Você está na página 1de 25

Texto 1

ISLAMISMO DE MAOMÉ À IDADE MÉDIA

Entre os primeiros anos do século VI e o decorrer do século VII, a maior parte do


mundo civilizado ficou sob o domínio de dois grandes impérios: o Império Grego
Bizantino cristão, situado a Ocidente e com a capital em Constantinopla, e o Império
Persa sassânida, de maioria zoroastrista, a Oriente. A influência intelectual, social e
económica de ambos os impérios estendeu-se às áreas intermédias, incluindo a
Península Arábica, berço do Islamismo. A Península Arábica (ou, simplesmente, a
Arábia) é rectangular e cobre quase 3. 250. 000 quilómetros quadrados. É limitada a
Oeste pelo Mar Vermelho, a Sul pelo Oceano Índico e a Nordeste pelo Golfo Pérsico.
A massa de terra situada a Norte leva ao Crescente Fértil - Egipto, Palestina, Síria e
Mesopotâmia. A faixa costeira ocidental, o Tihama, conduz a Hejaz/Hedjaz, uma
barreira de terras montanhosas, e, para o Interior, ao Planalto de Nejd,
maioritariamente composto de deserto arenoso, com alguns oásis ocasionais. A Sul e
a Sudoeste, as chuvas permitem a agricultura e a fixação de populações. Nos tempos
mais antigos, ali se estabeleceram reinos como os de Sabá e de Himiar. Durante os
antigos períodos grego e romano, o Reino dos Nabateus, a Norte, controlava uma
ampla área a partir de Petra, a capital. Por volta do século VI, o Norte era
maioritariamente habitado por tribos nómadas (beduínos), cada qual liderada por um
xeque eleito e por um conselho de anciãos. Deslocavam-se de uma área para outra
com os seus camelos e rebanhos, em busca de água e de pastagens. Duas grandes
tribos actuavam como "Estadostampão" para os principais poderes políticos e
militares: os Gassânidas, a Oeste, vassalos dos bizantinos, e o Reino de Hira, a Leste,
vassalo dos sassânidas. 2 O declínio da prosperidade do Sul, por volta do século V, é
simbolizado ou, como diziam os Árabes, foi causado pelo rompimento da enorme
represa de Ma'rib, que possibilitava a irrigação e a agricultura. Contudo, nos séculos
VI e VII, existiam ainda importantes rotas comerciais, uma das quais vinha do Norte
do actual Iémen, através de Hijaz, passando pela cidade de Meca. Tradicionalmente,
os muçulmanos referem-se a este período antes do Islamismo como Jahiliyya ou
"tempos da ignorância" - um período de grosseiros comportamentos e idolatrias, de
ganância comercial entre as populações estabelecidas, em desrespeito pelos menos
privilegiados. Ao mesmo tempo, os muçulmanos reconheciam as boas virtudes da
vida beduína: coragem, generosidade, hospitalidade (por vezes, levada a extremos) e
profundo sentido de clã e de lealdade tribal. Os árabes do deserto tinham uma bem
desenvolvida percepção da Natureza, não meramente no sentido da sobrevivência
mas também como apreciação estética, expressa em eloquente e estilizada poesia,
dotada de padrões de rima e ritmo precisos e belas descrições. Para os beduínos, uma
espécie de sentimento moral ou religioso sustentava a honra e a fidelidade à palavra
dada e reconhecia o propósito do dahr ("destino"). CRENÇAS PRÉ-ISLÂMICAS Os
Árabes nómadas acreditavam numa multiplicidade de divindades e espíritos, em geral
relacionados com rochas, pedras ou fontes. Cada tribo possuía as suas próprias
divindades protectoras. Acima destas, estavam as deusas Manat, al-Lat e Uzza, sendo
também reconhecido um deus supremo, chamado Alá ou, por vezes, al-Rahman.
Meca abrigou o mais importante monumento da religião pré-islâmica (o qual ajudou
a manter uma solidariedade maior do que a implicada por uma tribo única): uma
construção denominada Caaba ("cubo"), que, segundo a tradição islâmica, foi levada
a cabo por Abraão (Ibrahim) e pelo seu filho Ismael. Ao lado da Caaba ficava a Pedra
Negra, provavelmente um meteorito, que trouxe o reconhecimento à cidade. A Caaba
(que se dizia conter 360 ídolos) constituía um foco de atracção para as tribos locais,
que interrompiam as escaramuças nos três "meses sagrados" de trégua, 3 durante os
quais se realizavam peregrinações e negócios. Quem ali exercia maior influência
eram os mercadores e não os xeques, embora a facção dominante fosse a tribo dos
coraixitas, na qual nasceu Maomé. Além dos cultos pagãos, estabeleceram-se na
Arábia o Judaísmo e o Cristianismo (ambos monoteístas). Duas tribos judaicas
fixaram-se em Yathrib e nos arredores, apesar de haver assentamentos judeus noutras
partes da Península. Os cristãos mantinham um bispado em Najran, do que se
depreende uma comunidade bastante grande na zona. Embora o Cristianismo na
Arábia seguisse sobretudo um modelo oriental, as controvérsias da época tiveram
algum efeito na religião. Alguns problemas podem ter surgido das diferenças entre as
línguas grega e semítica, mas as desavenças, em particular quanto à pessoa de Cristo,
parecem ter-se espalhado bastante. A mensagem básica do Cristianismo pode ter sido
obscurecida por disputas sectárias, com base em críticas do Alcorão aos cristãos,
certamente espelhando as próprias experiências de Maomé. O Alcorão acusa os
cristãos de venerarem mais Jesus do que o Deus único e de "alterarem as suas
Escrituras". Muitos cristãos da região podem ter-se sentido distanciados dos seus
líderes religiosos bizantinos, dispondo-se a aceitar um credo mais simples. MAOMÉ
Maomé nasceu em Meca por volta de 570 d.C., no seio dos Banu Hashim, um ramo
da tribo dos coraixitas. Órfão muito cedo, foi levado por uma família de beduínos
para os mais saudáveis arredores do deserto. Enquanto jovem, Maomé trabalhou para
um tio, Abu Talib, e diz-se que acompanhou caravanas de comerciantes nas suas
jornadas à Síria. Ganhou fama como um homem excepcionalmente honesto e
correcto, tendo-se tornado empregado de uma rica viúva de nome Cadija, a qual,
impressionada com o seu carácter e a sua personalidade, se casou com ele, apesar de
ser 15 anos mais velha. Até à morte de Cadija, em 619, Maomé não teve outras
esposas. Então, levando uma vida mais sossegada, Maomé resolveu passar longos
períodos em reflexão e meditação numa caverna perto de Meca. Por volta do ano 610,
recebeu a visita impressionante de um ser que lhe ordenava: «Recita, em nome 4 do
teu Senhor! » (iqra, que significa "recita", foi a primeira palavra registada no Alcorão,
constituindo agora o início da sura 96) . Apesar de inicialmente confuso e relutante,
Maomé teve a certeza de que fora enviado ao seu povo para o alertar para a chegada
do Dia do Juízo. As suas primeiras pregações, nas ruas e feiras de Meca, foram a
favor da Unidade de Deus, contra a idolatria e a favor do dever de fazer justiça e
cuidar dos pobres. Não surpreende que essa mensagem fosse impopular entre os
homens importantes de Meca, que viram em Maomé uma ameaça à sua riqueza e
posição social, e que por isso o tentaram dissuadir da sua missão, usando, para tal, do
ridículo, da persuasão e da força física. Além da esposa, Cadija, e do primo Ali ibn
Abi Talib, os primeiros seguidores de Maomé foram maioritariamente membros
menos influentes da sociedade. Mas esse número cresceu gradualmente, à medida que
as pessoas eram conquistadas pelo carácter genuíno e sincero da sua pregação. Isto
coincidia com as mensagens que Maomé recebeu da fonte que identificou como Deus
Único, por intermédio do anjo Gabriel. Essas mensagens foram cuidadosamente
memorizadas e repetidas, transformando-se na essência do Alcorão e consideradas
como Palavras de Deus. Um elemento-chave era a "submissão" (raiz árabe s-l-m) ao
Criador, Deus Único, Alá - e dessa raiz saíram tanto o nome islão (que, no início, não
significava uma religião isolada) quanto muslim ("aquele que se submeteu"). O
conteúdo da pregação de Maomé expandiu-se a ponto de incluir narrativas de
"profetas" anteriores, como Adão, Moisés e Noé, e referências aos povos primitivos e
suas punições. Surgiu também um esboço de teologia, bem como algumas regras para
o culto, o jejum, a caridade e a peregrinação. Tudo isso, além da profissão de fé
(shahada), forma os "pilares" do Islamismo. Maomé acreditava pertencer à linhagem
dos profetas, na tradição judaica e cristã, mas foi incapaz de estabelecer um
relacionamento com os fiéis dessas duas religiões. Os seus seguidores agora incluíam
Abu Bakr, Ornar e Uthman, homens de certa posição, mas o aumento da oposição dos
coraixitas levou a que Maomé negociasse com o povo de Yathrib, que ansiava por um
árbitro fidedigno para as suas disputas internas. Finalmente, em 622, Maomé viajou
com os seus seguidores para Yathrib, em pequenos grupos para afastar suspeitas. A
Hijra (Hégira, "emigração") é 5 a primeira data registada no calendário islâmico,
iniciado a partir desse ano (daí a designação "AH" - "Anno Hegirae" ou "Após a
Hégira" - nas datas do calendário islâmico). Em Yathrib, depois conhecida como
Medina, "A Cidade" (do Profeta), Maomé, na qualidade de árbitro e líder respeitado,
recebeu o apoio da maioria dos medinenses, seus Ansar (ajudantes). Os que o
acompanharam desde Meca eram conhecidos como Muhajirun (emigrantes). Estes,
sem condições para viver em Medina, começaram a atacar as caravanas dos
habitantes de Meca, agora seus oponentes religiosos e políticos. Um desses ataques,
em Badr, em 2 A. H./624 d.C., redundou numa frutuosa pilhagem, apontada pelo
Alcorão como reflexo da generosidade divina. Na mesma linha, uma batalha
fracassada em Uhud, no ano seguinte, foi interpretada como sinal de que os
muçulmanos haviam perdido a fé. A comunidade muçulmana tem sido sempre
política e religiosa. O tipo de discurso do Alcorão reflecte as diversas circunstâncias
dos últimos dez anos de vida de Maomé. Inclui legislação sobre heranças, jejum,
caridade e sua distribuição, casamento, condição da mulher, reflecte disputas
religiosas com cristãos e judeus e orienta sobre assuntos militares. Em 8 A. H./630
d.C., os muçulmanos estavam assaz fortes para conquistar Meca com muito pouco
derramamento de sangue. A Caaba foi expurgada dos seus ídolos, os ritos de
peregrinação foram islamizados - na forma que conservam até hoje - e todas as tribos
da Arábia se uniram para jurar lealdade a Maomé. Graças ao seu carácter e à sua
habilidade política, Maomé foi capaz de combinar o papel de profeta e fundador da
nova religião com o de chefe e líder tribal (ou supratribal) de uma comunidade
inteira. Contudo, a morte de Maomé, em 632, provocou uma crise na comunidade.
Como profeta, ele era claramente insubstituível. Mas a comunidade precisava de um
líder forte. Assim, um corpo consultivo composto pelos companheiros mais próximos
de Maomé escolheu para khalifa (califa, ou representante) Abu Bakr, sogro do Profeta
e um dos seus primeiros apoiantes. Abu Bakr foi o primeiro dos quatro arRashidun
("Os Califas Exemplares") e governou entre 632 e 661. 6 O ALCORÃO Alcorão (do
árabe al-Quram) constituiu a mais importante influência no desenvolvimento da
civilização islâmica e na vida da comunidade e dos indivíduos muçulmanos.
