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A PRÁTICA DO CRIME DE ESTUPRO NO AMBIENTE VIRTUAL

Pedro Túlio Frederico CUNHA1

O crime de estupro é penalmente tutelado no art. 213 do Código Penal


brasileiro, encontrando localização no Capítulo I, dos crimes contra a liberdade sexual,
Título VI, dos crimes contra a dignidade sexual, da Parte Especial do supracitado
código. Desde os tempos mais primórdios o estupro era punido severamente, com
destaque à conceituação histórica de Cezar Roberto Bittencourt:

Os povos antigos já puniam com grande severidade os crimes sexuais,


principalmente os violentos, dentre os quais se destacava o de estupro.
Após a Lex Julia de adulteris (18 d.C.), no antigo direito romano,
procurou-se distinguir adulterius e stuprum, significando o primeiro a
união sexual com mulher casada, e o segundo, a união sexual ilícita
com viúva. Em sentido estrito, no entanto, considerava-se estupro toda
união sexual ilícita com mulher não casada. Contudo, a conjunção
carnal violenta, que ora se denomina estupro, estava para os romanos
no conceito amplo do crimen vis, com a pena de morte
(BITTENCORUT, 2019, p. 60)

Somente em 2009 é que os legisladores brasileiros alteraram o Código Penal


para que vigorasse com a devida austeridade os preceitos jurídicos fundados na
proteção sexual e garantia da liberdade individual. Através da Lei 12.015, de 7 de
agosto de 2009, alteraram o Título VI, suprimindo a nomenclatura de “dos crimes
contra os costumes”, passando a tutelar “crimes contra a liberdade sexual”. Para além
dessa honrável alteração, também reformaram os tipos penais do estupro e do
atentado violento ao pudor, de modo a fundir os dois crimes incrementando condutas
e estendendo os limites punitivos quanto ao agente e salvaguardando o homem como
possível figura passiva da conduta criminosa, isto é, alterando a classificação do crime
de bipróprio, para bicomum.

A redação contemporânea do crime de estupro expressa a conduta de


“constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou
a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Analisando o tipo
penal, Fernando Capez (2022, p. 80) ensina que “os meios executórios do crime em
tela são a violência, obrigatoriamente física, e a grave ameaça, podendo ser justa ou
injusta.” Regendo todo e qualquer ato libidinoso (incluindo tácita e expressamente a

1
Acadêmico da Faculdade Católica Dom Orione. Curso de Direito. Matéria de Direito Penal IV.
conjunção carnal que é, nas palavras do exímio penalista Nelson Hungria (1981, p.
121), “ato libidinoso por excelência”) e, afastando possíveis interpretações
desfavoráveis à vítima, a conjunção carnal (penetração penisvaginal), o crime prevê
um ofensivo ataque ao pudor privado, liberdade sexual e corpo do sujeito passivo.
Repare que o corpo figura como parte imprescindível da conduta em tela, uma vez
que sem a participação do corpo da vítima não cabe tipificar o crime de estupro,
apenas outros tipos penais como constrangimento ilegal (art. 146), importunação
sexual (art. 215-A) ou satisfação de lascívia mediante presença de criança ou
adolescente (art. 218-A), a depender da vítima e das circunstâncias da conduta.

Apresenta-se pacífico nos textos mais densos dos modernos e admirados


doutrinadores todas as definições, explicações e conceituações até agora
apresentadas. Todavia, espinhoso fica um polêmico ponto que envolve a
modernidade, os avanços tecnológicos e o escopo penal ante às novas formas de
delitos já contemplados. Há problemas legais, constitucionais ou penais em enquadrar
o estupro cometido por meio virtual no crime de estupro do art. 213?

