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DOMINADOR OU DOMINADA:

HOMENS E MULHERES PRESOS NA POSIÇÃO BINÁRIA OPRESSORA1


Gyzele Cristina Xavier2

A violência contra as mulheres e meninas cometida predominan


temente por homens é um fenômeno visto mundialmente, salvo algumas
exceções3, e sua naturalização foi por séculos sustentada pelo determinismo biológico.
No decorrer da história, compulsoriamente, aos homens vem sendo dada a função de
opressor/dominador e às mulheres o papel de oprimidas/dominadas.
Dominação, para Weber (1999), é um fenômeno presente nas mais diversas
relações e é um dos mais importantes para a ação social. Poder e dominação são dois
conceitos que se engrenam, porém não se misturam. A priori pode-se afirmar que, nos
processos de dominação, pressupõe-se o uso do poder, porém, nem toda relação de poder
implica dominação.

Poder significa toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação


social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa
probabilidade. Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma
ordem de determinado conteúdo, entre determinadas pessoas indicáveis.
(WEBER, 1999, p. 33).

Assim, a dominação é o poder legitimado pela aceitação, conferindo autoridade


a quem o exerce. Weber (1999) elenca três tipos de dominação legítima, as quais
dificilmente se apresentam de maneira pura em uma sociedade, podendo habitualmente
coexistir. São elas: dominação de caráter racional (dominação legal, implica convenção
social e observância de ordens estatuídas, direito de mando); dominação de caráter
tradicional (baseada na crença cotidiana do respeito às tradições, sendo o sistema
patriarcal a forma mais comum do estabelecimento desta autoridade) e dominação de
caráter carismático (veneração de uma pessoa e credibilidade às ordens por ela reveladas
ou criadas).
A dominação tradicional é a forma mais antiga de dominação. Possui
enraizamento cultural e é instituída por meio da crença na santidade do senhor e de suas

1
Resultado parcial de pesquisa para dissertação (mestrado PPGIDH UFG, 2020) (XAVIER, Gyzele Cristina.
Do Corpo Extendido ao Julgamento: assassinato de mulheres em Goiânia, 2016. UFG, Goiânia-GO, 2021).
2
Doutoranda e Mestra em Direitos Humanos (PPGIDH/UFG); Perita Criminal da SPTCGO.
3
Como, por exemplo, algumas sociedades primitivas estudadas pela antropóloga Margareth Mead (1901-
1978) em sua obra Sexo e Temperamento (MEAD, 2000).
ordens. Exemplos de dominação tradicional são a monarquia, o Estado Feudal, a
autoridade conferida às divindades, a autoridade sacerdotal e a dominação patriarcal,
sendo que esta última é o tipo mais puro e comum do estabelecimento da autoridade cuja
dominação tem caráter tradicional.
Na concepção weberiana, a associação doméstica é uma célula a partir da qual
as relações tradicionais de domínio são reproduzidas. Na dominação patriarcal, a
autoridade é conferida ao pai, ao chefe da família ou do clã. A fidelidade patriarcal está
intrínseca na educação tanto formal quanto cotidiana, nas relações das crianças com o
chefe da família, e reflete-se nas outras esferas, como na relação chefe-funcionário. O
patriarca seria o correspondente do senhor patrimonial.
No âmbito de cada tipo de dominação, existem níveis de transição, dentre os
quais há um grau maior ou menor de voluntariedade na aceitação. Em muitos casos, o
indivíduo se vê diante de opções (ou ausência delas) que o obrigam a se submeter ao
poder, não por vontade, mas por ausência de alternativas ou condições de exercer suas
escolhas. Podemos contemporizar com Zizek (2010), que levanta a questão da
pseudoescolha, sendo este o lugar em que aparentemente dá-se ao indivíduo a liberdade
de escolher o que lhe aprouver, entretanto, a este mesmo indivíduo é dada apenas uma
quantidade restrita de informações, com as opções quase sempre acarretando situações de
desigualdade. Assim, a dominação, apesar de estar aparentemente revestida de
legitimidade, pode tratar-se de contingenciamento e direcionamento do consentimento e
da liberdade, beneficiando determinada classe, de modo que esta ascenda, detenha e/ou
mantenha o seu poder de domínio em detrimento dos dominados.
Nas palavras de Marx, “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem
como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim, sob aquelas com que
se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 2003, p. 7), daí
o surgimento da alienação da consciência em decorrência da massificação ideológica,
conquistada pelo dominador por meio das superestruturas (cultura, educação, religião),
às quais os dominados estão submetidos. Tanto a obra gramsciniana quanto a
bourdieusiana trabalham a noção dicotômica entre liberdade e necessidade suscitada por
Marx; e, ao pensarem a dominação social através da cultura, expandem o conceito
marxista de ideologia para os conceitos de hegemonia e violência simbólica,
respectivamente, por meio das quais os autores analisam a questão da dominação social,
pensada não apenas enquanto construção de conflito social, mas também como estrutura
socioeconômica, ampliando para a dimensão simbólica e cultural.
Para Gramsci, hegemonia é um tipo particular de dominação consentida, de
modo que as estruturas de poder e autoridade são aceitas como naturais e legítimas,
havendo uma subordinação/sujeição do dominado em relação ao dominador. Neste
processo, a construção da consciência do dominado é baseada nos interesses e
conveniências do dominador. Uma classe impõe ao resto da sociedade um sistema de
significados próprios acerca de como é e como se deve estar no mundo. Impõe-lhe que é
correto uma determinada cosmovisão do mundo, como, por exemplo, a dominação
patriarcal. Isso acontece por meio de uma hegemonia cultural, educando os dominados
para que concebam a forma de ver o mundo construída pela classe dominante como algo
naturalizado (ALVES, A., 2010; ASSUNÇÃO, 2016; GRAMSCI, 2000).

