Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
LATINO AMERICANA
C O presente Trabalho: “Não sou índio, Sou Guarani”, foi idealizado após entrevista com o Pajé/Caci-
que (acende fogo) de nome ( branco ) Augustinho da Silva (99), que na oportunidade da participação
da Assembléia Ordinária do CEDIND/Conselho Estadual dos Direitos Indígenas RJ, em Paraty, (27/06/19)
nos concedeu gentilmente uma entrevista, onde teceu comentários falando da natureza viva e do universo
cosmológico/guarani; A relação com os parentes indígenas guaranis; A dificuldade da Livre Circulação do
Povo Guarani e animais como a “onça” no território de Juruá. O texto também faz uma reflexão de mun-
dos opostos: O de Nhanderú, que não delimita cerca e permite a livre circulação de homens e animais no
universo de Juruá. E do território de Juruá com suas cercas e arames farpados, para impedir a livre circu-
lação de homens e animais, nesta vastidão de terras e florestas. E os que ousam pular a cerca sem aviso
prévio, serem mortos sumariamente inclusive com apoio estatal. Recente, com a eleição do Presidente Jair
Bolsonaro: Os “Proprietários de Terra e Grileiros”, tem intensificado o desmatamento em terras indígenas
e contribuindo para o desequilíbrio ecológico. A fala do presidente, tem dado ressonância, uma espécie de
salvo conduto e livre arbítrio, para matar e exterminar todos os seres vivos: ai incluindo homens e animais
da floresta. Nesse trabalho trazemos também: A narrativa do Pajé/Cacique Miguel Karai Tataxi (119) A sua
luta pela paz e convivência pacifica com Juruá em uma “Terra Sem Lei”. Além de um resumo dos principais
problemas nas aldeias guaranis do Estado do Rio de Janeiro. A reflexão do Lançamento do Protocolo de
Consulta Prévia Tekoa Itaxi Mirim, no Centro Cultural de Paraty, com a presença dos guaranis e autoridades
públicas, onde foi elaborado o Protocolo de Consulta Prévia, a ser respeitado por Juruá e representantes da
administração pública. E por último: Um Resumo Conclusivo da militância no CEDIND (Conselho Estadual
dos Direitos Indígenas); A participação nas Assembléias Ordinárias e/ou Extraordinárias realizadas tanto
no contexto urbano na Cidade do Rio de Janeiro, bem como: nas Aldeias em reuniões descentralizadas.
2
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
APRESENTAÇÃO
“vidoAmales
crença na terra sem
teria sobrevi-
à conquista do co-
lonizador português e à
cristianização, que obje-
tivava a doutrinação e o
esquecimento dos seus
valores culturais”. A pe-
sar da colonização e a
perda de ente queridos
por doenças, assassina-
tos, guerras tribais. Os ENTREVISTA COM O PAJÉ /CACIQUE (ACENDE
guaranis ainda mantêm
intacta a sua língua, o
seu saber cosmológico, FOGO) AUGUSTINHO DA SILVA EM SUA ALDEIA EM
“entre grupos de guara-
nis remanescentes” até
os dias atuais. E isso só
ARAPONGA - PARATY/RJ - PATRIMÔNIO.
foi possível graças à luta
incessante e ao fato de
que as comunidades in-
dígenas são sociedades
O que percebemos
hoje em pleno
século XXI, é que o
diram de usar o seu
idioma “tupi-guarani”
por imposição do
de mídia. As comu-
nidades: Rocinha,
Jacarezinho, Maré e
tileza das suas pala-
vras, em reafirmar a
identidade guarani;
naturalmente contra o projeto de domesti- Marques de Pom- Alemão, concentram A dificuldade da coe-
estado, aí incluindo: a cação para transfor- bal, em 1757. Ontem o maior número de xistência pacifica no
igreja, o governo e esta- má-los em mão de como hoje o projeto indígenas autodecla- universo de Juruá da
do. Com relação a aspec- obra barata: ontem governamental de rados na cidade. Ou comuna guarani. Me
to acima descrito, Pierre para coroa portu- civilizar os corpos seja: cerca de três fez refletir, que ser
de Clastres vai dizer: guesa, e hoje para negros e indígenas mil indígenas resi- guarani: antecede
os proprietários de persiste nos nossos dentes na favela da a presença do colo-
terras, não mudou dias. Civilizar é obri- Maré se declararam nizador português.
