:
assim devem ser praticados os fundamentos da atenção plena.
Protegendo a si mesmo, bhikkhus, ele protege os outros;
protegendo os outros, ele protege a si mesmo.
“E como é, bhikkhus, que protegendo a si mesmo, ele protege os
outros? Através da perseverança, desenvolvimento e cultivo dos
quatro fundamentos da atenção plena. É desse modo que
protegendo a si mesmo, ele protege os outros.
“E como é, bhikkhus, que protegendo os outros, ele protege a si
mesmo? Através da paciência, não fazendo o mal, através de uma
mente com amor bondade e compaixão. É desse modo que
protegendo os outros, ele protege a si mesmo.
Este sutta pertence a um grupo considerável de ensinamentos
importantes e eminentemente práticos do Buda, que ainda se
encontram escondidos como se fossem um tesouro enterrado,
desconhecidos e não utilizados. Apesar disso, este texto possui uma
importante mensagem para nós, e o fato de ele estar estampado com
o selo real de satipatthana justifica uma atenção ainda mais especial.
Indivíduo e Sociedade
O sutta trata das nossas relações com os demais seres humanos, entre
o indivíduo e a sociedade. Ele resume de forma sucinta a atitude
Budista em relação aos problemas da ética individual e da sociedade,
de egoísmo e altruismo. A sua essência está contida em duas frases
concisas:
"Protegendo a si mesmo, se protege os outros (Attanam rakkhanto
param rakkhati.)
"Protegendo os outros, se protege a si mesmo." (Param rakkhanto
attanam rakkhati.)
Essas duas frases são complementares e não devem ser tomadas ou
mencionadas em separado. Hoje em dia, quando o serviço social é tão
enfatizado, as pessoas podem ser tentadas a dar sustentação às suas
idéias mencionando apenas a segunda frase. Mas qualquer citação
unilateral distorcerá o ponto de vista do Buda. Deve ser lembrado que
na nossa estória o Buda expressamente aprova as palavras do
aprendiz, que primeiro devemos vigiar com cuidado nossos próprios
passos se quisermos proteger os outros do mal. Aquele que estiver
afundado na lama, não será capaz de ajudar os outros a saírem dela.
Nesse sentido, a nossa própria proteção forma a base indispensável
para a proteção e ajuda dada aos outros. Mas a proteção de si mesmo
não é uma proteção egoísta. É auto-controle, é o desenvolvimento
ético e espiritual de si mesmo.
Existem algumas grandes verdades que são tão abrangentes e
profundas que parecem ter um alcance que se expande com o próprio
limite do indivíduo de compreedê-las e praticá-las. Tais verdades se
aplicam a vários níveis de compreensão e são válidas em vários
contextos das nossas vidas. Depois de alcançar o primeiro ou segundo
nível, a pessoa se surpreenderá com o fato de que repetidamente
novas perspectivas venham a se abrir à nossa compreensão,
iluminadas por essas mesmas verdades. Isto também se aplica às duas
verdades gêmeas do nosso texto, que agora passaremos a considerar
em mais detalhe.
"Protegendo a si mesmo, se protege os outros” – a verdade dessa
afirmação tem origem em um nível extremamente simples e prático. O
primeiro nível material dessa verdade é tão evidente que não são
necessárias mais do que algumas palavras a respeito. É óbvio que a
proteção da nossa pópria saúde contribui muito para a proteção da
saúde dos outros que compartem o nosso ambiente, especialmente
no que diz respeito a doenças contagiosas. A cautela e a circunspecção
em todas as nossas ações e movimentos irão proteger os outros dos
danos que lhes possam ocorrer pela nossa falta de cuidado e
negligência. Dirigir com cuidado, abstenção de álcool, autocontrole
nas situações que possam conduzir à violência – nessas e em muitas
outras maneiras, podemos proteger os outros ao protegermos a nós
mesmos.
O Nível Ético
Chegamos agora ao nível ético dessa verdade. A nossa própria
proteção moral irá proteger os outros, os indivíduos e a sociedade, das
nossas paixões desenfreadas e impulsos egoístas. Se permitirmos que
as três raízes do mal – cobiça, raiva e delusão – tomem conta do
nosso coração, então os seus rebentos irão se espalhar em todas as
direções como se fossem uma trepadeira, sufocando tudo aquilo de
nobre e saudável que tente crescer à sua volta. Mas se nos
protegermos dessas três raízes, os nossos semelhantes também
estarão a salvo. Eles estarão a salvo da nossa cobiça irresponsável por
posses e poder, da nossa luxúria e sensualidade desenfreadas, da
nossa inveja e ciúme; a salvo das consequências maléficas da nossa
raiva e inimizade que podem ser destrutivas ou até mesmo criminosas;
a salvo das nossas explosões de raiva e da atmosfera de antagonismo
e conflito resultante, que pode fazer com que a vida lhes seja
insuportável.
Os efeitos maléficos que a nossa cobiça e raiva possuem sobre os
outros não estão limitados às ocasiões em que eles se tornam objetos
passivos ou vítimas da nossa raiva, ou quando as suas posses se
tornam o objeto da nossa cobiça. Ambos a cobiça e a raiva possuem
um poder contagioso que multiplica imensamente os seus efeitos
maléficos. Se nós mesmos não pensarmos noutra coisa que não seja
cobiçar e agarrar, adquirir e possuir, tomar e se apegar, então
estimularemos ou reforçaremos esses instintos possessivos nos
outros. A nossa má conduta poderá se tornar o padrão de
comportamento para aqueles que nos cercam – nossos filhos, amigos
e colegas. Nossa própria conduta poderá induzir os outros a que se
juntem a nós na satisfação ordinária dos nosssos desejos predatórios;
ou podemos estimular neles sentimentos de ressentimento e
competitividade. Se estivermos plenos de sensualidade, poderemos
também despertar neles o fogo do desejo. A nossa própria raiva
poderá provocar neles a raiva e a vingança. Poderemos também nos
aliar com os outros ou instigá-los a cometer atos ordinários de raiva e
inimizade. A cobiça e a raiva são de fato iguais a doenças contagiosas.
Se nos protegermos contra essas infecções maléficas, estaremos
também, pelo menos até certo ponto, protegendo os outros.
Proteção através da Sabedoria
Quanto à terceira raíz do mal, delusão ou ignorância, sabemos muito
bem quanto dano pode ser causado aos outros através da estupidez,
desconsideração, preconceitos, ilusões e delusões de uma única
pessoa .
Sem conhecimento e sabedoria, as tentativas de proteger a si mesmo
e aos outros em geral fracassarão. A pessoa verá o perigo apenas
quando for muito tarde, ela não irá se precaver quanto ao futuro; ela
não saberá os meios corretos e efetivos de proteção e ajuda Por isso, a
própria proteção através do conhecimento e sabedoria são da maior
importância. Ao obter o verdadeiro conhecimento e sabedoria,
estaremos protegendo os outros das consequências danosas da nossa
própria ignorância, preconceitos, fanatismo infeccioso e delusões. A
história nos mostra que as grandes e destrutivas delusões em massa
foram com frequência acesas por um único indivíduo ou um pequeno
grupo de pessoas. A própria proteção através do conhecimento e
sabedoria irá proteger os outros dos efeitos perniciosos de tais
influências.
Já indicamos de forma breve como a nossa vida particular pode ter um
forte impacto sobre as vidas dos outros. Se deixarmos sem resolução
as fontes reais ou potenciais de dano social dentro de nós mesmos,
nossa atividade social externa será fútil ou marcadamente incompleta.
Portanto, se estivermos motivados por um espírito de
responsabilidade social, não deveríamos nos esquivar da dura tarefa
