Entre os primeiros anos do século VI e o decorrer do século VII, a maior parte do
mundo civilizado ficou sob o domínio de dois grandes impérios: o Império Grego Bizantino cristão, situado a Ocidente e com a capital em Constantinopla, e o Império Persa sassânida, de maioria zoroastrista, a Oriente. A influência intelectual, social e económica de ambos os impérios estendeu-se às áreas intermédias, incluindo a Península Arábica, berço do Islamismo. A Península Arábica (ou, simplesmente, a Arábia) é rectangular e cobre quase 3. 250. 000 quilómetros quadrados. É limitada a Oeste pelo Mar Vermelho, a Sul pelo Oceano Índico e a Nordeste pelo Golfo Pérsico. A massa de terra situada a Norte leva ao Crescente Fértil - Egipto, Palestina, Síria e Mesopotâmia. A faixa costeira ocidental, o Tihama, conduz a Hejaz/Hedjaz, uma barreira de terras montanhosas, e, para o Interior, ao Planalto de Nejd, maioritariamente composto de deserto arenoso, com alguns oásis ocasionais. A Sul e a Sudoeste, as chuvas permitem a agricultura e a fixação de populações. Nos tempos mais antigos, ali se estabeleceram reinos como os de Sabá e de Himiar. Durante os antigos períodos grego e romano, o Reino dos Nabateus, a Norte, controlava uma ampla área a partir de Petra, a capital. Por volta do século VI, o Norte era maioritariamente habitado por tribos nómadas (beduínos), cada qual liderada por um xeque eleito e por um conselho de anciãos. Deslocavam-se de uma área para outra com os seus camelos e rebanhos, em busca de água e de pastagens. Duas grandes tribos actuavam como "Estadostampão" para os principais poderes políticos e militares: os Gassânidas, a Oeste, vassalos dos bizantinos, e o Reino de Hira, a Leste, vassalo dos sassânidas. 2 O declínio da prosperidade do Sul, por volta do século V, é simbolizado ou, como diziam os Árabes, foi causado pelo rompimento da enorme represa de Ma'rib, que possibilitava a irrigação e a agricultura. Contudo, nos séculos VI e VII, existiam ainda importantes rotas comerciais, uma das quais vinha do Norte do actual Iémen, através de Hijaz, passando pela cidade de Meca. Tradicionalmente, os muçulmanos referem-se a este período antes do Islamismo como Jahiliyya ou "tempos da ignorância" - um período de grosseiros comportamentos e idolatrias, de ganância comercial entre as populações estabelecidas, em desrespeito pelos menos privilegiados. Ao mesmo tempo, os muçulmanos reconheciam as boas virtudes da vida beduína: coragem, generosidade, hospitalidade (por vezes, levada a extremos) e profundo sentido de clã e de lealdade tribal. Os árabes do deserto tinham uma bem desenvolvida percepção da Natureza, não meramente no sentido da sobrevivência mas também como apreciação estética, expressa em eloquente e estilizada poesia, dotada de padrões de rima e ritmo precisos e belas descrições. Para os beduínos, uma espécie de sentimento moral ou religioso sustentava a honra e a fidelidade à palavra dada e reconhecia o propósito do dahr ("destino"). CRENÇAS PRÉ-ISLÂMICAS Os Árabes nómadas acreditavam numa multiplicidade de divindades e espíritos, em geral relacionados com rochas, pedras ou fontes. Cada tribo possuía as suas próprias divindades protectoras. Acima destas, estavam as deusas Manat, al-Lat e Uzza, sendo também reconhecido um deus supremo, chamado Alá ou, por vezes, al-Rahman. Meca abrigou o mais importante monumento da religião pré-islâmica (o qual ajudou a manter uma solidariedade maior do que a implicada por uma tribo única): uma construção denominada Caaba ("cubo"), que, segundo a tradição islâmica, foi levada a cabo por Abraão (Ibrahim) e pelo seu filho Ismael. Ao lado da Caaba ficava a Pedra Negra, provavelmente um meteorito, que trouxe o reconhecimento à cidade. A Caaba (que se dizia conter 360 ídolos) constituía um foco de atracção para as tribos locais, que interrompiam as escaramuças nos três "meses sagrados" de trégua, 3 durante os quais se realizavam peregrinações e negócios. Quem ali exercia maior influência eram os mercadores e não os xeques, embora a facção dominante fosse a tribo dos coraixitas, na qual nasceu Maomé. Além dos cultos pagãos, estabeleceram-se na Arábia o Judaísmo e o Cristianismo (ambos monoteístas). Duas tribos judaicas fixaram-se em Yathrib e nos arredores, apesar de haver assentamentos judeus noutras partes da Península. Os cristãos mantinham um bispado em Najran, do que se depreende uma comunidade bastante grande na zona. Embora o Cristianismo na Arábia seguisse sobretudo um modelo oriental, as controvérsias da época tiveram algum efeito na religião. Alguns problemas podem ter surgido das diferenças entre as línguas grega e semítica, mas as desavenças, em particular quanto à pessoa de Cristo, parecem ter-se espalhado bastante. A mensagem básica do Cristianismo pode ter sido obscurecida por disputas sectárias, com base em críticas do Alcorão aos cristãos, certamente espelhando as próprias experiências de Maomé. O Alcorão acusa os cristãos de venerarem mais Jesus do que o Deus único e de "alterarem as suas Escrituras". Muitos cristãos da região podem ter-se sentido distanciados dos seus líderes religiosos bizantinos, dispondo-se a aceitar um credo mais simples. MAOMÉ Maomé nasceu em Meca por volta de 570 d.C., no seio dos Banu Hashim, um ramo da tribo dos coraixitas. Órfão muito cedo, foi levado por uma família de beduínos para os mais saudáveis arredores do deserto. Enquanto jovem, Maomé trabalhou para um tio, Abu Talib, e diz-se que acompanhou caravanas de comerciantes nas suas jornadas à Síria. Ganhou fama como um homem excepcionalmente honesto e correcto, tendo-se tornado empregado de uma rica viúva de nome Cadija, a qual, impressionada com o seu carácter e a sua personalidade, se casou com ele, apesar de ser 15 anos mais velha. Até à morte de Cadija, em 619, Maomé não teve outras esposas. Então, levando uma vida mais sossegada, Maomé resolveu passar longos períodos em reflexão e meditação numa caverna perto de Meca. Por volta do ano 610, recebeu a visita impressionante de um ser que lhe ordenava: «Recita, em nome 4 do teu Senhor! » (iqra, que significa "recita", foi a primeira palavra registada no Alcorão, constituindo agora o início da sura 96) . Apesar de inicialmente confuso e relutante, Maomé teve a certeza de que fora enviado ao seu povo para o alertar para a chegada do Dia do Juízo. As suas primeiras pregações, nas ruas e feiras de Meca, foram a favor da Unidade de Deus, contra a idolatria e a favor do dever de fazer justiça e cuidar dos pobres. Não surpreende que essa mensagem fosse impopular entre os homens importantes de Meca, que viram em Maomé uma ameaça à sua riqueza e posição social, e que por isso o tentaram dissuadir da sua missão, usando, para tal, do ridículo, da persuasão e da força física. Além da esposa, Cadija, e do primo Ali ibn Abi Talib, os primeiros seguidores de Maomé foram maioritariamente membros menos influentes da sociedade. Mas esse número cresceu gradualmente, à medida que as pessoas eram conquistadas pelo carácter genuíno e sincero da sua pregação. Isto coincidia com as mensagens que Maomé recebeu da fonte que identificou como Deus Único, por intermédio do anjo Gabriel. Essas mensagens foram cuidadosamente memorizadas e repetidas, transformando-se na essência do Alcorão e consideradas como Palavras de Deus. Um elemento-chave era a "submissão" (raiz árabe s-l-m) ao Criador, Deus Único, Alá - e dessa raiz saíram tanto o nome islão (que, no início, não significava uma religião isolada) quanto muslim ("aquele que se submeteu"). O conteúdo da pregação de Maomé expandiu-se a ponto de incluir narrativas de "profetas" anteriores, como Adão, Moisés e Noé, e referências aos povos primitivos e suas punições. Surgiu também um esboço de teologia, bem como algumas regras para o culto, o jejum, a caridade e a peregrinação. Tudo isso, além da profissão de fé (shahada), forma os "pilares" do Islamismo. Maomé acreditava pertencer à linhagem dos profetas, na tradição judaica e cristã, mas foi incapaz de estabelecer um relacionamento com os fiéis dessas duas religiões. Os seus seguidores agora incluíam Abu Bakr, Ornar e Uthman, homens de certa posição, mas o aumento da oposição dos coraixitas levou a que Maomé negociasse com o povo de Yathrib, que ansiava por um árbitro fidedigno para as suas disputas internas. Finalmente, em 622, Maomé viajou com os seus seguidores para Yathrib, em pequenos grupos para afastar suspeitas. A Hijra (Hégira, "emigração") é 5 a primeira data registada no calendário islâmico, iniciado a partir desse ano (daí a designação "AH" - "Anno Hegirae" ou "Após a Hégira" - nas datas do calendário islâmico). Em Yathrib, depois conhecida como Medina, "A Cidade" (do Profeta), Maomé, na qualidade de árbitro e líder respeitado, recebeu o apoio da maioria dos medinenses, seus Ansar (ajudantes). Os que o acompanharam desde Meca eram conhecidos como Muhajirun (emigrantes). Estes, sem condições para viver em Medina, começaram a atacar as caravanas dos habitantes de Meca, agora seus oponentes religiosos e políticos. Um desses ataques, em Badr, em 2 A. H./624 d.C., redundou numa frutuosa pilhagem, apontada pelo Alcorão como reflexo da generosidade divina. Na mesma linha, uma