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O passado, o presente e o futuro da Musicoterapia1

Ira M. ALTSHULER, M.D.


Hospital Geral do Condado de Wayne, Eloise, Michigan
Tradução: Marcus Marcello Porto Leopoldino

Qualquer fator ou agente que ajude a prevenir, aliviar ou curar doenças ou que melhore a
saúde física ou mental, pode ser entendido como terapia. Na verdade, promoção e preservação da
vida, como praticado pela própria natureza, é uma forma de terapia biológica. A natureza,
aprimorando constantemente as ferramentas e comodidades para manter e promover a vida, pratica
um tratamento profilático, uma forma básica de terapia.
Minerais, ervas, água, eletricidade, o poder da palavra falada e da música são terapias em
potencial. Cada um deles possui a propriedade em comum de fomentar ou suprimir células vivas.
Nenhum medicamento, com a exceção de produtos glandulares, é capaz de criar novas funções no
organismo humano. A maioria deles age na base tanto da estimulação como da supressão. A música
compartilha desta capacidade com outros agentes terapêuticos.
A cura radical é a forma mais ideal de terapia. Ela é baseada no conhecimento preciso acerca
do processo patológico, assim como a completa apreciação da dinâmica do medicamento. A cura
radical é, entretanto, a exceção e não a regra. O tratamento da difteria com antitoxinas é um bom
exemplo de cura radical. A maioria das terapias trata apenas sintomas pelo fato de a natureza da
maioria das doenças ser ainda obscura.
Se o médico esperasse pelo patologista e pelo farmacologista para abrir caminho para a cura
radical, ele não teria ousado fazer uma prescrição médica até a metade final do século XIX; esta foi
a época do início da farmacologia científica. Ainda assim, prescrições médicas têm sido escritas
durante os últimos 4000 anos.

Uso Empírico
O fato da música não curar radicalmente, não deveria nos fazer abandoná-la como
possibilidade de tratamento. A utilização de um agente terapêutico não pode nem deve ser adiada
para o momento em que sua forma exata de ação, canais de ataque e dosagem precisa sejam
conhecidas. A história da medicina mostra que muitos agentes foram usados empírica e
vantajosamente como remédios sem o conhecimento preciso dos princípios ativos envolvidos. Um
exemplo é o tratamento de doenças do coração com Digitalis, ou fox-glove (ou dedaleira, em
português). Há muito tempo atrás uma velha senhora em Shropshire, Inglaterra, tinha em seu poder
uma receita secreta de ervas para o tratamento de hidropsia (dropsy). Esta receita tinha em si, dentre
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ALTSHULER, Ira. The past, present and future of musical therapy. In: PODOLSKY, Edward. Music Therapy. New
York: Philosophical Library, 1954.
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outras coisas, Digitalis, que depois de investigações subsequentes por médicos provou ser um dos
melhores medicamentos para problemas cardíacos. Assim, a partir de uma vaga apreciação de seu
potencial terapêutico no passado, esta droga tornou-se uma das mais conhecidas e pode agora ser
prescrita em doses precisas.

Palavras Vs. Música


Psicoterapia é a utilização de palavras, seus significados e a dinâmica por trás delas com o
propósito de introduzir uma atitude apropriada para com a vida. O significado das palavras apela
primariamente aos hemisférios cerebrais, no telencéfalo (master brain). Não pode haver qualquer
resistência ou inibição da parte do telencéfalo para iniciar a ação. Depois de passado pelo
telencéfalo, seguem-se reações emocionais e funções orgânicas. Se alguém me xinga, eu me magôo
e fico talvez pronto para brigar. Minhas glândulas e órgãos participam nisso, mas apenas depois do
telencéfalo ter tornado a situação clara para o organismo.
A poderosa forma verbal de terapia, tão habilidosa e bem sucedida, desenvolvida pelos
psiquiatras foi, muito tempo atrás, utilizada pelo poeta, filósofo, escritor, educador e pastor. Sua
influência “terapêutica” antes da sua elevação a uma doutrina científica se fez sentir na educação,
religião, vida social e política e na propaganda.
Analizando os poderes da música, deveríamos ter em mente que a música tem sido um
importante fator na vida instintual, emocional, intelectual, cultural e espiritual das pessoas, e, como
tal, há tempos imemoriais, exerceu uma variedade de influências terapêuticas.
A música, ainda mais do que a palavra falada, dá-se como uma terapia porque encontra pouca
ou nenhuma resistência intelectual e não precisa apelar para lógica para iniciar a ação. Ela é mais
sutil e mais primitiva e portanto seu apelo é mais amplo e maior.