Venerado como discurso divino, tornou-se a medida e o modelo para o árabe falado e
escrito. É a fonte da teologia, da lei, dos assuntos comunitários, da conduta pessoal e
comercial e da vida diária. As suas palavras têm um efeito incalculável sobre ouvintes
e leitores. A língua árabe possui um ritmo e uma eloquência que lhe conferem o
estatuto de "inimitável", como comprova o próprio Alcorão, onde os incrédulos são
desafiados a "apresentar uma sura comparável" (10: 38). O Alcorão surgiu da
pregação de Maomé e a própria palavra significa "récita". É descrito como "guia"
necessário para os seres humanos seguirem o "caminho correcto". Os mesmos temas
ocorrem repetidas vezes: o apelo ao culto, a necessidade de justiça, a inutilidade do
paganismo, a inevitabilidade do Dia do Juízo, com as punições que esperam o
malfeitor e a recompensa do Paraíso para o justo. Eventos como a derrota em Uhud
ou questões de herança e divórcio requerem reflexão e zelo renovado, e o Livro
apresenta orientação e instruções pormenorizadas. O Alcorão que hoje se conhece é
essencialmente o texto reunido por Uthman, por volta do ano 30 A. H., que
corresponde a 652 d.C.. São 114 suras (capítulos), constituídas por ayat (versos) de
extensão variada. As suras são classificadas como de Meca ou de Medina, conforme
tenham sido reveladas (pelo menos, a maioria) em Meca, antes da Hégira, ou em
Medina, após a Hégira. De modo geral, as suras são agrupadas por extensão; as
primeiras e as mais curtas aparecem sobretudo no final do Livro. A única excepção é
a Fatiha, sura "inicial", frequentemente recitada como oração e que se diz conter a
essência do Alcorão. O Alcorão foi crucial para o desenvolvimento do árabe. Quando
o texto foi estabelecido pela primeira vez, apenas se escreveu o esboço. Aos poucos,
inventouse um sistema de pontos e sinais para distinguir cada uma das letras e vogais,
ao mesmo tempo que se desenvolveram estilos de caligrafia em diferentes regiões e
em períodos sucessivos. As cópias importantes do texto eram enfeitadas com folhas
de 7 ouro e cores. Na forma escrita, o Alcorão era imutável e passou a ser o árbitro do
árabe literário correcto. Os comentários e a exegese dos primeiros tempos
concentravam-se na forma gramatical e no significado exacto, uma vez que as
expressões do Alcorão constituem a base principal da lei e da teologia, e os versos
"obscuros" precisavam de esclarecimento e de interpretação. A condição de eterno e
não-criado do Alcorão significa que as suas palavras transmitem baraka ("bênçãos").
Aprendê-lo de cor, tornar-se hafiz ("preservador" do Alcorão) , é um dever piedoso,
merecendo o respeito da comunidade. A recitação do Alcorão constitui uma arte por
si mesma, e recitadores especializados podem auxiliar em ocasiões de luto ou de
celebração. Embora se reconheça que é preciso haver versões do Alcorão noutras
línguas além do árabe, os muçulmanos consideram essas obras mais como
interpretações do livro sagrado do que como traduções. O Alcorão é o alicerce da
vida muçulmana, mas o seu significado torna-se claro através dos actos, palavras e
silêncios de Maomé e dos seus companheiros, que se transformam numa espécie de
comentário vivo sobre as maneiras pelas quais o Alcorão devia ser entendido e posto
em prática. Fizeram-se colectâneas da Tradição (hadith), existindo seis autorizadas
(Colecções Correctas ou Sahih). O Alcorão e a hadith foram aos poucos organizados
em códigos de práticas conhecidos como Charia, "Caminho Bem Percorrido" (ver
Alcorão 45: 18). Os códigos não concordam em todos os aspectos, de modo que os
muçulmanos vivem em estilos ligeiramente diferentes, conforme o código que
seguem. Os quatro códigos são: Malikita, preponderante no Magreb e no Oeste de
África; Hanafita, encontrado em todo o mundo muçulmano; Shafiita, forte na Ásia; e
Hanbalita, na Arábia Saudita. AR-RASHIDUN, OS CALIFAS EXEMPLARES
Quando Maomé morreu, muitas tribos recentemente convertidas consideraram
terminado o seu pacto com Medina. No entanto, os muçulmanos pensavam de modo
diferente, e Abu Bakr viu-se forçado a empreender as guerras de ridda (apostasia),
para recuperar a fidelidade das tribos e reunificar a Arábia. A tarefa seguinte foi
difundir a nova religião, pelo que tiveram início as Futuhat 8 (conquistas), que
reunificaram toda a Arábia e chegaram até Damasco e Kufa, fazendo assim incursões
nos territórios bizantino e persa. Por ocasião da morte de Abu Bakr, em 634, a
escolha recaiu em Umar ibn alKhattab, que deu sequência às guerras de conquista.
Damasco foi tomada em 634- 635, e Jerusalém em 638. No Norte de África, Fustat
(antigo nome da cidade do Cairo) foi conquistada em 641 e Alexandria em 642. Os
exércitos muçulmanos espalharam-se por todo o litoral Norte de África, e os berberes
aderiram ao Islamismo e à sua força guerreira. A campanha contra os Persas foi
igualmente bemsucedida: em 637 os muçulmanos conquistaram as principais cidades,
inclusive a capital, Ctesifonte, e fundaram as suas próprias bases militares em
Bassorá e Kufa. Como religião, o Islamismo - com o seu credo simples e os seus
deveres precisos de salat (oração), saum (jejum), zakat (caridade), hajj (peregrinação)
e jihad (basicamente, esforço para seguir o caminho de Deus, mas também, quando
for o caso, esforço contra os infiéis) - parece ter sido facilmente absorvido pelos
habitantes das regiões conquistadas. Os Ahl alKitab ou "Povos do Livro" - ou seja,
aqueles que possuem Escritura: judeus, cristãos e, por extensão, zoroastristas -
puderam manter a sua religião e os seus líderes espirituais, mas foram agrupados
como dhimmis (protegidos) e efectivamente constituíam uma segunda classe.
Pagavam um imposto por cabeça (jizya) , enquanto os muçulmanos davam esmolas
(zakat) e, quando proprietários, pagavam um imposto sobre as terras (kharaj). Os
pagãos foram obrigados a converter-se ao Islamismo. O governo de Umar foi justo,
mas severo. Seguiu estritamente as directrizes do Alcorão e da hadith (narrativas das
palavras e dos feitos do Profeta e seus companheiros). Os governadores indicados por
Umar para os territórios longínquos reportavam-se directamente a ele, e deles
esperava-se que tomassem a iniciativa de seguir as regras islâmicas.
INSTABILIDADE POLÍTICA Por ocasião da morte de Umar, em 644, um Shura
(grupo de conselheiros) menos imparcial escolheu Uthman ibn Affan, homem de
carácter piedoso, mas fraco. Este colocou parentes nos principais cargos, incluindo
Muawiya como governador da 9 Síria. A piedade de Uthman não impediu revoltas
esporádicas, que culminaram em 656, quando um bando de rebeldes lhe atacou a casa
e o assassinou - enquanto lia o Alcorão, segundo conta a tradição. Surgiram boatos de
que Ali ibn Abi Talib, escolhido como o califa seguinte, estivera implicado no
assassinato de Uthman. Apesar de sempre o negar, não fez qualquer tentativa séria
para punir os assassinos do antecessor. Aliás, aos olhos dos companheiros e amigos,
era Ali quem deveria ter sido escolhido como primeiro califa, pois era o primo mais
novo de Maomé e desde muito cedo se convertera. Além disso, casara-se com Fátima,
filha do Profeta. Bravo lutador e adepto leal, Ali talvez não tenha sido, contudo, o
líder ideal para uma comunidade que se tinha tornado deveras extensa. A situação
política tornara-se muito instável, devido à rápida expansão do Império Islâmico, ao
afluxo de novos muçulmanos e dhimmis e à crescente independência dos
governadores provinciais. Muawiya conseguiu desafiar Ali para uma batalha, em 657,
persuadindo-o a renunciar ao califado e a submeter-se a um julgamento. Depois,
reivindicou para si o califado. Um grupo de seguidores acusou Ali de impiedade por
ter aceite o julgamento. Como era necessário derrotar esses dissidentes (khawarij ou,
no singular, khariji), desviaram Ali da principal ameaça, Muawiya. Quanto a este,
provocou um maior enfraquecimento da situação de Ali em 659, durante o processo
de julgamento. Já legalmente governador da Síria, Muawiya assumiu, em seguida, o
comando do Egipto. Em 661, Ali foi assassinado e Muawiya aceite como califa,
fundando assim uma dinastia que duraria mais de um século: o califado omíada.
DINASTIAS OMÍADA E ABÁSSIDA A dinastia omíada, sediada em Damasco,
governou de 661 a 750. Relatos posteriores falam dos omíadas como "reis" árabes, e
não como verdadeiros líderes islâmicos, embora isso talvez resulte da propaganda dos
abássidas. Sabe-se que os omíadas se apoiaram fortemente em tropas árabes,
realçando a sua herança árabe e expandindo-se para Leste e para Oeste noutras
conquistas. Em público, mantinham a lei religiosa, mas, como governantes,
desfrutavam de um estilo de vida luxuoso, que incluía caçar e beber vinho (actos que
a lei muçulmana proibia). A Mesquita 10 Omíada de Damasco e os vestígios dos seus
castelos no deserto são testemunhas do contraste entre as suas vidas oficial e privada
(ainda que este contraste não seja um exclusivo dos omíadas). Yazid, filho de
Muawiya, tomou-se califa em 680, com a morte do pai. No mesmo ano, a turbulência
no Iraque concentrou-se em Hussein, filho de Ali, mas a revolta foi um fracasso
militar. Noutro nível, a morte de Hussein em Karbala, no Iraque, marcou o início do
Shiat Ali ("partido de Ali", os shias, ou xiitas), que tinha por mártires os guerreiros
vencidos e acreditava que a verdadeira liderança islâmica fora herdada pela família
de Ali. REFORMAS E PRESSÕES ADMINISTRATIVAS A sucessão familiar
continuou deste modo, embora dois filhos de Yazid tenham desencadeado uma guerra
civil que durou de 683 a 684. Em 685, Abd alMalik tornou-se califa e iniciou a
verdadeira organização do governo. Os sistemas administrativos herdados de
bizantinos e persas conquistados não tinham sido alterados, permanecendo,
respectivamente, o grego e o persa como línguas oficiais. No governo de Abd al-
Malik, tudo foi centralizado. O árabe tornou-se a língua oficial para correspondências
e registos e estabeleceu-se uma cunhagem de moedas árabes, com o dinar de ouro e o
dirém de prata. Como sinal da piedade do califa, alguns bens do Tesouro foram
destinados a erigir o edifício original do Domo do Rochedo, em Jerusalém, e,
segundo alguns relatos, a um recinto para abrigar a Caaba, em Meca. Sob o comando
de Walid (que governou entre 705 e 715) , filho de Abd alMalik, as conquistas
expandiram-se ainda mais, levando o Islamismo rumo a Leste, para Bucara,
Samarcanda e Índia. A Oeste, um assentamento no Sul da Espanha resultou na
ocupação de boa parte da Península Ibérica. Em 732, o Império alcançou o seu ponto
mais a Norte, quando as forças muçulmanas foram derrotadas, perto de Poitiers, pelo
avô de Carlos Magno, o governador franco Carlos Martel (que governou de 715 a
741). O Império Bizantino ainda era poderoso, e, no reinado de Suleimão (715-717),
foi enviada uma expedição naval para atacar Constantinopla, o que resultou numa
derrota muçulmana que abalou seriamente o prestígio do califado. 11 Alegou-se que o
sucessor de Suleimão, Umar ibn Abd al-Abziz (717-720), foi o "único verdadeiro
califa" entre os omíadas, mas a sua piedade, aliada a uma tendência a favor dos
árabes, levou-o a banir os dhimmis dos cargos administrativos (embora admitisse
não-árabes para a amsar, guarnição militar das cidades) e também a aumentar o
pagamento aos soldados árabes que estivessem fora da Síria. Todas estas políticas
enfraqueceram o Tesouro. Além da classe dos dhimmis, havia os mawali (no singular,
mawla), muçulmanos não descendentes de tribos árabes, nem a elas afiliados. À
época, os mawali enfrentavam desvantagens económicas e sociais, além de que,
como grupo malquisto, constituíam uma potencial ameaça à estabilidade. Também
por volta desse período, os primeiros sufis são mencionados nas fontes históricas. O
ascetismo representava, pelo menos em parte, a continuação de uma antiga tradição -
como a dos Padres do Deserto, do século IV em diante -, e, por outro lado, uma
reacção dos muçulmanos piedosos contra o mundanismo e a riqueza de muitos outros
que se diziam muçulmanos. A hadith falava da pobreza e da simplicidade da vida do
Profeta, e as advertências do Alcorão eram inequívocas. O Império estava a tornar-se
demasiado grande e diversificado para a dimensão do seu centro administrativo e
político. Sucessivos califas revelaram-se demasiado fracos para controlar os seus
governadores. As finanças estavam abaladas. Os mawali não-árabes, mais ainda do
que os dhimmis, rebelaram-se contra a sua condição de segunda classe. Os seguidores
de Ali pretendiam instalar no califado alguém da sua família. Estes dois últimos
factores aliaram-se à revolta de Mohamed ibn Ali ibn alAbbas, um descendente do
Profeta que se apoiou nos xiitas extremistas e na lealdade à linhagem do Maomé.
