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1 © Geimar de Lima

BI 101 – Introdução à Bíblia I – Aula 01

CARACTERÍSTICAS DA CANONICIDADE

Esta aula é composta por:


 Vídeo introdutório – três conceitos de cânon
 Texto: Características da canonicidade
 Perguntas para estudo individual

Introdução
Dificilmente um cristão considera questões relativas ao cânon bíblico a não ser quando
confrontado com listas diferentes. Geralmente, cristão protestantes se interessam por esta
questão após a descoberta que a lista canônica adotada pela Igreja Católica Apostólica Romana
inclui os chamados livros apócrifos. Então, neste instante, seu interesse por entender por que
adota 39 livros do Antigo Testamento e 27 do Novo, bem como como foi o processo de
definição de tais livros, surge.
Porém, se assim ocorre com os cristãos em geral, não deve ser o fator motivador
principal para o estudante de teologia. Antes, este deve ser movido ao entendimento sobre a
formação do cânon cristão, porque este é o fundamento de sua reflexão, ensino e apologética.

A definição de cânon
O conceito de cânon atrelado a um conjunto de livros é algo externo às Escrituras. Por
externo, não significa que seja contrário, porém, algo que simplesmente os livros bíblicos não
tratam e, nem mesmo mencionam. O termo “cânon” é grego kanōn e mencionado uma única
vez no Novo Testamento, mas não associado aos textos bíblicos. Tanto nesta utilização do
termo feita por Paulo escrevendo aos Gálatas (6.16), como na utilização de um termo
correspondente em hebraico, qāne, usado principalmente pelo profeta Ezequiel (veja Ezequiel
40), a ideia de uma regra estabelecida ou padrão acompanham os usos de kanōn e qāne. Paulo
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exorta os gálatas a viverem segundo a regra de serem nova criatura (cf. Gl 6.15) e Ezequiel fala
a respeito das medidas ou extensão da nova Jerusalém.
Os empregos dos termos conforme feitos pelo apóstolo e pelo profeta nos ajudam a
entender que a ideia de cânon quando associada a escritos ou livros deve compreender ao menos
duas características: 1) a de regra ou autoridade de um escrito; 2) a de extensão ou lista fechada
de escritos.1
Nesta aula, o objetivo é apresentar a primeira característica, enquanto as aulas
posteriores se dedicam à segunda. É o conceito de autoridade a característica fundamental para
um escrito ser considerado canônico (no sentido de extensão ou lista) ou não.

A Igreja reconhece o cânon, não o estabelece


A concepção de que cânon tem a ver tanto com a autoridade de um livro como com a
sua extensão gera pelo menos três perguntas: 1) quando um livro passa a ser considerado
canônico? 2) quem define sua canonicidade? 3) Por que alguns livros e não outros?
Como dito acima, a questão do cânon associado a escritos é exterior a Bíblia, porém seu
impacto é direto sobre aquilo que denominamos sagradas Escrituras. Para muitos estudiosos2,
só é possível falar em cânon a partir do quarto século, quando o conjunto de 69 livros foi
definido como cânon bíblico. Outros3 entendem que um livro passa a ser canônico no momento
em que a comunidade cristã reconhece sua autoridade espiritual, isto é, no momento em que o
livro dita e orienta a vida da comunidade. Por fim, como há a defesa de que um livro inspirado
por Deus se torna canônico no momento em que o autor inspirado encerra a redação do mesmo.4
Quando se considera que o conceito de cânon implica na identificação de escritos que
são autoritativos para a Igreja e na extensão da lista destes escritos, percebe-se que a adoção de
apenas uma das propostas acima conduz o estudante a alguns problemas. Por exemplo,
considerar que cânon é apenas o produto do quarto século tem conduzido muitos a inferir que
a Igreja é quem estabelece o cânon e que, até este momento, escritos isolados não eram