O Ritmo e o Homem
O homem, um produto da natureza, não pode permanecer alheio à música porque som e ritmo,
dos quais a música é composta, têm uma forte afinidade com organismos vivos. Todo o reino
animal é condicionado ao som e ao ritmo, e tais processos vitais como propagação e proteção
dependem deles. Em formas de vida inferiores a sensibilidade à vibração tem a função de audição,
sentido esse que se manteve no homem. A compulsão a responder ao som é vista na evolução de
vários mecanismos para capturá-lo. O peixe, por exemplo, tem um ouvido primitivo, a “linha
lateral”, que percorre toda a extensão de seu corpo, da cabeça à cauda. Ela registra diferenças de
pressão na água e assim age como um aviso da proximidade de um inimigo ou da presença da presa.
Todo peixe produz sons que nós podemos detectar agora com dispositivos elétricos. Algumas
espécies produzem sons puros e longos que alcançam quase uma oitava.
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Muitas espécies de insetos e pássaros transformam certas partes de seus corpos em


“instrumentos musicais”. Até mesmo objetos externos são utilizados por algumas criaturas para
produzir música. Estes “instrumentos”, sem dúvida, têm a intenção de chamar a atenção, provocar
emoções, criar um clima e evocar respostas. Em certo sentido, esta é uma forma de “terapia”
biológica que a natureza pratica para salvaguardar e promover a vida. Alguns insetos fazem uma
música barulhenta, desta forma podem ser ouvidos a uma distância considerável, como no caso dos
escaravelhos. Os sons musicais produzidos por várias criaturas são altamente específicos, isto é,
cada macho produz seu próprio sm que é identificado pela fêmea. A mãe-pássaro usa sinais
especiais para sua cria, e esta para a mãe. Alguns insetos mostram incrível habilidade musical. Nos
tempos antigos certos insetos eram carregados em gaiolas para dar suprir música para
entretenimento. A Esperança (Katydid) macho – uma espécie de gafanhoto – e o grilo comum são
grandes insetos músicos. O canto e a criação de músicas pelos pássaros são bem conhecidos. Eles
improvisam todo tipo de instrumentos. Eles nos dão os sons discerníveis na flauta, no tambor, no
trumpete e no violino.
No curso da evolução, mecanismos de escuta continuaram a evoluir, através do ouvido
sensível dos mamíferos, que orienta o som através do espaço, até o altamente aprimorado ouvido do
homem moderno, que por um lado não tem o mesmo alcance de altura como o do cachorro, mas
que pode distinguir sons mais precisamente e combiná-los para o seu prazer e entretenimento. O
homem, diferente do lagarto, não vive num mundo de vibrações das quais ele deve fugir, mas
aprendeu a controlar o som e usá-lo a seu favor; próximo aos olhos é o mais valioso dos sentidos.
Ondas sonoras para os homens não são sinais de alarme, ou um estímulo bruto de acasalamento,
mas através da intercessão do cérebro literalmente converte matéria em mente. De vibrações a
impulsos neurais, sensações, sentimentos, emoções e apreciações estéticas, espirituais e sociais.
O elemento ritmo na música entra intimamente no problema da musicoterapia. O homem é
essencialmente um ser rítmico. Há ritmo na respiração, nos batimentos cardíacos, na fala, na
marcha, etc. Os hemisférios cerebrais estão num perpétuo estado de oscilação rítmica – dia e noite.
Mesmo a mínima mudança no corpo, como o abrir e fechar das pálpebras, causa uma mudança no
ritmo cerebral. Estas ondas cerebrais tornam-se diferentes em determinados estados emocionais
como febre, intoxicação, infecções e certas condições como a epilepsia.
O “Davises of Harvard”, há algum tempo atrás, observou que “instâncias nas quais sons
iniciaram ondas especiais (Ritmo ou Ondas Beta) e também as aboliram”. Viver em um universo
rítmico adiciona mais responsividade ao ritmo musical. O ritmo produzido pelo homem é uma
réplica dos ritmos cósmico e corporal. A máxima de Descartes “Penso, logo existo” talvez devesse
significar “Ritmo, logo existo”...
O estudo de lendas folclóricas, contos de fadas e mitos – produtos do inconsciente coletivo –
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indicam que o homem sempre atribuiu grandes poderes à música. A música, de acordo com estas
crenças, era tão onipotente que podia restaurar a vida dos mortos, curar os doentes e até afetar o
curso da própria natureza. É interessante que a antípoda do homem primitivo – o filósofo – manteve
crenças similares acerca dos poderes da música. Os antigos filósofos gregos foram profundamente
cientes da influência da música sobre a vida social e política. Platão pensava que nenhuma mudança
poderia ser feita na música sem afetar profundamente as políticas de um estado. Ele acreditava que
malícia, insolência e seus opostos poderiam ser trazidos pela música. Aristóteles concordava com
esta opinião.
O estudo da cultura grega revela que eles reconheceram o valor da música como higiene
mental. Uma das sete musas, Euterpe, era responsável pela profilaxia da música e pela promoção
da civilização. As propriedades terapêuticas da música foram profundamente apreciadas pelos
gregos. Apolo, o Deus do Sol, tinha uma dupla função – a de deus da Medicina e da Música,
enquanto seu filho mítico, Esculápio (ou Asclépio), era o patrono da Medicina.