Com a morte de al-Abbas, a organização da revolta passou para o seu filho, Ibrahim,
que enviou um iraquiano, Abu Muslim, até Khorusan, onde a revolta ganhou força
em 747. Houve uma pequena oposição efectiva por parte dos que apoiavam o
governo e, na grande batalha final, os omíadas foram definitivamente derrotados. O
irmão de Ibrahim, Abu al-Abbas, conhecido como al-Saffah ("O Sanguinário"), foi
proclamado califa em 750. Nos cinco anos seguintes, o califado teve como sede o
Iraque e deixou de ser predominantemente árabe. 12 Os omíadas que escaparam à
batalha acabaram por ser assassinados, com uma excepção, Abd ar-Rahman ("al-
Andalus"), que fugiu para Espanha e ali fundou uma dinastia omíada de amirs
(emires) em Córdoba, que durou até 1031. A província dos omíadas foi declarada
califado por Abd ar-Rahman III (912-961). A Grande Mesquita de Córdoba (datada
do final do século VIII) permanece como tributo ao poder, à cultura e à influência dos
omíadas. OS ABÁSSIDAS Em 754, quatro anos depois da vitória de al-Saffah, o seu
irmão alMansur fundou Madinat as-Salam ("Cidade da Paz"), Bagdade, entre os rios
Tigre e Eufrates. O Império ficava assim centrado numa região de comércio e
agricultura, herança das civilizações precedentes, Babilónia e Assíria. A
Administração teve um carácter predominantemente persa, deixando os árabes de ser
o principal suporte do exército, o qual era agora sobretudo composto por tropas
remuneradas, em vez de recrutadas, e se tornou, em certas ocasiões, demasiado
poderoso. Um exército forte e leal era vital para ajudar a esmagar as frequentes
rebeliões, ora de pretendentes ao califado, ora, mais seriamente, de amotinações dos
zanj (escravos negros) que, de 869 a 883, foram uma severa ameaça e chegaram a
dominar Bassorá, antes de serem derrotados. Bagdade era o centro de um vasto
império comercial e os seus mercadores viajavam até muito longe, a Norte, chegando
à Escandinávia, à Índia e à China. Mercadorias de luxo propiciaram riqueza e havia
fartura de artigos de consumo e géneros alimentícios. Tal como aconteceu com as
civilizações antigas, a irrigação voltou a proporcionar o cultivo de vastas parcelas de
terra. Porém, como tantas vezes antes, os camponeses continuaram pobres, enquanto
os patrões e os donos de terras enriqueceram. De todos os califas abássidas, talvez o
mais conhecido, através das histórias das «Mil e Uma Noites», seja Harun ar-Rashid,
que governou de 786 a 809. Depois da sua morte, desencadeou-se uma guerra civil
entre os seus filhos. Mamun saiu vitorioso e, durante o seu reinado (813-833), a
prosperidade do Império continuou em ascensão. Ao mesmo tempo, porém,
começaram a surgir tensões internas e 13 externas - governadores locais reclamavam
maior poder, e alguns fundaram dinastias próprias, prestando apenas lealdade
simbólica ao califa. Os omíadas de Espanha já eram emires independentes, e Abd ar-
Rahman III declarou-se califa em Córdoba, em 928. No século IX, outra família
persa, os buáiidas, invadiu Bagdade e tomou o poder real ao califa, até ser
substituída, no século XI, pelos turcos seljúcidas. Entretanto os xiitas começavam a
insistir nos seus direitos religiosos e políticos. Descendentes de Ali por intermédio de
Fátima, esposa deste e filha de Maomé (daí o termo "fatímidas") , e assim
duplamente relacionados com o Profeta, consideravam-se os verdadeiros califas. Em
765, ocorreu uma ruptura mais séria entre os xiitas: de um lado, os imamitas,
"seguidores do Décimo Segundo Imã", relativamente moderados e seguidores da
linhagem dos Imãs de Musa; de outro lado, os "seguidores do Sétimo Imã", ou
ismaelitas, mais extremados nos seus pontos de vista teológicos e políticos. Os
ismaelitas enviaram representantes a muitas partes do Império, obtendo maior
sucesso na Tunísia, onde, em 908, foi proclamado o primeiro califa fatímida. Em 969,
Muizz al-Din alcançou o poder no Egipto, de onde foram feitos novos ataques à
Palestina, Síria e Arábia. Muizz al-Din fundou al-Qahira (Cairo, ou "Cidade
Vitoriosa"), ao lado da velha capital, Fustat, e a Mesquita de al-Azhar foi construída
para ser o centro religioso e de ensino da versão ismaelita do Islamismo. O poder dos
fatímidas entrou gradualmente em declínio e terminou em 1171, com as conquistas
empreendidas por Salah al-Dain (Saladino), um muçulmano sunita e comandante
turco de origem curda, membro do clã aiúbida que conquistou aos fatímidas o Egipto
e a Síria. O próprio Saladino lutou contra os cruzados francos, reconquistando
Jerusalém para os muçulmanos em 1187. CULTURA E CREDO DOS ABÁSSIDAS
Sob o comando dos califas abássidas, floresceram a ciência, o ensino, a poesia e a
literatura. Muitos dos homens mais famosos da época não eram árabes. Os não-
muçulmanos também puderam adquirir fama e posição, em especial os médicos,
embora os dhimmis ainda estivessem em desvantagem legal, reforçada de vez em
quando. 14 Os abássidas tiveram o cuidado de cultivar a imagem de dirigentes
piedosos, legitimados por serem descendentes da família do Profeta. Embora a vida
na corte não fosse exactamente um modelo de comportamento muçulmano, os califas
individualmente demonstravam um profundo interesse pela religião, intervindo por
vezes em disputas religiosas. Durante os primeiros anos abássidas, a teologia do
Islamismo foi codificada, e vivas controvérsias degeneraram pontualmente em
conflitos declarados. Teólogos-filósofos conhecidos como mutazilitas, tentando
reconciliar a unidade de Deus com a Sua Palavra, declararam que o Alcorão foi
criado, pois, de contrário, seria outro ente divino. O "Alcorão criado" foi o ponto
central do credo desses pensadores, e al-Mamun sujeitou, por decreto, juízes e
teólogos ao mihna, o "teste" do assentimento. Alguns homens notáveis, entre os quais
Ibn Hanbal, recusaram-se a obedecer. Chegou a haver uma forte oposição a que se
reduzisse a condição do Alcorão, e um califa posterior revogou o decreto, permitindo
que os muçulmanos acreditassem novamente que o Alcorão era eterno e não-criado.
Em meados do século XI, os europeus começavam a recuperar territórios. Em
Espanha, a Reconquista progredia e, em seguida, no final do século XI, a Sicília (que
fora conquistada no século IX pela dinastia turca dos aglábidas e, mais tarde, passara
ao domínio do governo central abássida) caiu nas mãos dos Normandos. Com a
chegada dos cruzados, os "reinos latinos", de curta duração, estabeleceram-se na
Palestina e na Síria. Entretanto, com a morte de Saladino, em 1193, a maior parte do
território das Cruzadas voltou a pertencer ao Islamismo. Piores ameaças à dinastia
abássida vieram da Ásia Central, onde os Turcos se fortaleciam. Primeiro, os
seljúcidas tomaram Bagdade em 1055; depois, os Mongóis. Gengis Khan conduziu as
suas campanhas para Oeste e, em 1221, penetrou em território persa. Com a sua
morte, em 1227, Hulagu continuou a conquista, tomando Bagdade em 1258. A cidade
foi saqueada e o califa assassinado, encerrando-se assim quinhentos anos de califado
abássida. 15 OS XIITAS Hoje, os xiitas constituem uma significativa minoria (talvez
10% ) do mundo islâmico. A sua origem remonta aos primeiros dias da religião e o
seu nome indica que são Shi'at Ali, "partidários de Ali". Quando Abu Bakr, Omar e,
depois, Uthman foram escolhidos para suceder a Maomé, deixaram de lado o homem
que, na opinião dos que o apoiavam, teria o maior direito a ser califa: Ali, o primo e
genro de Maomé que, com a sua esposa, Fátima, e os seus dois filhos, Hassan e
Hussein, formavam a Ahl al-bayt (a Família do Profeta). Ali tornou-se califa por
alguns anos, mas, depois da sua morte, o poder passou para os omíadas. Em 680,
Yazid sucedeu-lhe no califado, mas os xiitas apoiavam Hussein. No caminho de
Medina para Kufa, em Karbala, no Iraque, Hussein e o seu pequeno grupo, que
incluía parentes próximos, foram derrotados e mortos pelas forças governamentais.