do nosso próprio desenvolvimento moral e espiritual. A preocupação
com as atividades sociais não deve se converter em uma desculpa ou
escapatória para a tarefa primeira, que é de arrumar a própria casa
primeiro.
Por outro lado, aquele que com seriedade se dedica ao seu
desenvolvimento moral e espiritual será um força vigorosa e ativa para
o bem no mundo, mesmo que ele não se dedique a alguma atividade
social externa. Só o seu exemplo silencioso irá ajudar e encorajar
muitos, mostrando que os ideais de uma vida abnegada e inofensiva
podem na verdade ser vividos e que não são apenas temas de
sermões.
O Nível Meditativo
Passamos agora ao nível mais elevado de interpretação do nosso
texto. Ele está expresso nas seguintes palavras do sutta: "E como é,
bhikkhus, que protegendo a si mesmo, ele protege os outros? Através
da perseverança, desenvolvimento e cultivo dos quatro fundamentos
da atenção plena." A nossa própria proteção moral não terá
estabilidade enquanto permanecer como uma rígida disciplina que se
cumpre após um choque entre motivos e contra padrões conflituosos
de pensamento e comportamento. Os desejos apaixonados e as
tendências egoístas podem crescer em intensidade se a pessoa tentar
silenciá-los apenas através da força de vontade. Mesmo havendo êxito
temporário em suprimir impulsos apaixonados ou egoístas, o conflito
interno não resolvido irá impedir o progresso moral e espiritual e
deformar o caráter da pessoa. Além disso, a desarmonia interna
provocada pela supressão forçada dos impulsos irá encontrar uma
saída no comportamento externo. Poderá fazer com que o indivíduo
se torne irritadiço, ressentido, dominador e agressivo em relação aos
outros. Portanto, o dano pode vir para si mesmo bem como para os
outros devido a um método equivocado de proteção de si mesmo.
Somente quando a própria proteção moral tenha se tornado uma
ação espontânea; quando ela surja tão naturalmente como o
fechamento protetor da pálpebra contra a poeira – somente então a
nossa estatura moral irá proporcionar proteção e segurança reais para
nós e para os outros. Essa conduta virtuosa natural não nos é dada
como um presente dos céus. Ela tem que ser conquistada através da
repetida prática e cultivo. Portanto o nosso sutta diz que é através da
prática repetida que a própria proteção se torna suficientemente forte
para proteger os outros também.
Mas se essa prática repetida ocorrer apenas nos níveis prático,
emocional e intelectual, as suas raízes não serão suficientemente
firmes e profundas. Essa prática repetida também deve ser extendida
ao nível do cultivo da meditação. Com a meditação, os motivos
práticos, emocionais e intelectuais da nossa própria proteção moral e
espiritual se tornarão nossa propriedade pessoal que não poderá ser
perdida com facilidade. Portanto, neste caso, o nosso sutta está se
referindo a bhavana, o desenvolvimento meditativo em seu sentido
mais amplo. Essa é a forma mais elevada de proteção que o nosso
mundo pode oferecer. Aquele que desenvolveu a sua mente com a
meditação vive em paz consigo mesmo e com o mundo. Nele, nenhum
mal ou violência terá origem. A paz e a pureza que ele irradia terá um
poder inspirador, elator e será uma benção para o mundo. Ele será um
fator positivo na sociedade, mesmo se viver em isolamento e em
silêncio. Quando a compreensão e o reconhecimento do valor social
de uma vida dedicada à meditação cessarem em uma nação, esse será
um dos primeiros sintomas da deterioração espiritual.
Proteção dos Outros
Agora deveremos considerar a segunda parte da declaração do Buda,
um complemento necessário à primeira: "E como é, bhikkhus, que
protegendo os outros, ele protege a si mesmo? Através da paciência,
não fazendo o mal, através de uma mente com amor bondade e
compaixão (khantiya avihimsaya mettataya anuddayataya)."
Aquele cujo relacionamento com os seus semelhantes for governado
por esses princípios estará melhor protegido do que com a força física
ou com armas poderosas. Aquele que é paciente e tolerante evitará
conflitos e disputas e fará amigos daqueles para com os quais tenha
demonstrado uma compreensão paciente. Aquele que não apela para
a força ou coersão raramente se tornará, sob circunstâncias normais,
um objeto de violência já que ele não provoca a violência nos outros. E
se ele for confrontado com a violência, fará com que ela termine logo
pois não irá perpetuar a hostilidade através da vingança. Aquele que
possui amor e compaixão por todos os seres, livre de inimizade,
superará a má vontade dos outros e desarmará os brutos e violentos.
Um coração compassivo é o refúgio de todo o mundo.
Podemos agora compreender como essas duas sentenças
complementares do nosso texto se harmonizam. A proteção de si
mesmo é a base indispensável. Mas a verdadeira proteção de si
mesmo só é possível se não conflitar com a proteção dos outros; pois
aquele que busca a sua própria proteção às expensas dos outros se
tornará impuro e se colocará em perigo. Por outro lado, a proteção
dos outros não deve conflitar com os quatro princípios da paciência,
não fazer o mal, amor bondade e compaixão; e também não deve
interferir com o livre desenvolvimento espiritual como é o caso de
várias doutrinas totalitárias. Portanto, o conceito Budista de proteção
de si mesmo exclui todo o egoísmo, e na proteção dos outros a
violência e a interferência não têm lugar.
A proteção de si mesmo e a proteção dos outros correspondem às
duas grandes virtudes gêmeas do Budismo, sabedoria e compaixão. A
proteção correta de si mesmo é a expressão da sabedoria, a proteção
correta dos outros é a expressão da compaixão. Sabedoria e
compaixão, sendo os elementos primários da Iluminação ou Bodhi,
encontraram a perfeição mais elevada no Perfeitamente Iluminado, o
Buda. A insistência no desenvolvimento harmonioso de ambas é uma
aspecto característico de todo o Dhamma. Nós as encontramos nos
quatro estados sublimes (brahmavihara), em que a equanimidade
corresponde à sabedoria e à auto proteção, enquanto que o amor
bondade, a compaixão e a alegria altruísta correspondem à compaixão
e à proteção dos outros.
Esses dois grandes princípios, da proteção de si mesmo e proteção dos
outros, possuem a mesma importância para ambas, a ética do
indivíduo e da sociedade, e harmonizam os objetivos de ambas. O seu
impacto benéfico, no entanto, não se limita ao nível ético, mas conduz
o indivíduo para cima, para as superiores realizações do Dhamma,
enquanto que ao mesmo tempo provê um sólido fundamento para o
bem estar da sociedade.
O autor crê que a compreensão desses dois grandes princípios, da
proteção de si mesmo e proteção dos outros como manifestação das
virtudes gêmeas de sabedoria e compaixão, é de vital importância
para a educação Budista, tanto para os jovens como para os idosos.
Elas são as pedras fundamentais para a construção do caráter e
merecem um papel central no esforço global para o renascimento do
Budismo.
“Eu protegerei os outros” – assim deveríamos estabelecer a nossa
atenção plena e guiados por ela, dedicarmo-nos à prática de
meditação em benefício da nossa própria libertação.
“Eu protegerei os outros” – assim deveríamos estabelecer a nossa
atenção plena e guiados por ela, controlar a nossa conduta através da
paciência, boas ações, amor bondade e compaixão, pelo benefício e
felicidade de muitos.
 

