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3aEdiçao

brGNOA
Jocimar Daolio
RAFIA

Educação Física e
o Conceito de Cultura

POLEMICAS DO NOSSO TEMPO

AUTORES
ASSOCIADos
INTRODUÇ ÀO

termo "cultura" parece definitivamente fazer parte


O da educação física, fato impensável há duas décadas
ciëncias humanas têm
e que sugere, no minimo, que as
influenciado a área. Depois do predomínio das ciências

biológicas nas explicações sobre o corpo, a atividade fisica


eo esporte por parte da educação fisica, essa tarefa hoje

parece estar dividida com os


conhecimentosprovindos
de outras áreas, tais como a antropologia social, a socio-
currículos
logia, a história, a ciência política e outras. Os

dos de graduação em educação fisica somente
cursos
das cièncias
poucos anos vêm incluindo disciplinas próprias
a ampliação
humanas, e isso parece estar sendo útil para
da discussão cultural na área. As publicações
-

artigos em
utilizam como base de
periódicos, livros, capitulos que
conhecimentos das ciências hu-
análise da educação física
últimos vinte anos. Entim, nãoO
manas têêm aumentado nos

causamais polêmica afirmar que a educação fisica lida com


conteúdos culturais.
2 EDUCAÇÃO FISICA E O CONCEITO DE CULTURA iNTRODUÇÃO 3

Somente a partir da década de 1980, trato pedagogico pela


com o incre uma açao corporal é digna de
mento do debate academico na
educação fisica', o pre- educação física é a própria consideração
e arnálise desta
domínio biológico passou a ser
questionado, realçando a dinâmica cultural especifica do contexto
expressão na
questão sociocultural na
educaçao tisica. Os profissionais onde se realiza.
formados até essa época e, infelizmente, ainda
-

reterenciais das
hoje, em Pensar a educação fisica a partir de
alguns cursos não tiveram acesso àdiscussão da área e Ciências humanas traz
necessariamente a discussäo do
dos seus temas nas dimensões socioculturais. O corpo uma área em que isso era
Conceito de "cultura para
era somente visto como conjunto de ossos e músculos inexiIstente. Evidentemente ainda
até há pouco tempo
e não da cultura; o esporte era apenas
expressão da expressão "cuitura" na
passa se vê muita confusão no uso
tempo ou atividade que visava ao rendimento atlético e ainda é confundido com co-
educação fisica. O termo
não fenômeno político; educação
a fiísica era vista como utilizado de torma preconcetuosa
nhecimento formal, ou
área exclusivamente biológica e não como uma área que sinônimo de
quantificando-se o grau de cultura. ou como
pode ser explicada pelas ciências humanas. classe social mais elevada, ou ainda como indicador de
Tenho afirmado em outros trabalhos que "cultura" é bom gosto. Ouve-se ainda com frequência afirmações de
o principal conceito para a educação fisica, porque todas "mais ou menos cultura", "ter ou não ter cultura", "cuitura
as manifestações corporais humanas são geradas na dina- refinada ou desqualiticada" e assim por diante.
mica cultural, desde os primórdios da evolução até hoje Pretendo avançar na análise do uso do termo "cul-
expressando-se diversificadamente e com significados tura" pelos vários autores da educação fisica nos últimos
próprios no contexto de grupos culturais específicos. C anos. Se a palavra "cultura" tem aparecido com frequèn-
profissional de educação fisica não atua sobre o corpo Ou Cia em várias publicações da área, complementada com
com o movimento em não trabalha com o esporte em
si, as
expressões "tísica", "corporal, "de movimento",
SI, não lida com a ginástica em si. Ele trata do ser humano "motora", "corporal de movimento", isso Ocorre com
e sentidos diterentes
manifestações culturais relacionadas ao corpo
nas suas devida explictação de suas
e sem a

