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GRUPO I
Andam lentamente, mais do que se pode, como quem luta sem forças contra o vento, ou
como quem caminha, também é possível, na pesada e espessa e dura água do mar. Mas não há
água nem vento, só calor, na longa rua onde George volta a passar depois de mais de vinte
anos. Calor e também aquela aragem macia e como que redonda, de forno aberto, que talvez
5 venha do sul ou de qualquer outro ponto cardeal ou colateral, perdeu a bússola não sabe onde
nem quando, perdeu tanta coisa sem ser a bússola. Perdeu ou largou?
Caminham pois lentamente, George e a outra cujo nome quase quis esquecer, quase
esqueceu. Trazem ambas vestidos claros, amplos, e a aragem empurra-os ao de leve, um deles
para o lado esquerdo de quem vai, o outro para o lado direito de quem vem, ambos na mesma
10 direção, naturalmente.
O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada clara, e, quando
os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo numa
mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fetiche1 de George. As suas
feições ainda são incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto das pessoas
15 mortas. Mas, tal como essas pessoas, tem, vai ter, uma voz muito real e viva, uma voz que a
cal e as pás da terra, e a pedra e o tempo, e ainda a distâncias e a confusão da vida de George,
não prejudicaram. Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar.
Agora estão mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olhos largos, semicerrados,
uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de Modigliani 2. Mas nesse tempo,
20 dantes, não sabia quem era Modigliani e outros tais, não eram lá de casa, os pais tinham sido
condenados pelas instâncias supremas à quase ignorância, gente de trabalho, diziam como se
os outros não trabalhassem, e sorriam um pouco com a superioridade dessa mesma ignorância
se a ouviam falar de um livro, de um filme, de um quadro nem pensar, o único que tinham visto
talvez fosse a velha estampa desbotada do Angelus3 que estava na casa de jantar. Com
25 superioridade, pois, e também com certa indignação. Ou seria mesmo vergonha? Como quem
ouve um filho atrasado dizer inépcias4 diante de gente de fora que depois, Senhor, pode ir contar
ao mundo o que ouviu. E rir. E rir.
Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade grande,
onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além-terra, por além-
30 mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde
castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram. Teve
muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se,
divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes? Agora está - estava -,
até quando?, em Amsterdão.
35 Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou menos modestos,
depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. As últimas foram mesmo francamente
confortáveis. Vives numa casa mobilada sem nada de teu? Mas deve ser um horror, como podes?,
teria dito a mãe, se soubesse. Não o soube, porém. As cartas que lhe escrevia nunca tinham
sido minuciosas, de resto detestava escrever cartas e só muito raramente o fazia. Depois o pai
40 morreu e a mãe logo a seguir.
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NOTAS
1fetiche: objeto que suscita grande interesse e atração.
Na folha de respostas, registe apenas as letras – a), b), c) – e, para cada uma delas, o número
que corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.
A referência ao «calor» que se faz sentir na «longa rua» (linha 3) e à aragem de «forno aberto»
(linha 4) sugere um ambiente marcadamente __ a) __.
O desejo de liberdade e independência de George é evidente através da __b)__, na expressão
«perdeu a bússola» (linha 5), reforçada pela reflexão «Perdeu ou largou?» (linha 6).
Para além disso, a referência à «fotografia» (linha 12) demonstra __ c) __.
a) b) c)
1. confortável e acolhedor 1. perífrase 1. a inutilidade de George se manter ligada ao
passado
2. incómodo e perturbador 2. personificação 2. o desencanto de George pelas suas
metamorfoses, ao longo do tempo
3. envolvente e confinador 3. metáfora 3. a ligação de George ao passado, do qual
não se consegue libertar
3. Comente a expressividade das interrogações «Vives numa casa mobilada sem nada de teu? Mas
deve ser um horror, como podes?» (linha 37), no contexto em que ocorrem.
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PARTE B
Leia o soneto e as notas.
4. Identifique o interlocutor do sujeito poético nas duas quadras, relacionando a interpelação que lhe
dirige com o sentido do verso 8.
5. Explicite o sentido dos dois tercetos, tendo em conta o desejo expresso pelo «eu» lírico.
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6. Complete as informações abaixo apresentadas, selecionando a opção adequada a cada espaço.
Na folha de resposta, registe apenas as letras – a), b) e c) – e, para cada uma delas, o número que
corresponde à opção selecionada em cada um dos casos.
a) b) c)
1. os sentimentos de desilusão e 1. o uso de pronomes 1. «minha» (v. 2), «aparto» e
de tristeza do sujeito poético possessivos «nego» (v. 5)
PARTE C
A partir da sua experiência de leitura de A Abóbada, de Alexandre Herculano, escreva uma breve
exposição sobre as características que fazem de Afonso Domingues um herói romântico.
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GRUPO II
Leia o texto e as notas.
https://www.evasoes.pt/cronicas/opiniao-de-pedro-ivo-carvalho-a-empatia-de-catalogo-nas-viagens-que-
fazemos/820109/
NOTAS
1bandarilhas – hastes ornamentadas, usadas para tourear, sendo espetadas no cachaço do touro; farpas.
2
cadência – ritmo.
3
deboche – zombaria; escárnio.
4
regaço – colo.
5
romagem – peregrinação; viagem.
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1. De acordo com os dois primeiros parágrafos do texto, comparativamente com o passado, na
atualidade, verifica-se
(A) o alargamento do número de lugares para onde podemos viajar.
(B) a banalidade na forma como se eterniza os momentos vividos.
(C) a impossibilidade de imortalizarmos todas as nossas viagens.
(D) o hábito de nos fotografarmos uns aos outros para guardar recordações.
4. Com base nas ideias do texto, é possível afirmar que é essencial para o ser humano
(A) mostrar aos outros a sua verdadeira essência.
(B) a vivência discreta de experiências extraordinárias.
(C) a aprovação das suas vivências por parte dos outros.
(D) privilegiar a realização de viagens mais sensoriais.
7. Indique o valor aspetual veiculado por cada uma das expressões seguintes:
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GRUPO III
Observações:
1. Para efeitos de contagem, considera-se uma palavra qualquer sequência delimitada por espaços em branco, mesmo quando
esta integre elementos ligados por hífen (ex.: /dir-se-ia/). Qualquer número conta como uma única palavra, independentemente
do número de algarismos que o constituam (ex.: /2023/).
2. Relativamente ao desvio dos limites de extensão indicados – entre duzentas e trezentas e cinquenta palavras –, há que atender
ao seguinte:
− um desvio dos limites de extensão indicados implica uma desvalorização parcial (até 5 pontos) do texto produzido;
− um texto com extensão inferior a oitenta palavras é classificado com zero pontos.
FIM
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