Compreender esse tema requer um olhar técnico e debruçado sobre o tipo


penal, suas variantes e interpretações dos mais conceituados autores penalistas. De
antemão, a primeira noção a ser tomada é acerca da possibilidade da prática do
estupro restando ausente o contato físico entre autor e vítima. Defendendo a opinião
majoritária da doutrina brasileira, explica o novel professor e delegado Luís Gonzaga
da Silva Neto (2021, p. 579) que “[...] ainda, há o questionamento se é imprescindível
o contato físico entre a vítima e o autor do delito para a configuração do crime em tela,
prevalecendo na doutrina majoritária que o contato físico é prescindível.”, prossegue,
parafraseando Cléber Masson (2018, p. 13) “é dispensável o contato físico de
natureza erótica entre o estuprador e a vítima. Exige-se, contudo, o envolvimento
corporal do ofendido no ato de cunho sexual.”

Compartilha dessa mesma tese Victor Eduardo Rios Gonçalves (2018, p. 584),
quando diz “para que haja o crime, é desnecessário contato físico entre o autor do
crime e a vítima. Assim, se ele usar de grave ameaça para forçar a vítima a se
automasturabar ou a introduzir um vibrador na própria vagina, estará configurado o
estupro”. Também exemplifica e defende a posição da prescindibilidade, sob os olhos
técnicos da autoria mediata, Fernando Capez:
A hipótese em comento (explicando sobre a vítima presenciar atos
libidinosos praticados pelo agente sem participar) não se confunde com
aquela em que a vítima é obrigada a praticar atos libidinosos em si
própria, como a masturbação, para que o agente a contemple
lascivamente. Embora nesse caso não haja contato físico entre ela e o
agente, a vítima foi constrangida a praticar o ato libidinoso em si
mesma. Surge aí a chamada autoria mediata ou indireta, pois o
ofendido, mediante coação moral irresistível, é obrigado a realizar o ato
executório como longa manus do agente. (CAPEZ, 2022, p. 81)

Restando petrificada a posição ampla dos doutrinadores, assevera Rogério


Sanches Cunha:

De acordo com a maioria da doutrina, não há necessidade de contato


físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para
satisfazer a sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo
(masturbando-se), somente para contemplação (tampouco há que se
imaginar a vítima desnuda para a caracterização do crime – RT
4291380). (CUNHA, 2017, p. 483).

Também entende no mesmo sentindo Damásio de Jesus (2020, p. 344),


quando comenta que “não há necessidade de que a vítima pratique o ato libidinoso
com o autor do crime. Pode ser levada a praticá-lo com terceiro (ou a permitir que este
o pratique) ou ainda em si mesma, como na hipótese de automasturbação.”

Assegurando todo o entendimento findando a discussão, Eduardo Seribeli


(2018, p. 57) expõe que o Supremo Tribunal Federal, em 17/08/2017, julgou o Recurso
Extraordinário com Agravo n° 1.066.864- RS, com relatoria do Ministro Dias Toffoli,
decidindo pela completa plausibilidade da tipificação do estupro com a
prescindibilidade do contato físico entre vítima e autor:

(...) a maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que


a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos
dos arts. 213 e 217-A do Código Penal - CP, sendo irrelevante, para a
consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e
ofendido. (...) Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente
com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato
libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao
transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na
vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena, na hipótese de
eventual procedência da ação penal.

Superada a discussão primária sobre a necessidade do toque físico entre o


delinquente e a vítima, brota outra questão contempladora dos quesitos modernos da
legislação. Buscam os mais estudiosos penalistas concatenar os acertos sobre a
prática do crime em terreno virtual. Há poucos escritos, comentários e julgados sobre
o tema, tal fato se deve ao recente progresso fulminante da internet como meio de
comunicação generalizada em todas as sociedades. Destarte, Cléber Masson (2018,
p. 92) anota positivamente sobre a possibilidade de o estupro ser cometido por meio
virtual, dando o seguinte exemplo: “[...] pensemos na situação em que o sujeito,
apontando uma arma de fogo para a cabeça do filho de uma mulher, exige que esta,
em outra cidade, se automasturbe à frente da câmera do celular.”