Esse "martírio" constituiu o evento que fundou a crença xiita. Os xiitas
permaneceram em minoria, sujeitos a perseguições no terreno político e
desenvolveram o princípio da taqiya ("ocultação piedosa"), que lhes permite esconder
as suas verdadeiras crenças, se for perigoso declará-las abertamente. O IMAMADO
O termo imã designa, no Islamismo xiita, o líder religioso da comunidade, posição e
título passados através das gerações. Durante o imamado de Jafar al-Sadiq (733-765),
o sexto imã da linhagem, estipulou-se doutrinariamente que o imã era guiado de
modo divino e que, como líder da comunidade, gozava de infalibilidade e de uma
condição de isma ("ausência de pecado"). Detinha autoridade para ensinar, orientar e
interpretar infalivelmente o Alcorão, tanto no sentido zahir ("aparente", "exterior"),
como no sentido batin ("interior", "esotérico"). A condição e o carácter hereditário do
imamado causou, por vezes, cismas. A divisão mais importante deu-se entre imamitas
(ithna ashariyya ou "seguidores do Décimo Segundo Imã" da linhagem) e ismaelitas
(sabiyya ou "seguidores do Sétimo Imã") . Quando Jafar faleceu, o filho mais velho
que sobrevivia, Musa, foi aceite 16 como imã pela maioria dos xiitas (os seguidores
do Décimo Segundo Imã) e a linhagem passou através da família até ao décimo
primeiro, al-Hasan al-Askari (868- 874), cujo filho Mohamed al-Mahdi desapareceu -
ou "foi ocultado" - em 940. Os xiitas, que coexistiram com a maior parte dos califas
abássidas, esperavam o retorno, em estilo messiânico, do Imã Oculto, que foi o
décimo segundo e último. O califa alMamun indicou para seu herdeiro o imã Ali al-
Rida, que morreu um ano depois, e assim, daí em diante, nenhum xiita chegou perto
de atingir o califado. O outro grupo de xiitas seguiu Ismael, filho mais velho de Jafar,
falecido antes do pai, mas que teria sido o sétimo imã na sucessão directa, e o seu
filho Mohamed. Surgiram muitas seitas de ismaelitas, das quais a mais importante é
actualmente a dos nizaritas, cujo imã tem recebido o título de Aga Khan, desde o final
do século XIX. Um ramo dos ismaelitas surgiu na linhagem dos fatímidas,
reclamando a sucessão através dos seus imãs, que mais tarde se tornaram califas no
Cairo. Um grupo de fatímidas extremistas proclamou o califa alHakim (falecido em
1021) como divino. Um dos seus defensores, Hamza ibn Ali, desenvolveu as
doutrinas esotéricas que formaram a base da religião drusa, a qual se estabeleceu nas
montanhas da Síria e do Líbano, mas as crenças e práticas dos seus iniciados
mudaram tanto que deixaram de ser ismaelitas. Outro grupo de cismáticos foi o dos
seguidores de Hasan-i-Sabbah, conhecido como o "Velho das Montanhas", que, no
final do século XI, fundou a Fortaleza de Alamut nas Montanhas Daylam, na Pérsia,
de onde eram enviados assassinos para exterminar alvos políticos. Diz-se que esses
seguidores de Hasan usavam haxixe, origem do termo "assassino", nome pelo qual
ficaram conhecidos. No século XIII, foram destruídos pelos Mongóis. CRENÇAS
XIITAS E SUA DISTRIBUIÇÃO A teologia xiita, tal como a teologia sunita, baseia-
se no Alcorão e no hadith, mas incorpora hadith adicionais e ensinamentos dos imãs.
A mais importante obra escrita é Nahj al-Balagha ("Caminho da Eloquência"), uma
colecção de ensinamentos atribuídos a Ali. As devoções xiitas incluem peregrinações
a santuários de imãs, em especial a Karbala e a Najaf. O taziya, ou luto em
homenagem à morte de al-Husayn (Hussein) e dos seus companheiros, tem lugar
anualmente por volta do dia 10 do 17 mês Muharram, primeiro mês do calendário
muçulmano. Espectáculos e procissões para assinalar o evento despertam intensa
emoção entre participantes e espectadores. Os xiitas não têm sido sempre, nem em
toda parte, uma minoria política. A dinastia dos safávidas (ou sefévidas) começou
como um movimento popular de reforma sunita, no século XIV, constituindo, por
volta do século XV, uma forte organização política no Noroeste da Pérsia e no Leste
da Anatólia. Os safávidas adoptaram a causa e as crenças xiitas. O fundador da
dinastia, Ismael (1487-1524), alegava ser o Imã Oculto. Em 1501, Ismael foi
proclamado xá (rei), e o xiismo dos seguidores do Décimo Segundo Imã tomou-se na
religião oficial, aceite em toda a Pérsia. O apogeu dos safávidas ocorreu no reinado
do Xá Abbas (1588-1629), cuja capital era Isfahan. Nessa época, a Pérsia desfrutava
de uma economia próspera e era célebre pelos tapetes e pelo artesanato de alta
qualidade, bem como pela beleza da sua arquitectura. Muitos mercadores da corte
inglesa iam até lá em busca de negócios. No entanto, em 1736, os Afegãos
conseguiram derrotar os últimos safávidas. Por sua vez, os próprios afegãos foram
expulsos em 1779 pela dinastia dos Qajar, oriunda da zona do Mar Cáspio, a qual,
começando por se fortalecer no Norte da Pérsia, reinou até 1924. O actual Irão é
fortemente dominado pelos xiitas seguidores do Décimo Segundo Imã, os quais
contam com um considerável contingente entre a população do Iraque, além de
grupos menores noutros países, como a Síria e o Líbano. Os ismaelitas, embora
formando uma minoria xiita, propagaram-se até mais longe, sendo hoje encontrados
no Irão, na Síria, no Líbano, no Leste de África, no Paquistão e, em particular, na
Índia (o ramo Bohra, iniciado no Iémen, migrou para Gujarat). Os seguidores do Aga
Khan, baseados principalmente na Índia, não apresentam nenhuma das tendências
extremistas dos primeiros ismaelitas e são um grupo privilegiado, altamente
organizado e bastante rico. ORDENS SUFISTAS Os princípios básicos do tasawwuf
(Sufismo) foram primeiro inspirados pelo próprio Alcorão e pelo exemplo do Profeta.
Por vezes, a devoção a um Deus Único e 18 a rejeição do mundo conduziram a um
ascetismo extremo. O Sufismo recebeu influências externas, particularmente da
tradição ascética de cristãos e gnósticos, ainda que se trate de uma forma
especificamente islâmica do caminho místico. No início, não havia sistema
organizado - cada santo, homem ou mulher, ensinava os seus discípulos e devotos,
sendo as suas palavras e acções registadas e transmitidas através das gerações. O
nome "sufi" deriva provavelmente de suf (lã), já que estes seguidores vestem mantos
de lã rústica. Entre os primeiros ascetas famosos incluíam-se: Hasan al-Basri
(falecido em 728) , no Iraque; Dhu al-Nun al-Misri, "O Egípcio" (falecido em 861) ; e
uma das místicas mais conhecidas de Bagdade, Rabia alAdawiyya (falecida em 801).
A vida de pobreza e devoção de Rabia, além das suas orações manifestando total
entrega a Deus e ao culto exclusivo do amor a Deus, continuam a inspirar os
muçulmanos. O ascetismo era uma preparação para a busca de marifa ("sabedoria" ou
"gnose", mais do que aprendizado em livros), para uma maior aproximação a Deus;
segundo alguns, expressava um anseio de união com Deus. Embora muitos sufis
fossem bastante piedosos e cumpridores da lei, as suas experiências e os seus
entusiasmos podiam conduzir alguns a pronunciamentos empolgados e imprudentes,
como ocorreu com Mansur al-Hallaj, cujas palavras ana alhaqq ("Eu sou a Verdade",
ou seja, Deus) contribuíram para a sua condenação e execução em 922. Contudo,
muitos sufis seguiam uma forma não tão extrema de fang (interpretada como um
"falecimento" em Deus). Os discípulos (muridun) reuniam-se em torno de um xeque
ou homem santo na khanaqah, zawiya ou ribat (casa destinada a uma fraternidade de
sufis, cada palavra denotando um propósito ligeiramente diferente). Esses discípulos,
conhecidos como salikun ("viajantes"), seguiam o Caminho, tariqa (no plural: turuq
ou tariqat), termo que mais tarde viria a designar as ordens. Certos mestres do século
X e de séculos posteriores são reconhecidos como inspiradores (embora não como
fundadores) da silsila ("cadeia" de filiais) que, mais tarde, se tornaria numa tariqa. Os
mais famosos foram alJunayd, de Bagdade (falecido em 910) e Yazid al-Bistami
(falecido em 874), de Bistam, ou Bastam, no Curasão (Norte do actual Irão) . No
século X, al-Qushairi, Abu Nasr al-Sarraj e Abu Talib al-Makki escreveram sobre o
Sufismo e seus praticantes. Abu Hamid al-Ghazali 19 (falecido em 1111), escritor
famoso, ajudou a tornar o Sufismo respeitável, ao abandonar o ensino da teologia na
prestigiada Faculdade Nizamiyya, em Bagdade, para buscar entre os sufis a "certeza"
da vida e da religião. A sua obra mais importante, Ihya ulum al-din («Renascimento
das Ciências Religiosas»), composta vários anos antes de 1105, mostra a sua
percepção espiritual do Islamismo: o Sufismo podia tornar-se num modo de viver,
propiciando uma abordagem mais pessoal em relação ao divino. AS TURUQ Nos
séculos XII e XIII, começaram as turuq propriamente ditas (ordens sufistas), cada
qual com o nome de um místico ou mestre famoso. Essas ordens conferiam ênfase a
orações e litanias particulares e, mais importante, às suas dhikr (literalmente,
"lembranças de Deus"), em geral expressas através da recitação comunitária dos
nomes de Deus ou de invocações piedosas. Cada novo sufi recebia do seu xeque o
manto, a khirqa, como sinal da sua entrada na ordem. Constatou-se um
desenvolvimento menos ortodoxo na excessiva veneração aos xeques sufis, a qual
resultava em grandes peregrinações a santuários e túmulos de homens santos e na
crença na sua intercessão. As ordens mais famosas incluem a Qadiriyya, assim
denominada em honra de Abd al-Qadir al-Jilani (falecido em 1166), e a Shadhiliyya,
em homenagem a Abu alHasan Ali al-Shadhili (c. 1196-1258), um mestre inspirado e
profundamente espiritual. A fundação da Suhrawardiyya é atribuída a Abu al-Najib
al-Suhrawardi (falecido em 1168), mas a tariqa foi desenvolvida pelo seu sobrinho,
Shihab al-Din alSuhrawardi, tendo-se esta ordem expandido para a Índia. A
Chishtiyya foi fundada na Índia por Muin al-Din Chishti, que morreu em 1236, em
Ajmer, no Rajastão (Norte da Índia) . Na Anatólia, a tariqa Mevlevi (Mawlawiyya ou,
em turco, Mevleviyya) formou-se em torno de Jalal ad-Din Rumi (falecido em 1273),
conhecido como Mawlana ou Mowlavi ("Nosso Mestre") e cuja poesia mística,
escrita em persa, é muito apreciada. Estes sufis da Anatólia, sediados em Konya,
ficaram conhecidos como "dervixes dançarinos", por fazerem música e dançarem. A
Ordem Naqshbandiyya recebeu o seu nome em honra de Baha al-Din Naqshband,
falecido 20 em Bukhara no ano de 1389. Originária da Pérsia, esta tariqa tornou-se
popular na Turquia e difundiu-se para a Índia, no final do século XVI. Actualmente, a
sua expansão chegou à Europa e tem vindo a atrair para o Islamismo muito adeptos
ocidentais. Apesar de não ter fundado uma ordem, Muhyi ad-Din Ibn al-Arabi
(ashshaykh al-akbar, "O Grande Xeque", 1165-1240) , de Espanha, é provavelmente
um dos nomes mais famosos no Ocidente. Os seus ensinamentos exerceram grande
influência em místicos posteriores. A partir da Idade Média, as novas fraternidades
sufistas têm constituído principalmente subdivisões ou grupos mais localizados.
