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Os Kadiwéu

ALUNO(A) _________________________________________
Os Kadiwéu

Conhecidos como "índios cavaleiros", por sua destreza na montaria, guardam


em sua mitologia, na arte e em seus rituais o modo de ser de uma sociedade
hierarquizada entre senhores e cativos. Guerreiros, lutaram pelo Brasil na Guerra
do Paraguai, razão pela qual, como contam, tiveram suas terras reconhecidas.

Desenho: J. B. Debret, 1834


 
A sociedade ancestral
Também conhecidos como "índios cavaleiros", integrantes da única "horda"
sobrevivente dos Mbayá, um ramo dos Guaikurú, guardam a lembrança de um
glorioso passado. Organizados numa sociedade que tinha num extremo os nobres
e no outro os cativos, viveram do saque e do tributo sobre seus vizinhos, dos quais
faziam depender sua própria reprodução biológica, uma vez que suas mulheres não
geravam filhos ou permitiam a sobrevivência de apenas um, quando já estavam no
final de seu período fértil.
Estas mulheres dedicavam-se à pintura
corporal e facial, cuja especial disposição dos
elementos geométricos Lévi-Strauss considerou
como característica das sociedades hierárquicas.
Desenhos que impressionam pela riqueza de suas
formas e detalhes, a que temos fácil acesso
através da vasta coleção recolhida por Darcy
Ribeiro, reproduzida no livro que publicou sobre os
Kadiwéu.
Os capturados em guerra no passado,
preferencialmente crianças e mulheres, eram
incluídas nesta sociedade sob uma categoria
específica, a de "cativos", ou gootagi (nossos
cativos), no dizer Kadiwéu.
Os Guaikurú-Mbayá fizeram cativos de diversos
outros povos indígenas, sobretudo aos Xamakôko,
Foto: Museu do Índio, 1948
habitantes de território paraguaio, sua mais importante fonte. Também fizeram
cativos aos brancos, portugueses ou espanhóis, brasileiros ou paraguaios,
conforme registrou a crônica histórica e a memória Kadiwéu.
Os Mbayá mantiveram ainda uma outra qualidade de relação, aquela que
estabeleceram com os Terena (um subgrupo dos então chamados Guaná ou
Txané), sociedade também dividida em estratos. Consentiam o casamento entre
seus nobres e as mulheres de alta estirpe Terena, adquirindo, por meio deste, o
direito sobre as prestações de serviço, sobretudo produtos agrícolas, advindos da
produção deste último povo.
Na Guerra do Paraguai, escolheram lutar pelo Brasil e tiveram suas terras
reconhecidas. A adoção de um vestuário "country" pelos homens Kadiwéu da
atualidade revela seu apego a um modo de vida apoiado no uso e criação de
cavalos, de que ainda mantêm rebanhos, embora bem menores que os do
passado.