1
Esta dupla diferenciação também é conhecida na literatura da área como Cânon 1 e Cânon 2. O primeiro
se referindo a uma coleção de livros assumidos por uma comunidade como autoritativos, o segundo ao cânon
fechado, ou seja, em referência à sua extensão.
2
A. C. Sundberg; James Barr, John Barton.
3
Brevard S. Childs, G. T. Sheppard, Iain Provan.
4
Benjamin Warfield, Kevin Vanhoozer.
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autoritativos para a vida da comunidade cristã. Reduzir a canonização de um livro apenas ao


reconhecimento de sua autoridade espiritual por parte da comunidade cristã, também pode
implicar em que livros outrora não canônicos passem a ser assim considerados mediante uma
autoridade derivada da igreja, como o caso dos livros apócrifos incluídos no cânon católico em
1546 pelo o Concílio de Trento5. Por esta razão, a melhor definição de cânon parte de uma
abordagem que contempla o conteúdo canônico tanto em sua autoridade quanto em sua
extensão. Michael Krueger, relacionando as três proposições acima sobre o que determina e o
que é o cânon, afirma:

Se um livro canônico é um livro dado por Deus à sua igreja (definição ontológica),
então, nós naturalmente podemos esperar que a sua igreja o reconheça como canônico
e o use como uma norma autoritativa (definição funcional). E se um livro canônico é
um livro usado como norma autoritativa, nós naturalmente podemos esperar que a
igreja chegasse a um consenso com respeito aos limites em torno de certos livros
(definição exclusiva). E se a igreja alcançou um consenso sobre os limites ao redor de
certos livros, então é razoável pensar que estes são os livros que já eram usados como
uma norma autoritativa, e que também são os livros que Deus intencionou para sua
igreja ter.6

Tal perspectiva demonstra que o status canônico de um livro não é determinado pela
Igreja, mas por Deus. Porém, ao mesmo tempo, não excluí o papel da Igreja. Este, pode ser
resumido nas palavras de Plummer:

[...] para o cristão protestante, o cânon não é uma coleção autorizada de escritos (na
qual a Igreja confere sua autoridade ou aprovação dentro de uma lista de livros).
Antes, o cânon é uma coleção de escritos autoritativos. Os escritos bíblicos têm uma
autoridade inerente como trabalho unicamente inspirado por Deus. Canonização é o
processo de reconhecer esta autoridade inerente, não concedendo-a de uma fonte
externa.7

5
A sessão IV do Concílio de Trento se baseia principalmente na aceitação da autoridade de um escrito
para atribuir-lhe canonicidade: “Vendo que esta verdade e disciplina estão contidos nos livros escritos e nas
tradições orais, que – recebidas ou pelos Apóstolos dos lábios do próprio Cristo, ou dos próprios Apóstolos sob
a inspiração do Espírito Santo – chegaram até nós como que entregues de mão em mão, fiéis aos exemplos dos
Padres ortodoxos, com igual sentimento de piedade e reverência aceita e venera todos os livros, tanto os do
Antigo, como os do Novo Testamento, visto terem ambos o mesmo Deus por autor, bem como as mesmas tradições
que se referem tanto à fé como aos costumes, quer sejam só oralmente recebidas de Cristo, quer sejam ditadas
pelo Espírito Santo e conservadas por sucessão contínua na Igreja Católica”. Uma vez que continuamente foram
reconhecidos pela Igreja Católica, os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque e 1 e 2Macabeus,
foram considerados canônicos por este concílio.
6
KRUGER, Michael. The Question of Canon: challenging the status quo in the New Testament debate.
Downer Groove: IVP Academic, 2013. p. 48.
7
PLUMMER, Robert. The Story of Scripture: How we got our Bible and why we can trust It. Grand
Rapids: Kregel Digital Editions, 2013. p. 73.
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Logo, a igreja não estabelece o cânon, mas o reconhece. Resta identificar quais as
características que levaram a Igreja a reconhecer os 66 livros que compões a Bíblia como sendo
canônicos.

A inspiração determina a canonicidade


Antes de entrar nas características evidenciadas pelo texto bíblico que conduziram a sua
recepção como canônicos, é necessário afirmar que é a inspiração que determina a canonicidade
de um livro. Não é o objetivo desta disciplina detalhar esta doutrina tão importante para a fé
cristã,8 pois a assume como premissa. Só abordamos a temática do cânon, pois acreditamos que
Deus inspirou autores humanos a escrevem determinados livros.
Inspiração é o processo pelo qual Deus concede sua revelação à sua igreja. Ao se revelar
ao autor humano, Deus revela características de sua essência, seus planos e propósitos. Neste
processo, tanto o autor humano como seus leitores são receptores de informações que lhes
seriam ocultas se Deus não se revelasse. Por esta razão, o processo de canonização não pode
ser visto como os receptores determinando o que é autoritativo, mas pelo Deus que se revela a
seu povo, que iluminado por esta revelação, torna-se capaz de distinguir esta revelação especial
de outros escritos desprovidos da autoridade atribuída por Deus.