[...] o conceito de hegemonia, a partir de sua dimensão inconsciente, tem uma


série de aproximações com o conceito bourdieusiano de violência simbólica,
já que em ambas as formulações há uma ênfase muito grande a essa dimensão
de um poder que subordina sem, no entanto, ser sempre reconhecido enquanto
tal (por ser confundido com a própria experiência, sendo assim transformado
em senso comum). Este poder oprime com o consentimento daqueles que são
subordinados, ou seja, como é próprio da ação do poder simbólico, ele só é
reconhecido (tem sua força) quando ignorado enquanto tal, visto como
‘‘arbitrário’’ e ‘‘natural’’ (ASSUNÇÃO, 2016, p. 163).

Bourdieu, Chamboredon e Passeron (1999) fizeram uma análise crítica acerca


do sistema de ensino e da cultura em geral e sobre seu papel nas reproduções das relações
de força. Referem-se a este fenômeno como uma ilusão da transparência da consciência,
introduzindo a noção de liberdade contingenciada na mediação da ação social. Chama
este fenômeno de violência simbólica.

A violência simbólica é essa violência que extorque submissões que não são
sequer percebidas como tais, apoiando-se em ‘‘expectativas coletivas’’,
crenças socialmente inculcadas. Como a teoria da magia, a teoria da violência
simbólica assenta numa teoria da crença, ou melhor, numa teoria da produção
da crença, do trabalho de socialização necessário para produzir agentes dotados
dos esquemas de percepção e de apreciação que lhes permitirão perceber as
injunções inscritas numa situação ou num discurso e obedecer-lhes. A crença
de que falo não é uma crença explícita, posta explicitamente como tal
relativamente à possibilidade de uma não-crença, mas uma adesão imediata,
uma submissão tóxica às injunções do mundo, obtida quando as estruturas
materiais daquele a quem a injunção se dirige concordam com as estruturas
implicadas na injunção que lhe é dirigida. (BOURDIEU, 1997 apud
ASSUNÇÃO, 2016, p. 168).