O Mito da Mera Atenção

O Buda nunca usou a palavra “mera atenção” nas suas instruções de


meditação. Isto porque ele compreendeu que a atenção nunca ocorre numa
forma de condição mera, pura ou incondicional. Ela é sempre colorida pelas
nossas opiniões e percepções: os rótulos que temos a tendência de dar
para os eventos; e pelas intenções: a escolha para onde dirigir a atenção e
a razão para estar atento. Se não compreendermos a natureza
condicionada mesmo de simples atos de atenção, poderemos presumir que
um momento de atenção não-reativa é um momento da iluminação. E
deste modo não estaremos considerando um dos mais cruciais insights da
meditação Budista, de como até os eventos mentais mais simples podem
formar uma condição para o apego e o sofrimento. Se tomarmos um
evento condicionado como incondicionado, fecharemos a porta para o
incondicionado. Portanto, é importante entender a natureza condicionada
da atenção e como o Buda recomendou que ela fosse treinada – como
atenção com sabedoria – para ser um fator do caminho que leva para além
da atenção, para a completa iluminação.

O termo em Pali para atenção é manasikara. Você pode ter ouvido que o
termo para mindfulness – sati – significa atenção, mas não é como o Buda
usava o termo. Mindfulness, para ele, significa manter alguma coisa em
mente. É a função da memória. Quando praticamos o estabelecimento
de mindfulness, (satipatthana), permanecemos focados na observação do
objeto que foi escolhido como base de referência: o corpo, as sensações, a
mente ou as qualidades mentais. Esse processo de ficar firmemente focado
na observação de um objeto é chamado anupassana, e requer a ajuda de
três qualidades mentais. Atenção plena, (satima), para manter o objeto de
referência em mente, para continuar se lembrando dele. Ao mesmo tempo,
precisamos estar alertas, completamente conscientes do que estamos
fazendo, (sampajañña), para ter certeza que estamos realmente fazendo
aquilo que está na mente como tarefa. Por fim precisamos ser zelosos ou
ardentes, (atapi), para fazer isso habilidosamente. O ato de observar um
objeto desse modo – com atenção plena, plena consciência e ardente – é o
que constitui o estabelecimento da atenção plena, (mindfulness), que então
forma o tópico ou tema, (nimitta), da concentração correta.

Por exemplo, se focarmos na respiração como objeto de


referência, anupassana, isso significa manter contínua atenção na
respiração. Atenção plena significa simplesmente lembrar de ficar com isso,
mantendo isso na mente o tempo todo, enquanto que ter plena consciência
significa saber claramente o que a respiração está fazendo e quão bem
você está permanecendo com ela. Ardência é o esforço para fazer tudo isso
habilidosamente. Quando todas essas atividades permanecem
completamente coordenadas, elas formam o tema da nossa concentração.
Mas, para compreender como a atenção com sabedoria funciona no
contexto desse treinamento, primeiro temos de compreender como a
atenção habitual funciona numa mente não treinada.

O Condicionamento da Atenção

No ensinamento da origem dependente – a explicação do Buda de como os


eventos interagem para criar as condições para o sofrimento – a atenção
aparece no início da seqüência, no fator dos eventos mentais chamado
“mentalidade”. Seguido de ignorância, fabricação e consciência; e
precedido dos seis meios dos sentidos, contato e sensação.

“Ignorância” aqui não significa uma falta geral de conhecimento. Significa


não compreender a experiência dentro do contexto das quatro nobres
verdades: sofrimento, sua causa, sua cessação e o caminho para a sua
cessação. Qualquer outro sistema para entender a experiência, não
importando quão sofisticado, qualificaria como ignorância. Exemplos
clássicos dados no Cânone incluem uma visão das coisas através do
princípio do eu e do outro, ou da existência e da não-existência: O que sou
eu? O que eu não sou? Eu existo? Eu não existo? As coisas existem fora de
mim? Elas não existem?

Essa ignorância condiciona a fabricação intencional, ou manipulação, dos


estados corporais, verbais e mentais. A respiração é o principal meio de
fabricação de estados corporais e a experiência prática mostra que - ao
promover o aparecimento de sensações de conforto e desconforto - ela
também tem um impacto nos estados mentais. Quando colorida pela
ignorância, até a respiração pode agir como uma causa de sofrimento.
Quanto aos estados verbais, o pensamento aplicado e o pensamento
sustentado são os meios para a fabricação de palavras e sentenças ,
enquanto os estados mentais são fabricados pelas sensações – prazer, dor,
nem-prazer, nem-dor e percepções – os rótulos que colocamos nas coisas.

A consciência sensorial é colorida por essas fabricações. E aí – com base


nas condições de ignorância, fabricação e consciência sensorial – o ato da
atenção surge como um evento de um grupo de eventos mentais e físicos
chamados mentalidade-materialidade (nome e forma).

Como se as precondições para a atenção já não fossem complexas o


suficiente, as condições que surgem concomitantemente à mentalidade-
materialidade (nome e forma) adicionam um outro nível de complexidade.
“Materialidade ou Forma” significa a forma do corpo como experienciado a
partir de dentro e delineado pela atividade da respiração. “Mentalidade”
inclui não só a atenção, mas também intenção, novamente; sensação e
percepção, novamente; e contato, que aqui aparentemente significa
contato entre todos os fatores já listados.

Todas essas condições, agindo juntas, são o que ordinariamente colorem


cada ato da atenção para cada um dos seis sentidos: visão, audição, olfato,
paladar e tato, e o sentido da mente que sabe as qualidades mentais e
idéias.

A partir disso – e muito mais poderia ser dito sobre essas condições –
deveria ser óbvio que o simples ato da atenção é qualquer coisa, menos
mera. A atenção é em geral moldada por idéias ignorantes e as ações
intencionais influenciadas por essas idéias. Como resultado, habitualmente
a atenção é sem sabedoria: aplicada às coisas erradas e por razões não
apropriadas, agravando assim o problema do sofrimento, ao invés de aliviá-
lo.

Treinando a Atenção com sabedoria


Então, como a atenção pode ser treinada na outra direção? Obviamente,
ela deveria ser livre das condições de ignorância, mas isto não significa que
ela deveria – ou mesmo que pode – ser inteiramente livre de
condicionamentos. Afinal, isso requereria um ato da vontade, e esse ato de
vontade teria de ser formado por um entendimento correto e pragmático do
sofrimento e das suas causas. E também, esse ato de vontade e esse
entendimento teria de ser trazido à mente continuamente para que a
atenção pudesse ser re-treinada continuamente.

Assim, ao invés de ser despojada de todas as condições, a atenção requer


esse novo conjunto de condições para fazer com que ela se torne sábia. É
por isso que o Buda disse que os fatores correspondentes ao caminho –
entendimento correto, esforço correto e atenção plena correta – estão
sempre juntos com cada passo do caminho. Entendimento correto fornece a
habilidade de ver as coisas sob o prisma das quatro nobre verdades, o
esforço correto ativa o desejo e a intenção de agir habilmente em relação a
esse entendimento, enquanto que a atenção plena correta fornece uma
base sólida para a manutenção desse entendimento e desse esforço na
mente.

Desses três fatores do caminho, entendimento correto vem primeiro, pois é


o antídoto direto para a primeira condição da ignorância. Entendimento
correto não é simplesmente conhecimento sobre as quatro nobres
verdades; é o entendimento que vê as coisas sob o ângulo dessas
verdades. Em outras palavras, para uma pessoa que objetiva o fim do
sofrimento e do estresse, esse entendimento indica os quatro principais
fatores que devem ser buscados a todo momento. Ao mesmo tempo, o
entendimento vê as tarefas e obrigações apropriadas a cada fator: o
sofrimento deve ser compreendido, a sua causa abandonada, a sua
cessação realizada, e o caminho para a sua cessação desenvolvido. Como o
Buda mencionou no seu primeiro sutta, esse conhecimento das tarefas
apropriadas para cada verdade vem em dois estágios. O primeiro, identifica
a tarefa. O segundo, compreende que a tarefa foi completada. Esse
segundo estágio é o conhecimento da iluminação. Entre o primeiro estágio
e o segundo estágio se estende a prática.

O que isso significa é que a prática será marcada por períodos alternados
de ignorância e sabedoria, com a sabedoria crescendo gradualmente cada
vez mais forte e mais refinada. Durante esses períodos de sabedoria, o ato
da atenção será informado pelo entendimento do sofrimento e das suas
causas. Será motivado também pelas intenções – expressadas através da
maneira como nos relacionamos com a respiração, pela atividade mental
referente ao pensamento aplicado e pensamento sustentado e pelas nossas
percepções e sensações – que objetivam trazer o sofrimento para um fim.
Essa combinação do entendimento sábio e da intenção compassiva é o que
transforma o ato da atenção, de causa do sofrimento numa estratégia
saudável: uma atenção curativa. Essa atenção curativa é chamada sábia
por que olha para as coisas de maneira apropriada para seguir adiante com
as tarefas das nobres verdades, focando em quaisquer que sejam as
tarefas que necessitem ser desenvolvidas num determinado momento.