Abordagem Objetiva
Nos séculos XVIII e XIX, e especialmente com o advento do método experimental, uma nova
orientação surgiu a respeito da influência da música sobre o organismo humano. Uma tentativa foi
feita na direção de uma abordagem objetiva. Relatórios interessantes apareceram na Europa e nos
EUA onde o efeito da música sobre o metabolismo, energia muscular, pressão sanguínea, respiração
e pulso foram descritos. Cannon, o eminente fisiologista de Harvard, acredita que a música provoca
emoções e libera adrenalina e talvez outros hormônios. Relatórios clínicos lidando com observações
feitas em grupos de pacientes psiquiátricos também apareceram. Todos esses experimentos e
observações, apesar de interessantes e valiosos, falharam em levar em consideração dois fatores
fundamentais, a saber, o papel do sistema nervoso central na músico-dinâmica e nos elementos
estruturais da música.
Várias estruturas cerebrais, como o hipotálamo, o tálamo e o cerebelo, em adição aos
hemisférios cerebrais, além do encéfalo, tomam parte não apenas na metamorfose do som e do
ritmo em música, mas também dando conteúdos emocionais e mentais a isso. A compreensão da
anatomia e fisiologia destas estruturas é portanto indispensável. O hipotálamo exerce influência
sobre tais processos fisiológicos como metabolismo, sono, ritmo, etc. Ele está conectado via
caminhos nervosos com o tálamo e, através deste, com outros centros cerebrais. Pode-se ver, então,
como a música pode influenciar o corpo, isto é, via tálamo e hipotálamo.