Características da canonicidade
Norman Geisler e William Nix identificam pelo menos cinco características indicadoras
da canonicidade de um livro: 1) foi escrito por um profeta de Deus; 2) o escritor tem credenciais
concedidas por Deus; 3) fala a verdade acerca de Deus, do homem, etc.; 4) possui o poder
transformador de vidas de Deus; 5) foi aceito/recebido pelo povo de Deus para quem ele
originalmente foi escrito.9 Kruger sintetiza estas características em três grupos: 1) qualidades
divinas; 2) recepção corporativa; 3) autores autoritativos.10

Autores credenciados por Deus


Como visto acima, o principal critério para se considerar um livro canônico é se o
mesmo é um livro inspirado por Deus. A marca dos autores bíblicos é que eles clamam para si

8
A disciplina TS 301 Introdução, Revelação e Teontologia aborda esta doutrina com mais atenção.
9
Cf. GEISLER, Norman; NIX, William. From God to Us: how we got our Bible. Chicago: Moody
Publishers, 2012. p. 148.
10
Cf. KRUGER, Michael. The Biblical Canon. In: Concise Theology Series.
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a autoridade que tem origem no próprio Deus. Basicamente, eles são profetas comissionados
em sonhos e visões e apóstolos enviados pelo próprio Senhor. No Antigo Testamento, enxerga-
se este comissionamento em pelo menos três momentos vividamente descritos: 1) o
comissionamento de Moisés (Êx 3.13-18; 2) o de Josué (Js 1.1-9); 3) o do profeta Isaías (Is 6.1-
13). No Novo, Jesus comissiona os apóstolos, juntando a eles Paulo (At 9.15-16), como aqueles
que eram enviados em seu nome. Até mesmo os livros que não têm como autor direto um
profeta ou apóstolo,11 ou não se identificam claramente seus autores, são reconhecidos como
divinamente autorizados para integrarem o cânon.
Em suma, aquilo que é explicito nos profetas - "Assim diz o Senhor", é visto
implicitamente em todos os 66 livros canônicos, uma das características pelas quais estes foram
reconhecidos pela Igreja em detrimento de outros. Deus falar é tanto fator de diferenciação entre
livros canônicos e não-canônicos, como, de acordo com Frame, da religião verdadeira. Em suas
palavras, "somente na religião bíblica o ser supremo é uma personalidade absoluta. E somente
na religião bíblica o ser supremo fala."12 Geisler e Nix, diferenciando os gêneros literários,
afirmam:

Geralmente, o explícito "assim diz o Senhor" está presente. As vezes, o tom e as


exortações revelam sua [do livro] origem divina. Sempre há pronunciamento divino.
Na literatura mais didática [ensinos], há pronunciamento divino a respeito do que o
crente deve fazer. Nos livros históricos, as exortações são mais implícitas e os
pronunciamentos autoritativos são mais a respeito do que Deus tem feito na história
do seu povo (que é a "História dele"). Se a um livro falta a autoridade de Deus, ele
não era considerado canônico e era rejeitado do cânon.13

Conteúdo verdadeiro e transformador


Os símbolos de fé reformados constantemente exaltam a singularidade do conteúdo das
Escrituras.14 A própria Bíblia assume para si o poder de tornar “o servo de Deus [...] perfeito e
perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.17). Isso é possível porque seu conteúdo
é verdadeiro e transformador.