Por exemplo, quando a atenção precisar ser focada na compreensão do


sofrimento, o papel da atenção com sabedoria é ver os agregados – os
componentes do nosso sentido de eu – de tal modo que induza o desapego
em relação a eles.

“Um bhikkhu virtuoso, meu amigo Kotthita, deveria observar com


atenção com sabedoria os cinco agregados influenciados pelo apego
como impermanentes, sofrimento, uma enfermidade, um câncer, uma
flecha, dolorosos, uma aflição, estranhos, uma dissolução, um vazio,
não-eu. Quais cinco? A forma como um agregado influenciado pelo
apego, sensação ... percepção ... formações ... consciência como um
agregado influenciado pelo apego. Um bhikkhu virtuoso deveria observar
com atenção com sabedoria esses cinco agregados influenciados pelo
apego como impermanentes, sofrimento, uma enfermidade, um câncer,
uma flecha, dolorosos, uma aflição, estranhos, uma dissolução, um
vazio, não-eu. Pois, é possível que, um bhikkhu virtuoso, que observe
com atenção com sabedoria esses cinco agregados como impermanentes
... não-eu, possa alcançar o fruto de ‘entrar na correnteza’” [ SN
22.122]

Dar atenção aos agregados dessa forma ajuda a progredir na tarefa do


abandono de qualquer apego aos agregados que causem sofrimento.

Quando a atenção precisa ser focada no desenvolvimento do caminho, o


papel da atenção com sabedoria é alimentar os fatores da iluminação e
esfomear os cinco obstáculos que atrapalham. Aqui é onde a atenção com
sabedoria se aplica à prática do estabelecimento da atenção plena,
levando-se em conta que a atenção plena solidamente estabelecida é o
primeiro fator da iluminação. Assim, um dos primeiros papéis da atenção
com sabedoria é alimentar o desenvolvimento da atenção plena.

A imagem de alimentar ou esfomear está aqui diretamente relacionada com


o insight da condicionalidade que formou a mensagem essencial da
iluminação do Buda. De fato, quando ele introduziu o tópico da
condicionalidade aos jovens noviços, ele o ilustrou com o ato da
alimentação: Todos os seres, ele disse, sobrevivem de comida. Se a
existência deles depende do ato de comer, então, ela termina quando eles
são privados dessa comida. A aplicação dessa analogia ao problema do
sofrimento nos leva à conclusão de que, se o sofrimento depende de
condições, ele pode ser levado a um fim se o esfomearmos das suas
condições.

Na sua expressão mais sofisticada, porém, o insight do Buda, em relação à


causalidade, indica que cada momento é composto de três tipos de fatores:
resultados de intenções no passado, intenções no momento presente e
resultados de intenções no momento presente. Por que muitas intenções no
momento passado podem ter um impacto a qualquer momento, isso
significa que pode haver muitas influências potenciais provindas do passado
– benéficas ou prejudiciais – aparecendo no corpo ou mente a todo
momento. O papel da atenção com sabedoria é focar em qualquer que seja
a influência potencialmente mais benéfica e olhar de tal modo que promova
intenções habilidosas no presente momento.

Alimentando e Esfomeando

O Discurso da Comida, (Ahara Sutta, SN 46.51), indica como a atenção


com sabedoria pode ser aplicada aos potenciais do momento presente para
esfomear os obstáculos e alimentar os fatores da iluminação. Em relação
aos obstáculos ele indica que:

Desejo sensual é alimentado pela atenção sem sabedoria ao tema da


beleza e esfomeado pela atenção com sabedoria ao tema do não
atrativo. Em outras palavras, para esfomear o desejo sensual voltamos
nossa atenção dos aspectos de beleza do objeto de desejo e focamos, ao
invés, no seu lado não atrativo.

Má vontade é alimentada pela atenção sem sabedoria ao tema da


irritação e esfomeada pela atenção com sabedoria ao abandono mental
através da boa vontade, compaixão, alegria altruísta e equanimidade.
Em outras palavras, voltamos nossa atenção dos aspectos irritantes que
irradiam má vontade e focamos, ao invés, em quanta liberdade a mente
experiencia quando pode cultivar essas atitudes sublimes no seu íntimo.

Preguiça e torpor são alimentados pela atenção sem sabedoria aos


sentimentos de tédio, sonolência e preguiça. São esfomeados pela
atenção com sabedoria a qualquer potencial de energia ou esforço no
presente.

Inquietação e ansiedade são alimentadas pela atenção sem sabedoria


à falta de tranqüilidade na mente e esfomeadas pela atenção com
sabedoria a qualquer tranqüilidade mental que estiver presente.

Dúvida é alimentada pela atenção sem sabedoria aos tópicos que são
abstratos e conjecturais e é esfomeada pela atenção com sabedoria às
qualidades hábeis e não hábeis da mente. Em outras palavras, ao invés
de focar em assuntos que não podem ser resolvidos através da
observação no presente momento, focamos em um que pode: quais
qualidades mentais resultam em prejuízo para a mente e quais não.

Em resumo, cada obstáculo é esfomeado pela mudança tanto de foco como


de qualidade da atenção.

Com os fatores da iluminação, no entanto, o processo de alimento consiste


principalmente de mudança da qualidade da atenção. O discurso lista cada
fator – atenção plena, investigação dos fenômenos, energia, êxtase,
tranqüilidade, concentração, (os quatro jhanas), e equanimidade – junto
com a sua base potencial, dizendo que o fator é esfomeado pela atenção
sem sabedoria e alimentado pela atenção com sabedoria. Com exceção de
uma, o discurso não menciona o nome de cada base. Aparentemente, o
propósito disso é desafiar o meditador. Uma vez que o meditador tenha
recebido as instruções para a atenção plena e concentração, ele deverá
tentar identificar na sua própria experiência qual é a base potencial de cada
fator da iluminação.

A única exceção, no entanto, é esclarecedora. A base do segundo fator –


investigação dos fenômenos – é a presença de qualidades mentais hábeis e
não hábeis. Dar atenção com sabedoria para essas qualidades não só
alimenta o fator da investigação dos fenômenos, como também esfomeia o
obstáculo da dúvida, e ao mesmo tempo, fornece o referencial para a
identificação, por você mesmo, das bases para cada um dos fatores da
iluminação restantes.

Desses fatores, a equanimidade é o mais próximo do que é algumas vezes


descrito como mera atenção ou atenção não reativa. Mas até mesmo a
equanimidade é condicionada pelas idéias e intenções. Por exemplo, o Buda
mostra no MN 101 que ao encontrar qualidades não hábeis na mente, o
meditador observará que algumas dessas qualidades desaparecerão
somente através de um esforço concentrado; em outros casos, porém, só
olhar com equanimidade já será o suficiente. Mas até mesmo essa
equanimidade é condicionada por um entendimento do que é hábil e não-
hábil e está motivada para fazer o que é não-hábil desaparecer.

Não Fabricação

De fato, a equanimidade tem vários níveis, e um insight crucial no nível


mais alto da prática é ver que mesmo a equanimidade dos estados
refinados de jhana – nos quais a consciência e seu objeto parecem
totalmente “unificados” – é uma fabricação: condicionada e resultante da
volição. Ao ganhar esse insight, a mente se inclina na direção do que
chamamos de “não-fabricação”, (attammayatta) – literalmente, “não-feito-
disso”, onde nada é absolutamente adicionado aos dados da experiência
sensorial.