nos dias atuais. Mas gar os índios a sub- indígenas. Sabemos E que seu modo de
"E isso só foi possível a pesar desse qua- meterem a Lei do Es- que Juruá estrategi- vida simples, sua
dro desanimador, as tado; Tomar os seus camente desqualifi- reza, idioma e cos-
graças à luta incessante comunidades afro- territórios; Submetê- cou os descendentes mosensação estão
indígenas resistem e los a trabalhos aná- afro-indígenas para à frente do nosso
e ao fato de que as estão vivas tanto nos logos a escravidão; que desconhecendo tempo e da sua épo-
quilombos, aldea- E, assimilá-lo para a sua identidade, raiz ca. A luta pela de-
comunidades indígenas mentos e centros ur- tomar suas terras histórica, não pos- marcação de terra
são sociedades banos. O projeto de despojando da suas sam lutar por seus continua presente
ontem era dizimar, aldeias. Restou aos direitos. O etnocídio nos dias atuais, sem,
naturalmente contra o assimilar, mantê-lo afro-ameríndios re- que floresceu ontem contudo, a nação
como mão de obra sistirem nas favelas nesses 521 anos da brasileira acenar po-
estado, aí incluindo: barata para a burgue- das grandes cidades, invasão portuguesa, sitivamente um pleito
sia emergente. Mas quilombos, e/ou em persiste em nossos legitima das comuni-
a igreja, o governo e apesar do quadro algumas aldeias de- dias. Ontem e hoje, dades andinas gua-
estado" desanimador, os po- marcadas ou não. A os indígenas, os rani. A pensar pela
vos da floresta conti- sobrevivência com- guaranis resistem às representação po-
nuam lutando todos prometida por es- investidas de Juruá, pular no parlamento
os dias em contrapo- cassez de alimentos, mantendo as suas brasileiro, os povos
sição ao discurso de despojamentos, faz tradições e crenças, negros e indígenas
[é...] “Não há rei na tribo,
mais um chefe que não
um chefe de Estado.
integração e domes-
ticação. E a resistên-
cia vem dos quilom-
os afro-indígenas mi-
grarem das aldeias
e quilombos, para a
em contraposição ao
deus cristão. Para
sobreviver no mundo
são sub-represen-
tados e alijados do
processo de decisão.
Que isso significa? Sim- bos, aldeamentos, periferia das grandes de Juruá, os guara- Para impedir a ma-
plesmente que o chefe contexto urbano, se cidades, dando lugar nis mantém o idioma nutenção da floresta
não dispõe de autorida- contrapondo a Ju- aos “quilombos” nos bilíngüe: guarani e em pé, face a ganân-
de alguma, alguma, de ruá. Com relação a centros urbanos e/ou português. Pois, todo cia por lucros, cria-
qualquer poder de coer- comuna guarani. A nas “Aldeias” como cidadão guarani, tem ram o “Marco Tem-
ção, de nenhum meio busca ainda hoje é é o caso da “Aldeia nome guarani. Ao en- poral”, onde alegam
de dar ordem. O chefe pela valorização do Maracanã” e “Aldeia trevistar o Pajé/Ca- que para ter direito
não é o comandante, seu modo de vida; O Vertical” no Conjun- cique (acende fogo) a agricultura familiar,
as pessoas da tribo não respeito ao outro, ao to Zequeti, Estácio, Augustinho da Silva terra, e floresta em
têm nenhum dever de ser e a natureza. Os Centro do Rio. Se- em sua Aldeia em pé, tinham que estar
obedecer. O espaço de guaranis resistem e gundo o último sen- Araponga. O mesmo no território antes da
chefia não é lugar de resistiram à centrali- so (2010) IBGE, em fez questão de di- CRFB/88; Uma abe-
poder, e a figura (muito zação da coroa por- levantamento feito e zer: “Não Sou Índio, rração.
mal designada) do che- tuguesa, que impe- divulgado na gran- Sou Guarani”. A su-
fe selvagem não prefi-
gura em nada a de um
futuro deposta. Não é "A luta pela demarcação de terra continua presente nos dias
certamente da chefia atuais; só que agora tem o Marco Temporal, inventado pelo
que se pode deduzir
o pode estatal em ge- (JURUÁ) homem branco".
ral”. (Clastres, pag.199,
1979)
3
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
"O Conselho indígena tem uma participação paritária e tem que ter
consenso para resolver os assuntos. Falta capacitação aos professores
sobre o saber indígena. E por mais que a gente se esforce, depende de
orçamento, de dotação orçamentária para formação de professores".
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
“Não deixamos a criança chorar, pois ela pode alertar o inimigo, a onça”, retrucou.