 Língua

Ceramista kadiwéu. Foto: Mônica Pechincha, 1992


Os Kadiwéu pertencem à família lingüística Guaikurú, na qual se incluem
outros povos do Chaco, que são os Toba (Paraguai e Argentina), os Emók, ou
Toba-Mirí (Paraguai), os Mocoví (Argentina), os Abipón (extintos) e os Payaguá
(extintos). Dentre estes grupos Guaikurú, os Kadiwéu são os mais setentrionais e o
único localizado a leste do rio Paraguai, no Brasil. Alguns velhos, mulheres e
sobretudo as crianças falam apenas o Kadiwéu. Um bom número dentre os
Kadiwéu, contudo, se comunica com facilidade em português. Há, na língua
Kadiwéu, muitas diferenças entre as falas masculina e feminina. É interessante
notar que os descendentes de Terena que vivem entre os Kadiwéu usam apenas o
português para se comunicar na aldeia (não usam a língua Terena nem entre si).
Entretanto, mesmo que não falem, entendem perfeitamente o Kadiwéu, pois é nesta
última língua que são interpelados.
 Localização
Os espanhóis colonizadores chamaram de Mbayá (termo provavelmente de
origem Tupi) aos Guaikurú (nome também de origem Tupi) dos quais descendem
os Kadiwéu. Com origem no lado ocidental do rio Paraguai, parte dos Mbayá
atravessou, no século XVII, para a banda oriental. Com a pressão das frentes
colonizadoras, deslocaram-se mais para o norte e os que ainda não tinham migrado
para leste do rio o fizeram no final do século XVIII. Nessa época, o seu território
estendia-se das serras que separam os rios Paraná e Paraguai até mais além da
latitude de 18° sul.
Os Mbayá dividiam-se em diversas hordas, cada uma com um nome
específico que se associava a acidentes naturais dos locais que habitavam. Uma
delas, a dos Cadiguegodis, tinha, no século XVIII, o seu território banhado por um
riacho que os índios chamavam de Cadigugi. Tudo indica que esta última horda
seja a dos ancestrais dos Kadiwéu atuais. A horda dos Kadiwéu foi a última a
migrar para o lado oriental do rio Paraguai, e era a única sobrevivente já na
segunda metade do século XIX.
Os Kadiwéu, que a literatura histórica uma vez chamou de "os índios
cavaleiros", por sua condição de possuidores de um vasto rebanho eqüino e sua
admirável destreza na montaria, vivem hoje em território localizado no Estado do
Mato Grosso do Sul, em terras em parte incidentes no Pantanal matogrossense. O
seu território tem como limites naturais a oeste os rios Paraguai e Nabileque, a leste
a Serra da Bodoquena, ao norte o rio Naitaca e ao sul o rio Aquidaban. Dentro
deste território, a população Kadiwéu se divide entre quatro aldeias. A aldeia maior,
Bodoquena, localiza-se no nordeste da Terra Indígena, ao pé da Serra da
Bodoquena, vizinha à aldeia Campina, que fica já no alto daquela serra. A aldeia
Tomázia localiza-se no sul da Terra Indígena. Também no sul encontra-se a aldeia
São João. Habitam esta última aldeia principalmente índios Terêna e
remanescentes de Kinikináo. Algumas famílias Kadiwéu vivem ainda em pequenos
grupos, em localidades no interior da Terra Indígena mais afastadas das aldeias
principais, onde criam pequeno gado.
A Terra Indígena Kadiwéu está no município de Porto Murtinho. Bodoquena é
a cidade mais próxima da aldeia maior (60 km), seguida de Miranda e Aquidauana.
Campo Grande (310 km) é o centro urbano de maior importância estratégico-
administrativa para os Kadiwéu. Ali está sediada a administração da FUNAI que os
jurisdiciona, a associação dos fazendeiros arrendatários (ACRIVAN - Associação
dos Criadores do Vale do Aquidaban e Nabileque) e a ACIRK (Associação das
Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu).

Demografia
Os dados da Funai apontam como sendo, em 1999, de 1.041 o total da
população Kadiwéu sob a jurisdição do Posto Indígena Bodoquena (que abrange as
aldeias Bodoquena e Campina), sediado na aldeia de mesmo nome. A população
referente ao Posto Indígena São João, que abrange as aldeias São João e
Tomázia, seria de 551, segundo a mesma fonte e data. Cabe notar que, como já foi
aludido acima, na aldeia São João vivem principalmente índios Terena e Kinikináo.
Por conseguinte, a população total de 1.592 em 1999 corresponde aos índios
destas três etnias que habitam a Terra Indígena Kadiwéu e inclui também os
Kadiwéu que moram fora dela, de proveniência daquelas aldeias.
Não contávamos, até essa data, com outro censo atual da população
Kadiwéu que não este da FUNAI, que, entretanto, não relacionava em separado as
etnias habitantes do Posto Indígena São João, o que impossibilitava o cálculo total
da população Kadiwéu. Segundo dados da Funasa mais atuais, em 2006 os
Kadiwéu somavam 1.629 pessoas. Em 1992, época da pesquisa de Mônica
Thereza Pechincha, viviam 633 Kadiwéu na aldeia Bodoquena, 39 na aldeia
Campina, 60 na aldeia Tomázia e 67 em outras localidades no interior da Terra
Indígena, além da aldeia São João, que, na época, contava com 170 habitantes.
Para fins de observação do crescimento demográfico, apresento ainda dados de
1995, recolhidos na Administração Regional de Campo Grande, da FUNAI, que
indicam como sendo 951 o número da população do Posto Indígena Bodoquena, e
388 o do Posto Indígena São João.