batalha fracassada em Uhud, no ano seguinte, foi interpretada como sinal de que os muçulmanos haviam perdido a fé. A comunidade muçulmana tem sido sempre política e religiosa. O tipo de discurso do Alcorão reflecte as diversas circunstâncias dos últimos dez anos de vida de Maomé. Inclui legislação sobre heranças, jejum, caridade e sua distribuição, casamento, condição da mulher, reflecte disputas religiosas com cristãos e judeus e orienta sobre assuntos militares. Em 8 A. H./630 d.C., os muçulmanos estavam assaz fortes para conquistar Meca com muito pouco derramamento de sangue. A Caaba foi expurgada dos seus ídolos, os ritos de peregrinação foram islamizados - na forma que conservam até hoje - e todas as tribos da Arábia se uniram para jurar lealdade a Maomé. Graças ao seu carácter e à sua habilidade política, Maomé foi capaz de combinar o papel de profeta e fundador da nova religião com o de chefe e líder tribal (ou supratribal) de uma comunidade inteira. Contudo, a morte de Maomé, em 632, provocou uma crise na comunidade. Como profeta, ele era claramente insubstituível. Mas a comunidade precisava de um líder forte. Assim, um corpo consultivo composto pelos companheiros mais próximos de Maomé escolheu para khalifa (califa, ou representante) Abu Bakr, sogro do Profeta e um dos seus primeiros apoiantes. Abu Bakr foi o primeiro dos quatro arRashidun ("Os Califas Exemplares") e governou entre 632 e 661. 6 O ALCORÃO Alcorão (do árabe al-Quram) constituiu a mais importante influência no desenvolvimento da civilização islâmica e na vida da comunidade e dos indivíduos muçulmanos. Venerado como discurso divino, tornou-se a medida e o modelo para o árabe falado e escrito. É a fonte da teologia, da lei, dos assuntos comunitários, da conduta pessoal e comercial e da vida diária. As suas palavras têm um efeito incalculável sobre ouvintes e leitores. A língua árabe possui um ritmo e uma eloquência que lhe conferem o estatuto de "inimitável", como comprova o próprio Alcorão, onde os incrédulos são desafiados a "apresentar uma sura comparável" (10: 38). O Alcorão surgiu da pregação de Maomé e a própria palavra significa "récita". É descrito como "guia" necessário para os seres humanos seguirem o "caminho correcto". Os mesmos temas ocorrem repetidas vezes: o apelo ao culto, a necessidade de justiça, a inutilidade do paganismo, a inevitabilidade do Dia do Juízo, com as punições que esperam o malfeitor e a recompensa do Paraíso para o justo. Eventos como a derrota em Uhud ou questões de herança e divórcio requerem reflexão e zelo renovado, e o Livro apresenta orientação e instruções pormenorizadas. O Alcorão que hoje se conhece é essencialmente o texto reunido por Uthman, por volta do ano 30 A. H., que corresponde a 652 d.C.. São 114 suras (capítulos), constituídas por ayat (versos) de extensão variada. As suras são classificadas como de Meca ou de Medina, conforme tenham sido reveladas (pelo menos, a maioria) em Meca, antes da Hégira, ou em Medina, após a Hégira. De modo geral, as suras são agrupadas por extensão; as primeiras e as mais curtas aparecem sobretudo no final do Livro. A única excepção é a Fatiha, sura "inicial", frequentemente recitada como oração e que se diz conter a essência do Alcorão. O Alcorão foi crucial para o desenvolvimento do árabe. Quando o texto foi estabelecido pela primeira vez, apenas se escreveu o esboço. Aos poucos, inventouse um sistema de pontos e sinais para distinguir cada uma das letras e vogais, ao mesmo tempo que se desenvolveram estilos de caligrafia em diferentes regiões e em períodos sucessivos. As cópias importantes do texto eram enfeitadas com folhas de 7 ouro e cores. Na forma escrita, o Alcorão era imutável e passou a ser o árbitro do árabe literário correcto. Os comentários e a exegese dos primeiros tempos concentravam-se na forma gramatical e no significado exacto, uma vez que as expressões do Alcorão constituem a base principal da lei e da teologia, e os versos "obscuros" precisavam de esclarecimento e de interpretação. A condição de eterno e não-criado do Alcorão significa que as suas palavras transmitem baraka ("bênçãos"). Aprendê-lo de cor, tornar-se hafiz ("preservador" do Alcorão) , é um dever piedoso, merecendo o respeito da comunidade. A recitação do Alcorão constitui uma arte por si mesma, e recitadores especializados podem auxiliar em ocasiões de luto ou de celebração. Embora se reconheça que é preciso haver versões do Alcorão noutras línguas além do árabe, os muçulmanos consideram essas obras mais como interpretações do livro sagrado do que como traduções. O Alcorão é o alicerce da vida muçulmana, mas o seu significado torna-se claro através dos actos, palavras e silêncios de Maomé e dos seus companheiros, que se transformam numa espécie de comentário vivo sobre as maneiras pelas quais o Alcorão devia ser entendido e posto em prática. Fizeram-se colectâneas da Tradição (hadith), existindo seis autorizadas (Colecções Correctas ou Sahih). O Alcorão e a hadith foram aos poucos organizados em códigos de práticas conhecidos como Charia, "Caminho Bem Percorrido" (ver Alcorão 45: 18). Os códigos não concordam em todos os aspectos, de modo que os muçulmanos vivem em estilos ligeiramente diferentes, conforme o código que seguem. Os quatro códigos são: Malikita, preponderante no Magreb e no Oeste de África; Hanafita, encontrado em todo o mundo muçulmano; Shafiita, forte na Ásia; e Hanbalita, na Arábia Saudita. AR-RASHIDUN, OS CALIFAS EXEMPLARES Quando Maomé morreu, muitas tribos recentemente convertidas consideraram terminado o seu pacto com Medina. No entanto, os muçulmanos pensavam de modo diferente, e Abu Bakr viu-se forçado a empreender as guerras de ridda (apostasia), para recuperar a fidelidade das tribos e reunificar a Arábia. A tarefa seguinte foi difundir a nova religião, pelo que tiveram início as Futuhat 8 (conquistas), que reunificaram toda a Arábia e chegaram até Damasco e Kufa, fazendo assim incursões nos territórios bizantino e persa. Por ocasião da morte de Abu Bakr, em 634, a escolha recaiu em Umar ibn alKhattab, que deu sequência às guerras de conquista. Damasco foi tomada em 634- 635, e Jerusalém em 638. No Norte de África, Fustat (antigo nome da cidade do Cairo) foi conquistada em 641 e Alexandria em 642. Os exércitos muçulmanos espalharam-se por todo o litoral Norte de África, e os berberes aderiram ao Islamismo e à sua força guerreira. A campanha contra os Persas foi igualmente bemsucedida: em 637 os muçulmanos conquistaram as principais cidades, inclusive a capital, Ctesifonte, e fundaram as suas próprias bases militares em Bassorá e Kufa. Como religião, o Islamismo - com o seu credo simples e os seus deveres precisos de salat (oração), saum (jejum), zakat (caridade), hajj (peregrinação) e jihad (basicamente, esforço para seguir o caminho de Deus, mas também, quando for o caso, esforço contra os infiéis) - parece ter sido facilmente absorvido pelos habitantes das regiões conquistadas. Os Ahl alKitab ou "Povos do Livro" - ou seja, aqueles que possuem Escritura: judeus, cristãos e, por extensão, zoroastristas - puderam manter a sua religião e os seus líderes espirituais, mas foram agrupados como dhimmis (protegidos) e efectivamente constituíam uma segunda classe. Pagavam um imposto por cabeça (jizya) , enquanto os muçulmanos davam esmolas (zakat) e, quando proprietários, pagavam um imposto sobre as terras (kharaj). Os pagãos foram obrigados a converter-se ao Islamismo. O governo de Umar foi justo, mas severo. Seguiu estritamente as directrizes do Alcorão e da hadith (narrativas das palavras e dos feitos do Profeta e seus companheiros). Os governadores indicados por Umar para os territórios longínquos reportavam-se directamente a ele, e deles esperava-se que tomassem a iniciativa de seguir as regras islâmicas. INSTABILIDADE POLÍTICA Por ocasião da morte de Umar, em 644, um Shura (grupo de conselheiros) menos imparcial escolheu Uthman ibn Affan, homem de carácter piedoso, mas fraco. Este colocou parentes nos principais cargos, incluindo Muawiya como governador da 9 Síria. A piedade de Uthman não impediu revoltas esporádicas, que culminaram em 656, quando um bando de rebeldes lhe atacou a casa e o assassinou - enquanto lia o Alcorão, segundo conta a tradição. Surgiram boatos de que Ali ibn Abi Talib, escolhido como o califa seguinte, estivera implicado no assassinato de Uthman. Apesar de sempre o negar, não fez qualquer tentativa séria para punir os assassinos do antecessor. Aliás, aos olhos dos companheiros e amigos, era Ali quem deveria ter sido escolhido como primeiro califa, pois era o primo mais novo de Maomé e desde muito cedo se convertera. Além disso, casara-se com Fátima, filha do Profeta. Bravo lutador e adepto leal, Ali talvez não tenha sido, contudo, o líder ideal para uma comunidade que se tinha tornado deveras extensa. A situação política tornara-se muito instável, devido à rápida expansão do Império Islâmico, ao afluxo de novos muçulmanos e dhimmis e à crescente independência dos governadores provinciais. Muawiya conseguiu desafiar Ali para uma batalha, em 657, persuadindo-o a renunciar ao califado e a submeter-se a um julgamento. Depois, reivindicou para