ao movimento humanos, historicamente definidas


como origens, acarretando um uso, por vezes, diletante, re-

JOgo, esporte, dança, luta e ginástica. O que irá definir ducionista, superticial ou, até mesmo, inconsequente da
expressão "cultura".
A leitura critica que tarei da
Em meu livro de 1998, Educação fisica brasileira: autores e dtores e
utilização da expressão
da década de 1980, mostro, por meio do discurso dos principals "Cultura" pelos principas autores da educação tisica partem
autores, como esse debate foi engendrado. do olhar da antropologia sOCial, área que tenho estuda-
CONCEITO DE cULTURA ITPO Á 5
EDUCAÇÃO FiSICA E O

do útimos anos, destacando-se doIS autores, Marcel áreas de estudo


nos
semiologia e a semiótica e r a m na época
Mauss e Clifford Geertz. O primeiro, antropólogo francês, apenas incipientes.
Entretanto, o Caráter inovador e re-
considerado dos pais da dimensão
antropologia moderna; levante na obra de Mauss é justamente
um essa
o se-
gundo, antropólogo amencano contemporâneo. basilar de toda sua análise. Ora. se
simbólica implicita e

Considero importantes para a educação fisica dois con- s u a dimensão


se considerar ocorpo humano apenas na
ceitos de Marcel MauSs. Oprimeiro deles éo conceito de biofisica, não há necessidade de diferenciá-lo por meio
fato social total", cunhado ainda na década de 1920, e que, de seu uso específico e regional, pois, afinal de contas, ob
em sintese. propunha uma totalidade na espécie
da humana
consideração do corpo biológico de todos os membros
ser humano, englobando os aspectos é muito semelhante. Só é possível discutir as especificida-
fisiológico, psicológico
e sociológico. Essas três dimensões estariam
interligadas des de uso do corpo a partir da consideração de que ele
e expressas todas as condutas humanas, não sendo
em
expressa determinados valores de um dado grupo. De
possivel dissociá-las. Ora, para a educação física tradicional fato, quando Mauss utiliza a expressão "eficácia", ele não
essa unio é até hoje problemática, sendo o ser humano o faz acompanhado da expressão "simbólica", como vários
considerado unicamente ou primordialmente como enti- autores da antropologia o farão nas décadas seguintes.
dade biológica, sendo as outras dimensões desconsideradas Entretanto, a ideia de "eficácia simbólica" está visivelmente
ou secundarizadas. prenunciada em sua obra.
O segundo conceito de Mauss relevante para a educa- Para a educação fisica tradicional, essa dimensão sim-
ão fisica refere-se às "técnicas corporais". Essa contribui bólica no interessa, levando a análises que consideram
ção foi profenida como palestra ainda na década de 1930, somentea dimensão eficiente dos movimentos, quer em
embora só tenha sido publicada em I1950, na França e, no termos biomecânicos, fisiológicos, ou ainda em termos
Brasil, somente em 1974. Mauss define técnicas corporais de rendimento atlético-esportivo. De fato, é interessante
Como as maneiras pelas quais os seres humanos, de forma observar na produço da área. pelo menos até a década
de 1970, o uso da palavra "técnica. Considera-se tecnico
tradicional e específica,
utilizam seus corpos. Assim, todo
gesto corporal pode ser considerado uma técnica, pois aquele movimento preciso, econômico, correto. quase

atendeaos critérios de tradição e eficácia. E interessante sempre imitativo dos movimentos de atletas de esporte
que Mauss não se refere explicitamente nesse trabalho
à dimensão simbólica, talvez pelo fato de faltar ainda nas
primeiras décadas do século XX estudos sobre as ques- 2. As principais obras de Marcel Mauss podem ser encontradas na
toes do simbolo e dos significados nas ações humanas. A coletânea Sociologiae antropologia, de 2003
DE CULTURA INTPODUÃO 7
6 EDUCAÇÃO FISICAEO CONCEITO

de alto rendimento. Por oposiçao, os outros movimentos Clifford Geertz proCura romper, ao mnesmo tempo
são tidos como não-técnicos, erröneos, espontâneos, com a visão de cultura originária do lluminismo, a con-

naturais, merecendo, por parte da educação fisica tradicio- cepçãoevolucionista tipica do século XIXeaconcepcão
nal, intervenção no sentido de corrigi-los, aperfeiçoá-los "psicológica". Para a primeira, a dimensão cultural era
e padronizá-los. sobreposta a uma natureza boa do ser humano, como