“vaiAiservar
o cacique vai ob-
o que Juruá
fazer. Ficamos na
tocaia, aguardando
os acontecimentos
até o dia clarear. De-
pois de estudar e ob-
servar... agente sabe
o que fazer”, con-
ta. Continua: “Não
deixamos a criança
chorar, pois ela pode
alertar o inimigo, a
onça”, retrucou. “Ai o
pajé fala: Não deixa
a criança chorar para
não alertar a onça”.
Perguntei: Então tem
que cuidar da criança
pra ela cessar de cho- costumes da Aldeia, começaram fumar o vai para casa dela, nas de calça compri-
rar, certo? Mas, por e o mesmo acrescen- Petyngua; A pajé em de Juruá e não vol- da, blusa comprida...
que a criança chora tou: “Os jovens de momento de Cura, ta”, reclama. “Olha, mudou muito”, confi-
indaguei? “A criança hoje não são como limpou o território aqui as meninas não denciou. O Pajé filho
chora por que está antigamente. Não com sua espirituali- podem vestir calça do fogo completou:
doente, com raiva da pensam em cuidar dade elevada. “Tive de homem, só vesti- “Como é que você vai
mãe e por isso ela da mãe e do pai. São oito, mas quatro mo- do. Mas se ela for à ficar com práticas de
chora. Ai a gente fala autônomos para deci- rreram e só restam cidade ela pode ir do Juruá dentro da casa
pra mãe cuidar, rezar, dir as coisas. Quando quatros. Eu tenho jeito que quiser, mos- de reza... não pode”,
para não chorar” es- pensam em sair da vinte netos. Mas, fora trando tudo, menos murmurou. Aprovei-
clarece. Por exemplo: aldeia, vão embora o Nino, os outros es- na Aldeia”, ponde- tou para lembrar-se
“Você recebe uma sem escutar os pais”. tão fora da Aldeia, rou. Nesse instante da irmã: “Eu tenho
notícia ruim para ir re- Questionei se não morando em territó- do diálogo, apareceu sete irmãs, mas não
solver um problema. seria influência dos rio do Juruá. Tenho seu filho o Nino, vice sei onde elas es-
Ai você diz: e agora: celulares, o modo de uma irmã e familiares Cacique, de bermu- tão. Por que ela não
Como vou resolver ser de Juruá? Mas que estão morando da, em deslocamento senta aqui na minha
isso nessa noite escu- uma vez balançou a em Niterói, na Mata para plenária. “Olha frente para conver-
ra, nesta escuridão? cabeça em sinal de Verde Bonita”. Dando ele pelado”, risos. sar sobre as coisas?
Bom, ai aconteceu concordância. Per- seqüência ao dialogo Também no mesmo questionou. “Quando
um acidente e você guntei sobre a escola acrescentou: “Está instante apareceu tem dinheiro vai to-
sai às tantas da noi- na aldeia com a fal- vendo aquela meni- sua companheira, mar cerveja, ir pro fo-
te. E, de repente você ta de professores o na de 12 anos, minha Marciana. E apro- rró e esquece de tudo
tem aquele medo de mesmo respondeu? neta. Antigamente o veitei para perguntar da família, e não vem
ir... algo diz para você “A escola está sem pai pegava pela mão sobre usar saia e ca- aqui”, reclamou. Per-
não ir... e você não professores, sem e apresentava ao pa- lça cumprida, como guntei se elas esta-
vai” retrucou. Indago apoio do governo. rente para casar. Cla- descrita por August- vam proibidas de vir
se não é o sexto sen- Olha, meu filho Nino ro, primeiro os pais inho. Ela respondeu: a aldeia. Ele baixou
tido falando? Concor- tem quatro filhos e conversavam com os “Nhanderú mandou a cabeça resmun-
dou e acrescentou: ele não quer os filhos pais para um acordo. vestir assim e não do gando: “Não, não...
“Bom, é bom não ir, estudando na escola E depois que o filho jeito de Juruá. Ho- Hoje eu tenho uma
pois, pode aconte- de Juruá. Meu filho constrói a casa, eles mem também tem irmã que casou com
cer algo com essa quando estava lá, ob- vão morar juntos e que vestir calça com- Juruá e está aqui em
pessoa”, advertiu. Ai, servou que os filhos um cuida do outro”. prida” disse. Emen- casa... está casada a
perguntei: por que as dos brancos só que- E questionei se se- dando disse Augus- vinte anos, e não es-
pessoas procuram rem farra, namorar e ria bom hoje em dia? tinho: “Também não queceu da mãe. Hoje
a cura com o pajé e ele não quer essa in- “Eu achava bom, pode ter cabelo com- ela veio ajudar a mãe
por quê? “É para fluência para seus fil- pois, o jovem não sai prido, só a menina”, em alguma coisa...