si o califado. Um grupo de seguidores acusou Ali de impiedade por ter aceite o julgamento. Como era necessário derrotar esses dissidentes (khawarij ou, no singular, khariji), desviaram Ali da principal ameaça, Muawiya. Quanto a este, provocou um maior enfraquecimento da situação de Ali em 659, durante o processo de julgamento. Já legalmente governador da Síria, Muawiya assumiu, em seguida, o comando do Egipto. Em 661, Ali foi assassinado e Muawiya aceite como califa, fundando assim uma dinastia que duraria mais de um século: o califado omíada. DINASTIAS OMÍADA E ABÁSSIDA A dinastia omíada, sediada em Damasco, governou de 661 a 750. Relatos posteriores falam dos omíadas como "reis" árabes, e não como verdadeiros líderes islâmicos, embora isso talvez resulte da propaganda dos abássidas. Sabe-se que os omíadas se apoiaram fortemente em tropas árabes, realçando a sua herança árabe e expandindo-se para Leste e para Oeste noutras conquistas. Em público, mantinham a lei religiosa, mas, como governantes, desfrutavam de um estilo de vida luxuoso, que incluía caçar e beber vinho (actos que a lei muçulmana proibia). A Mesquita 10 Omíada de Damasco e os vestígios dos seus castelos no deserto são testemunhas do contraste entre as suas vidas oficial e privada (ainda que este contraste não seja um exclusivo dos omíadas). Yazid, filho de Muawiya, tomou-se califa em 680, com a morte do pai. No mesmo ano, a turbulência no Iraque concentrou-se em Hussein, filho de Ali, mas a revolta foi um fracasso militar. Noutro nível, a morte de Hussein em Karbala, no Iraque, marcou o início do Shiat Ali ("partido de Ali", os shias, ou xiitas), que tinha por mártires os guerreiros vencidos e acreditava que a verdadeira liderança islâmica fora herdada pela família de Ali. REFORMAS E PRESSÕES ADMINISTRATIVAS A sucessão familiar continuou deste modo, embora dois filhos de Yazid tenham desencadeado uma guerra civil que durou de 683 a 684. Em 685, Abd alMalik tornou-se califa e iniciou a verdadeira organização do governo. Os sistemas administrativos herdados de bizantinos e persas conquistados não tinham sido alterados, permanecendo, respectivamente, o grego e o persa como línguas oficiais. No governo de Abd al- Malik, tudo foi centralizado. O árabe tornou-se a língua oficial para correspondências e registos e estabeleceu-se uma cunhagem de moedas árabes, com o dinar de ouro e o dirém de prata. Como sinal da piedade do califa, alguns bens do Tesouro foram destinados a erigir o edifício original do Domo do Rochedo, em Jerusalém, e, segundo alguns relatos, a um recinto para abrigar a Caaba, em Meca. Sob o comando de Walid (que governou entre 705 e 715) , filho de Abd alMalik, as conquistas expandiram-se ainda mais, levando o Islamismo rumo a Leste, para Bucara, Samarcanda e Índia. A Oeste, um assentamento no Sul da Espanha resultou na ocupação de boa parte da Península Ibérica. Em 732, o Império alcançou o seu ponto mais a Norte, quando as forças muçulmanas foram derrotadas, perto de Poitiers, pelo avô de Carlos Magno, o governador franco Carlos Martel (que governou de 715 a 741). O Império Bizantino ainda era poderoso, e, no reinado de Suleimão (715-717), foi enviada uma expedição naval para atacar Constantinopla, o que resultou numa derrota muçulmana que abalou seriamente o prestígio do califado. 11 Alegou-se que o sucessor de Suleimão, Umar ibn Abd al-Abziz (717-720), foi o "único verdadeiro califa" entre os omíadas, mas a sua piedade, aliada a uma tendência a favor dos árabes, levou-o a banir os dhimmis dos cargos administrativos (embora admitisse não-árabes para a amsar, guarnição militar das cidades) e também a aumentar o pagamento aos soldados árabes que estivessem fora da Síria. Todas estas políticas enfraqueceram o Tesouro. Além da classe dos dhimmis, havia os mawali (no singular, mawla), muçulmanos não descendentes de tribos árabes, nem a elas afiliados. À época, os mawali enfrentavam desvantagens económicas e sociais, além de que, como grupo malquisto, constituíam uma potencial ameaça à estabilidade. Também por volta desse período, os primeiros sufis são mencionados nas fontes históricas. O ascetismo representava, pelo menos em parte, a continuação de uma antiga tradição - como a dos Padres do Deserto, do século IV em diante -, e, por outro lado, uma reacção dos muçulmanos piedosos contra o mundanismo e a riqueza de muitos outros que se diziam muçulmanos. A hadith falava da pobreza e da simplicidade da vida do Profeta, e as advertências do Alcorão eram inequívocas. O Império estava a tornar-se demasiado grande e diversificado para a dimensão do seu centro administrativo e político. Sucessivos califas revelaram-se demasiado fracos para controlar os seus governadores. As finanças estavam abaladas. Os mawali não-árabes, mais ainda do que os dhimmis, rebelaram-se contra a sua condição de segunda classe. Os seguidores de Ali pretendiam instalar no califado alguém da sua família. Estes dois últimos factores aliaram-se à revolta de Mohamed ibn Ali ibn alAbbas, um descendente do Profeta que se apoiou nos xiitas extremistas e na lealdade à linhagem do Maomé. Com a morte de al-Abbas, a organização da revolta passou para o seu filho, Ibrahim, que enviou um iraquiano, Abu Muslim, até Khorusan, onde a revolta ganhou força em 747. Houve uma pequena oposição efectiva por parte dos que apoiavam o governo e, na grande batalha final, os omíadas foram definitivamente derrotados. O irmão de Ibrahim, Abu al-Abbas, conhecido como al-Saffah ("O Sanguinário"), foi proclamado califa em 750. Nos cinco anos seguintes, o califado teve como sede o Iraque e deixou de ser predominantemente árabe. 12 Os omíadas que escaparam à batalha acabaram por ser assassinados, com uma excepção, Abd ar-Rahman ("al- Andalus"), que fugiu para Espanha e ali fundou uma dinastia omíada de amirs (emires) em Córdoba, que durou até 1031. A província dos omíadas foi declarada califado por Abd ar-Rahman III (912-961). A Grande Mesquita de Córdoba (datada do final do século VIII) permanece como tributo ao poder, à cultura e à influência dos omíadas. OS ABÁSSIDAS Em 754, quatro anos depois da vitória de al-Saffah, o seu irmão alMansur fundou Madinat as-Salam ("Cidade da Paz"), Bagdade, entre os rios Tigre e Eufrates. O Império ficava assim centrado numa região de comércio e agricultura, herança das civilizações precedentes, Babilónia e Assíria. A Administração teve um carácter predominantemente persa, deixando os árabes de ser o principal suporte do exército, o qual era agora sobretudo composto por tropas remuneradas, em vez de recrutadas, e se tornou, em certas ocasiões, demasiado poderoso. Um exército forte e leal era vital para ajudar a esmagar as frequentes rebeliões, ora de pretendentes ao califado, ora, mais seriamente, de amotinações dos zanj (escravos negros) que, de 869 a 883, foram uma severa ameaça e chegaram a dominar Bassorá, antes de serem derrotados. Bagdade era o centro de um vasto império comercial e os seus mercadores viajavam até muito longe, a Norte, chegando à Escandinávia, à Índia e à China. Mercadorias de luxo propiciaram riqueza e havia fartura de artigos de consumo e géneros alimentícios. Tal como aconteceu com as civilizações antigas, a irrigação voltou a proporcionar o cultivo de vastas parcelas de terra. Porém, como tantas vezes antes, os camponeses continuaram pobres, enquanto os patrões e os donos de terras enriqueceram. De todos os califas abássidas, talvez o mais conhecido, através das histórias das «Mil e Uma Noites», seja Harun ar-Rashid, que governou de 786 a 809. Depois da sua morte, desencadeou-se uma guerra civil entre os seus filhos. Mamun saiu vitorioso e, durante o seu reinado (813-833), a prosperidade do Império continuou em ascensão. Ao mesmo tempo, porém, começaram a surgir tensões internas e 13 externas - governadores locais reclamavam maior poder, e alguns fundaram dinastias próprias, prestando apenas lealdade simbólica ao califa. Os omíadas de Espanha já eram emires independentes, e Abd ar- Rahman III declarou-se califa em Córdoba, em 928. No século IX, outra família persa, os buáiidas, invadiu Bagdade e tomou o poder real ao califa, até ser substituída, no século XI, pelos turcos seljúcidas. Entretanto os xiitas começavam a insistir nos seus direitos religiosos e políticos. Descendentes de Ali por intermédio de Fátima, esposa deste e filha de Maomé (daí o termo "fatímidas") , e assim duplamente relacionados com o Profeta, consideravam-se os verdadeiros califas. Em 765, ocorreu uma ruptura mais séria entre os xiitas: de um lado, os imamitas, "seguidores do Décimo Segundo Imã", relativamente moderados e seguidores da linhagem dos Imãs de Musa; de outro lado, os "seguidores do Sétimo Imã", ou ismaelitas, mais extremados nos seus pontos de vista teológicos e políticos. Os ismaelitas enviaram representantes a muitas partes do Império, obtendo maior sucesso na Tunísia, onde, em 908, foi proclamado o primeiro califa fatímida. Em 969, Muizz al-Din alcançou o poder no Egipto, de onde foram feitos novos ataques à Palestina, Síria e Arábia. Muizz al-Din fundou al-Qahira (Cairo, ou "Cidade Vitoriosa"), ao lado da velha capital, Fustat, e a Mesquita de al-Azhar foi construída para ser o centro religioso e de ensino da versão ismaelita do Islamismo. O poder dos fatímidas entrou gradualmente em declínio e terminou em 1171, com as conquistas empreendidas por Salah al-Dain (Saladino), um muçulmano sunita e comandante turco de origem curda, membro do clã aiúbida que conquistou aos fatímidas o Egipto e a Síria. O próprio Saladino lutou contra os cruzados francos, reconquistando Jerusalém para os muçulmanos em 1187. CULTURA E CREDO DOS ABÁSSIDAS Sob o comando dos califas abássidas, floresceram a ciência, o ensino, a poesia e a literatura. Muitos dos homens mais famosos da época não eram árabes. Os não- muçulmanos também puderam adquirir fama e posição, em especial os médicos, embora os dhimmis ainda estivessem em desvantagem legal, reforçada de vez em quando. 