Histórico do contato
A primeira notícia que se tem dos Guaikurú data do século XVI, proveniente
de uma expedição européia que adentrou a região chaquenha à procura de metais
preciosos no interior do continente. Muitos grupos Mbayá estiveram sob a influência
de reduções missionárias a partir do século XVIII. No mesmo século e no início do
seguinte, o contato com as frentes colonizadoras se intensificou com o
estabelecimento de fortes militares estabelecidos pelo curso do rio Paraguai, seja
de portugueses ou espanhóis, que se debatiam pela definição de fronteiras. As
cidades fundadas na região fizeram parte do cenário de sua história, muitas vezes
de conflito. Ou de acordo, como o celebrado em 1779 entre os Mbayá e os
espanhóis, e o firmado em 1791, com os portugueses.
Um marco de peso na história do contato com a sociedade nacional,
recordado com orgulho e insistência, foi a participação dos Kadiwéu na Guerra do
Paraguai. Esta participação rendeu o seu registro em inúmeras narrativas históricas
que lembram detalhes do evento e um desempenho heróico guardado com
cuidado. Contam os Kadiwéu sua fundamental participação naquela guerra, quando
lutaram em favor dos brasileiros e ganharam como recompensa o território que
habitavam e onde até hoje habitam. É aí que buscam o argumento mais eficaz de
sua posse incontestável, mas sempre ameaçada.
A Terra Indígena Kadiwéu esteve sujeita a um primeiro reconhecimento oficial
no início do século, por ato do Governo do Estado do Mato Grosso. Houve
demarcação em 1900 e expedição de decreto em 1903, que já estabelecia como
limites naturais os mesmos atuais acima mencionados. Em 9 de abril de 1931, o
decreto n° 54 ratificou estes limites. Mas os problemas fundiários foram uma
constante em sua história e os Kadiwéu não apagaram de sua memória as
tentativas de invasão e conflitos ocorridos desde o início do século.
Mais recentemente, a demarcação de suas terras, concluída em 1981,
cercou-se de muita tensão com invasores e deixou inclusive de fora de seu
perímetro uma aldeia Kadiwéu de nome Xatelôdo, localizada na serra da
Bodoquena. Em 1983 eram em número de 1.868 os posseiros que ocupavam
aquela Terra Indígena. Os conflitos gerados, notadamente nos anos de 1982 e
1983, foram amplamente divulgados pela imprensa.
Esta história marcou-se também por inevitáveis conflitos com fazendeiros
arrendatários. Os pecuaristas começaram a adentrar o território Kadiwéu há quase
cinco décadas, havendo notícias de que o primeiro o teria feito em 1952. Desde o
final da década de 50 começaram, de outra forma, a ocupar este território com
autorização oficial do Serviço de Proteção ao Índio (SPI, órgão que antecedeu a
atual FUNAI). Em 1961, já haviam sido efetivados 61 contratos individuais com
arrendatários. Esta ocupação alterou significativamente a utilização pelos índios de
seu território. No início da década de 90, eram 89 as fazendas arrendadas no
interior da Terra Kadiwéu, as quais se estendiam pelo território quase que na sua
inteireza, de forma a ficarem os índios espremidos nas suas aldeias.