O tálamo é o centro cerebral sub-cortical feito de massa cinzenta, localizado abaixo do


encéfalo. É a principal estação de retransmissão de emoções, sensações e sentimentos. Acredita-se
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que até mesmo sentimentos estéticos são retransmitidos pelo tálamo para o encéfalo. O tálamo é
conectado ao encéfalo via caminhos nervosos, e a estimulação deste afeta quase imediatamente o
primeiro. Uma vez que o estímulo chega no encéfalo, este envia impulsos de volta ao tálamo e
então um circuito reverberante é colocado em movimento. Este é um achado importante: existem
pacientes neurológicos e psiquiátricos (nervous and mental pacients) que não podem ser alcançados
através da palavra falada (isto é, pelo encéfalo), porque estes pacientes ou são desatentos, distraídos,
confusos, deprimidos, delirantes ou encontram-se num estado de ansiedade o qual torna o contato
verbal próximo ao impossível. É precisamente aqui que a música torna-se útil. A música, que não
depende do encéfalo para ter acesso ao organismo, pode ainda emergir pela via do tálamo – o
retransmissor de todas as emoções, sensações e sentimentos. Uma vez sendo capaz de alcançar o
tálamo, o encéfalo é automaticamente invadido, e ao dar continuidade por certo tempo, um contato
próximo entre o encéfalo e o mundo real pode assim ser estabelecido.

Contato através da Música


Ao lidar com pacientes neuróticos e psicóticos, este é muito importante. Com o intuito de ser
capaz de iniciar a terapia, a remoção de estados de inatenção, ansiedade, tensão e humores mórbidos
é essencial. Este contato temporário que pode ser estabelecido com o paciente através da música
vem do fato que pacientes consideravelmente perturbados ou confusos responderão à música tanto
batendo o pé, mexendo o corpo ou balançando a cabeça. Tais respostas são conhecidas como
reflexos talâmicos. Quando o tempo da música é alterado pode-se observar que o tempo da batida
do pé, mesmo no mais confuso e perturbado dos pacientes, é afetado correspondentemente. O
fenômeno do reflexo talâmico é importante em outro aspecto; ele pode ser utilizado no estudo
objetivo dos efeitos da música sobre pacientes de saúde mental. Experiências clínicas indicam que o
estado de humor e o tempo mental de pacientes psicóticos pode ser influenciado mais prontamente
pela música se uma abordagem especial for empregada. Assim, quando um paciente está deprimido,
a música triste (em tons menores) irá capturar seu estado de espírito (ou o estado de humor) mais
prontamente do que a música alegre. A música alegre pode no início inclusive irritá-lo. Pacientes
hipomaníacos, cujo tônus emocional está aumentado e que pensam, falam e andam de forma
acelerada, podem ser mais facilmente “capturados” por músicas com o tempo rápido.
Somente após ter-se trabalhado “musicalmente” dentro do estado de espírito ou tempo do
paciente é que uma mudança para outro estado pode ser feita; isso, claro, pelo emprego de músicas
especiais. Esta manobra é conhecida como Princípio de “ISO”. “ISO” significa simplesmente
“igual”, isto é, o tempo da música no início deve ter uma relação “ISO” com o estado ou tempo do
paciente. O Princípio de ISO é estendido também ao volume e ao ritmo. Numa enfermaria
barulhenta, por exemplo, algumas vezes o volume da música é aumentado para superar o barulho.
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No trabalho clínico com pacientes internados em enfermaria, onde se encontra todo tipo e
graus de psicose, é importante ter alguma preparação para que o máximo de pacientes possa ser
alcançado de uma só vez. É uma prática no Eloise Hospital fazer um levantamento prévio na
enfermaria antes do início de um atendimento de musicoterapia em grupo. Entre outras coisas,
nestes levantamentos, o número de pacientes, o sexo, a média de idade, a porcentagem de diferentes
nacionalidades e o número de casos apresentando violência, depressão e ansiedade são aspectos
observados. O propósito do levantamento é escolher a música certa para os pacientes da enfermaria.
Assim, p. ex., se existem 15% de polacos, 10% de italianos e 70% de americanos, a música é
escolhida de acordo. Se existem, p. ex., 30% de deprimidos e 70% de hiperativos, a música
novamente é alocada proporcionalmente de acordo com o Princípio de “ISO”. Quando é
conveniente, pacientes depressivos podem ser separados em certo local; arranjos similares podem
ser feitos para se trabalhar com diferentes nacionalidades, faixas etárias, grupos, etc.
Toda possível propriedade terapêutica inerente à música deveria ser utilizada. O instrumento e
o timbre possuem uma dada propriedade terapêutica. Sua natureza e efeitos deveriam ser melhor
estudados. Instrumentos de corda são melhores para músicas tristes (sad music) e deveriam ser
usados no trabalho com pacientes depressivos em uma aproximação musical inicial. Os metais não
se adaptam a pacientes sensíveis a ruídos ou sofrendo de estados de ansiedade. Combinações de
instrumentos podem também ser usadas. Consideramos o trio (violino, cello e piano) uma boa
combinação no trabalho com saúde mental.