A mudança da equanimidade para a não-fabricação é descrita


resumidamente numa passagem famosa:

“Então, Bahiya, você deve treinar assim: Com relação ao que é visto,
haverá apenas o visto. Com relação ao que é ouvido, haverá apenas o
ouvido. Com relação ao que é sentido, haverá apenas o sentido. Com
relação ao que é conscientizado, haverá apenas o conscientizado. Assim
é como você deve treinar. Quando com relação ao que é visto houver
apenas o visto, ao que é ouvido houver apenas o ouvido, ao que é
sentido houver apenas o sentido, ao que é conscientizado houver apenas
o conscientizado, então, Bahiya, você não estará ‘com aquilo.’ “Quando
você não estiver ‘com aquilo,’ então você não estará ‘naquilo.’ Quando
você não estiver ‘naquilo,’ então você não estará aqui, nem além e
tampouco entre os dois. Isso em si mesmo é o fim do sofrimento.” [ Ud
I.10]

Superficialmente, essas instruções podem dar a impressão de estar


descrevendo a mera atenção, mas se olharmos mais detidamente veremos
que tem mais coisa por trás disso. Para começar, as instruções vêem em
duas partes: o conselho sobre como treinar a atenção e a promessa dos
resultados que virão do treino da atenção dessa maneira. Em outras
palavras, o treino também está operando no nível condicionado de causa e
efeito. É algo para ser feito. Isso significa que é moldado por uma intenção,
o que por sua vez é moldado por um entendimento. A intenção e o
entendimento são formados pela parte “resultado” da passagem: O
meditador quer atingir o fim do estresse e sofrimento e, portanto, está
querendo seguir o caminho para esse fim. Assim, com cada nível distinto da
atenção com sabedoria, a atenção correspondente desenvolvida é
condicionada pelo entendimento correto – o conhecimento de que as
intenções no presente são no final das contas a fonte do sofrimento – e
motivadas pelo desejo de colocar um fim a esse sofrimento. É por isso que
o esforço é feito para não adicionar absolutamente nada aos potenciais
vindos do passado.

A necessidade do entendimento correto pareceria inexistente diante das


circunstâncias que circundam essas instruções. Afinal, essas são as
primeiras instruções que Bahiya recebe do Buda, e ele realiza a iluminação
imediatamente depois de recebê-las, portanto as instruções parecem serem
completas por si mesmas. Entretanto, naquilo que antecede essa
passagem, Bahiya é descrito como uma pessoa extraordinariamente atenta
e motivado em relação à pratica. Ele já sabe que a iluminação é realizada
através do ‘fazer algo’ e as instruções vêem em resposta ao seu pedido de
um ensinamento que lhe mostrasse o que fazer agora para o seu bem estar
e felicidade por muito tempo – a pergunta que o MN 135 identifica como a
base da sabedoria e discernimento. Assim, a atitude dele contém todas as
sementes do entendimento correto e da intenção correta. Por que ele era
sábio – o Buda mais tarde o elogiou como o principal entre os seus
discípulos em relação à rapidez do seu discernimento – ele foi capaz de
trazer aquelas sementes para fruição imediatamente.

Um verso do SN 35.95 – dito pelo Buda, expressa o sentido das instruções
para Bahiya – dá uma explicação sobre como Bahiya pode ter desenvolvido
essas sementes.

“Quando, com firme atenção plena, ele vê uma forma, ele não se inflama
com a cobiça pelas formas; ele as experimenta com a mente desapegada
e não permanece agarrado naquilo com intensidade."
“Ele assim permanece com atenção plena de tal modo que mesmo ao ver
a forma, e enquanto sente uma sensação, [o sofrimento] é exaurido, não
acumulado. Para aquele que assim desmantela o sofrimento, é dito que
Nibbana está muito próximo."

Note duas palavras nesses versos: atenção plena e desapegado. A


referência à atenção plena enfatiza a necessidade de continuamente se
lembrar da intenção de não adicionar nada a quaisquer potenciais do
passado. Isso novamente aponta para a natureza da atenção provida de
volição que está sendo cultivada.

Algumas interpretações das instruções para Bahiya sugerem que há um


fator adicionado, de um entendimento metafísico de algo por detrás dos
dados das experiências, mas esse tipo de idéia metafísica – mesmo que
possa constituir uma base para a paixão – será apenas uma entre muitas
bases. A crença de que existe algo no exterior que pode ser agarrado e
possuído pode obviamente formar uma condição para a paixão, mas assim
também a crença de que não existe nada no exterior: quando não existe
nada, não haverá nenhum dano ao ceder ao desejo, o tipo de idéia que
pode justificar todas as paixões prejudiciais. Então, o meditador tem de ser
muito cauteloso para não adicionar hipóteses aos dados da experiência que
possam de alguma maneira, forma ou jeito que seja, encorajar a paixão. E
isso envolve mais do que mera atenção. Isso requer entendimento correto
sobre como a paixão funciona e o que é necessário para derrotá-la.

A noção que temos de quem somos é definida por nossas paixões, (como
indicado nos SN 22.36 e SN 23.2). Mesmo quando não pensamos
conscientemente no “eu” – como quando estamos totalmente imersos
numa atividade, unificados com a atividade – pode existir a paixão por esse
estado de unificação com um forte sentido de “estar aqui”, “ser o fazedor”,
ou "ser o sabedor”, que é uma forma sutil de identidade.

Mas quando o discernimento está afiado o suficiente para ver que mesmo
essa equanimidade é fabricada e condicionada, algo que é feito, (veja MN
137 e MN 140), qualquer paixão por isso pode também ser enfraquecida.
Quando a paixão consistentemente não tem um lugar para pousar, não
existe o núcleo para um “lugar” de nenhum tipo: nenhum “aqui”, nenhum
“lá”, nenhum núcleo para fabricar um sentido de identidade em torno de
alguma coisa em absolutamente nenhum lugar. Isso explica o porque do
estado de não–fabricação ser expressado como destituído de lugar:
“Quando você não estiver ‘com aquilo,’ então você não estará ‘naquilo.’
Quando você não estiver ‘naquilo,’ então você não estará aqui, nem além e
tampouco entre os dois.”

Com o total desaparecimento da paixão, a intenção final de enfraquecer a


paixão pode então ser abandonada. Quando ela é abandonada – sem
necessidade de substituição por nenhuma outra – nada mais é construído.
Isso traz a verdadeira abertura para o Imortal, que está além de todas as
condições – até mesmo das condições de entendimento correto, atenção
plena e atenção com sabedoria.

A extraordinária natureza dessa experiência é indicada pelo verso que


conclui o discurso para Bahiya:

"Onde a terra, água, fogo e ar, grande e pequeno, fino e grosseiro, puro
e impuro – não encontram apoio:

Onde as estrelas não brilham,


             o sol não È visÌvel,
             a lua não aparece,
             a escuridão não é encontrada.
E quando um sábio,
             um brâmane através da sabedoria,
             compreendeu isso de modo direto,

então do material e do imaterial,


             do prazer e da dor,
             ele está libertado."

Quando a pessoa iluminada emerge da sua experiência e recomeça a lidar


com as condições de tempo e espaço, é com uma perspectiva totalmente
nova. Mas até mesmo nesse caso, ele/ela ainda encontrarão utilidade para
a atenção com sabedoria. Como o Venerável Sariputta observa no SN
22.122:

"Um arahant deveria observar com atenção com sabedoria os cinco


agregados influenciados pelo apego como impermanentes, sofrimento,
uma enfermidade, um câncer, uma flecha, dolorosos, uma aflição,
estranhos, uma dissolução, um vazio, não-eu. Apesar de não existir nada
mais a ser feito e nada a acrescentar àquilo que já foi feito por um
arahant, ainda assim, quando essas coisas são desenvolvidas e
cultivadas, elas conduzem a um estado prazeroso no aqui e agora, à
atenção plena e à completa compreensão."

Portanto, é importante compreender que não existe essa coisa de mera


atenção na prática dos ensinamentos do Buda. Ao invés de tentar criar uma
forma incondicionada de atenção, a prática tenta criar um conjunto de
condições habilidosas para moldar e direcionar o ato da atenção para
transformá–la em sábia: verdadeiramente curativa e que verdadeiramente
leva ao fim do sofrimento e estresse. Uma vez que essas condições tenham
sido bem desenvolvidas, o Buda garante que elas serão muito úteis –
mesmo depois de passado o momento da iluminação, todo o tempo, até a
última morte.