Organização social e política


No passado, as hordas Mbayá se dividiam em "tolderias". A tolderia, onde
havia uma casa coletiva, era a menor unidade política e econômica, que reunia a
parentela de um "capitão" e os seus cativos. As famílias de "capitães" compunham-
se dos Mbayá de nascimento, que hoje são recordados como famílias de Kadiwéu
"puros", conforme a elas se referem, ou os goniwtagodepodi ejiwajigi ("nossos
senhores Kadiwéu"), sendo ejiwajigi a sua auto-denominação. Goniwtagodi,
ou goniwaagodi, conforme as falas masculina e feminina, respectivamente (há
distinção lingüística entre as duas), é um termo de tratamento que os Kadiwéu
usam para qualquer pessoa do sexo masculino, inclusive estrangeiros. As
mulheres, da mesma maneira, são interpeladas pelos termos goniwtagodo (na fala
masculina) ou goniwaagodo (na fala feminina). Também abordam as crianças por
estes termos, que traduzem como senhor e senhora (goniwtagodi = nosso
senhor, iniwtagodi = meu senhor).
Os capitães eram todos os descendentes de capitães, em qualquer linha ou
grau, inclusive os de sexo feminino (as "capitãs"). Uma vez que o núcleo de
Kadiwéu "puros" era diminuto em virtude da baixa natalidade, certamente alguns
cativos a ele deveriam se incorporar, possivelmente via casamento, que não era o
preferencial. Pois os Kadiwéu afirmam que os senhores não se casavam, antes,
com os seus cativos, regra hoje não verificável. Ainda permanece naquela
sociedade a distinção hierárquica entre aqueles que se consideram Kadiwéu
"puros" e os descendentes de cativos. Atualmente apenas duas famílias reivindicam
o status de senhores na aldeia Bodoquena. Ambas disputam a hegemonia política
no grupo. A relação de "cativeiro" se faz notar melhor nas práticas rituais. Por
exemplo, quando há alguma atividade em que rapazes e moças participam pela
primeira vez, precisam ser representados naquele momento por um cativo seu. De
forma geral, no que diz respeito às atividades cotidianas, as famílias, qualquer uma
delas, desenvolvem-nas de forma autônoma e enquanto unidade.
Em 1992, os Kadiwéu da aldeia Bodoquena se distribuíam entre 110 casas,
que abrigam mais freqüentemente famílias nucleares, dispostas em geral por
grupos de parentes e obedecendo preferencialmente uma regra matrilocal. São
muito freqüentes os casamentos com os Terena. Nessa época, apenas na aldeia
Bodoquena, em 28 famílias nucleares um dos cônjuges era Terena. Isto sem
mencionar os que têm ancestrais desta última etnia.
As decisões políticas e de interesse geral do grupo estão fortemente
centralizadas na figura do capitão e seus assessores. O direito de chefia é
hereditário. Hoje, tal direito é reconhecido como "naturalmente" pertencente ao
bisneto primogênito do Capitãozinho, um venerável líder do passado. Contudo, as
regras se flexibilizaram no sentido do sufrágio, no que diz respeito à chefia. Os
capitães, termo com que se referem ao chefe ou "cacique", atualmente são
escolhidos dentro do grupo e, no transcurso da sua história recente, vários capitães
se sucederam em curtos períodos. Estes nem sempre pertencem a "famílias de
capitães" e, quando não pertencem, sua posição política não altera seu status
social. O capitão é assessorado por um conselho, composto sobretudo por homens
mais velhos e experientes. Cabe notar, entretanto, que é igualmente forte o papel
político de líderes jovens, que alcançaram prestígio sobretudo devido ao seu grau
de instrução (alguns deles possuem até o 2° grau escolar) e seu domínio da língua
portuguesa, muito útil nas negociações externas.