14 Os abássidas tiveram o cuidado de cultivar a imagem de dirigentes piedosos, legitimados por serem descendentes da família do Profeta. Embora a vida na corte não fosse exactamente um modelo de comportamento muçulmano, os califas individualmente demonstravam um profundo interesse pela religião, intervindo por vezes em disputas religiosas. Durante os primeiros anos abássidas, a teologia do Islamismo foi codificada, e vivas controvérsias degeneraram pontualmente em conflitos declarados. Teólogos-filósofos conhecidos como mutazilitas, tentando reconciliar a unidade de Deus com a Sua Palavra, declararam que o Alcorão foi criado, pois, de contrário, seria outro ente divino. O "Alcorão criado" foi o ponto central do credo desses pensadores, e al-Mamun sujeitou, por decreto, juízes e teólogos ao mihna, o "teste" do assentimento. Alguns homens notáveis, entre os quais Ibn Hanbal, recusaram-se a obedecer. Chegou a haver uma forte oposição a que se reduzisse a condição do Alcorão, e um califa posterior revogou o decreto, permitindo que os muçulmanos acreditassem novamente que o Alcorão era eterno e não-criado. Em meados do século XI, os europeus começavam a recuperar territórios. Em Espanha, a Reconquista progredia e, em seguida, no final do século XI, a Sicília (que fora conquistada no século IX pela dinastia turca dos aglábidas e, mais tarde, passara ao domínio do governo central abássida) caiu nas mãos dos Normandos. Com a chegada dos cruzados, os "reinos latinos", de curta duração, estabeleceram-se na Palestina e na Síria. Entretanto, com a morte de Saladino, em 1193, a maior parte do território das Cruzadas voltou a pertencer ao Islamismo. Piores ameaças à dinastia abássida vieram da Ásia Central, onde os Turcos se fortaleciam. Primeiro, os seljúcidas tomaram Bagdade em 1055; depois, os Mongóis. Gengis Khan conduziu as suas campanhas para Oeste e, em 1221, penetrou em território persa. Com a sua morte, em 1227, Hulagu continuou a conquista, tomando Bagdade em 1258. A cidade foi saqueada e o califa assassinado, encerrando-se assim quinhentos anos de califado abássida. 15 OS XIITAS Hoje, os xiitas constituem uma significativa minoria (talvez 10% ) do mundo islâmico. A sua origem remonta aos primeiros dias da religião e o seu nome indica que são Shi'at Ali, "partidários de Ali". Quando Abu Bakr, Omar e, depois, Uthman foram escolhidos para suceder a Maomé, deixaram de lado o homem que, na opinião dos que o apoiavam, teria o maior direito a ser califa: Ali, o primo e genro de Maomé que, com a sua esposa, Fátima, e os seus dois filhos, Hassan e Hussein, formavam a Ahl al-bayt (a Família do Profeta). Ali tornou-se califa por alguns anos, mas, depois da sua morte, o poder passou para os omíadas. Em 680, Yazid sucedeu-lhe no califado, mas os xiitas apoiavam Hussein. No caminho de Medina para Kufa, em Karbala, no Iraque, Hussein e o seu pequeno grupo, que incluía parentes próximos, foram derrotados e mortos pelas forças governamentais. Esse "martírio" constituiu o evento que fundou a crença xiita. Os xiitas permaneceram em minoria, sujeitos a perseguições no terreno político e desenvolveram o princípio da taqiya ("ocultação piedosa"), que lhes permite esconder as suas verdadeiras crenças, se for perigoso declará-las abertamente. O IMAMADO O termo imã designa, no Islamismo xiita, o líder religioso da comunidade, posição e título passados através das gerações. Durante o imamado de Jafar al-Sadiq (733-765), o sexto imã da linhagem, estipulou-se doutrinariamente que o imã era guiado de modo divino e que, como líder da comunidade, gozava de infalibilidade e de uma condição de isma ("ausência de pecado"). Detinha autoridade para ensinar, orientar e interpretar infalivelmente o Alcorão, tanto no sentido zahir ("aparente", "exterior"), como no sentido batin ("interior", "esotérico"). A condição e o carácter hereditário do imamado causou, por vezes, cismas. A divisão mais importante deu-se entre imamitas (ithna ashariyya ou "seguidores do Décimo Segundo Imã" da linhagem) e ismaelitas (sabiyya ou "seguidores do Sétimo Imã") . Quando Jafar faleceu, o filho mais velho que sobrevivia, Musa, foi aceite 16 como imã pela maioria dos xiitas (os seguidores do Décimo Segundo Imã) e a linhagem passou através da família até ao décimo primeiro, al-Hasan al-Askari (868- 874), cujo filho Mohamed al-Mahdi desapareceu - ou "foi ocultado" - em 940. Os xiitas, que coexistiram com a maior parte dos califas abássidas, esperavam o retorno, em estilo messiânico, do Imã Oculto, que foi o décimo segundo e último. O califa alMamun indicou para seu herdeiro o imã Ali al- Rida, que morreu um ano depois, e assim, daí em diante, nenhum xiita chegou perto de atingir o califado. O outro grupo de xiitas seguiu Ismael, filho mais velho de Jafar, falecido antes do pai, mas que teria sido o sétimo imã na sucessão directa, e o seu filho Mohamed. Surgiram muitas seitas de ismaelitas, das quais a mais importante é actualmente a dos nizaritas, cujo imã tem recebido o título de Aga Khan, desde o final do século XIX. Um ramo dos ismaelitas surgiu na linhagem dos fatímidas, reclamando a sucessão através dos seus imãs, que mais tarde se tornaram califas no Cairo. Um grupo de fatímidas extremistas proclamou o califa alHakim (falecido em 1021) como divino. Um dos seus defensores, Hamza ibn Ali, desenvolveu as doutrinas esotéricas que formaram a base da religião drusa, a qual se estabeleceu nas montanhas da Síria e do Líbano, mas as crenças e práticas dos seus iniciados mudaram tanto que deixaram de ser ismaelitas. Outro grupo de cismáticos foi o dos seguidores de Hasan-i-Sabbah, conhecido como o "Velho das Montanhas", que, no final do século XI, fundou a Fortaleza de Alamut nas Montanhas Daylam, na Pérsia, de onde eram enviados assassinos para exterminar alvos políticos. Diz-se que esses seguidores de Hasan usavam haxixe, origem do termo "assassino", nome pelo qual ficaram conhecidos. No século XIII, foram destruídos pelos Mongóis. CRENÇAS XIITAS E SUA DISTRIBUIÇÃO A teologia xiita, tal como a teologia sunita, baseia- se no Alcorão e no hadith, mas incorpora hadith adicionais e ensinamentos dos imãs. A mais importante obra escrita é Nahj al-Balagha ("Caminho da Eloquência"), uma colecção de ensinamentos atribuídos a Ali. As devoções xiitas incluem peregrinações a santuários de imãs, em especial a Karbala e a Najaf. O taziya, ou luto em homenagem à morte de al-Husayn (Hussein) e dos seus companheiros, tem lugar anualmente por volta do dia 10 do 17 mês Muharram, primeiro mês do calendário muçulmano. Espectáculos e procissões para assinalar o evento despertam intensa emoção entre participantes e espectadores. Os xiitas não têm sido sempre, nem em toda parte, uma minoria política. A dinastia dos safávidas (ou sefévidas) começou como um movimento popular de reforma sunita, no século XIV, constituindo, por volta do século XV, uma forte organização política no Noroeste da Pérsia e no Leste da Anatólia. Os safávidas adoptaram a causa e as crenças xiitas. O fundador da dinastia, Ismael (1487-1524), alegava ser o Imã Oculto. Em 1501, Ismael foi proclamado xá (rei), e o xiismo dos seguidores do Décimo Segundo Imã tomou-se na religião oficial, aceite em toda a Pérsia. O apogeu dos safávidas ocorreu no reinado do Xá Abbas (1588-1629), cuja capital era Isfahan. Nessa época, a Pérsia desfrutava de uma economia próspera e era célebre pelos tapetes e pelo artesanato de alta qualidade, bem como pela beleza da sua arquitectura. Muitos mercadores da corte inglesa iam até lá em busca de negócios. No entanto, em 1736, os Afegãos conseguiram derrotar os últimos safávidas. Por sua vez, os próprios afegãos foram expulsos em 1779 pela dinastia dos Qajar, oriunda da zona do Mar Cáspio, a qual, começando por se fortalecer no Norte da Pérsia, reinou até 1924. O actual Irão é fortemente dominado pelos xiitas seguidores do Décimo Segundo Imã, os quais contam com um considerável contingente entre a população do Iraque, além de grupos menores noutros países, como a Síria e o Líbano. Os ismaelitas, embora formando uma minoria xiita, propagaram-se até mais longe, sendo hoje encontrados no Irão, na Síria, no Líbano, no Leste de África, no Paquistão e, em particular, na Índia (o ramo Bohra, iniciado no Iémen, migrou para Gujarat). Os seguidores do Aga Khan, baseados principalmente na Índia, não apresentam nenhuma das tendências extremistas