Ordem de apresentação
Em adição à manobra “ISO”, a estratégia de abordagem por “níveis” (“level” attacks)
também é praticada no Eloise Hospital na tentativa de captar a atenção, modificar o estado de
humor (mood), estimular o imaginário e a associação – passos fundamentais para iniciar a
psicoterapia. Por certo tempo, nós exercemos a seguinte ordem na exposição de nossos pacientes à
música: começamos com músicas onde há a predominância do ritmo; isso porque o ritmo, como é
sabido, tem um forte apelo às esferas instintivas e primitivas. O ritmo, com sua tensão (stress),
duração e pausa, exerce um efeito fisiológico e psicológico que difere do da melodia; esta última é
apreendida como uma entidade, e exerce, portanto, efeitos inteiramente diferentes. A melodia é
seguida pela harmonia, a qual tem um efeito integrador e está conectada a influências cerebelares. O
cerebelo, como mencionado, é o centro da integração e coordenação, recebendo impulsos do ouvido
e de todos os músculos periféricos. O “acorde” sentido na harmonia é devido à influência do
cerebelo primariamente e ao córtex em segundo lugar. A próxima música executada tem a
predominância de um estado de espírito – triste ou alegre. A intenção é capturar o estado de espírito
dos pacientes e então transformá-lo para o tônus emocional (emotional tone) desejado. Isto pode ser
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alcançado executando antes uma música triste e, então, uma alegre. Músicas de associação pictórica
são tocadas em seguida para estimular o imaginário e associações. Através de tais músicas fica
facilitada a rememoração de experiências passadas. A música deixa não só uma “memória” na
mente mas na esfera emocional em movimentos e músculos. É mais facilmente recordada pelo
paciente que qualquer outra coisa por estar mais firmemente implantada em seu sistema. Recordar
experiências passadas significa trazer de volta à mente dos pacientes realidades básicas. Estes grãos
de realidade agem como bóias, fazendo uma ponte entre a mente do paciente e o mundo externo.
Desta forma proporcionamos um efeito terapêutico especial, mesmo que este tenha vida curta. O
efeito temporário vem com a repetição de tal música todos os dias. No Eloise Hospital temos
sessões diárias em certas enfermarias nas quais a sequência Ritmo, Melodia, Harmonia, Clima
(mood) e Associação pictórica estão incluídos na prescrição musical.
Antes da administração da prescrição citada, uma canção tema (theme song) é executada. O
propósito desta canção é atrair e induzir os pacientes a se juntar ao grupo que se encontra na
enfermaria.
Compositores, que escreveram músicas, naturalmente não sabem que suas composições
podem ser utilizadas para fins terapêuticos. Não existem portanto formas musicais que sejam
puramente rítmicas, melódicas ou pictórico-associativas, mas existem composições que têm
predominância de um ou outro elemento. Assim, p. ex., a Marcha é ritmicamente dominante,
enquanto o Intermezzo é melódicamente dominante. Em Eloise nós temos catalogadas formas
musicais de acordo com a predominância de certo elemento estrutural. No uso da abordagem por
“níveis” (level attacks) não se busca afetar diferentes psicoses, mas os mesmos pacientes em seus
diferentes níveis mentais (mental levels).
A música é prazerosa por ser uma das poucas artes que ajudam a aliviar tensões instintuais e
emocionais. Esta capacidade da música pode ser vista desde os animais inferiores. Neste nível de
vida, sons produzidos na temporada de acasalamento são de natureza mais “sociável” - atrair,
induzir, sugerir, ao invés de forçar. Ambos macho e fêmea, como mencionado, têm a oportunidade