CIÊNCIA E SABEDORIA DO ISLAMISMO NA IDADE MÉDIA "O Senhor
ensinou através da pena", ensina o Alcorão. Alá é a fonte de todo o conhecimento e as
ciências religiosas são prioritárias. No entanto, no início, a pena não era relevante. Os
Árabes possuíam uma longa tradição oral, com narrativas de batalhas, rixas e guerras,
além de uma poesia subtilmente modulada, celebrando a vida no deserto. O seu
grande orgulho é a língua árabe, idioma de que o Alcorão constitui exemplo máximo,
bem como modelo de retórica e de discurso claro e poético, sem ser enfaticamente
"poesia". Devido à sua condição, o Alcorão foi o primeiro objecto de estudo dos
muçulmanos. Repetido e apreciado oralmente, o seu conteúdo rapidamente foi
coligido e registado. O cuidado posto na preservação da gramática e da pronúncia
exactas ajudou a desenvolver a escrita árabe e, mais tarde, os estilos de caligrafia. A
ciência do tafsir - exegese e comentários sobre o Alcorão - exigia alto nível de
habilidade filológica e gramatical, além de conhecimentos sobre a História e a
Tradição. Os comentários mais famosos são os dos historiadores al-Tabari (falecido
em 923), al-Zamakhshari (falecido em 1143) eal-Baydawi (falecido em 1286). A
segunda fonte da teologia e da lei era o hadith, que transmitia a suna. "costume" ou
"caminho" de Maomé e seus companheiros. A princípio, foi propagada oralmente.
Pelo menos em teoria, reflecte as condições da época do Profeta, transmitindo as suas
"palavras, feitos e aprovação silenciosa". Em pormenores bastante minuciosos,
abrange muitos aspectos da piedade e do comportamento aceitável na vida pública e
privada, incluindo, por vezes, certas directivas do Alcorão. 21 No século IX,
estudiosos compilaram colecções escritas de frases e narrativas aceites como
genuínas. As mais conceituadas são as de al-Bukhari (falecido em 870) e de Muslim
ibn al-Hajjaj (falecido em 875) , além de quatro outras obras contemporâneas, que
constituem os "seis livros" de referência. O estudo do hadith incentivou o
desenvolvimento da biografia. De início, o propósito era apenas registar as vidas dos
transmissores do hadith, verificar a sua fiabilidade. Posteriormente, passou-se à
compilação das tabaqat ("classes") , sobre as vidas de sábios, advogados, cientistas e
médicos, entre outros. As conquistas territoriais conduziram à aquisição de sabedoria
mais antiga, em persa e, especialmente, em grego. No final do século VII, os sábios
traduziram para siríaco o corpus das ciências gregas, especialmente nas áreas da
Filosofia, Medicina, Astronomia e Matemática, sendo feita logo depois uma tradução
para o árabe. Esta foi particularmente encorajada pelo califa abássida al-Mamun, que
fundou em Bagdade a Bayt al-Hikma (Casa da Sabedoria), dedicada à tradução e ao
estudo. Algumas disciplinas do Conhecimento tinham um valor óbvio e prático: a
Medicina era importante, assim como a Matemática e a Astronomia, utilizadas para
fins de navegação e exploração e para cálculos de datas precisas com propósitos
religiosos (como o Judaísmo, o Islamismo segue um calendário lunar). Os primeiros
séculos do Islamismo testemunharam a presença de sábios dotados de profundos e
abrangentes conhecimentos, como, por exemplo, al-Kindi, no século IX (um dos
poucos cientistas de origem puramente árabe), ar-Razi, nos séculos IX e X, Ibn Sina
(Avicena), no século XI, e al-Biruni, nos séculos X e XI. A filosofia grega abriu
novos horizontes à teologia do Islamismo e questionou a tradicional auto-suficiência
do Alcorão e da Suna. O desenvolvimento da kalam, uma teologia especulativa ou
filosófica, ampliou o uso da argumentação racional. Finalmente, através da obra de
al-Ashari (século X) e de outros, a Filosofia e a Razão passaram a ser aceites como
sustentáculos da Revelação. Mantiveram-se as bases do pensamento grego, mas os
ensinamentos islâmicos tinham a primazia. As referências do Alcorão às mãos, aos
olhos e ao trono de Deus, bem como à visão de Deus no Paraíso, eram aceites
literalmente, sem qualquer questionamento. 22 O Direito é uma ciência característica
do Islamismo. O Alcorão e o hadith, as duas principais fontes, apoiadas pela qiyas
("analogia"), podem ditar a conduta nos mais minuciosos pormenores. Por volta dos
séculos VIII e IX, desenvolveram-se, para as questões mais importantes, quatro
madhahib (no singular, madhhab, termo normalmente traduzido como "escolas
jurídicas") , que receberam os nomes dos seus fundadores: Abu Hanifa, Ibn Hanbal,
al-Shafii e Malik. De modo geral, a interpretação hanabalita é a mais rígida e a
hanafita, a mais abrangente e mais difundida. No período medieval, os textos e os
ensinamentos médicos dos árabes eram os mais avançados. Durante as Cruzadas, um
viajante muçulmano escreveu, horrorizado, sobre a prática médica dos "Francos". Os
árabes usavam obras gregas e desenvolveram uma sabedoria própria, tendo
acrescentado novas matérias médicas à farmacologia. A partir do século XI, obras
médicas em árabe foram traduzidas para latim, principalmente em Espanha e em
Itália, continuando a influenciar e a instruir o Ocidente ao longo do tempo. Só nos
séculos XVI e XVII, os árabes perderam para o Ocidente a sua posição em Ciência
Médica, com o trabalho de homens como Vesálio e Harvey. No entanto, em
farmacologia, a tradição árabe persistiu até ao século XIX. Ainda hoje se publicam no
Médio Oriente obras sobre ervas medicinais e farmacopeia, como é o caso das
edições da «Medicina do Profeta», que combina folclore, conhecimentos de ervas e
práticas piedosas. No mundo moderno, a ciência ocidental foi aceite pelas sociedades
árabes, em especial depois da invasão do Egipto por Napoleão, quando, ao mesmo
tempo que os sábios franceses estudavam as antigas civilizações, o Egipto ia
adquirindo a ciência, o treino e a perícia ocidentais. Mais recentemente, em alguns
países muçulmanos, tem-se verificado uma reacção contra o Ocidente, considerado
como fonte de secularismo, imoralidade e ausência de religião. Uma visão mais
equilibrada tende a aceitar as descobertas e as tecnologias, enquanto procura evitar
aspectos da vida ocidental considerados incompatíveis com o Islamismo. A maioria
desses aspectos estaria relacionada com os ensinamentos cristãos, mas existe uma
tendência a associar "cristão" com "ocidental". Ao mesmo tempo, árabes e
muçulmanos têm vindo a recuperar um orgulho próprio na sua herança cultural e
científica, bem como o seu lugar na História da Civilização.
Texto 2

ISLAMISMO A DIFUSÃO DO ISLAMISMO ATÉ À IDADE MODERNA

A DIFUSÃO DO ISLAMISMO O Islamismo descreve-se a si mesmo como Religião


e Estado (din wa-dawla), indicando uma realidade que se verifica desde os primeiros
dias. Diferentemente da tradição ocidental, no Islão, a separação entre "religião" e
"política" é apenas virtual. A tendência a difundir tanto o controlo religioso como o
político ficou evidente na cuidadosa expansão militar do Império, durante o primeiro
século de existência da religião. Desde meados do século VIII, grande parte da
Andaluzia, na Península Ibérica, tornou-se numa potência omíada muçulmana, que
durou até ao início do século XI. Entretanto, os exércitos muçulmanos moviam-se
para Leste, chegando à Ásia Central e às fronteiras da Índia. Por volta de 732, um
século após a morte de Maomé, o Império Muçulmano alcançara a sua maior
extensão em termos de conquistas e territórios. Todavia, no que se refere ao objectivo
do Islamismo de expandir a sua esfera de influência, é de notar que, contrariando a
crença popular, o mesmo não "se expandiu pela espada". Esta religião, que começou
no Médio Oriente, onde aparentemente se enraizara, conseguiu difundir-se não
apenas com a conquista e o império, mas também por meios mais pacíficos. Apesar
de serem árabes a natureza, a língua e a sabedoria do Islamismo, hoje em dia os
muçulmanos não são de maioria árabe - muito milhões encontram-se no Sudeste
Asiático, na África, na China e na antiga União Soviética. Isto não aconteceu por via
militar, mas através das actividades comerciais e das viagens, encorajadas pelo
Islamismo, e em particular através do exemplo e da influência das ordens sufistas. A
hajj (peregrinação anual a 2 Meca) reúne milhares de pessoas de todas as partes do
Mundo, as quais, pelo menos para fins de observância religiosa, compartilham a
língua árabe. ÁFRICA Na realidade, a primeira expansão do Islamismo foi uma
consequência das conquistas dos primeiros califas. Os exércitos árabes moveram-se
rapidamente através do Crescente Fértil (Egipto, Palestina, Síria, Mesopotâmia) e ao
longo do Litoral Norte de África. Sempre que algum chefe berbere via vantagens em
se tornar muçulmano, a sua tribo seguia-o. O Norte da África - berço de Santo
Agostinho de Hipona e, no século V, sede de uma Igreja florescente - foi rapidamente
islamizado, sem a permanência de cristãos nativos, como acontece no Médio Oriente
(a despeito da condição de dhimmis dos cristãos). De início, as conversões ao
Islamismo não foram encorajadas, pelo facto de a religião ser considerada árabe.