 Arte

Foto: Claude Lévi-Strauss, 1935

Os finos desenhos corporais realizados pelos Kadiwéu constituem-se em uma


forma notável da expressão de sua arte. Hábeis desenhistas estampam rostos com
desenhos minuciosos e simétricos, traçados com a tinta obtida da mistura de suco
de jenipapo com pó de carvão, aplicada com uma fina lasca de madeira ou taquara.
No passado, a pintura corporal marcava a diferença entre nobres, guerreiros e
cativos.
As mulheres Kadiwéu produzem, igualmente, belas peças de cerâmica: vasos
de diversos tamanho e formato, pratos também de diversos tamanhos e
profundidade, animais, enfeites de parede, entre outras peças criativas. Decoram-
nas com padrões que lhes são distintos, que segue a um repertório rico, mas fixo,
de formas preenchidas com variadas cores. A matéria-prima de seu trabalho
encontram-na em barreiros especiais, que contêm o barro da consistência e
tonalidade ideais para a cerâmica durável. Os pigmentos para sua pintura são
conseguidos de areias dos mais variados tons, alguns dos detalhes sendo
envernizados com a resina do pau-santo.
Podemos também ver a arte Kadiwéu expressa nos cânticos das mulheres
velhas, nas músicas dos tocadores de flauta e tambor, e nas danças coletivas.
Narrativas

Desenhos publicados em VIDAL, Lux (org.). Grafismo Indígena. Studio Nobel, Fapesp, Edusp, SP,
1992

A sociedade Kadiwéu teve na guerra de captura o fundamento de sua


organização. A memória da guerra é bastante presente e acionada sempre nos
discursos de auto-definição, bem como fonte de recursos a serem usados na sua
relação atual com a sociedade nacional. O ideal do guerreiro é fonte de valores que
ainda norteiam as suas práticas. Vários mitos Kadiwéu fazem menção
aos Godapoagenigi, aqueles guerreiros que se sobressaíam por sua coragem e
força física. Dentre as narrativas que ouvi de seu rico repertório, os Kadiwéu
distinguem pelo menos duas classes. A uma delas chamam de "histórias de
admirar", ou "histórias que fazem milagres", "histórias sagradas", mais próximas da
categoria de mitos propriamente ditos. Outra classe seria a das "histórias que
aconteceram mesmo", que se apresentam como "descrição histórica" de eventos
tais como as guerras do passado.
É nas "histórias de admirar" que os Kadiwéu vão buscar seus nomes pessoais
-chamei-as "mitos de nominação". Muitos destes mitos são de propriedade de
famílias de capitães, e os nomes pessoais que deles advêm podem ser usados por
seus descendentes e cativos. Em muitas destas histórias, os protagonistas são
ancestrais mitológicos de famílias de capitães.
Algumas outras contam também com personagens míticos ancestrais de
cativos, cujos descendentes lhes usam os nomes. Nestes mitos estão contidos
ensinamentos, conselhos e prescrições. Cada um vem a explicar e a prescrever um
costume: o ato da guerra de captura de crianças, a iniciação feminina, o uso da
bebida feita do mel, determinados remédios, tabus alimentares. O mito de criação,
também incluído nesta categoria, fala do início da sociedade Kadiwéu e daquilo que
a distingue das demais sociedades com que mantêm ou mantiveram contato,
tecendo comentários sobre as mesmas e sobre esta relação.