Tendo priorizado tradicionalmente a dimensão da pregava Rousseau no século XVIlI. Para a segunda, a

eficiência, a educação fisica distanciou-se dos aspectos cultura era produto do estágio evolutivo de cada grupo
estéticos, subjetivos, simbólicos. Considerou o corpo humano, sendo utilizada como critério para a clasifica-
máquina biológica passivel de intervenção técnica e per- ção dos humanos em primitivos ou civilizados. Para a
deu a possibilidade de v -lo.como produtor e express o concepção "psicológica", a cultura coletiva era apenas a
dinamica de cultura. somatória das mentes e produções individuais.
Além da contribuição de Marcel Mauss e comple- Para Geertz, a cultura é a própria condição de vida de
mentar a ela -, a noção de cultura de Clifford Geertz todos os seres humanos. E produto das ações humanas,
também parece fundamental para a revisão do papel da mas é também processo continuo pelo qual as pessoas
educação fisica. Se em Mauss, a dimensão simbólica hu- dão sentido às ações. Constitui-se em processo
suas
mana estava mais inferida do que explicita, em Geertz isso singulare privado, mas étambém plural e público. E
se constitui como estrutura do seu pensamento. Consi- universal, porque todos os humanos a produzem, mas
derando as contribuições da semiótica de Charles Peirce, é também local, uma vez que é a dinâmica específica
Geertz defende uma proposição de cultura eminente- de vida que significao que o ser humano faz. A cultura
mente simbólica, como uma teia de significados, fazendo ocorre na mediação entre os indivíduos, manipulando
Uso da metáfora de Max Weber. Para Geertz, a cultura é padrões de significados que fazem sentido num contexto
pública, porque o significado é público. E a antropologia, específico.
segundo ele, deve ser vista não como ciência experimental Geertz critica a concepção chamada por ele de "es
em busca de leis, mas como ciência interpretativa em tratigráfica", que divide o ser humano em camadas, tendo
busca do significado. o nível biológico como núdleo, superposto pelos estratos
psicológico, social e cultural. Segundo essa visão, o com
ponente biológico humano teria sido formado primei-
3. As ramente, sendo complementado ao longo da evolução
noções gerais da visão antropológica de Geertz estão explicitadas
em seu livro A interpretação das culturas pelos componentes psicológico, social e cultural. Tem-se
(1989).
DE CULTURA
8EDUCAÇÃO FISICAE O CONCEITO TPOUA