O Caminho para a Paz


 

Sila, samadhi e pañña são os nomes dados aos diferentes aspectos da


prática. Praticar sila, samadhi e pañña, significa que praticamos com nós
mesmos. Sila correto existe aqui, samadhi correto existe aqui. Por que?
Porque nosso corpo está bem aqui! Temos mãos, temos pernas, bem aqui.
Aqui é onde praticamos sila. É fácil descrever a lista de tipos de
comportamento errados encontrados nos livros, mas o importante é
compreender que o potencial para todos está dentro de cada um. O corpo e
a linguagem estão conosco aqui e agora. Praticamos a virtude, o que
significa tomar cuidado para evitar as ações inábeis de matar, roubar e má
conduta sexual. Por exemplo, no passado podemos ter matado animais ou
insetos, ou talvez não tenhamos tomado muito cuidado com a linguagem:
linguagem mentirosa significa mentir ou exagerar a verdade; linguagem
grosseira significa que estamos constantemente sendo abusivos ou rudes
com os outros - "idiota", "escória", e assim por diante; linguagem frívola
significa tagarelice sem objetivo, falar de modo estúpido sem propósito ou
substância. Nos entregamos a tudo isso - sem restrição! Em suma,
manter sila significa vigiar a si mesmo, vigiando as ações e a linguagem.

Então, quem será o vigilante? Quem assumirá a responsabilidade pelas


ações? Quem é "aquele que sabe" antes de mentir, ofender ou dizer algo
frívolo? Contemple isso: quem quer que seja "aquele que sabe" é ele quem
deve assumir a responsabilidade por sila. Traga essa atenção para vigiar
suas ações e linguagem. Esse conhecimento, essa atenção, é o que usamos
para vigiar a prática. Para manter sila usamos aquela parte da mente que
direciona as ações e que nos leva a praticar o bem ou o mal. Pegamos o
vilão e o transformamos num xerife. Agarre a mente rebelde e discipline-a
assumindo a responsabilidade por todas as ações e palavras. Olhe para isso
e contemple isso. O Buda nos ensinou a sermos cautelosos com as nossas
ações. Quem é o cauteloso?

A prática envolve o estabelecimento de sati, atenção plena, "naquele que


sabe". "Aquele que sabe" é aquela intenção mental que anteriormente nos
motivou a matar seres vivos, roubar a propriedade de outras pessoas, fazer
sexo ilícito, mentir, difamar, dizer coisas tolas e frívolas e engajar-se em
todos os tipos de comportamento desenfreado. "Aquele que sabe" nos leva
a falar. Está dentro da mente. Foque a atenção plena (sati) - mantendo-a
sempre na memória - nesse "que sabe". Deixe o saber cuidar da sua
prática. Use sati, ou atenção plena, para manter a mente lembrando o
momento presente e mantenha a compostura mental desse modo. Faça a
mente cuidar de si mesma. Faça bem feito.

Se a mente for realmente capaz de cuidar de si mesma, não será tão difícil
vigiar a linguagem e as ações, pois estas são supervisionadas pela mente.
Em outras palavras, manter sila - cuidar das nossas ações e linguagem -
não é uma coisa tão difícil. Mantemos a atenção em todos os momentos e
em todas as posturas, seja em pé, caminhando, sentado ou deitado. Antes
de realizar qualquer ação, falar, ou se envolver em conversas,
estabelecemos primeiro a atenção plena. Devemos ter sati, estar com
atenção plena, antes de fazer qualquer coisa. Praticamos assim até sermos
fluentes. Praticamos dessa forma para que possamos estar a par com o que
estiver acontecendo na mente, até o ponto em que a atenção plena se
torna sem esforço e estamos atentos antes de agir, atentos antes de falar.
É assim que estabelecemos a atenção plena no coração. É com "aquele que
sabe" que cuidamos de nós mesmos. Cuidando da linguagem e das ações,
estas se tornam graciosas e agradáveis aos olhos e ouvidos, enquanto
permanecemos confortáveis e à vontade com essa contenção. Se
praticarmos a atenção plena e a contenção até que isso se torne algo
confortável e natural, a mente se tornará firme e resoluta na prática
de sila e na prática da contenção. Consistentemente iremos prestar atenção
à prática e, assim, alcançaremos a concentração. A característica de estar
inabalável na prática da atenção plena e da contenção é chamada samadhi.
A mente estará firmemente concentrada nesta prática de sila e contenção.
Estar firmemente concentrada na prática de sila significa que há
uniformidade e consistência na prática da atenção plena e da contenção.
Estas são as características dos fatores externos na prática de samadhi. No
entanto, também tem um lado interno mais profundo.

Uma vez que a intenção na mente para a prática, bem


como sila e samadhi, estiverem firmemente estabelecidos, seremos
capazes de investigar e refletir sobre o que é benéfico e prejudicial -
perguntando a nós mesmos: "Isto está certo?" ... "Isso está errado?"
enquanto experimentamos diferentes objetos mentais. Quando a mente faz
contato com diferentes visões, sons, aromas, sabores, sensações táteis ou
idéias, "aquele que sabe" surgirá e estabelecerá a consciência de gosto ou
não gosto, felicidade ou sofrimento, e os diferentes tipos de objetos
mentais que experimentamos. Veremos com clareza e veremos muitas
coisas diferentes. Se estivermos atentos, veremos os diferentes objetos
que surgem na mente e a reação que ocorre ao experimentá-los. "Aquele
que sabe" irá automaticamente tomá-los como objetos de contemplação.
Uma vez que a mente esteja vigilante e a atenção plena esteja firmemente
estabelecida, notaremos todas as reações expressas através do corpo, da
linguagem, ou da mente, na medida em que os objetos mentais forem
experimentados. Pañña é o aspecto da mente que identifica e seleciona o
bom do ruim, o certo do errado, dentre todos os objetos mentais que fazem
parte do campo da consciência. Isto é pañña em seus estágios iniciais que
amadurece como resultado da prática.

Isso significa que começamos a nos apegar ao que é bom ou saudável.


Tememos quaisquer defeitos ou falhas na mente - ansiosos que possam
prejudicar nosso samadhi. Ao mesmo tempo, começamos a ser diligentes e
trabalhar duro, bem como amar e alimentar a prática. Continuamos
praticando assim tanto quanto possível, até que possamos chegar ao ponto
em que estaremos constantemente julgando e criticando todos aqueles que
encontramos, onde quer que formos. Estaremos constantemente reagindo
com atração ou aversão ao mundo ao nosso redor, tornando-nos cheios de
todos os tipos de incerteza e continuamente nos apegando a visões do
modo correto e incorreto de praticar. É como se estivéssemos obcecados
com a prática. Mas não precisamos nos preocupar com isso ainda - nesse
ponto é melhor praticar muito do que pouco. Praticamos muito e nos
dedicamos a cuidar do corpo, da linguagem e da mente. Nunca faremos
demasiado. A prática da atenção plena e da contenção com o corpo, a
linguagem, e a mente, e a distinção consistente entre o certo e o errado é o
que mantemos como objeto na mente. Nos tornamos concentrados dessa
maneira e, estando conectados firmes e inabaláveis a esse modo de
prática, significa que a mente realmente se torna sila, samadhi e pañña -
as características da prática descritas nos ensinamentos.

À medida que continuamos a desenvolver e manter a prática, essas


diferentes características e qualidades são aperfeiçoadas juntas na mente.
No entanto, praticar sila, samadhi e pañña neste nível ainda não é
suficiente para produzir os fatores de jhana - a prática ainda é muito
grosseira. Ainda assim, a mente já está bastante refinada - no lado
refinado do grosseiro! Para uma pessoa comum, não iluminada, que não
tenha cuidado da mente ou praticado muita atenção plena e meditação,
somente esse tanto já é algo bastante refinado. Neste nível, podemos
sentir uma sensação de satisfação ao sermos capazes de praticar em toda a
dimensão completa da nossa habilidade. Isso é algo que veremos por nós
mesmos; algo que deve ser experimentado pela mente do próprio
praticante.