 Ritos

Bobos, ritual do navio. Foto: Mônica


Pechincha, 1992

O indivíduo Kadiwéu recebe um nome por ocasião de seu nascimento e


quando da morte de um parente. Durante os ritos funerários, os parentes do morto
têm seus cabelos cortados. Aquele que corta o cabelo em sinal de luto é
chamado okojege. As mulheres velhas, conhecedoras destes ritos, se reúnem
durante o funeral para decidir o nome mais adequado para o enlutado.
Quando se perde um parente próximo é também possível adotar alguma outra
pessoa (independentemente da idade, do sexo e do grau ou mesmo da existência
de parentesco) para preencher a falta do morto. Um parente adotado nestas
circunstâncias é chamado godokogenigi. A este também se dá um novo nome e se
lhe corta os cabelos. Há ainda uma outra forma de se estabelecer um parentesco
"de consideração". É através da relação entre imedi (ou imeeti, no caso das
mulheres, palavra traduzida como "amigo/a"). Duas famílias podem acertar
fazer imedi um filho de cada uma, os quais estabeleceriam entre si uma relação de
irmãos e as atitudes que lhes são peculiares. Os descendentes de
dois imedi seriam imedi entre si.
Além de ritos funerários, praticam também o que chamam de "Festa da
Moça". Ritual de iniciação feminina, submete a menina que passa pela menarca a
uma reclusão de dois dias e a uma dieta rigorosa. Não pode pisar o chão e nem
olhar para animais. No clímax do ritual, esta menina é "abanada" com um pano
vermelho bordado com miçangas e penduricalhos nas pontas (o "abanico", wajuide)
e, deitada de bruços, será pressionada na altura dos rins por uma mulher da aldeia
cuidadosamente escolhida por seus familiares, pois suas características serão
assimiladas pela menina.
O Navio, ou Etogo, é o ritual que os Kadiwéu consideram a expressão mais
visível de sua alteridade, pois, como dizem, é o que melhor mostra que eles são
"índios mesmo". Realizado em 1992, havia pelo menos cinqüenta anos que não
vinha sendo encenado e não voltou a ser repetido após essa data. A motivação
imediata para a sua realização foi a necessidade de mostrar a brancos, seus
convidados, o ritual mais expressivo de sua identidade.
O Navio é um longo ritual. Faz referência à Guerra do Paraguai, notada, entre
outros aspectos, pela afixação, a cada lado da entrada do navio de tabocas que
construíram para ser o espaço ritual, de bandeiras estilizadas do Brasil e do
Paraguai. O Navio mimetiza um navio de guerra, tal como os que os Kadiwéu dizem
ter visto, no passado, a percorrer o rio Paraguai.
O chefe do Navio é o personagem chamado Maxiotagi, ou o
"Macho". Maxiotagi é um personagem Xamakôko (embora o ator seja Kadiwéu), da
etnia que foi a principal fonte de cativos no passado. A sua função no ritual é ditar
as ordens que condicionam as cenas do seu desenvolvimento.
Maxiotagi, que é cego, tem seus companheiros, Ligecoge, "os Olhos do
Macho", e Lionigawanigi (Pequeno), que o auxiliam em suas atividades. Estes
personagens se adornam com paramentos engraçados. No Navio também há o
Delegado, o Sargento (Jajentege), os cabos e os escrivães (Nidikuna). E
também Ixotece Gonibedona Gonibegi, ou "Dedo-no-Cu", que se encarrega da
"ronda". A regra máxima no Navio é não poder rir, sob pena de ser preso e/ou
pagar uma "fiança", cobrada, geralmente, em forma de gado a ser abatido na hora,
abastecendo o churrasco coletivo dos vários dias deste ritual.
No período ritual, a rotina da aldeia é totalmente modificada e todos se
comportam como se estivessem sob voz de comando, só agindo conforme as
ordens do chefe. Durante o Navio, todos os homens da aldeia são chamados de
"soldados" e todas as mulheres, de paraguaias (gaxianaxe), e representam presas
de guerra. Há também um papel particular para as mulheres velhas, que são no
grupo quem guarda os cânticos sagrados. Essas mulheres, conhecedoras únicas
da linguagem dos cânticos, que os jovens não sabem traduzir, cantam à maneira de
repente sempre que um acontecimento importante advém ao grupo. Os seus
cânticos recordam fatos históricos e guardam a memória dos capitães e seus
grandes feitos, além de comentar, com base em sua história e cosmologia, os fatos
atuais. As mulheres velhas cantam (ou "rezam") no Navio para livrar os presos.
O momento ritual é preenchido também por danças masculinas
(nabacenaganaga, ou "bate-pau") e femininas, pela música entoada por seus
instrumentos típicos, a flauta (natena) e o tambor (goge), por brincadeiras e jogos
(sobretudo os que demonstram o desempenho físico dos homens, lembrando os
godapoagenigi), e pela apresentação dos "bobos" (bobotegi). Estes são
personagens que não figuram só no Navio. Apresentam-se mascarados, o corpo
também dissimulado, irreconhecíveis, dançando suas "polcas" específicas,
assustando as crianças a quem pedem prendas.
Há também um Padre no Navio, que batiza como os padres dos cristãos e
simula ritos de cura, como o do nijienigi (o xamã Kadiwéu). O nijienigi é capaz de
prever, com a ajuda das entidades espirituais que o guiam, os acontecimentos
vindouros. Por isso, no passado seu papel foi fundamental nas estratégias
guerreiras. Os nijienigi também curam e na aldeia ainda são chamados a intervir em
casos de doenças.