Analisando o exemplo dado pelo doutrinador, extrai-se todas as elementares


necessárias para a tipificação do crime. Um sujeito qualquer, usando-se da grave
ameaça (ameaça de violência contra terceiro para coagir a vítima), coage
irresistivelmente a vítima a realizar atos libidinosos em si mesma, contra a sua
vontade. Postula-se que o agente constrangeu, mediante grave ameaça, alguém a
praticar (em si mesma) ato libidinoso.

Contudo, deve-se tomar especial atenção à conduta da vítima, isto é, se esta


enviar ao agente um vídeo gravado anteriormente ao crime e não realizar atos
libidinosos em si mesma após ou durante a ordem do agente, ao meu ver, não há que
se falar em estupro virtual consumado, mas sim em modalidade tentada. Os olhares
têm que estar focados em ter a ciência que o agente inicia a execução da conduta de
constranger mediante grave ameaça ou violência, mas a vítima não realiza os atos
pretendidos pelo agente. A execução do crime é iniciada, a violência ou ameaça foram
proferidas, mas não se consuma o crime por vontades alheias ao querer do agente.
Tal questão requer análises jurídicas e legislativas judiciosas para impedir que
criminosos vis acabem por se aproveitar deste vão deixado pelo tipo penal de 2009.

A jurisprudência brasileira segue decidindo em favor do posicionamento


doutrinário, conforme julgado em 2018 no Superior Tribunal de Justiça (STJ) do
Recurso em Habeas Corpus N° 91.792-DF, onde o Ministro Antônio Saldanha Palheiro
foi relator do julgamento citado envolvendo vários crimes, dentre eles o crime de
estupro na modalidade virtual. Um sujeito, usando-se de perfis falsos, entrava em
aplicativos de redes sociais para convencer as vítimas a fazer troca de vídeos íntimos,
quando conseguia esses materiais pornográficos, ameaçava divulgá-los na grande
mídia se as vítimas não produzissem mais material pornográfico. O STJ decidiu
acertadamente que a conduta era típica e negou o provimento, confirmando as teses
doutrinárias majoritárias sobre o tema.

Não somente adstrito aos tribunais brasileiros, há também julgados


internacionais sobre o tema. À exemplo a decisão, em 2017, do Tribunal da Cidade
de Uppsala, na Suécia, que condenou um homem de 41 anos a 10 anos de prisão por
estupro cometido em ambiente virtual (especificamente a conduta de realização de
atos sexuais diante de câmeras) contra 27 adolescentes em três países. Sobre a
legislação Sueca, comenta o jornalista Tom Blackwell, do jornal canadense National
Post:

Rape in Swedish law can include intercourse, or a violation of sexual


integrity considered equally severe. Samstrom met his victims through
online social networks, then made them take off their clothes and
penetrate themselves with fingers or objects, threatening either to kill
them and their families, or post their profile photos on pornography
websites.

Após definir minuciosamente cada palmo da possibilidade do estupro ser


cometido em ambiente virtual, há que pergunte se a caracterização desse crime
afronta o princípio da legalidade. Questionar a tipificação do crime de estupro virtual
apenas devido ao fato da sua ocorrência ser em ambientes cibernéticos certamente é
uma noção muito anacrônica para opor em épocas tão tecnológicas.

A lei penal máxima que rege o ordenamento jurídico brasileiro não explicita em
nenhum lugar que os crimes que envolvam o espaço virtual devem ser apenas
relacionados com dados ou informações automatizadas. Há, além, classificações
doutrinárias que inserem os crimes cibernéticos em categorias específicas de acordo
com seu meio-fim. Conforme explica Roberto Chacon de Albuquerque (2006, p. 40),
os crimes cibernéticos próprios correspondem aos crimes em que dados e sistemas
informáticos constituem o objeto do crime, por sua vez, os impróprios são aqueles em
que o ambiente virtual é apenas o meio para a execução do crime. Após essa
classificação tão densa e ampla, o escólio que se obtém é sobre a plena aplicabilidade
do tipo penal do estupro em âmbito virtual.