dos primeiros ismaelitas e são um grupo privilegiado, altamente organizado e bastante rico. ORDENS SUFISTAS Os princípios básicos do tasawwuf (Sufismo) foram primeiro inspirados pelo próprio Alcorão e pelo exemplo do Profeta. Por vezes, a devoção a um Deus Único e 18 a rejeição do mundo conduziram a um ascetismo extremo. O Sufismo recebeu influências externas, particularmente da tradição ascética de cristãos e gnósticos, ainda que se trate de uma forma especificamente islâmica do caminho místico. No início, não havia sistema organizado - cada santo, homem ou mulher, ensinava os seus discípulos e devotos, sendo as suas palavras e acções registadas e transmitidas através das gerações. O nome "sufi" deriva provavelmente de suf (lã), já que estes seguidores vestem mantos de lã rústica. Entre os primeiros ascetas famosos incluíam-se: Hasan al-Basri (falecido em 728) , no Iraque; Dhu al-Nun al-Misri, "O Egípcio" (falecido em 861) ; e uma das místicas mais conhecidas de Bagdade, Rabia alAdawiyya (falecida em 801). A vida de pobreza e devoção de Rabia, além das suas orações manifestando total entrega a Deus e ao culto exclusivo do amor a Deus, continuam a inspirar os muçulmanos. O ascetismo era uma preparação para a busca de marifa ("sabedoria" ou "gnose", mais do que aprendizado em livros), para uma maior aproximação a Deus; segundo alguns, expressava um anseio de união com Deus. Embora muitos sufis fossem bastante piedosos e cumpridores da lei, as suas experiências e os seus entusiasmos podiam conduzir alguns a pronunciamentos empolgados e imprudentes, como ocorreu com Mansur al-Hallaj, cujas palavras ana alhaqq ("Eu sou a Verdade", ou seja, Deus) contribuíram para a sua condenação e execução em 922. Contudo, muitos sufis seguiam uma forma não tão extrema de fang (interpretada como um "falecimento" em Deus). Os discípulos (muridun) reuniam-se em torno de um xeque ou homem santo na khanaqah, zawiya ou ribat (casa destinada a uma fraternidade de sufis, cada palavra denotando um propósito ligeiramente diferente). Esses discípulos, conhecidos como salikun ("viajantes"), seguiam o Caminho, tariqa (no plural: turuq ou tariqat), termo que mais tarde viria a designar as ordens. Certos mestres do século X e de séculos posteriores são reconhecidos como inspiradores (embora não como fundadores) da silsila ("cadeia" de filiais) que, mais tarde, se tornaria numa tariqa. Os mais famosos foram alJunayd, de Bagdade (falecido em 910) e Yazid al-Bistami (falecido em 874), de Bistam, ou Bastam, no Curasão (Norte do actual Irão) . No século X, al-Qushairi, Abu Nasr al-Sarraj e Abu Talib al-Makki escreveram sobre o Sufismo e seus praticantes. Abu Hamid al-Ghazali 19 (falecido em 1111), escritor famoso, ajudou a tornar o Sufismo respeitável, ao abandonar o ensino da teologia na prestigiada Faculdade Nizamiyya, em Bagdade, para buscar entre os sufis a "certeza" da vida e da religião. A sua obra mais importante, Ihya ulum al-din («Renascimento das Ciências Religiosas»), composta vários anos antes de 1105, mostra a sua percepção espiritual do Islamismo: o Sufismo podia tornar-se num modo de viver, propiciando uma abordagem mais pessoal em relação ao divino. AS TURUQ Nos séculos XII e XIII, começaram as turuq propriamente ditas (ordens sufistas), cada qual com o nome de um místico ou mestre famoso. Essas ordens conferiam ênfase a orações e litanias particulares e, mais importante, às suas dhikr (literalmente, "lembranças de Deus"), em geral expressas através da recitação comunitária dos nomes de Deus ou de invocações piedosas. Cada novo sufi recebia do seu xeque o manto, a khirqa, como sinal da sua entrada na ordem. Constatou-se um desenvolvimento menos ortodoxo na excessiva veneração aos xeques sufis, a qual resultava em grandes peregrinações a santuários e túmulos de homens santos e na crença na sua intercessão. As ordens mais famosas incluem a Qadiriyya, assim denominada em honra de Abd al-Qadir al-Jilani (falecido em 1166), e a Shadhiliyya, em homenagem a Abu alHasan Ali al-Shadhili (c. 1196-1258), um mestre inspirado e profundamente espiritual. A fundação da Suhrawardiyya é atribuída a Abu al-Najib al-Suhrawardi (falecido em 1168), mas a tariqa foi desenvolvida pelo seu sobrinho, Shihab al-Din alSuhrawardi, tendo-se esta ordem expandido para a Índia. A Chishtiyya foi fundada na Índia por Muin al-Din Chishti, que morreu em 1236, em Ajmer, no Rajastão (Norte da Índia) . Na Anatólia, a tariqa Mevlevi (Mawlawiyya ou, em turco, Mevleviyya) formou-se em torno de Jalal ad-Din Rumi (falecido em 1273), conhecido como Mawlana ou Mowlavi ("Nosso Mestre") e cuja poesia mística, escrita em persa, é muito apreciada. Estes sufis da Anatólia, sediados em Konya, ficaram conhecidos como "dervixes dançarinos", por fazerem música e dançarem. A Ordem Naqshbandiyya recebeu o seu nome em honra de Baha al-Din Naqshband, falecido 20 em Bukhara no ano de 1389. Originária da Pérsia, esta tariqa tornou-se popular na Turquia e difundiu-se para a Índia, no final do século XVI. Actualmente, a sua expansão chegou à Europa e tem vindo a atrair para o Islamismo muito adeptos ocidentais. Apesar de não ter fundado uma ordem, Muhyi ad-Din Ibn al-Arabi (ashshaykh al-akbar, "O Grande Xeque", 1165-1240) , de Espanha, é provavelmente um dos nomes mais famosos no Ocidente. Os seus ensinamentos exerceram grande influência em místicos posteriores. A partir da Idade Média, as novas fraternidades sufistas têm constituído principalmente subdivisões ou grupos mais localizados. CIÊNCIA E SABEDORIA DO ISLAMISMO NA IDADE MÉDIA "O Senhor ensinou através da pena", ensina o Alcorão. Alá é a fonte de todo o conhecimento e as ciências religiosas são prioritárias. No entanto, no início, a pena não era relevante. Os Árabes possuíam uma longa tradição oral, com narrativas de batalhas, rixas e guerras, além de uma poesia subtilmente modulada, celebrando a vida no deserto. O seu grande orgulho é a língua árabe, idioma de que o Alcorão constitui exemplo máximo, bem como modelo de retórica e de discurso claro e poético, sem ser enfaticamente "poesia". Devido à sua condição, o Alcorão foi o primeiro objecto de estudo dos muçulmanos. Repetido e apreciado oralmente, o seu conteúdo rapidamente foi coligido e registado. O cuidado posto na preservação da gramática e da pronúncia exactas ajudou a desenvolver a escrita árabe e, mais tarde, os estilos de caligrafia. A ciência do tafsir - exegese e comentários sobre o Alcorão - exigia alto nível de habilidade filológica e gramatical, além de conhecimentos sobre a História e a Tradição. Os comentários mais famosos são os dos historiadores al-Tabari (falecido em 923), al-Zamakhshari (falecido em 1143) eal-Baydawi (falecido em 1286). A segunda fonte da teologia e da lei era o hadith, que transmitia a suna. "costume" ou "caminho" de Maomé e seus companheiros. A princípio, foi propagada oralmente. Pelo menos em teoria, reflecte as condições da época do Profeta, transmitindo as suas "palavras, feitos e aprovação silenciosa". Em pormenores bastante minuciosos, abrange muitos aspectos da piedade e do comportamento aceitável na vida pública e privada, incluindo, por vezes, certas directivas do Alcorão. 21 No século IX, estudiosos compilaram colecções escritas de frases e narrativas aceites como genuínas. As mais conceituadas são as de al-Bukhari (falecido em 870) e de Muslim ibn al-Hajjaj (falecido em 875) , além de quatro outras obras contemporâneas, que constituem os "seis livros" de referência. O estudo do hadith incentivou o desenvolvimento da biografia. De início, o propósito era apenas registar as vidas dos transmissores do hadith, verificar a sua fiabilidade. Posteriormente, passou-se à compilação das tabaqat ("classes") , sobre as vidas de sábios, advogados, cientistas e médicos, entre outros. As conquistas territoriais conduziram à aquisição de sabedoria mais antiga, em persa e, especialmente, em grego. No final do século VII, os sábios traduziram para siríaco o corpus das ciências gregas, especialmente nas áreas da Filosofia, Medicina, Astronomia e Matemática, sendo feita logo depois uma tradução para o árabe. Esta foi particularmente encorajada pelo califa abássida al-Mamun, que fundou em Bagdade a Bayt al-Hikma (Casa da Sabedoria), dedicada à tradução e ao estudo. Algumas disciplinas do Conhecimento tinham um valor óbvio e prático: a Medicina era importante, assim como a Matemática e a Astronomia, utilizadas para fins de navegação e exploração e para cálculos de datas precisas com propósitos religiosos (como o Judaísmo, o Islamismo segue um calendário lunar). Os primeiros séculos do Islamismo testemunharam a presença de sábios dotados de profundos e abrangentes conhecimentos, como, por exemplo, al-Kindi, no século IX (um dos poucos cientistas de origem puramente árabe), ar-Razi, nos séculos IX e X, Ibn Sina (Avicena), no século XI, e al-Biruni, nos séculos X e XI. A filosofia grega abriu novos horizontes à teologia do Islamismo e questionou a tradicional auto-suficiência do Alcorão e da Suna. O desenvolvimento da kalam, uma teologia especulativa ou filosófica, ampliou o uso da argumentação racional. Finalmente, através da obra de al-Ashari (século X) e de outros, a Filosofia e a Razão passaram a ser aceites como sustentáculos da Revelação. Mantiveram-se as bases do pensamento grego, mas os ensinamentos islâmicos tinham a primazia. As referências do Alcorão às mãos, aos olhos e ao trono de Deus, bem como à visão de Deus no Paraíso, eram aceites literalmente, sem qualquer questionamento. 