Contudo, por volta do século VIII, indivíduos e grupos foram atraídos para a religião
dominante, o que acarretava diversas vantagens. Tinha assim início um processo de
conversão, que perdurou durante vários séculos. A África ao Sul do Saara era
acessível pelo deserto ou pelo Nilo até ao Sudão, mas o Islamismo chegou ali
principalmente através do comércio marítimo com as cidades costeiras. No Leste de
África, a partir do século VII, as visitas de mercadores árabes e persas eram
frequentes, e muitos deles fixaram-se no Litoral. Tanto no Leste como no Oeste de
África, os contactos comerciais conduziram as classes dominantes ao Islamismo, e a
chegada dos sufis fez que as populações locais se convertessem. No Oeste Africano,
entre o final do século X e o século XI, formaram-se alguns Estados islâmicos,
embora o Islamismo permanecesse sobretudo como religião dos dominadores e da
elite. Em geral, o Islamismo não foi exclusivo, e ainda hoje há aldeias e até famílias
que abrigam membros muçulmanos e não-muçulmanos. 3 SUDESTE ASIÁTICO
Consideramos aqui como Sudeste Asiático a Península da Malásia, Java e Sumatra
(actual Indonésia), Bornéu, algumas ilhas e arquipélagos menores e as Filipinas. A
extensão total da área é de cerca de 5.450 quilómetros de Oeste a Leste e de 2.000
quilómetros de Norte a Sul. O Islamismo chegou ao Sudeste Asiático mais
gradualmente do que ao mundo árabe, e foi absorvido durante um período mais
longo. A região mantinha intenso contacto comercial com a Arábia e com a Índia, e é
provável que mercadores muçulmanos se tenham fixado em portos comerciais,
acompanhados por missionários sufis. Devem, portanto, ter estabelecido uma
presença islâmica que, além do conteúdo religioso, atrairia os dirigentes locais,
interessados nas suas valiosas redes de comércio. Também o povo local terá sido
seduzido pelas suas qualidades de unificadores. A Indonésia começou a islamizar-se
no final do século XIII, através dos contactos entre as comunidades comerciais do
Litoral e os mercadores muçulmanos. Gradualmente, a conversão expandiu-se para o
interior. As viagens não tinham apenas fins comerciais - estudantes e eruditos, sufis e
homens santos, contribuíram para levar a organização da sociedade islâmica a um
novo ambiente. Os dirigentes islâmicos não substituíram os regimes locais, pelo
contrário, os ensinamentos islâmicos mesclaram-se com a cultura e a sociedade há
muito estabelecidas e altamente desenvolvidas. Não existe muita documentação sobre
esse primeiro período, porém, uma presença muçulmana em Sumatra é registada no
final do século XIII por Marco Polo e, em meados do século XIV, por Ibn Battuta,
célebre viajante marroquino. Aquela região foi palco do primeiro e forte reino
muçulmano do Sudeste Asiático, [o Sultanato de] Atjé, no extremo Noroeste de
Sumatra, uma vigorosa potência no final do século XVI. No início do século XV,
Malaca, na Península da Malásia, era um pequeno reino independente dirigido por
um chefe muçulmano. Malaca desfrutava de intensos contactos comerciais e
transformar-se-ia num importante centro difusor do Islamismo. No final do século,
outros dirigentes da Península tornaram-se muçulmanos e Johore transformou-se num
foco religioso. Em Java, estabeleceu-se o Reino muçulmano de Mataram, que, por
volta de 1625, controlava toda a ilha. A Nordeste de Java, o Islamismo foi aceite nas
Ilhas Molucas e em parte do Bornéu, 4 pelos finais do século XV. Durante este
século, o Islamismo alcançou as Filipinas a partir de Java e de Sumatra, onde grande
parte da população continua hoje a ser muçulmana, embora a religião maioritária seja
o Cristianismo. Em meados do século XVII, Abd al-Rauf al-Sinkili fez uma tradução
malaia do Alcorão, tornando o Livro mais acessível, o que talvez esclareça como o
Islamismo foi capaz de se adaptar ao contexto local. Na Malásia e na Indonésia, o
Islamismo ortodoxo tem características próprias, destacando-se a poderosa influência
exercida pelo Sufismo. No século XVI, os mercadores europeus desembarcaram na
Indonésia. O comércio de especiarias exigia bases e portos seguros. Os portugueses
foram os primeiros, seguidos pelos holandeses, e ambos conquistaram territórios,
dividindo o controlo das Índias Orientais e da Malásia até ao século XIX. A presença
europeia provocou um deslocamento e intercâmbio populacional entre as ilhas,
reforçando a identidade e a cooperação islâmicas. Os interesses comerciais
holandeses ampliaram-se, e a Companhia das Índias Orientais Holandesas
estabeleceu um alicerce firme, com o seu novo centro comercial no Litoral Noroeste
de Java, denominado Batávia (actual Jacarta). Em 1800, o controlo passou para o
governo holandês, com o qual permaneceu, excepto por um breve período (1811-
1816), quando Java e as suas dependências estiveram sob o controlo britânico, tendo
Stamford Raffles como governador. Em 1819 os britânicos estabeleceram uma base
em Singapura e tomaram o Estreito de Malaca, entre Sumatra e a Península da
Malásia. Em meados do século XIX, britânicos e holandeses detinham possessões na
Malásia e na Indonésia, respectivamente. No início do século XX, surgiram
movimentos nativos em busca de maior autonomia. O movimento Budi Utomo
("Nobre Empenho"), fundado por um grupo de javaneses de educação holandesa,
visava modernizar o sistema social, então baseado em estruturas muçulmanas
tradicionais. Seguiram-se outros movimentos, dos quais o mais importante foi a
União Islâmica (Sarekat Islam), de 1912. De entre os movimentos islâmicos,
destacam-se o Muhammadiyah (de 1912), predominantemente modernista, e o
tradicionalista Nahdatul Ulama (de 1926). O Partido Nacionalista Indonésio (PNI) foi
fundado em 1927, sob a liderança de Achmed Sukarno (1901 -1970), tendo por
objectivo uma Indonésia unificada e independente da Holanda. 5 Toda essa actividade
política foi interrompida com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e com a
ocupação japonesa de 1942-1945. Depois da guerra, a Indonésia tornou-se finalmente
uma república independente, com uma coligação governamental constituída por
representantes dos partidos muçulmano, nacional e comunista, tendo Sukarno como
Presidente (1945-1966) . Foi proclamado um Estado nacional baseado nos Cinco
Princípios (Pancasila): os ideais de Crença em Deus, Nacionalismo, Humanitarismo,
Democracia e Justiça Social. Na década de 1960, uma guerra civil derrotou os
comunistas e, em 1966, o general Suharto (nascido em 1921) tornou-se Presidente.
Embora a Indonésia não seja oficialmente muçulmana, um Ministério da Religião
protege os interesses dos muçulmanos e de outros crentes, sendo encorajado um
Islamismo não-político, ao mesmo tempo que o Ministério da Educação promove a
educação islâmica, com instrução religiosa em todas as escolas. Em 1951, foi fundada
a Universidade Estatal Islâmica, transformada em 1960 no Instituto Estatal da
Religião Islâmica. Processo similar ocorreu na Península da Malásia. Em 1948,
formou-se uma Federação da Malásia e, em 1957, um Estado malaio independente,
tendo o Islamismo como religião oficial, ainda que com garantia de liberdade de
culto. Em 1963, esse Estado recebeu o nome de Malásia. O país é nominalmente
muçulmano, com um forte movimento dakwah (dawa), de carácter missionário e
educacional. A descoberta e a exploração de petróleo têm contribuído para a notável
prosperidade da região. O sultão do Brunei - pequeno Estado islâmico a Noroeste do
Bornéu - é um dos homens mais ricos do mundo actual. Na região da Indonésia e da
Malásia, as mesquitas são grandes e belas, com uma arquitectura de estilo próprio,
mais semelhante à da construção dos templos tradicionais indianos do que à estrutura
e ornamentação geométricas das mesquitas árabes. O ISLAMISMO NA ÍNDIA No
tempo das primeiras conquistas islâmicas, ocorreram também as primeiras invasões
da Índia. Um exército enviado pelo governador do Iraque invadiu e conquistou a
região de Sind, na parte mais baixa do Vale do Indo (711-712). Os 6 árabes
estabeleceram pequenas dinastias independentes no novo território, e algumas tribos
nativas tornaram-se muçulmanas. Entretanto, no vizinho Afeganistão, os gasnávidas
muçulmanos tomaram o poder. O mais notável dos seus reis, Mahmud (998-1030),
fez incursões quase anuais à Índia entre 999 e 1027. Sendo mais do que um mero
conquistador, Mahmud trouxe para a sua corte uma série de poetas e artistas indianos,
além de proveitosos saques. Os gasnávidas acabaram por ser expulsos pelos góridas,
que também varreram o Norte da Índia até ao Rio Ganges. No final do século XII, o
governante local do Norte da Índia tornou-se independente da autoridade central,
tendo os chefes de Deli adoptado o título de sultão no início do século XIII, sinal de
poder e de autonomia. Em 1241, os mongóis invadiram o Punjab, mas o sultanato
conseguiu recompor-se e expulsou-os. O poder muçulmano moveu-se para Sul,
através do [Planalto de] Decã. Coexistiam vários sultanatos, inclusive os de Bengala,
Caxemira, Gujarat e Jaunpur. O ano de 1320 viu surgir em Deli a dinastia dos
Tughluq. Sob o governo de Muhammad ibn Tughluq (1325-1351) , eruditos
religiosos (ulama) e homens santos foram enviados às fronteiras, com a missão de
preparar o terreno para o Islamismo. A conversão não fez uso da força. Pelo contrário,
a universalidade do Islamismo atraiu os inconformados com o sistema de castas, e
inúmeros tornaram-se muçulmanos através do contacto com a Ordem sufista Chishti.
Esta, fundada na Índia no final do século XII, valorizava a instrução, a contemplação
e, em particular, a música e os cânticos de devoção como forma de aproximação ao
Infinito. As mesquitas (masjids), as escolas religiosas (madrasas) e as residências para
os sufis (khanaqas) constituíam a base da vida e da sociedade muçulmanas na Índia.
O próprio Sultanato de Deli era nominalmente muçulmano, embora os chefes
variassem entre a estrita observância à lei e a franca desobediência. Firuz, filho de
Muhammad ibn Tughluq, foi um sultão poderoso que tolerou os hindus. No entanto,
após a morte de Firuz, em 1388, uma série de dirigentes débeis causou uma gradual
desintegração do sultanato, que acabou por ser atacado por Timur (ou Tamerlão) e
pelos seus exércitos mongóis em 1397-1398. Deli rendeuse, mas Timur regressou ao
Norte. Por fim, um descendente de Timur, Babur (ou Baber) invadiu e tomou o
sultanato em 1526, pilhando e ocupando Deli e Agra, percorrendo e apoderando-se de
todo o Norte da Índia. Homem de letras e soldado, 7 Babur foi sucedido, em 1530,
pelo seu filho Humayun e, em 1556, pelo seu neto, Akbar, o verdadeiro fundador da
dinastia mongol. O reinado de Akbar é descrito como a "Idade do Ouro" do Império
Mongol. O território sob o controlo mongol foi expandido, pois Akbar anexou
Caxemira e o Baluquistão, a Norte, e o Decã, a Sul. Embora fosse, na origem, um
muçulmano devotado, Akbar tolerou a religião local e foi receptivo aos seus dogmas.
Dispensou os hindus do pagamento do imposto e o seu principal conselheiro de
finanças foi um hindu. Os registos do governo eram feitos em língua persa,
reflectindo bem a abertura e a aceitação de Akbar para com as influências não-
muçulmanas. Debates sobre assuntos religiosos eram frequentemente realizados na
sua cidade, Fatehpur Sikri, e Akbar proclamou mesmo um novo estilo de religião
monoteísta, a Din-i Ilahi, que incluía elementos de várias religiões (crença que
morreu com Akbar). Depois da morte de Akbar, em 1605, o seu filho Jahangir
governou até 1628, sendo sucedido pelo Xá Jahan (1628-1658), o construtor do Taj
Mahal, em Agra. O filho deste, Aurangzeb, subiu ao trono em 1658. Rígido
muçulmano, Aurangzeb restabeleceu o imposto para os hindus, destruindo ainda
alguns dos seus templos. O reinado foi constantemente abalado por sublevações e
Iutas, com o imperador dirigindo a própria campanha. Após a sua morte, em 1707, o
seu filho Muazzam assumiu o poder, reinando com o título de Xá Bahadur. Mas o
Império enfraquecia e, em 1738, sofreu invasões do Xá Nadir, do Afeganistão. Os
hindus recuperaram gradualmente força e influência, ao mesmo tempo que os
britânicos e outros europeus se tornavam mais poderosos. Em 1858, o último mongol
foi deposto, acusado de cumplicidade no Motim Indiano/Guerra de Independência, e
a Índia caiu em poder dos britânicos. O Islamismo deixara de ser a religião
dominante, entrando em frequentes conflitos com o Hinduísmo.

OBSERVÂNCIA DO ISLAMISMO NA ÍNDIA E NO PAQUISTÃO Na Índia, o


Islamismo tem sido descrito como "um Islamismo essencialmente de homens santos".
Enquanto a crença e a prática ortodoxas mantiveram o poder, o modo de vida sufista
combinou com a tradição hindu de homens santos. Aceitavam se mais prontamente os
santuários e a veneração aos túmulos do que nas terras 8 centrais do Islamismo. A
abertura de Akbar foi criticada por alguns anciãos religiosos, como o Xeque Ahmad
Sirhine (1564-1624), da tradição Naqshbandi. Mais tarde, outro xeque Naqshbandi, o
Xá Wali Allah (falecido em 1763), procurou dar um "novo espírito à ijtihad", a
interpretação do Islamismo à luz do pensamento contemporâneo. No século XIX,
pensadores muçulmanos da Índia conheciam e combatiam as ideias ocidentais.