11
Veja aulas 2 e 3.
12
FRAME, John. A doutrina da Palavra de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2013. p. 72.
13
GEISLER, Norman; NIX, William. Op. Cit. p. 128.
14
A Confissão de Fé de Westminster afirma “a suprema excelência do seu conteúdo, e eficácia da sua
doutrina, a majestade do seu estilo, a harmonia de todas as suas partes, o escopo do seu todo (que é dar a Deus
toda a glória), a plena revelação que faz do único meio de salvar-se o homem, as suas muitas outras excelências
incomparáveis e completa perfeição, são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser ela a palavra de
Deus” (Cap. I, parág. V). E a Segunda Confissão Helvética: “E nesta Escritura Sagrada a Igreja Universal de
Cristo tem a mais completa exposição de tudo o que se refere à fé salvadora e à norma de uma vida aceitável a
Deus; e a esse respeito é expressamente ordenado por Deus que a ela nada se acrescente ou dela nada se retire.”
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A autenticidade do conteúdo, seu ensino a respeito de Deus, suas obras, o homem e a


história, é requisito fundamental para que um livro seja considerado canônico ou não. Diversos
livros não entraram no cânon dos 66 livros bíblicos porque não cumprem tal critério. Muitos
deles foram rejeitados porque seu ensino contradizia o ensino que outros livros reconhecidos
como inspirados apresentavam. A falta com a verdade acarreta na falta do poder transformador
associado à Palavra inspirada por Deus. É a verdade o elemento fundamental para que a vida
daqueles que a leem por meio do livro seja transformada (cf. Cl 1.3-8).

Recebido pelo povo Deus como Escritura Sagrada


A autoridade da Escritura, marcada pela verdade, não é estabelecida pela Igreja, mas
sim pela própria Escritura como Palavra de Deus.15 Coube à Igreja o papel de reconhecer e
receber as Escrituras como autoridade sobre si. Esta recepção não foi imediata, uma vez do
contexto de redação dos livros bíblicos e do progresso histórico deste registro, mas gradual. Os
livros escritos por Moisés foram os primeiros a serem reconhecidos com autoridade divina pelo
povo de Deus. Seguidos pelos demais livros do Antigo Testamento, sempre vistos à luz dos
critérios anteriores, até que a Igreja, já no quarto século, reconheceu os 27 livros que compõe o
Novo Testamento.
John Frame define a autoridade da Bíblia como Escritura Sagrada da seguinte forma:

Isso é o que significa dizer que a Palavra de Deus é autoritativa. A autoridade da


Palavra de Deus varia amplamente de acordo com as muitas funções que listei.
Quando Deus comunica informações, somos obrigados a acreditar nelas. Quando nos
diz para fazer alguma coisa, somos obrigados a obedecer. Quando nos conta uma
parábola, somos obrigados a nos colocar na narrativa e meditar sobre as implicações
dela. Quando expressa afeição, somos obrigados a apreciar e retribuir. Quando nos
promete algo, somos obrigados a confiar.16

15
A Confissão de Fé de Westminster declara: “A autoridade da Escritura Sagrada, razão pela qual deve
ser crida e obedecida, não depende do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus
(a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra de Deus.” (Cap. I, parág.
IV).
16
FRAME, John. A doutrina da Palavra de Deus. p. 73.
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Perguntas para estudo individual


1. O valor religioso de um livro determina sua canonicidade ou a canonicidade do livro
determina seu valor religioso? Por que?
2. Por que o papel da Igreja não é estabelecer o cânon, mas reconhecer o cânon?
3. Os autores do Novo Testamento costumeiramente se referiam ao Antigo Testamento
como Escritura ou Palavra de Deus. Cite textos do Novo Testamento que indicam
reconhecimento da canonicidade do Antigo Testamento por parte dos autores daquele.

Bibliografia
A Confissão de Fé de Westminster.
A Segunda Confissão Helvética.
Os Cânones do Concílio de Trento.
FRAME, John. A doutrina da Palavra de Deus. São Paulo: Cultura Cristã, 2013.
GEISLER, Norman; NIX, William. From God to Us: how we got our Bible. Chicago: Moody
Publishers, 2012.
KRUGER, Michael. The Question of Canon: challenging the status quo in the New Testament
debate. Downer Groove: IVP Academic, 2013.
KRUGER, Michael. The Biblical Canon. In: Concise Theology Series. A serie of the Gospel
Coalition Project.
PLUMMER, Robert. The Story of Scripture: How we got our Bible and why we can trust It.
Grand Rapids: Kregel Digital Editions, 2013.

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