22 O Direito é uma ciência característica do Islamismo. O Alcorão e o hadith, as duas principais fontes, apoiadas pela qiyas ("analogia"), podem ditar a conduta nos mais minuciosos pormenores. Por volta dos séculos VIII e IX, desenvolveram-se, para as questões mais importantes, quatro madhahib (no singular, madhhab, termo normalmente traduzido como "escolas jurídicas") , que receberam os nomes dos seus fundadores: Abu Hanifa, Ibn Hanbal, al-Shafii e Malik. De modo geral, a interpretação hanabalita é a mais rígida e a hanafita, a mais abrangente e mais difundida. No período medieval, os textos e os ensinamentos médicos dos árabes eram os mais avançados. Durante as Cruzadas, um viajante muçulmano escreveu, horrorizado, sobre a prática médica dos "Francos". Os árabes usavam obras gregas e desenvolveram uma sabedoria própria, tendo acrescentado novas matérias médicas à farmacologia. A partir do século XI, obras médicas em árabe foram traduzidas para latim, principalmente em Espanha e em Itália, continuando a influenciar e a instruir o Ocidente ao longo do tempo. Só nos séculos XVI e XVII, os árabes perderam para o Ocidente a sua posição em Ciência Médica, com o trabalho de homens como Vesálio e Harvey. No entanto, em farmacologia, a tradição árabe persistiu até ao século XIX. Ainda hoje se publicam no Médio Oriente obras sobre ervas medicinais e farmacopeia, como é o caso das edições da «Medicina do Profeta», que combina folclore, conhecimentos de ervas e práticas piedosas. No mundo moderno, a ciência ocidental foi aceite pelas sociedades árabes, em especial depois da invasão do Egipto por Napoleão, quando, ao mesmo tempo que os sábios franceses estudavam as antigas civilizações, o Egipto ia adquirindo a ciência, o treino e a perícia ocidentais. Mais recentemente, em alguns países muçulmanos, tem-se verificado uma reacção contra o Ocidente, considerado como fonte de secularismo, imoralidade e ausência de religião. Uma visão mais equilibrada tende a aceitar as descobertas e as tecnologias, enquanto procura evitar aspectos da vida ocidental considerados incompatíveis com o Islamismo. A maioria desses aspectos estaria relacionada com os ensinamentos cristãos, mas existe uma tendência a associar "cristão" com "ocidental". Ao mesmo tempo, árabes e muçulmanos têm vindo a recuperar um orgulho próprio na sua herança cultural e científica, bem como o seu lugar na História da Civilização. Texto 2
ISLAMISMO A DIFUSÃO DO ISLAMISMO ATÉ À IDADE MODERNA
A DIFUSÃO DO ISLAMISMO O Islamismo descreve-se a si mesmo como Religião
e Estado (din wa-dawla), indicando uma realidade que se verifica desde os primeiros dias. Diferentemente da tradição ocidental, no Islão, a separação entre "religião" e "política" é apenas virtual. A tendência a difundir tanto o controlo religioso como o político ficou evidente na cuidadosa expansão militar do Império, durante o primeiro século de existência da religião. Desde meados do século VIII, grande parte da Andaluzia, na Península Ibérica, tornou-se numa potência omíada muçulmana, que durou até ao início do século XI. Entretanto, os exércitos muçulmanos moviam-se para Leste, chegando à Ásia Central e às fronteiras da Índia. Por volta de 732, um século após a morte de Maomé, o Império Muçulmano alcançara a sua maior extensão em termos de conquistas e territórios. Todavia, no que se refere ao objectivo do Islamismo de expandir a sua esfera de influência, é de notar que, contrariando a crença popular, o mesmo não "se expandiu pela espada". Esta religião, que começou no Médio Oriente, onde aparentemente se enraizara, conseguiu difundir-se não apenas com a conquista e o império, mas também por meios mais pacíficos. Apesar de serem árabes a natureza, a língua e a sabedoria do Islamismo, hoje em dia os muçulmanos não são de maioria árabe - muito milhões encontram-se no Sudeste Asiático, na África, na China e na antiga União Soviética. Isto não aconteceu por via militar, mas através das actividades comerciais e das viagens, encorajadas pelo Islamismo, e em particular através do exemplo e da influência das ordens sufistas. A hajj (peregrinação anual a 2 Meca) reúne milhares de pessoas de todas as partes do Mundo, as quais, pelo menos para fins de observância religiosa, compartilham a língua árabe. ÁFRICA Na realidade, a primeira expansão do Islamismo foi uma consequência das conquistas dos primeiros califas. Os exércitos árabes moveram-se rapidamente através do Crescente Fértil (Egipto, Palestina, Síria, Mesopotâmia) e ao longo do Litoral Norte de África. Sempre que algum chefe berbere via vantagens em se tornar muçulmano, a sua tribo seguia-o. O Norte da África - berço de Santo Agostinho de Hipona e, no século V, sede de uma Igreja florescente - foi rapidamente islamizado, sem a permanência de cristãos nativos, como acontece no Médio Oriente (a despeito da condição de dhimmis dos cristãos). De início, as conversões ao Islamismo não foram encorajadas, pelo facto de a religião ser considerada árabe. Contudo, por volta do século VIII, indivíduos e grupos foram atraídos para a religião dominante, o que acarretava diversas vantagens. Tinha assim início um processo de conversão, que perdurou durante vários séculos. A África ao Sul do Saara era acessível pelo deserto ou pelo Nilo até ao Sudão, mas o Islamismo chegou ali principalmente através do comércio marítimo com as cidades costeiras. No Leste de África, a partir do século VII, as visitas de mercadores árabes e persas eram frequentes, e muitos deles fixaram-se no Litoral. Tanto no Leste como no Oeste de África, os contactos comerciais conduziram as classes dominantes ao Islamismo, e a chegada dos sufis fez que as populações locais se convertessem. No Oeste Africano, entre o final do século X e o século XI, formaram-se alguns Estados islâmicos, embora o Islamismo permanecesse sobretudo como religião dos dominadores e da elite. Em geral, o Islamismo não foi exclusivo, e ainda hoje há aldeias e até famílias que abrigam membros muçulmanos e não-muçulmanos. 3 SUDESTE ASIÁTICO Consideramos aqui como Sudeste Asiático a Península da Malásia, Java e Sumatra (actual Indonésia), Bornéu, algumas ilhas e arquipélagos menores e as Filipinas. A extensão total da área é de cerca de 5.450 quilómetros de Oeste a Leste e de 2.000 quilómetros de Norte a Sul. O Islamismo chegou ao Sudeste Asiático mais gradualmente do que ao mundo árabe, e foi absorvido durante um período mais longo. A região mantinha intenso contacto comercial com a Arábia e com a Índia, e é provável que mercadores muçulmanos se tenham fixado em portos comerciais, acompanhados por missionários sufis. Devem, portanto, ter estabelecido uma presença islâmica que, além do conteúdo religioso, atrairia os dirigentes locais, interessados nas suas valiosas redes de comércio. Também o povo local terá sido seduzido pelas suas qualidades de unificadores. A Indonésia começou a islamizar-se no final do século XIII, através dos contactos entre as comunidades comerciais do Litoral e os mercadores muçulmanos. Gradualmente, a conversão expandiu-se para o interior. As viagens não tinham apenas fins comerciais - estudantes e eruditos, sufis e homens santos, contribuíram para levar a organização da sociedade islâmica a um novo ambiente. Os dirigentes islâmicos não substituíram os regimes locais, pelo contrário, os ensinamentos islâmicos mesclaram-se com a cultura e a sociedade há muito estabelecidas e altamente desenvolvidas. Não existe muita documentação sobre esse primeiro período, porém, uma presença muçulmana em Sumatra é registada no final do século XIII por Marco Polo e, em meados do século XIV, por Ibn Battuta, célebre viajante marroquino. Aquela região foi palco do primeiro e forte reino muçulmano do Sudeste Asiático, [o Sultanato de] Atjé, no extremo Noroeste de Sumatra, uma vigorosa potência no final do século XVI. No início do século XV, Malaca, na Península da Malásia, era um pequeno reino independente dirigido por um chefe muçulmano. Malaca desfrutava de intensos contactos comerciais e transformar-se-ia num importante centro difusor do Islamismo. No final do século, outros dirigentes da Península tornaram-se muçulmanos e Johore transformou-se num foco religioso. Em Java, estabeleceu-se o Reino muçulmano de Mataram, que, por volta de 1625, controlava toda a ilha. A Nordeste de Java, o Islamismo foi aceite nas Ilhas Molucas e em parte do Bornéu, 4 pelos finais do século XV. Durante este século, o Islamismo alcançou as Filipinas a partir de Java e de Sumatra, onde grande parte da população continua hoje a ser muçulmana, embora a religião maioritária seja o Cristianismo. Em meados do século XVII, Abd al-Rauf al-Sinkili fez uma tradução malaia do Alcorão, tornando o Livro mais acessível, o que talvez esclareça como o Islamismo foi capaz de se adaptar ao contexto local. Na Malásia e na Indonésia, o Islamismo ortodoxo