Sayyid Ahmad Khan (1817-1898) percebeu a necessidade de uma versão moderna da
dialéctica religiosa (kalam). Fundou a Faculdade de Aligarh, rejeitou a obediência
inquestionável à tradição (taqlid), apelou para uma reinterpretação do Alcorão e
escreveu um estudo comparado entre Islamismo e Cristianismo. Pouco depois,
Muhammad Iqbal (1876-1938), erudito e poeta, escreveu «A Reconstrução do
Pensamento Religioso Islâmico» (1928) . Como Muhammad Ali Jinnah (1876-1948),
fundador do Paquistão, lqbal acreditava que os muçulmanos precisavam de ter uma
nação própria. Finalmente, as tensões entre muçulmanos e hindus irromperam em
trágicos assassinatos e no deslocamento de milhões de pessoas, que acompanharam a
Separação, em 1947. 0 Islamismo teve uma nação própria, mas a um preço terrível.
Entre os séculos XVI e XIX, os europeus, com a sua exploração, o seu comércio e a
sua expansão, trouxeram uma nova experiência ao Islamismo da Ásia, de África e do
Subcontinente Indiano: viver sob um domínio não-muçulmano. Como se constatou
no Sudeste Asiático, isso provocou uma migração em massa que, por sua vez,
produziu um novo fenómeno: maior número de muçulmanos a viver no Ocidente e na
Europa. O IMPÉRIO OTOMANO Os otomanos foram a última e, de longe, a mais
importante e mais duradoura de uma série de dinastias turcas que governaram partes
do mundo islâmico, do século X em diante. Basicamente, podem considerar-se como
os sucessores dos seljúcidas, que governaram, no século XI, a região que hoje
abrange o Irão e o Iraque, estabelecendo um Estado subsidiário na Anatólia, depois da
vitória sobre os bizantinos em Manzikert, em 1071. O Sultanato seljúcida de Rum
tornou-se possível, graças à grande migração oguz de turcos oriundos do Irão. 9 A
dinastia otomana (ou osmanli) recebeu esse nome em homenagem a Uthman (ou
Osman, que governou de 1281 a 1324), o qual, no final do século XIII, fundou o
núcleo de um Estado no Noroeste da Anatólia. O seu filho Orkhan (que governou de
1324 a 1360) consolidou e ampliou os domínios na Anatólia, conquistou Bursa e
Iznik, deslocando-se na década de 1350 para a Europa, via Galípoli e invadindo a
Trácia. Em 1366, a capital da dinastia mudou de Bursa para Edirne (Adrianópolis), no
continente europeu. Os exércitos otomanos assumiram aos poucos o controlo dos
Balcãs, ao mesmo tempo que ampliavam os seus domínios na Anatólia. Em 1402,
uma invasão mongol comandada pelo guerreiro Timur (Tamerlão) derrotou os
otomanos e capturou o Sultão Bayezid (que governou de 1389 a 1402). Porém, os
mongóis não ocuparam a região de modo permanente. Seguiram-se dez anos de
guerra civil, após o que a unidade do Estado foi restaurada e a expansão otomana
recomeçou. Gradualmente, a maior parte da população cristã da Anatólia foi-se
tornando muçulmana, embora nos Balcãs os cristãos continuassem a constituir uma
maioria. O APOGEU DO IMPÉRIO A conquista de Constantinopla em 1453, durante
o governo de Mehmet Fatih ("O Conquistador", 1451-1481), foi um evento de
enorme significado para os otomanos - uniu as duas metades do grande império da
época e, simbolicamente, atribuiu ao sultão otomano a condição de sucessor do
imperador bizantino. Foi também um golpe decisivo contra o poder, o orgulho e a
confiança de cristãos e bizantinos. A imponente Igreja de Hagia Sofia (Santa Sofia)
foi transformada em mesquita, e a natureza da cidade mudou inteiramente. No
período dos otomanos, que eram muçulmanos sunitas, as madrasas (escolas
religiosas) e as waqfs (doações piedosas) asseguraram a função de perpetuar as
instituições de ensino e caridade, muitas das quais serviram de inspiração para a
belíssima e distintiva arquitectura otomana. O mundo islâmico obteve uma unidade,
que desconhecia desde o período dos abássidas. Em 1516-17, as conquistas otomanas
tomaram os reinos mamelucos da Síria e do Egipto, que permaneceram sob o seu
controlo até ao século XIX, ficando os otomanos também 10 responsáveis por manter
e supervisionar Meca e Medina. No período de Suleimão I, o Magnífico (governou de
1520 a 1566), o Império chegou ao apogeu em termos de cultura e de poder.
Suleimão conquistou boa parte da Hungria. Nesse mesmo período, o litoral da
Argélia e da Tunísia também passaram à suserania otomana. Tanto Mehmet como
Suleimão introduziram novos códigos de leis administrativas, que complementavam a
Lei da Charia (sharia). Traço notável da organização do Império no apogeu foi o facto
de uma grande parcela do exército e de funcionários oficiais graduados serem
recrutados por meio de tributo compulsório, cobrado à população não-muçulmana
dos Balcãs. Os recrutas submetiam-se a rigoroso treino, que incluía a conversão ao
Islamismo. A mais famosa das forças compostas por esses antigos cristãos foi a tropa
de infantaria dos janízaros. Verificava-se uma tolerância generalizada para com os
dhimmis (arménios, cristãos sírios e gregos, judeus), cujas hierarquias religiosas
foram, até certo ponto, incorporadas no sistema administrativo. Os otomanos
encorajaram as artes do Islamismo: arquitectura, estilos distintos de caligrafia,
manuscritos com iluminuras, pintura e artes manuais. A literatura, em especial a
poesia, era de grande importância para a elite culta, que se inspirou na Pérsia. Os
sufis e um certo número de turuq desempenharam um papel central na vida e na
cultura religiosas - os mais ortodoxos, nas áreas urbanas, e os menos ortodoxos, em
localidades rurais. Nos séculos XVI e XVII, uma mudança de atitude trouxe à tona
um Islamismo um pouco mais conservador, e as práticas sufistas mais extremas
tenderam a ser eliminadas. DECLÍNIO DO IMPÉRIO OTOMANO Depois de
Suleimão, os otomanos tiveram dificuldade em fazer novas investidas na Europa.
Após um período de guerras inconsequentes, um tratado de 1606 reconheceu a
igualdade entre os imperadores Habsburgos e os sultões. Em 1683, o segundo cerco
otomano a Viena não obteve sucesso e levou os otomanos à primeira perda territorial
importante na Europa, reconhecida em 1699 pelo Tratado de Karlowitz. 11 Durante
os séculos XVII e XVIII, o equilíbrio de poder afastou-se ainda mais dos otomanos, e
o Império revelou-se demasiado extenso para um controlo adequado por parte de uma
autoridade central. Os venezianos, os Habsburgos e os russos conquistaram antigas
terras otomanas. No início do século XVIII, os sultões reconheceram a superioridade
das tecnologias europeias e começaram a recrutar conselheiros militares estrangeiros.
Até a arte e a arquitectura demonstravam influência estrangeira. Isso prenunciou um
profundo programa de modernização, decorrido no século XIX, mas que não
conseguiu salvar o Império do colapso derradeiro, durante a Primeira Guerra
Mundial. O século XIX e o início do século XX testemunharam o declínio contínuo e
a eventual morte do antes poderoso Império. Em 1798, a expedição de Napoleão ao
Egipto (embora as suas forças fossem expulsas em 1801, com a ajuda dos britânicos)
marcou o início de uma intervenção europeia em grande escala. Em 1805, a
investidura de Mohamed Ali como governador tornou o Egipto virtualmente
independente dos otomanos. Durante o seu governo, o Egipto obteve controlo sobre o
Oeste da Arábia, incluindo Meca e Medina, e estendeu a sua influência para Sul, em
direcção ao Sudão. Em 1831, invadiu a Síria. Em 1882, o Egipto sofreu uma
ocupação britânica, que durou até 1952. A partir de meados do século XVIII, os
movimentos nacionalistas nos Balcãs transformaram-se numa séria ameaça ao
Império. Num século, causaram a desintegração do poder otomano na região e o
nascimento de novos Estados. Em 1830, os gregos foram os primeiros a conquistar a
independência, após uma guerra amarga envolvendo potências europeias. Em 1878,
depois do Congresso de Berlim, que reconheceu vários desses Estados autónomos, o
processo de desintegração acelerou-se, e importantes potências europeias
apropriaram-se de vários territórios otomanos. A MESQUITA A palavra masjid
("mesquita") significa literalmente qualquer lugar ritualmente limpo, onde as pessoas
se possam prostrar para fazer a salat (prece). No 12 entanto, tradicionalmente é um
local construído para a oração comunitária, podendo incluir uma biblioteca ou uma
escola. Também tradicionalmente, as mesquitas possuem uma entrada central, muitas
vezes uma qubba (cúpula) e um manara (minarete) de onde se faz o adhan (chamada
para a prece) . O interior é quase vazio, com tapetes pelo chão (os sapatos são
deixados do lado de fora da porta), e na extremidade fica o mihrab (nicho), marcando
a qibla (direcção de Meca e de oração), em geral ornamentado com versos
caligráficos do Alcorão e desenhos geométricos. Pode haver versos do Alcorão nas
paredes e em torno da cúpula, porém, a arte figurativa não é permitida. Perto da qibla
fica o minbar (púlpito), de onde o imã que lidera a prece pronuncia o sermão da
sexta-feira. Os imãs sunitas são indicados pela comunidade, actuando por vezes como
instrutores religiosos, mas sem um papel carismático ou herdado, como no xiismo.
Existe uma área separada para wudu (abluções), uma vez que se exige limpeza ritual.
Nenhuma regra islâmica impede as mulheres de frequentar as mesquitas, embora
fiquem isoladas dos homens e em alguns locais se verifique uma oposição cultural à
presença feminina. Imposta a todos os muçulmanos cinco vezes por dia, a salat
(prece) é em geral realizada individualmente, em casa ou no trabalho. A reunião para
a juma (prece de sexta-feira ao meio-dia) é obrigatória para os adultos livres do sexo
masculino, assim como o congraçamento em importantes festividades, como a Eid al-
Fitr (Quebra do Jejum), no término do Ramadão, e a Eid al-Kabir (Grande Festa do
Sacrifício), durante o mês de hajj (Peregrinação). Em al-Azhar, no Cairo, ainda se
pode observar o método tradicional de ensino, em que um xeque sábio se sentava ao
lado de uma pilastra e o "círculo" de alunos se reunia à sua volta. Al-Azhar tem sido
um dos mais influentes centros da sabedoria islâmica. Desde meados do século XX, o
escopo da sua jamia (universidade) ampliou-se para incluir a medicina e várias
disciplinas seculares. Muitas mesquitas tinham - e no mundo árabe continuam a ter -
a sua madrasa, originalmente uma escola religiosa onde os jovens muçulmanos
aprendiam a recitar o Alcorão de cor, a ler e a escrever versos corânicos, bem como,
mais tarde, a ler comentários autorizados sobre o Alcorão, a hadith e biografias de
especialistas em hadith. 13 Hoje, o termo madrasa indica uma escola comum,
primária ou secundária. No entanto, a palavra ainda se refere a tradicionais escolas
religiosas, algumas estabelecidas além do mundo muçulmano, como as do Norte de
Inglaterra, onde existem grandes comunidades muçulmanas. As madrasas localizadas
em Bury e em Dewsbury fazem parte de uma rede de várias madrasas Deoband, nas
quais os alunos obedecem a uma rotina baseada numa instrução medieval.