Sendo assim, significa que o praticante já está no caminho, ou seja,


praticando sila, samadhi e pañña. Estes devem ser praticados em conjunto,
pois se algum deles estiver faltando, a prática não se desenvolverá
corretamente. Quanto mais sila melhora, mais firme se torna a mente.
Quanto mais firme for a mente, mais confiante se torna pañña e assim por
diante ... cada parte da prática apoiando e aprimorando todas as outras.
Conforme aprofundamos e refinamos a prática, sila, samadhi e pañña irão
amadurecer juntos no mesmo ponto - são refinados a partir da mesma
matéria-prima. Em outras palavras, o Caminho tem um começo grosseiro,
mas, como resultado do treinamento e refinamento da mente através da
meditação e da reflexão, torna-se cada vez mais sutil. À medida que a
mente se torna mais refinada, a prática da atenção plena torna-se mais
concentrada, concentrando-se em uma área cada vez mais limitada. A
prática realmente se torna mais fácil à medida que a mente se volta mais e
mais para se concentrar em si mesma. Não cometemos mais grandes erros.
Agora, quando a mente for afetada por um assunto específico, surgirão
dúvidas - por exemplo, se agir ou falar de um certo modo será certo ou
errado - simplesmente continuamos a conter a proliferação mental e,
intensificando o esforço na prática, continuamos dirigindo a atenção cada
vez mais fundo dentro da mente. A prática de samadhi se tornará
progressivamente mais firme e mais concentrada. A prática de pañña é
aprimorada para que possamos ver as coisas com mais clareza e com maior
facilidade.

O resultado final é que somos claramente capazes de ver a mente e seus


objetos, sem ter que fazer qualquer distinção entre a mente, o corpo ou a
linguagem. Conforme continuamos dirigindo a atenção para dentro e a
refletir sobre o Dhamma, a faculdade da sabedoria gradualmente
amadurece, e eventualmente ficamos contemplando a mente e os objetos
mentais - o que significa que começamos a sentir o corpo como imaterial.
Através do insight, não estaremos mais tateando ou incertos na
compreensão do corpo e do modo como ele é. A mente experimenta as
características físicas do corpo como objetos imateriais que entram em
contato com a mente. Em última análise, estamos contemplando apenas a
mente e os objetos mentais - aqueles objetos que entram em contato com
a consciência. Agora, examinando a verdadeira natureza da mente,
podemos observar que, em seu estado natural, não há preocupações ou
problemas que prevalecem. É como um pedaço de pano ou uma bandeira
amarrada ao final de um poste. Enquanto estiver por conta própria e sem
perturbações, nada acontecerá.

No seu estado natural não existe na mente amor ou ódio, nem a busca em
culpar outras pessoas. A mente é independente, existindo em um estado de
pureza que é verdadeiramente claro, radiante e imaculado. Em seu estado
puro, a mente é pacífica, sem felicidade ou sofrimento - na verdade, sem
experimentar qualquer tipo de sensação (vedana). Esse é o verdadeiro
estado da mente. Portanto, o propósito da prática é a busca interior,
procurando e investigando até alcançar a mente original. A mente original
também é conhecida como a mente pura. A mente pura é a mente sem
apegos, sem ser afetada por objetos mentais. Em outras palavras, a mente
não persegue os diferentes tipos de objetos mentais agradáveis ou
desagradáveis. Em vez disso, a mente está em um estado de contínua
vigília e conhecimento - completamente consciente de tudo o que está
sendo experimentado. Quando a mente está nesse estado nenhum objeto
mental agradável ou desagradável que seja experimentado será capaz de
perturbá-la. A mente não "se torna" nada. Em outras palavras, nada pode
abalá-la. A mente se conhece como pura. Desenvolveu a sua própria
independência verdadeira; alcançou seu estado original. Como ser capaz de
fazer com que esse estado original surja? Através da faculdade da atenção
plena, refletindo e vendo que todas as coisas são meras condições surgindo
da influência dos elementos, sem que nenhum indivíduo as esteja
controlando. Assim é como ocorre com a felicidade e o sofrimento que
experimentamos. Quando esses estados mentais surgem, eles são apenas
"felicidade" e "sofrimento". Não há dono da felicidade. A mente não é a
proprietária do sofrimento - os estados mentais não pertencem à mente.
Veja por você mesmo. Na realidade, esses não são assuntos da mente, são
separados e distintos. Felicidade é apenas o estado de felicidade; o
sofrimento é apenas o estado de sofrimento. Somos meramente os
conhecedores desses estados. No passado, porque as raízes da cobiça, da
raiva e da delusão existiam na mente, sempre que o mais trivial objeto
mental, agradável ou desagradável, fosse notado, a mente reagiria
imediatamente - nós o tomaríamos experimentando a felicidade ou o
sofrimento. Continuamente estaríamos nos entregando a estados de
felicidade ou sofrimento. Assim é como ocorre enquanto a mente não se
conhece - enquanto não for clara e iluminada. A mente que não está livre é
influenciada por quaisquer objetos mentais que experimenta. Em outras
palavras, não tem refúgio, incapaz de verdadeiramente depender de si
mesma. Recebemos uma impressão mental agradável e ficamos de bom
humor. A mente esquece de si mesma.

Em contraste, a mente original está além do bem e do mal. Essa é a


natureza original da mente. Se nos sentimos felizes por experimentar um
objeto mental agradável, isso é uma delusão. Se nos sentimos infelizes por
experimentar um objeto mental desagradável, isso é uma delusão. Objetos
mentais desagradáveis fazem com que sofremos e os agradáveis nos fazem
felizes - esse é o mundo. Objetos mentais vêm com o mundo. Objetos
mentais são o mundo, dando origem à felicidade e sofrimento, bem e mal,
e tudo o que está sujeito à impermanência e incerteza. Quando alguém se
separa da mente original, tudo se torna incerto - apenas há o nascimento e
a morte sem fim, a incerteza e a apreensão, o sofrimento e a dificuldade,
sem nenhuma forma de deter ou cessar esse ciclo, o ciclo interminável de
renascimentos.

Samadhi significa uma mente firmemente concentrada, e quanto mais


praticamos, mais firme a mente se torna. Quanto mais firmemente a mente
está concentrada, mais resoluta na prática ela se torna. Quanto mais você
contemplar, mais confiante ficará. A mente se torna verdadeiramente
estável - a ponto de não poder ser influenciada por nada. Estamos
absolutamente confiantes de que nenhum único objeto mental tem o poder
de nos abalar. Objetos mentais são objetos mentais; a mente é a mente. A
mente experimenta estados mentais bons e ruins, felicidade e sofrimento,
porque é deludida pelos objetos mentais. Se não for deludida pelos objetos
mentais, não há sofrimento. A mente não-deludida não pode ser abalada.
Simplesmente falando, esse estado que surgiu é a própria mente. Se
contemplamos de acordo com a verdade o modo como as coisas são,
podemos ver que existe apenas um caminho sendo nosso dever segui-lo.
Se nos apegamos à felicidade, estaremos fora do caminho - porque se
apegar à felicidade causará sofrimento. Se nos apegamos à tristeza, pode
ser a causa para o surgimento do sofrimento. Entendemos isso - já
estamos com a atenção plena e com o entendimento correto - mas, ao
mesmo tempo, ainda não somos capazes de abandonar completamente os
nossos apegos.

Então, qual é a maneira correta de praticar? Temos que adotar o caminho


do meio, o que significa acompanhar os vários estados mentais de
felicidade e sofrimento, enquanto que ao mesmo tempo mantendo-os à
distância.