tem características próprias, destacando-se a poderosa influência exercida pelo Sufismo. No século XVI, os mercadores europeus desembarcaram na Indonésia. O comércio de especiarias exigia bases e portos seguros. Os portugueses foram os primeiros, seguidos pelos holandeses, e ambos conquistaram territórios, dividindo o controlo das Índias Orientais e da Malásia até ao século XIX. A presença europeia provocou um deslocamento e intercâmbio populacional entre as ilhas, reforçando a identidade e a cooperação islâmicas. Os interesses comerciais holandeses ampliaram-se, e a Companhia das Índias Orientais Holandesas estabeleceu um alicerce firme, com o seu novo centro comercial no Litoral Noroeste de Java, denominado Batávia (actual Jacarta). Em 1800, o controlo passou para o governo holandês, com o qual permaneceu, excepto por um breve período (1811- 1816), quando Java e as suas dependências estiveram sob o controlo britânico, tendo Stamford Raffles como governador. Em 1819 os britânicos estabeleceram uma base em Singapura e tomaram o Estreito de Malaca, entre Sumatra e a Península da Malásia. Em meados do século XIX, britânicos e holandeses detinham possessões na Malásia e na Indonésia, respectivamente. No início do século XX, surgiram movimentos nativos em busca de maior autonomia. O movimento Budi Utomo ("Nobre Empenho"), fundado por um grupo de javaneses de educação holandesa, visava modernizar o sistema social, então baseado em estruturas muçulmanas tradicionais. Seguiram-se outros movimentos, dos quais o mais importante foi a União Islâmica (Sarekat Islam), de 1912. De entre os movimentos islâmicos, destacam-se o Muhammadiyah (de 1912), predominantemente modernista, e o tradicionalista Nahdatul Ulama (de 1926). O Partido Nacionalista Indonésio (PNI) foi fundado em 1927, sob a liderança de Achmed Sukarno (1901 -1970), tendo por objectivo uma Indonésia unificada e independente da Holanda. 5 Toda essa actividade política foi interrompida com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e com a ocupação japonesa de 1942-1945. Depois da guerra, a Indonésia tornou-se finalmente uma república independente, com uma coligação governamental constituída por representantes dos partidos muçulmano, nacional e comunista, tendo Sukarno como Presidente (1945-1966) . Foi proclamado um Estado nacional baseado nos Cinco Princípios (Pancasila): os ideais de Crença em Deus, Nacionalismo, Humanitarismo, Democracia e Justiça Social. Na década de 1960, uma guerra civil derrotou os comunistas e, em 1966, o general Suharto (nascido em 1921) tornou-se Presidente. Embora a Indonésia não seja oficialmente muçulmana, um Ministério da Religião protege os interesses dos muçulmanos e de outros crentes, sendo encorajado um Islamismo não-político, ao mesmo tempo que o Ministério da Educação promove a educação islâmica, com instrução religiosa em todas as escolas. Em 1951, foi fundada a Universidade Estatal Islâmica, transformada em 1960 no Instituto Estatal da Religião Islâmica. Processo similar ocorreu na Península da Malásia. Em 1948, formou-se uma Federação da Malásia e, em 1957, um Estado malaio independente, tendo o Islamismo como religião oficial, ainda que com garantia de liberdade de culto. Em 1963, esse Estado recebeu o nome de Malásia. O país é nominalmente muçulmano, com um forte movimento dakwah (dawa), de carácter missionário e educacional. A descoberta e a exploração de petróleo têm contribuído para a notável prosperidade da região. O sultão do Brunei - pequeno Estado islâmico a Noroeste do Bornéu - é um dos homens mais ricos do mundo actual. Na região da Indonésia e da Malásia, as mesquitas são grandes e belas, com uma arquitectura de estilo próprio, mais semelhante à da construção dos templos tradicionais indianos do que à estrutura e ornamentação geométricas das mesquitas árabes. O ISLAMISMO NA ÍNDIA No tempo das primeiras conquistas islâmicas, ocorreram também as primeiras invasões da Índia. Um exército enviado pelo governador do Iraque invadiu e conquistou a região de Sind, na parte mais baixa do Vale do Indo (711-712). Os 6 árabes estabeleceram pequenas dinastias independentes no novo território, e algumas tribos nativas tornaram-se muçulmanas. Entretanto, no vizinho Afeganistão, os gasnávidas muçulmanos tomaram o poder. O mais notável dos seus reis, Mahmud (998-1030), fez incursões quase anuais à Índia entre 999 e 1027. Sendo mais do que um mero conquistador, Mahmud trouxe para a sua corte uma série de poetas e artistas indianos, além de proveitosos saques. Os gasnávidas acabaram por ser expulsos pelos góridas, que também varreram o Norte da Índia até ao Rio Ganges. No final do século XII, o governante local do Norte da Índia tornou-se independente da autoridade central, tendo os chefes de Deli adoptado o título de sultão no início do século XIII, sinal de poder e de autonomia. Em 1241, os mongóis invadiram o Punjab, mas o sultanato conseguiu recompor-se e expulsou-os. O poder muçulmano moveu-se para Sul, através do [Planalto de] Decã. Coexistiam vários sultanatos, inclusive os de Bengala, Caxemira, Gujarat e Jaunpur. O ano de 1320 viu surgir em Deli a dinastia dos Tughluq. Sob o governo de Muhammad ibn Tughluq (1325-1351) , eruditos religiosos (ulama) e homens santos foram enviados às fronteiras, com a missão de preparar o terreno para o Islamismo. A conversão não fez uso da força. Pelo contrário, a universalidade do Islamismo atraiu os inconformados com o sistema de castas, e inúmeros tornaram-se muçulmanos através do contacto com a Ordem sufista Chishti. Esta, fundada na Índia no final do século XII, valorizava a instrução, a contemplação e, em particular, a música e os cânticos de devoção como forma de aproximação ao Infinito. As mesquitas (masjids), as escolas religiosas (madrasas) e as residências para os sufis (khanaqas) constituíam a base da vida e da sociedade muçulmanas na Índia. O próprio Sultanato de Deli era nominalmente muçulmano, embora os chefes variassem entre a estrita observância à lei e a franca desobediência. Firuz, filho de Muhammad ibn Tughluq, foi um sultão poderoso que tolerou os hindus. No entanto, após a morte de Firuz, em 1388, uma série de dirigentes débeis causou uma gradual desintegração do sultanato, que acabou por ser atacado por Timur (ou Tamerlão) e pelos seus exércitos mongóis em 1397-1398. Deli rendeuse, mas Timur regressou ao Norte. Por fim, um descendente de Timur, Babur (ou Baber) invadiu e tomou o sultanato em 1526, pilhando e ocupando Deli e Agra, percorrendo e apoderando-se de todo o Norte da Índia. Homem de letras e soldado, 7 Babur foi sucedido, em 1530, pelo seu filho Humayun e, em 1556, pelo seu neto, Akbar, o verdadeiro fundador da dinastia mongol. O reinado de Akbar é descrito como a "Idade do Ouro" do Império Mongol. O território sob o controlo mongol foi expandido, pois Akbar anexou Caxemira e o Baluquistão, a Norte, e o Decã, a Sul. Embora fosse, na origem, um muçulmano devotado, Akbar tolerou a religião local e foi receptivo aos seus dogmas. Dispensou os hindus do pagamento do imposto e o seu principal conselheiro de finanças foi um hindu. Os registos do governo eram feitos em língua persa, reflectindo bem a abertura e a aceitação de Akbar para com as influências não- muçulmanas. Debates sobre assuntos religiosos eram frequentemente realizados na sua cidade, Fatehpur Sikri, e Akbar proclamou mesmo um novo estilo de religião monoteísta, a Din-i Ilahi, que incluía elementos de várias religiões (crença que morreu com Akbar). Depois da morte de Akbar, em 1605, o seu filho Jahangir governou até 1628, sendo sucedido pelo Xá Jahan (1628-1658), o construtor do Taj Mahal, em Agra. O filho deste, Aurangzeb, subiu ao trono em 1658. Rígido muçulmano, Aurangzeb restabeleceu o imposto para os hindus, destruindo ainda alguns dos seus templos. O reinado foi constantemente abalado por sublevações e Iutas, com o imperador dirigindo a própria campanha. Após a sua morte, em 1707, o seu filho Muazzam assumiu o poder, reinando com o título de Xá Bahadur. Mas o Império enfraquecia e, em 1738, sofreu invasões do Xá Nadir, do Afeganistão. Os hindus recuperaram gradualmente força e influência, ao mesmo tempo que os britânicos e outros europeus se tornavam mais poderosos. Em 1858, o último mongol foi deposto, acusado de cumplicidade no Motim Indiano/Guerra de Independência, e a Índia caiu em poder dos britânicos. O Islamismo deixara de ser a religião dominante, entrando em frequentes conflitos com o Hinduísmo.
OBSERVÂNCIA DO ISLAMISMO NA ÍNDIA E NO PAQUISTÃO Na Índia, o