 Nota sobre as fontes


A mais importante referência histórica sobre os Kadiwéu (ou os Guaikurú-
Mbayá) encontra-se na obra do Pe. José Sanchez-Labrador intitulada El Paraguay
Católico, considerada uma das melhores etnografias escritas no século XVIII.
Vários cronistas no século XIX registraram, com mais ou menos detalhes, as suas
impressões sobre estes índios, sua localização, modo de vida e relações com os
colonizadores. Dentre eles, destacam-se Ricardo Franco de Almeida Serra,
Francisco Rodrigues do Prado, Alexandre Rodrigues Ferreira, Francis Castelnau,
Alfred d'Escragnole Taunay (que narrou episódios da participação indígena na
Guerra do Paraguai) e, notadamente, Guido Boggiani. Este último autor viveu
alguns meses entre os Kadiwéu no final do século passado e nos legou, entre
outros escritos, o seu rico diário de campo referente àquela visita, publicado com o
nome de Os Caduveos.
Boggiani recolheu um vasto material representativo da arte e artefatos
Kadiwéu, cuja mais significativa coleção encontra-se hoje conservada pelo museu
"Luigi Pigorini", em Roma. Pode-se obter igualmente informações históricas em
relatórios de Presidentes da Província do Mato Grosso guardados pelo Arquivo
Nacional. Quanto a trabalhos antropológicos propriamente ditos, Alfred Métraux nos
oferece estudos etnológicos sobre os índios do Grã Chaco, sobretudo no que tange
à religião. Claude Lévi-Strauss esteve entre os Kadiwéu em 1937 e escreveu sobre
sua arte.
Darcy Ribeiro procedeu pesquisa de campo entre os Kadiwéu no final da
década de 1940 e seus trabalhos mais importantes sobre os mesmos estão
reunidos no volume Kadiwéu: Ensaios Etnológicos sobre o Saber, o Azar e a
Beleza que, como já indica o título, trata de mitologia, xamanismo e arte. Escreveu
também um artigo sobre "O sistema familial Kadiwéu" (1948). Mais recentemente
foram defendidas duas teses de mestrado: a de Jaime Siqueira Jr. (USP, 1993),
que trata da construção do tempo e espaço Kadiwéu; e a de Mônica Thereza
Pechincha, intitulada Histórias de Admirar: Mito, Rito e História Kadiwéu (UnB,
1994). A língua Kadiwéu foi estudada por Silvia L.B. Braggio (1981). Quanto a
relatórios técnicos, cabe mencionar os produzidos por Alain Moreau, que há vários
anos freqüenta e acompanha a sociedade Kadiwéu e tem lhe prestado, mediante
iniciativa pessoal, valiosa assessoria jurídica, sobretudo na condução do processo
de substituição do regime de arrendamento.

Fontes de informação

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natureza. Campo Grande : Free, 2001. p. 53-61.
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 BRAGGIO, Silvia Lúcia Bigonjal. Aspectos fonológicos e morfológicos do kadiwéu. Campinas :
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 CACERES, Luiz d’Albuquerque de Mello Pereira e. Exploração do Rio Paraguay e Primeiras Práticas
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 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato
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 --------. A Gruta do Inferno. Rev. Trim. Hist. Geogr., s.l. : s.ed., n. 4, p. 360-5, 1842
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