Em escorço, restar atestar categoricamente que o delinquente que constranger


alguém, sob ameaça grave ou violência, a praticar ato libidinoso contra si mesmo
através de meio virtual, pode ser penalmente admoestado na figura típica do art. 213
do Código Penal. Observe-se que a ocorrência do crime em terreno virtual não figura
conduta atípica, mas sim figura típica em modalidade virtual.

Conforme posição intelectual muito bem findada por uma análise técnica, o
delegado Luís Gonzaga da Silva Neto (2021, p. 587-588) expõe que:

[...] o sujeito que mediante grave ameaça constrange a vítima a praticar


ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção
carnal, utilizando-se para isso do meio virtual, terá sua conduta
enquadrada no crime de “estupro virtual”, algo já aceito pela doutrina e
jurisprudência, não ocorrendo nenhuma violação ao princípio da
legalidade, pois os tipos penais dos arts. 213 e 217-A do Código Penal
são plenamente aplicáveis. (SILVA NETO, 2021, p. 587-588)

Não há que se falar em violação ou afronta ao princípio da legalidade, uma vez


que, assegurados os princípios da reserva legal e da anterioridade da lei penal, a
adequação da conduta ao crime está ligada ao verbo e as elementares, e não a
modalidade do crime. Por exemplo, se o sujeito ameaçar bloquear uma pessoa caso
esta não realize uma ligação de vídeo se masturbando, não cabe o crime de estupro,
uma vez que a ameaça não é grave. Note que o que deixa de tipificar o crime não é a
modalidade virtual, mas sim a falta de uma elementar do crime.

Em verdade, o que tem de ser feito requer pressa, não se pode esperar mais.
O campo não cultivado enche-se de ervas daninhas. Esse tema é irredutível e não
pode ser malbaratado pelos doutrinadores, juristas e legisladores, pelo contrário, deve
ser esquadrinhado intrepidamente como forma de afastar definitivamente quaisquer
arrepsias que possam atravancar o Direito Penal moderno e sua tutela sobre a
integridade do ciberespaço.
REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Roberto Chacon de. A Criminalidade Informática. São Paulo:


Editora Juarez de Oliveira, 2006.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 13ª. Ed.
São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

BLACKWELL, Tom. Swedish man gets 10 years in prison for raping Canadian
girls — over the internet. National Post, Canadá. 30 nov. 2017. World. News.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário


Oficial da União, Rio de Janeiro, 1940. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em 07
set. 2022.

BRASIL. Lei N° 12.015, de 7 de agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial


do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei
no 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos
do inciso XLIII do art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de
julho de 1954, que trata de corrupção de menores. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L12015.htm#art3.
Acesso em 07 set. 2022.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Penal. Recurso em Habeas


Corpus N° 91.792-DF. Relator: Min. Antônio Saldanha Palheiro. Brasília. 19 mar.
2018.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processual Penal. Recurso Extraordinário com


Agravo N° 1.066.864-RS. Relator: Min. Dias Toffoli. Brasília, 29 out. 2018.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. Volume 3. 20ª Ed. São
Paulo: SaraivaJur, 2022.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Especial (arts. 121 ao
361). 9ª Ed. Salvador: JusPodivm, 2017

GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal Esquematizado: Parte Especial,


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HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume VIII. 5ª Ed. Rio de
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JESUS, Damásio de. Direito Penal: Parte especial. Vol. 3. 24ª Ed. São Paulo: Saraiva
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MASSON, Cléber. Direito Penal: Parte Especial. Vol. 3 8ª Ed. São Paulo: Forense,
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SERIBELI, Eduardo. Crime Cibernético: Estupro Virtual e Embasamento à infiltração


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SILVA NETO, Luís Gonzaga da. Investigação Criminial Tecnológica do Estupro


Virtual. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira. Direito Penal Sob a Perspectiva da
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