Percebe-se que, para Bourdieu, a violência simbólica é basicamente inconsciente


tanto por parte dos que a exercem como por parte dos que a sofrem. Os espaços sociais
estruturados onde as relações sociais ocorrem, e onde são reproduzidas as visões sociais
de mundo que se pretende incutir aos dominados por parte dos dominantes, são chamados
de campos (campo educacional, jornalístico, historiográfico...), e os conjuntos destes são
chamados de campos de poder. Nestes espaços, ocorrem conflitos pelo comando da
violência simbólica legítima (dominação simbólica), ou seja, luta-se pela detenção do
poder de veiculação e naturalização de determinada visão de mundo (habitus),
transformando ou conservando esse campo de forças, de modo a distribuir posições de
dominância e dominação.

E, portanto, neste jogo dialético de interiorização da exterioridade e


exteriorização da interioridade (Bourdieu, 1983: 60), através da mediação dos
campos e intelectuais, é que a dominação social tende a se perpetuar. É a partir
desta lógica que a violência simbólica se concretiza, sendo, portanto, uma
estratégia que consolida a dominação social com um pequeno dispêndio de
violência física. Como se percebe até aqui a análise da cultura e das lutas
simbólicas inerentes a esta (traduzidas por Bourdieu através dos conceitos de
violência simbólica, campo, habitus, capital e outros), são o eixo central de
suas reflexões, mas, sem, no entanto, reduzir esta mesma produção a uma
perspectiva unidimensional internalista ou externalista. (ASSUNÇÃO, 2016,
p. 167).

Para Assunção (2016), há uma série de aproximações entre Bourdieu e Gramsci,


entretanto, as diferenças residem na questão do nível de interiorização da dominação
social. “Em Bourdieu a interiorização da dominação social, através das violências
simbólicas, é algo muito mais profundo do que a hegemonia, já que dificilmente seria
possível superá-la, pois essa sempre tende à inconsciência (ASSUNÇÃO, 2016, p. 169).
Em sua obra A dominação masculina, Bourdieu (2012) direciona seus esforços
para discorrer acerca da perpetuação histórica da dominação masculina por meio das
estruturas da divisão sexual. Ele ressalta que esta eternização nada mais é do que o
resultado do trabalho conjunto (violência simbólica) das instituições que atuam na
formação e educação das crianças, direta ou indiretamente (campos de poder).
Neste aspecto, a visão de mundo onde reina a dominação masculina é organizada
a partir das diferenças entre o corpo feminino e masculino, em que o pênis é instituído
como símbolo de virilidade, honra e, consequentemente, de poder, pressupondo atributos
sociais e culturalmente diferenciados daqueles atribuídos aos corpos que os não possuem.
São pontos de vistas pertinentes ao corpo masculino, chamados habitus viril e, portanto,
não feminino. Assim, diferença biológica entre os corpos (principalmente anatômica entre
os órgãos reprodutivos externos) justifica, nesta perspectiva, o estabelecimento de
diferença social entre os gêneros e, particularmente, da divisão social do trabalho
(determinismo biológico) (BOURDIEU, 2012).
Segundo Bourdieu (2012), a violência simbólica é desenvolvida mediante
estratégias embasadas na divisão sexual e social do trabalho (ou na definição social do
corpo), e trata-se de um extenso trabalho coletivo de “socialização do biológico e de
biologização do social” (BOURDIEU, 2012, p. 9), em que corpos e mentes se conjugam
para fazer ver uma construção social naturalizada dos gêneros como habitus sexuados,
que vão, a partir daí, para todo o cosmos.

A força particular da sociodiceia masculina lhe vem do fato de ela acumular e


condensar duas operações: ela legitima uma relação de dominação
inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma
construção social naturalizada [...]. O trabalho de construção simbólica [...] se
completa e se realiza em uma transformação profunda e duradoura dos corpos
(e dos cérebros), isto é, em um trabalho e por um trabalho de construção
prática, que impõe uma definição diferencial dos usos legítimos do corpo,
sobretudo os sexuais, e tende a excluir do universo do pensável e do factível
tudo que caracteriza pertencer ao outro gênero [...] para produzir este artefato
social que é um homem viril ou uma mulher feminina. (BOURDIEU, 2012, p.
33).