nessa perspectiva, a cultura como secundária e comple-


por critérios mais dinámicos e culturais na intervenção
mentar à formação do cérebro humano, como se fosse promovida pela área.
onginána e consequente dele. Cliford Geertz refuta essa A educação fisica, a partir da revisão do conceito
VIsão, defendendo a chamada concepção "sintética", na de corpoe considerando a dimensão cultural simbólica
qual todas as dimensões estão presentes, interagindo defendida por Geertz, pode ampliar seus horizontes
como vanaveis no comportamento humano. abandonando a ideia de área que estudao movimento
Reunindo a contribuição de Marcel Mauss as no- humano, O Corpo tisico ou o esporte na sua dimensão
ções de "fato social total" e de "técnica corporal" - e a
técnica, para vir a ser uma área que considerao ser
contribuição de Clifford Geertz - o conceito semiótico humano eminentemente cultural, continuo constru-
de cultura e sua concepçao de natureza humana , vejoo tor de cuftura relacionada
sua aos aspectos corporais
a possibilidade de ampliar sobremaneira o olhar sobre a Assim, a educação fisica pode. de fato, ser considerada
educação fisica e sobre o olhar desta em direção ao ser a área que estuda e atua sobre a cultura corporal de
humano. Primeiramente, utilizando as noções de "fato movimento.
soial totalea "concepção sintética", pode-se conside Mesmo estudando a área de educação fisica a parti
rar a dimensão cultural como constitutiva da dinâmica antropologia social há vánios anos, devo ressaltar que nunca
humana. Nessa direção, cai por terra a visão tradicional tive a intenção de crnar uma abordagem de educaç o fisica.
da educação fisica como uma ação sobre o corpo fisico, ou cunhar uma nova denominação para a área, apesar de
pois não há dimensão fisica isolada de uma totalidade alguns autores terem se referido a isso, como o fez Mauro
biológica, cultural, social e psíquica. Betti (1995, p. 81), Lino Castellani Filho (1998. p. 65) ou
Podemos também pensar o corpo humano commo Suraya Darido (1999, p. 17). Quando escrevi em meu
dotado de eficácia simbólica, grávido de significados, primeiro livro, Da cultura do corpo (1995), e em alguns ar-
rico em valores dinámicos e
especificos. Podemos vé tigos a expressão "educação fisica plural", ou abordagem
o a partir do seu
significado no contexto sociocultural antropologIca, ou ainda "perspectiva cultural", não estava
onde está inserido. Podemos considerar, ao invés de preocupado em patentear um nome, mas em defender
Suas
semelhanças biológicas, suas diferenças culturais alguns princípios que estava estudando na antropologa
podemos reconsiderar nossos critérios de anáise sobre o sOcial e considerava importantes de serem garantidos na
Corpo, fugindo de padrões preconceituosos que durante prática escolar de educação fisica. A pluralidade era um
mutos anos
subjugaram e excluíram pessoas da prätica deles, a ateridade era outro, a consideração das diferenças
de educação fisica. Podemos substituir padrões inatistas Culturais, um terceiro.
DE CULTURA
10 EDUCAÇÃO FISICA E O CONCEITO

O fato é que o estudo de alguns autores da antropologja Afirmar que a educação físIca é a área que trata da
sOcial permite considerar pontos importantes abordados cultura corporal de movimento parece não causar nais

pelas ciências humanas, abrindo, assim, certas portas para tanta surpresa ou resistência. Resta saber corno autores

a educação fisica, área que, até há pouco tempo, ainda era da área têm trabalhado con este concei-
proeminentes
refém de estudos quase excluSivamente biológicos. De to, tarefa a que me proponho no capítulo que se segue
fato, não se pode negar o avanço recente da educação e que se constitui no principal objetivo deste trabalho.
fisica brasileira com base em conhecimentos das ciências Na sequência, apresento um capítulo final que pretende
humanas, não só da antropologia, mas tanmbém da histó-
perspectivar alguns avanços para a årea. procurando não
ria, da sociologia, da ciència politica e outras. encerrar a discussão mas. pelo contrário, estimular os
Acredito que a abordagem antropológica tem con- leitores e os criticos a contínuas revisões que superem
tribuido e pode ainda muit contribuir para unma revisão as certezas apenas transitórias.
da educação fisica, tornando-a uma área mais dinâmica,
mais original, mais plural. A anàlise cultural tem procura-
do compreender a imensa e rica tradição da área que,
durante anos, a definiu como ela se apresenta hoje e,
ao mesmo tempo, tem procurado entender suas várias
manifestações como expressões de contextos específicos.
Além disso, a perspectiva cultural faz avançar na educação
fisica a consideração de aspectos simbólicos, estimulanddo
estudos e reflexões sobre a estética, a beleza, a subjeti-
vidade, a expressividade, a relação com a arte, enfim, o
significado
Afirmei em outro texto:

Qualquer abordagem de Educação Fisica que ne-


gue esta dinâmica cultural inerente à condição humana,
correrá o risco de se distanciar do seu objetivo útimo:
o homem como fruto e agente de cultura. Correrá o
risco de se desumanizar [DAOLIO, 2001. p. 38].

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