Essa é a maneira correta de praticar - mantemos a atenção plena e a plena


consciência, mesmo se ainda não formos capazes de abrir mão. Esse é o
caminho correto, pois sempre que a mente se apega a estados de felicidade
ou sofrimento, a consciência desse apego está sempre presente. Isso
significa que quando a mente se apega a estados de felicidade, não
elogiamos nem damos valor a isso, e sempre que a mente se apega a
estados de sofrimento, não criticamos. Desta forma podemos realmente
observar a mente tal como ela é. A felicidade não é correta, o sofrimento
não é correto. Há o entendimento de que nenhum desses estados é o
caminho correto. Podemos ser incapazes de abandoná-los, mas podemos
estar com a atenção plena e a plena consciência. Com a atenção plena
estabelecida, não atribuímos indevido valor à felicidade ou ao sofrimento.
Não damos importância a nenhuma dessas duas direções que a mente pode
tomar, sem restar qualquer dúvida. Sabemos que seguir qualquer um
desses caminhos não é o caminho de prática correto, então, em todos os
momentos, consideramos o meio-termo da equanimidade como o objeto da
mente. Quando praticamos até o ponto no qual a mente vai além da
felicidade e do sofrimento, a equanimidade necessariamente surge como o
caminho a seguir. Devemos gradualmente segui-la, pouco a pouco - o
coração sabendo o caminho para além das contaminações, mas, sem
estarmos prontos para finalmente transcendê-las.

Sempre que a felicidade surge e a mente se apega, temos que contemplar


essa felicidade, e sempre que a mente se apega ao sofrimento, temos que
contemplar esse sofrimento. Eventualmente, a mente alcançará um estágio
no qual estará plenamente consciente da felicidade e do sofrimento. Nesse
ponto será capaz de deixar de lado a felicidade e o sofrimento, o prazer e a
dor, e deixar de lado tudo o que é o mundo e assim nos tornamos o
"conhecedor dos mundos". Uma vez que a mente - "aquele que sabe" -
possa abrir mão, poderá se estabelecer nesse ponto.

É nesse ponto que a prática se torna realmente interessante. Onde quer


que haja apego na mente, continuamos insistindo naquele ponto, sem
desistir. Se há apego à felicidade, continuamos insistindo, não deixando a
mente ser levada por esse estado. Se a mente se apega ao sofrimento, nos
agarramos a isso, realmente grudamos e contemplamos imediatamente.
Mesmo que a mente esteja presa em um estado mental insalubre, sabemos
que é prejudicial e que a mente não é negligente. É como pisar em
espinhos: é claro que não procuramos pisar em espinhos, tentamos evitá-
los, mas mesmo assim às vezes pisamos em um. Mesmo que saibamos
disso, somos incapazes de evitar pisar naqueles 'espinhos'. A mente ainda
segue vários estados de felicidade e sofrimento, mas não se entrega
completamente. Sustentamos um esforço contínuo para destruir qualquer
apego na mente - para destruir e eliminar tudo aquilo que é o mundo da
mente.

Algumas pessoas querem pacificar a mente mas não sabem o que é


realmente a verdadeira paz. Não conhecem a mente pacífica! Existem dois
tipos de paz - a paz que vem através de samadhi e a paz que vem através
de pañña. A mente que está em paz através de samadhi ainda está
deludida. A paz que vem através da prática de samadhi depende da mente
estar separada dos objetos mentais. Quando não está experimentando
nenhum objeto mental, então há calma e consequentemente a pessoa se
apega à felicidade que vem com essa calma. No entanto, sempre que há
impacto através dos sentidos, a mente cede imediatamente. Tem medo dos
objetos mentais. Tem medo da felicidade e do sofrimento; tem medo de
elogios e críticas; medo de formas, sons, aromas e gostos.

Quem experimenta a paz apenas através de samadhi tem medo de tudo e


não quer se envolver com ninguém ou nenhuma coisa. As pessoas que
praticam samadhi desse modo apenas querem ficar isoladas em uma
caverna em algum lugar, onde possam experimentar a felicidade
de samadhi sem ter que sair. Onde quer que haja um lugar pacífico, elas se
esgueiram e se escondem. Esse tipo de samadhi envolve muito sofrimento
- as pessoas acham difícil deixar esse estado e conviver com outras
pessoas. Elas não querem ver formas ou ouvir sons, não querem
experimentar nada! Elas têm que viver em algum lugar calmo e
especialmente reservado, onde ninguém venha e perturbe com conversas.
Necessitam um ambiente realmente pacífico.

Esse tipo de paz não produz os resultados esperados. O Buda não ensinou
a praticar samadhi com delusão. Se alguém pratica assim, então pare. Se a
mente alcançou a tranquilidade, use-a como base para a contemplação.
Contemple a paz da concentração em si e use-a para conectar a mente e
refletir sobre os diferentes objetos mentais que a mente experimenta.
Contemple as três características
de anicca (impermanência), dukkha (sofrimento) e anatta (não-eu). Reflita
sobre o mundo todo. Quando tiver contemplado suficientemente, está tudo
bem em restabelecer a calma de samadhi. Pode reentrar
em samadhi através da meditação sentada e depois, com calma
restabelecida, continuar com a contemplação. À medida que ganhamos
conhecimento, usamos para combater as contaminações, para treinar a
mente.

A paz que surge através de pañña é distinta, porque quando a mente se


retira do estado de tranquilidade, a presença de pañña afasta o medo das
formas, sons, aromas, sabores, sensações táteis e idéias. Significa que,
logo que ocorra o contato sensorial, a mente imediatamente tem
consciência do objeto mental. Assim que houver um contato num dos meios
dos sentidos, o deixamos de lado - a atenção plena é apurada o suficiente
para imediatamente abrir mão. Essa é a paz que surge através de pañña.

Quando praticamos com a mente dessa maneira, a mente se torna


consideravelmente mais refinada do que quando apenas
desenvolvemos samadhi. A mente se torna muito poderosa e não tenta
mais fugir. Com tal energia nos tornamos destemidos. No passado
tínhamos medo de experimentar qualquer coisa, mas agora conhecemos os
objetos mentais tal como são e assim não há mais medo. Conhecemos
nossa própria força mental e não temos medo. Quando vemos algo,
contemplamos. Quando ouvimos um som, contemplamos. Nos tornamos
proficientes na contemplação dos objetos mentais. Seja o que for, podemos
abrir mão de tudo. Vemos claramente a felicidade e abrimos mão. Vemos
claramente o sofrimento e abrimos mão. Onde quer sejam vistos, naquele
exato momento abrimos mão. Todos os objetos mentais perdem seu valor
e não são mais capazes de nos influenciar. Quando essas características
surgem na mente do praticante, é apropriado mudar o nome da prática
para vipassana: conhecimento claro de acordo com a verdade. É disso que
se trata - conhecimento de acordo com a verdade sobre como as coisas
são. Esta é a paz no mais alto nível, a paz de vipassana.

Desenvolver samadhi para que possamos simplesmente ficar sentados e


cultivar o apego por estados mentais felizes não é o verdadeiro propósito
da prática. Devemos evitar isso. O Buda disse que devemos lutar essa
guerra, não apenas nos escondermos em uma trincheira tentando evitar as
balas do inimigo. Quando é hora de lutar, realmente temos que sair com
armas em punho. Eventualmente temos que sair dessa trincheira. Não
podemos ficar ali dormindo quando a hora é de lutar. Assim é a prática.
Não podemos permitir que a mente apenas se esconda, encolhendo-se nas
sombras.

Descrevi um esboço da prática. Você, como todos praticantes, deve evitar


ser pego em dúvidas. Não duvide do caminho da prática. Quando há
felicidade, observe a felicidade. Quando houver sofrimento, observe o
sofrimento. Tendo estabelecido a atenção plena, faça o esforço para
destruir ambos. Abra a mão, jogue-os de lado. Conheça o objeto da mente
e continue abrindo mão. Se quiser fazer meditação sentada ou andando,
isso não importa. Se continuar pensando, não importa. O importante é
manter a atenção plena, momento a momento. Se estiver realmente
aprisionado à proliferação mental, junte tudo isso e o considere como um
todo, rompendo-o desde o início, dizendo: "Todos esses meus
pensamentos, idéias e fantasias são simplesmente proliferação mental e
nada mais. É tudo anicca, dukkha e anatta. Nada disso é seguro de modo
algum."

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