De tal feita, a dominação masculina se perpetua enraizada no inconsciente


individual e coletivo, detendo o comando simbólico e o poder de atuação sobre o habitus
(visão de mundo), além do monopólio dos campos de poder. Tal engrenagem dificulta ou
impede a aquisição de conteúdo cognitivo e simbólico que possibilite às pessoas pensar
de maneira diversa à estabelecida pela atual conjuntura, de modo que qualquer
movimento no sentido de que uma mulher (dominado) rejeite a posição que lhe foi
oferecida/imposta e assuma uma posição originalmente destinada a um homem
(dominante) será visto como subversão e de pronto considerado uma atitude condenável,
passível de represálias que vão de sutilezas até violências físicas graves.

As regularidades da ordem física e da ordem social impõem e inculcam as


medidas que excluem as mulheres das tarefas mais nobres [...], assinalando-
lhes lugares inferiores [...], ensinando-lhes a postura correta do corpo (por
exemplo, curvadas, com os braços fechados sobre o peito, diante de homens
respeitáveis), atribuindo-lhes tarefas penosas, baixas e mesquinhas [...], enfim,
em geral tirando partido, no sentido dos pressupostos fundamentais, das
diferenças biológicas que parecem assim estar à base das diferenças sociais.
(BOURDIEU, 2012, p. 34).

Assim, dialogando com a perspectiva weberiana, a dominação masculina não se


limita à dominação tradicional, mais particularmente à dominação patriarcal, apesar de
estas estruturas serem as que mais sustentam e difundem tal habitus. Tal visão de mundo
possui dominância também na esfera racional (legal) e até mesmo nas esferas de
dominação de caráter carismático, já que os homens historicamente são os detentores dos
passaportes aos espaços públicos e possuem mais possibilidades de acesso aos
instrumentos educacionais que viabilizam sua interação com este espaço; sendo as
mulheres, ao contrário, condenadas aos trabalhos do ambiente privado, desestimuladas
ou até mesmo impedidas coercitivamente de frequentar espaços públicos e usar recursos
que lhes possibilitem criar empatia das massas por meio de seu carisma.
Walzer (2003) idealiza uma sociedade livre de dominação, que vise harmonizar
liberdade com igualdade, na qual nenhum bem social sirva ou possa servir como meio de
dominação. Pretende ser um igualitarismo congruente com a liberdade. Para isso, nas
palavras de Bourdieu (2012):

Só uma ação política que leve realmente em conta todos os efeitos de


dominação que se exercem através da cumplicidade objetiva entre as estruturas
incorporadas (tanto entre as mulheres quanto entre os homens) e as estruturas
de grandes instituições em que se realizam e se produzem não só a ordem
masculina, mas também toda a ordem social (a começar pelo Estado,
estruturado em torno da oposição entre sua "mão direita", masculina, e sua
"mão esquerda", feminina, e a Escola, responsável pela reprodução efetiva de
todos os princípios de visão e de divisão fundamentais, e organizada também
em torno de oposições homólogas) poderá, a longo prazo, sem dúvida, e
trabalhando com as contradições inerentes aos diferentes mecanismos ou
instituições referidas, contribuir para o desaparecimento progressivo da
dominação masculina. (BOURDIEU, 2012, p. 139).

A partir daqui, podemos observar as várias facetas da categoria gênero em


Bourdieu (2012), o qual problematizou o determinismo biológico enquanto aspecto
inicial da divisão social entre os gêneros, cuja manutenção por meio da violência
simbólica garante a perpetuação da dominação masculina.

ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e


Mouffe. Lua Nova, São Paulo, 80: 71-96, 2010.

ASSUNÇÃO, Marcello Felisberto Morais de. Notas sobre a dominação social em


António Gramsci e Pierre Bourdieu. Sociologia, Revista da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Vol. XXXI, 2016, p. 151-171.

BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude.


Oficio de Sociólogo. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 2012.

MARX, Karl. O 18 brumário de Luiz Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003.

MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

WALZER, Michael. Esferas da justiça – uma defesa do pluralismo e da igualdade. São


Paulo: Martins Fontes, 2003.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 2. ed.


Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 1999.

ZIZEK, Slavoj. “Contra os Direitos Humanos”. Meditações, Londrina, v. 15, n. 1, p. 11-


29, Jan/jun.2010.

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