resolver algum pro- hos” lamentou. Sobre da comunidade por emendou o cacique. na cozinha fazendo
blema de saúde, uma sua família, perguntei que tem que cuidar Continuando: “Meu alguma coisa”, mur-
cura espiritual, algo quantos filhos, tem? da menina na Aldeia. pai falava para minha murou. E o que vocês
assim”, comentou. guida, passou-se a Porém, os jovens irmã. Se você usar vão fazer depois que
Com relação ao êxo- Celebração de Inau- estão muito desobe- calça, você vai virar nós do CEDIND, for
do dos jovens para guração da Casa de dientes, você fala homem, e minha irmã embora:
as grandes cidades, Reza, com cânticos mais ele não te es- com medo não usava.
perguntei o motivo do de louvor a Nhande- cuta. Se o rapaz en- Em outras aldeias,
desinteresse pelos ru Ete; Os Xondaros contra uma moça ele você ver várias meni-
7
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
“Nhanderú”.
Vamos nos reunir e fazer uma
contemplação, vamos agradecer
E o que o cacique achou
Aldeia, na casa de reza”, reclamou.
Falando da sua relação com a ances-
tralidade (acende fogo) comentou:
Queda do Céu, disse: “O Xapiri, o en-
cantado da floresta quando está com
raiva ele vem com uma espada cor-
do CEDIND? “Muito bom. Graças a “Quando eu tinha treze anos o pai tando tudo com uma faca. Ele pode
Nhanderú vocês estão aqui discutin- da minha mãe morreu. E disseram se transformar em uma praga, um
do os problemas, ajudando os tra- para eu ficar como guardião da casa terremoto, uma chuva intensa que
balhadores, discutindo quais são os de reza como um “Xondaro”. Ai com destrói tudo, cortando tudo que vem
problemas e como resolver. E isso é uma varinha na porta da casa, com e ver pela frente. Nesse momento o
tudo é por causa de Nhanderú. Nós movimentos circulares passava a va- pajé/cacique observou com cuida-
Já fizemos três reuniões aqui, e vou rinha antes das pessoas entrarem na do as palavras e mais uma vez e ba-
participar mais, fazer contato”, con- casa” salientou. E ninguém chegava lançou a cabeça, refletiu e perplexo,
fidenciou. Finalizando o diálogo com para entrar... Questionei? “E quan- disse: “Eu faço isso para que a pes-
o pajé (acende de fogo). Perguntei do chegava a hora dos convidados soa não entre com aquele peso, com
sobre a escola Guarani aqui na Al- entrarem...todos em fila... entravam as energias negativas” adiantou. Ai
deia Araponga que não conta com de um a um”, confidenciou. “Eu dizia retruquei? Isso para as coisas negati-
professor para ensinar as crianças, para a pessoa: agora abriu para você vas ficam fora da casa de reza? “Sim
dentro da cosmologia Guarani para entrar. E logo em seguida peço para é isso”, confirmou. E quando entram
se contrapor os ensinamentos Juruá: outra pessoa entrar... E mais uma o que fazem? “Dão boa noite para o
“O branco fala muito do pensamen- vez, eu levanto a vara em círculo ao pajé todos juntos. Nos conversamos
to do Juruá. E isso influencia nossos lado da pessoa... ela levanta as duas sobre o que aconteceu no outro dia,
jovens que pensa em ter uma profis- mãos... ai eu deixo entrar. Perguntei os problemas, as dificuldades com
são... em estudar as coisas do bran- se era para afastar os maus espíritos. Juruá”, concluiu.
co e pensa: vou ser motorista... ser E ilustrei falando de Davi Kopenawa,
polícia... e esquece o que vai fazer na Líder Yanomami que no seu Livro a
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO
Análise conclusiva
A narrativa da luta
dos Guaranis
Mbay, apontam para
Reinaldo Potiguara e Cacique Miguel Karai
Imagem, fotografias e texto: Reinaldo de Jesus Cunha (Reinaldo Potiguara) - reinaldopotiguara@gmail.com - Presidente da AULA (Associação Universitária Latino Americana) - www.aula.org.br
Diagramação: Leonardo Lopes - leonardo@asfunrio.org.br
10
NÃO SOU ÍNDIO SOU GUARANI & A LUTA NATURAL CONTRA O ESTADO