de aliviar suas tensões emocionais pela produção de ritmos e sons. De certa forma, o animal
encontra uma auto-confiança considerável na execução de introduções musicais (process of making
musical overtures). Biologicamente, o canto de um pássaro é o primeiro passo para o processo de
acasalamento e gera assim autoconfiança. Entre os seres humanos, embora mais disfarçado, ainda
assim possui o mesmo intento. O canto de uma canção de amor por um jovem, mesmo sem a
presença de sua amada, oferece algum alívio emocional. O indivíduo apaixonado deve antes se
assegurar interiormente de que existe um objeto de amor e, cantar, fazer ou escutar música reforça
esta esperança.
O Eu (o ego), enquanto canta ou faz música, se expande e escutando e cantando identifica a si
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mesmo com o mundo exterior, realidade, com o estético. O soldado no ataque gritando “Hurrah”
expande seu Eu, faz-se sentir uma parte de seu grupo, e, assim, alivia seu medo.
A música tem sido sempre um grande fator de ajuda na sublimação do sensual, do agressivo e
do destrutivo. A sublimação é mais fácil com a ajuda da música pois ouví-la nos dá mais
oportunidades do que qualquer outra arte para ação muscular e motora – processos há não muito
tempo removidos dos padrões naturais de satisfação instintual. Não há restrições sociais impostas
nem sentimento de culpa no jitter-bugging ou no boogie-woogie, mesmo sendo sua natureza e
manifestações inconfundivelmente sensuais. Mesmo ouvindo uma sinfonia a libido encontra amplo
espaço para expressão e satisfação; isto sem que a pessoa esteja ciente. A frase de Shakespeare “Se
a música é o alimento do amor não parem de tocar. Dêem-me música em excesso; tanta que, depois
de saciar, mate de náusea o apetite”, ganha então um significado adicional.
O impulso narcisista (amar o próprio corpo) encontra ampla satisfação através da música,
especialmente pelo seu ritmo. O ritmo da música, que estimula o ritmo corporal, dá aos seres
humanos a oportunidade de sentirem-se não só mais integrados e organizados mas capazes de se
expressarem fácil e graciosamente.
A música tem a capacidade adicional de reconciliar os mais contrastantes e estranhos
sentimentos. É capaz de provocar e acalmar ao mesmo tempo. Levando-nos próximo ao espiritual
sem, contudo, nos separar do instintual.
A música, em adição às propriedades fisiológicas e psicológicas, possui propriedades que
nenhum outro agente ou mídia têm. Ela tem em si o estético e o espiritual, e, através do intérprete
(performer), o artístico. A música como pura arte sempre exerceu influência benéfica sobre as
pessoas normais. Sua influência não é menor entre neuróticos e psicóticos. Trazer ao paciente boa
música significa adicionar poder terapêutico. Nós insistimos, portanto, que sempre que possível a
música seja administrada por músicos hábeis e talentosos. A pureza da música é ainda mais
essencial que a pureza das drogas.
No futuro o músico será destinado a ter um importante papel no cuidado e tratamento das
doenças mentais, assim como na higiene mental. O musicoterapeuta terá de ser treinado em
psicologia e temas relacionados para assim poder estar mais integrado ao seu trabalho. O Michigan
State College já deu passos nesta direção. Está oferecendo cursos de musicoterapia e um internato
de três meses no Eloise Hospital para graduação.
O músico do futuro será capaz de entender e atender prescrições musicais escritas pelo
psiquiatra. Ele combinará o papel do químico e do farmacêutico. Irá aderir ao seu papel tradicional
de intérprete artístico trazendo ao paciente as propriedades terapêuticas da música travestida em
arte.

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