REFORMAS E CONFLITOS INTERNOS Na tentativa de retardar a decadência, os
governos otomanos levaram a cabo vários programas de reformas, em grande parte
seguindo padrões europeus. A modernização começou mais seriamente durante o
reinado de Mahmud II (1807- 1839), que aboliu os janízaros e obteve sucesso no
restabelecimento do controlo central sobre boa parte do Império. As reformas
continuaram no período da Tanzimat ("Reorganização", 1839-1876), com ênfase no
governo e na lei, instituindo-se um sistema de educação secular. Alguns códigos de
leis baseavam-se na lei europeia, ainda que a Mejelle (1870) tenha sido uma
codificação de partes da Lei Charia. Nas décadas de 1850 e 1860 os súbditos
otomanos não-muçulmanos tiveram os seus direitos garantidos por lei. E, em 1856,
um decreto imperial assegurou-lhes a igualdade relativamente aos muçulmanos, num
movimento que realçava o conceito de cidadania, sendo ainda susceptível de
encorajar a identidade e a lealdade otomanas. O período da Tanzimat fez surgir uma
nova classe administrativa, educada segundo os padrões modernos. Nessa classe, um
grupo de intelectuais (os Novos Otomanos) ressentiu-se com o que julgava ser uma
atitude conciliatória dos principais estadistas para com as potências europeias. Esse
grupo provocou a opinião pública através da imprensa e iniciou uma campanha aberta
em prol de um governo constitucional e representativo. O reinado de Abd al-Hamid II
(1876-1908) iniciou-se com os seus partidários, forçando-o a aceitar uma
Constituição de natureza mais democrática. Porém, uma vez no poder, al-Hamid
rejeitou-a e deu início a um período de governo autocrático e conservador em termos
religiosos. Abd al-Hamid enfatizou o carácter islâmico do 14 Estado e chegou a
propor-se como líder natural dos muçulmanos do mundo inteiro. As condições
repressivas do seu reinado forçaram elementos da oposição a fugir para o estrangeiro
e, na década de 1890, em Paris, os "Jovens Turcos" fundaram a Sociedade Otomana
para a União e o Progresso, empenhada em derrubar o regime. Em 1907, oficiais do
exército envolveram-se com o movimento oposicionista, levando à "revolução" de
1908, que forçou Abd al-Hamid a restaurar a malograda Constituição de 1876. A
última década do governo otomano foi um período de grande turbulência e de novas
perdas territoriais. Assistiu-se a uma centralização, e cada vez mais as políticas
nacionalistas dos Jovens Turcos "unionistas" se voltavam contra as tendências mais
liberais e descentralizadoras. Depois do hiato do governo de Abd alHamid, outras leis
de carácter secular chegaram a colocar sob a autoridade do Estado escolas religiosas e
tribunais. O sentido de identidade otomana deslocava-se aos poucos para uma
identidade étnica turca - a Anatólia como lar do povo turco, fixado na Ásia Central. A
Primeira Guerra Mundial alterou consideravelmente o mapa. O governo otomano,
agora sob o controlo dos unionistas (Comité para a União e o Progresso), apoiou a
Alemanha. A Arábia, sob o comando de Husayn, sharif (governante) de Meca, insistiu
na guerrilha contra os turcos, esperando obter a independência. Entretanto, britânicos
e franceses dividiam o Médio Oriente em "esferas de influência". Em 1918, quando
os otomanos foram derrotados, a Liga das Nações concedeu à Grã-Bretanha a
condição de mandatária sobre a Palestina e o Iraque. A França obteve poderes
similares sobre o Líbano e a Síria. Mustafá Kemal (mais tarde conhecido como
Ataturk), general otomano que repeliu os Aliados em Galípoli durante a guerra,
tornou-se o líder do movimento de resistência nacional contra as potências que
ocupavam áreas da pátria turca. Uma luta de três anos, principalmente contra os
invasores gregos, terminou em 1923 com o Tratado de Lausanne, que reconheceu a
Turquia como Estado independente. Uma vez abolido o Sultanato Otomano, em 1922
foi proclamada a República da Turquia, tendo Mustafá Kemal como primeiro
Presidente (1923-1938). Em 1924, o califado foi formalmente abolido. As ordens
sufistas foram banidas em 1925, e em 1928 a escrita arábica otomana foi
compulsoriamente substituída pela escrita latina. A 15 Charia foi substituída por
novos códigos de leis de origem inteiramente europeia, alterando radicalmente a
condição legal das mulheres na Turquia. Ataturk faleceu em 1938, mas o regime de
um partido que ele estabelecera durou até 1945. A partir do final da década de 1940,
com a introdução da política multipartidária, a expressão religiosa islâmica obteve
muito maior liberdade, e o Islamismo passou a ser ensinado nas escolas. Desde a
década de 1970 que o Islamismo ocupa um lugar na vida política da Turquia. O
ISLAMISMO NO MUNDO MODERNO O século XX testemunhou várias mudanças
no mundo muçulmano: guerras mundiais; fim do domínio colonial; surgimento de
novos Estados na Ásia, no Médio Oriente e em África; descoberta de petróleo;
desenvolvimento de novas indústrias e sua exploração comercial por empresas
multinacionais; crescente facilidade e frequência de viagens; comunicação através de
rádio, televisão e Internet; migração em massa - tudo isto propiciou aos muçulmanos
um contacto com comunidades e culturas estrangeiras e não-islâmicas. Ao nível
intelectual e religioso, o Islamismo teve de reconhecer os rápidos progressos dos
tempos modernos. No mundo islâmico, a reacção à modernidade varia muito,
segundo circunstâncias geográficas, históricas e económicas. Dúvidas sérias a
respeito dos valores morais do Ocidente não impedem os países árabes e muçulmanos
de adoptar quaisquer inovações e tecnologias que considerem benéficas. A resistência
à mudança tem vindo a ser chamada pelos observadores estrangeiros de
"fundamentalismo islâmico", e muitas vezes utiliza-se o termo "extremista" para
significar "o uso de meios violentos em vista de fins políticos". Na verdade, o
"fundamentalismo" só é adequado se implicar um "retorno às bases". Um dos
primeiros movimentos reformistas, ainda hoje existente, é o movimento Wahabita,
criado no século XVIII por Mohamed Abd al-Ulahab (1703-1787), um hanabalita
rígido que rejeitou o Sufismo e todos os tipos de inovação (bida), fundando,
juntamente com Ibn Saud (1746-1765), um chefe tribal árabe, o futuro Reino Saudita,
que continuou a sustentar o Islamismo ortodoxo. 16 No Egipto, Mohamed Abdu
(1849-1905), destacado juiz e reitor de al-Azhar, modernizou o currículo desse
antigo, e então influente, centro de ensino sunita. Em sua opinião, a religião baseada
no Alcorão, na hadith e no exemplo dos assalaf as-salih ("antepassados piedosos") era
compatível com a ciência e com a razão. Abdu manifestou o desejo de reinterpretar o
islamismo na obra «A Teologia da Unidade» (1897). O chamado movimento
Salafiyya, inspirado por Abdu, influiu em todo o Médio Oriente. Ao mesmo tempo,
no Subcontinente Indiano, Sayyid Ahmad Khan (1817-1898), outro reformador,
escrevia um extenso comentário sobre o Alcorão. Mais tarde, Mohamed Iqbal
dedicou-se à tarefa de revitalizar o islamismo indiano e defendeu a ideia de um
Estado islâmico, que se concretizaria em 1947, com a criação do Paquistão. A
rejeição do mundo moderno é uma característica da Ikhwan al-Muslimun (Irmandade
Muçulmana), fundada em 1928 por Hasan al-Banna (1906-1949) , que discursava
contra a corrupção da política egípcia. Foi, várias vezes, oficialmente banida do
Egipto. Outro movimento reformista, o Jamaat-i Islami, foi fundado por Abu al-Ala
al-Mawdudi (1903-1979) , em Lahore. Tal como a Irmandade Muçulmana, esse
movimento associava um renascimento religioso à acção social, continuando a ser
importante. Um verdadeiro Estado islâmico continua a ser um objectivo remoto. Em
1979, a queda do Xá do Irão por meio de um movimento popular revolucionário
encabeçado pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), introduziu uma
observância rígida da lei segundo os princípios xiitas, que restringiam a liberdade das
mulheres e levaram à perseguição da comunidade Bahai. No final do século XX, o
governo tornou-se consideravelmente mais suave, embora os talibãs, dirigentes do
regime bem mais intolerante do vizinho Afeganistão, sejam sunitas e wahabitas e não
simpatizem com o Irão. MIGRAÇÃO PARA O MUNDO NÃO-MUÇULMANO Um
novo aspecto da vida islâmica, verificado no século XX, após 1945, foi a migração,
em larga escala, de indivíduos e de grupos para o Ocidente não-muçulmano, em
especial para a Europa, para onde seguiu a primeira onda de trabalhadores, migrantes
ou "convidados", que pretendiam ganhar melhor e, depois, 17 voltar à pátria. A partir
da década de 1960, particularmente na Grã-Bretanha, esse processo evoluiu para a
migração de famílias e de comunidades inteiras, principalmente oriundas do
Paquistão, da Índia e do Bangladesh. A migração tende a associar-se a vínculos
coloniais e de comércio. Assim, os muçulmanos do Norte da África emigraram,
muitas vezes, para França; os muçulmanos turcos, para a Alemanha; e os
muçulmanos das Índias Orientais, para os Países Baixos. Mesquitas e centros foram
construídos ou adaptados, e os governos viram-se na necessidade de propiciar
serviços especiais de educação, de previdência e alojamento. Quando a segunda e a
terceira gerações concluem a escola e a educação superior e aderem à força de
trabalho, irrompem tensões inevitáveis na comunidade muçulmana: a distância entre
as gerações é acentuada por um ambiente mais amplo e mais permissivo (polarizada,
ademais, através de atitudes em relação à terra natal) e, muitas vezes, pela falta de
conhecimento, por parte do imã, da língua e da realidade social locais. Esta realidade
tem vindo a evoluir para melhor, através da actuação de sociedades islâmicas para
estudantes e profissionais, centros de treino para imãs, escolas islâmicas (que
despertam as mais diversas reacções) e também por meio do trabalho árduo e do êxito
dos próprios muçulmanos. O caso de Salman Rushdie - ocorrido quando o Aiatolá
Khomeini promulgou um fatwa (decreto legal com base na lei islâmica) condenando
à morte o romancista por visível blasfémia na sua obra «Os Versículos Satânicos»
(1988) - revelou uma certa incompreensão mútua entre os mundos muçulmano e
nãomuçulmano, mas também trouxe à tona a consciência de que era preciso haver
maior compreensão e cooperação. No estrangeiro, associações representando vários
países muçulmanos visam manter vivos os contactos entre a pátria e as comunidades
migrantes, bem como fortalecer a observância religiosa. A Irmandade Muçulmana e,
particularmente, os Jamaat-i Islami actuam na Grã-Bretanha. Os muçulmanos do
Subcontinente Indiano podem pertencer à tradição Barelwi (ou Brelvi), que venera
especialmente o Profeta e os homens santos. Existe também uma outra tradição,
estritamente ortodoxa, a Deobandi, que rejeita essas devoções. A partir da tradição
Deobandi surgiu o movimento Tablighi Jamaat, fundado em 1927 e que, através da
pregação e do exemplo, tenta fazer que os muçulmanos retornem a uma prática mais
ardorosa da 18 sua religião. Com centros em África e na Ásia, este movimento está
também activo nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha e
noutros países da Europa, tendo vindo a angariar muitos seguidores.

Você também pode gostar