Islamismo tem sido descrito como "um Islamismo essencialmente de homens santos". Enquanto a crença e a prática ortodoxas mantiveram o poder, o modo de vida sufista combinou com a tradição hindu de homens santos. Aceitavam se mais prontamente os santuários e a veneração aos túmulos do que nas terras 8 centrais do Islamismo. A abertura de Akbar foi criticada por alguns anciãos religiosos, como o Xeque Ahmad Sirhine (1564-1624), da tradição Naqshbandi. Mais tarde, outro xeque Naqshbandi, o Xá Wali Allah (falecido em 1763), procurou dar um "novo espírito à ijtihad", a interpretação do Islamismo à luz do pensamento contemporâneo. No século XIX, pensadores muçulmanos da Índia conheciam e combatiam as ideias ocidentais. Sayyid Ahmad Khan (1817-1898) percebeu a necessidade de uma versão moderna da dialéctica religiosa (kalam). Fundou a Faculdade de Aligarh, rejeitou a obediência inquestionável à tradição (taqlid), apelou para uma reinterpretação do Alcorão e escreveu um estudo comparado entre Islamismo e Cristianismo. Pouco depois, Muhammad Iqbal (1876-1938), erudito e poeta, escreveu «A Reconstrução do Pensamento Religioso Islâmico» (1928) . Como Muhammad Ali Jinnah (1876-1948), fundador do Paquistão, lqbal acreditava que os muçulmanos precisavam de ter uma nação própria. Finalmente, as tensões entre muçulmanos e hindus irromperam em trágicos assassinatos e no deslocamento de milhões de pessoas, que acompanharam a Separação, em 1947. 0 Islamismo teve uma nação própria, mas a um preço terrível. Entre os séculos XVI e XIX, os europeus, com a sua exploração, o seu comércio e a sua expansão, trouxeram uma nova experiência ao Islamismo da Ásia, de África e do Subcontinente Indiano: viver sob um domínio não-muçulmano. Como se constatou no Sudeste Asiático, isso provocou uma migração em massa que, por sua vez, produziu um novo fenómeno: maior número de muçulmanos a viver no Ocidente e na Europa. O IMPÉRIO OTOMANO Os otomanos foram a última e, de longe, a mais importante e mais duradoura de uma série de dinastias turcas que governaram partes do mundo islâmico, do século X em diante. Basicamente, podem considerar-se como os sucessores dos seljúcidas, que governaram, no século XI, a região que hoje abrange o Irão e o Iraque, estabelecendo um Estado subsidiário na Anatólia, depois da vitória sobre os bizantinos em Manzikert, em 1071. O Sultanato seljúcida de Rum tornou-se possível, graças à grande migração oguz de turcos oriundos do Irão. 9 A dinastia otomana (ou osmanli) recebeu esse nome em homenagem a Uthman (ou Osman, que governou de 1281 a 1324), o qual, no final do século XIII, fundou o núcleo de um Estado no Noroeste da Anatólia. O seu filho Orkhan (que governou de 1324 a 1360) consolidou e ampliou os domínios na Anatólia, conquistou Bursa e Iznik, deslocando-se na década de 1350 para a Europa, via Galípoli e invadindo a Trácia. Em 1366, a capital da dinastia mudou de Bursa para Edirne (Adrianópolis), no continente europeu. Os exércitos otomanos assumiram aos poucos o controlo dos Balcãs, ao mesmo tempo que ampliavam os seus domínios na Anatólia. Em 1402, uma invasão mongol comandada pelo guerreiro Timur (Tamerlão) derrotou os otomanos e capturou o Sultão Bayezid (que governou de 1389 a 1402). Porém, os mongóis não ocuparam a região de modo permanente. Seguiram-se dez anos de guerra civil, após o que a unidade do Estado foi restaurada e a expansão otomana recomeçou. Gradualmente, a maior parte da população cristã da Anatólia foi-se tornando muçulmana, embora nos Balcãs os cristãos continuassem a constituir uma maioria. O APOGEU DO IMPÉRIO A conquista de Constantinopla em 1453, durante o governo de Mehmet Fatih ("O Conquistador", 1451-1481), foi um evento de enorme significado para os otomanos - uniu as duas metades do grande império da época e, simbolicamente, atribuiu ao sultão otomano a condição de sucessor do imperador bizantino. Foi também um golpe decisivo contra o poder, o orgulho e a confiança de cristãos e bizantinos. A imponente Igreja de Hagia Sofia (Santa Sofia) foi transformada em mesquita, e a natureza da cidade mudou inteiramente. No período dos otomanos, que eram muçulmanos sunitas, as madrasas (escolas religiosas) e as waqfs (doações piedosas) asseguraram a função de perpetuar as instituições de ensino e caridade, muitas das quais serviram de inspiração para a belíssima e distintiva arquitectura otomana. O mundo islâmico obteve uma unidade, que desconhecia desde o período dos abássidas. Em 1516-17, as conquistas otomanas tomaram os reinos mamelucos da Síria e do Egipto, que permaneceram sob o seu controlo até ao século XIX, ficando os otomanos também 10 responsáveis por manter e supervisionar Meca e Medina. No período de Suleimão I, o Magnífico (governou de 1520 a 1566), o Império chegou ao apogeu em termos de cultura e de poder. Suleimão conquistou boa parte da Hungria. Nesse mesmo período, o litoral da Argélia e da Tunísia também passaram à suserania otomana. Tanto Mehmet como Suleimão introduziram novos códigos de leis administrativas, que complementavam a Lei da Charia (sharia). Traço notável da organização do Império no apogeu foi o facto de uma grande parcela do exército e de funcionários oficiais graduados serem recrutados por meio de tributo compulsório, cobrado à população não-muçulmana dos Balcãs. Os recrutas submetiam-se a rigoroso treino, que incluía a conversão ao Islamismo. A mais famosa das forças compostas por esses antigos cristãos foi a tropa de infantaria dos janízaros. Verificava-se uma tolerância generalizada para com os dhimmis (arménios, cristãos sírios e gregos, judeus), cujas hierarquias religiosas foram, até certo ponto, incorporadas no sistema administrativo. Os otomanos encorajaram as artes do Islamismo: arquitectura, estilos distintos de caligrafia, manuscritos com iluminuras, pintura e artes manuais. A literatura, em especial a poesia, era de grande importância para a elite culta, que se inspirou na Pérsia. Os sufis e um certo número de turuq desempenharam um papel central na vida e na cultura religiosas - os mais ortodoxos, nas áreas urbanas, e os menos ortodoxos, em localidades rurais. Nos séculos XVI e XVII, uma mudança de atitude trouxe à tona um Islamismo um pouco mais conservador, e as práticas sufistas mais extremas tenderam a ser eliminadas. DECLÍNIO DO IMPÉRIO OTOMANO Depois de Suleimão, os otomanos tiveram dificuldade em fazer novas investidas na Europa. Após um período de guerras inconsequentes, um tratado de 1606 reconheceu a igualdade entre os imperadores Habsburgos e os sultões. Em 1683, o segundo cerco otomano a Viena não obteve sucesso e levou os otomanos à primeira perda territorial importante na Europa, reconhecida em 1699 pelo Tratado de Karlowitz. 11 Durante os séculos XVII e XVIII, o equilíbrio de poder afastou-se ainda mais dos otomanos, e o Império revelou-se demasiado extenso para um controlo adequado por parte de uma autoridade central. Os venezianos, os Habsburgos e os russos conquistaram antigas terras otomanas. No início do século XVIII, os sultões reconheceram a superioridade das tecnologias europeias e começaram a recrutar conselheiros militares estrangeiros. Até a arte e a arquitectura demonstravam influência estrangeira. Isso prenunciou um profundo programa de modernização, decorrido no século XIX, mas que não conseguiu salvar o Império do colapso derradeiro, durante a Primeira Guerra Mundial. O século XIX e o início do século XX testemunharam o declínio contínuo e a eventual morte do antes poderoso Império. Em 1798, a expedição de Napoleão ao Egipto (embora as suas forças fossem expulsas em 1801, com a ajuda dos britânicos) marcou o início de uma intervenção europeia em grande escala. Em 1805, a investidura de Mohamed Ali como governador tornou o Egipto virtualmente independente dos otomanos. Durante o seu governo, o Egipto obteve controlo sobre o Oeste da Arábia, incluindo Meca e Medina, e estendeu a sua influência para Sul, em direcção ao Sudão. Em 1831, invadiu a Síria. Em 1882, o Egipto sofreu uma ocupação britânica, que durou até 1952. A partir de meados do século XVIII, os movimentos nacionalistas nos Balcãs transformaram-se numa séria ameaça ao Império. Num século, causaram a desintegração do poder otomano na região e o nascimento de novos Estados. Em 1830, os gregos foram os primeiros a conquistar a independência, após uma guerra amarga envolvendo potências europeias. Em 1878, depois do Congresso de Berlim, que reconheceu vários desses Estados autónomos, o processo de desintegração acelerou-se, e importantes potências europeias apropriaram-se de vários territórios otomanos. A MESQUITA A palavra masjid ("mesquita") significa literalmente qualquer lugar ritualmente limpo, onde as pessoas se possam prostrar para fazer a salat (prece). No 12 entanto, tradicionalmente é um local construído para a oração comunitária, podendo incluir uma biblioteca ou uma escola. Também tradicionalmente, as mesquitas possuem uma entrada central, muitas vezes uma qubba (cúpula) e um manara (minarete) de onde se faz o adhan (chamada para a prece) . O interior é quase vazio, com tapetes pelo chão (os sapatos são deixados do lado de fora da porta), e na extremidade fica o mihrab (nicho), marcando a qibla (direcção de Meca e de oração), em geral ornamentado com versos caligráficos do Alcorão e desenhos geométricos. Pode haver versos do Alcorão nas paredes e em torno da cúpula, porém, a arte figurativa não é permitida. Perto da qibla fica o minbar (púlpito), de onde o imã que lidera a prece pronuncia o sermão da sexta-feira. Os imãs sunitas são indicados pela comunidade, actuando por vezes como instrutores religiosos, mas sem um papel carismático ou herdado, como no xiismo. Existe uma área separada para wudu (abluções), uma vez que se exige limpeza ritual. Nenhuma regra islâmica impede as mulheres de frequentar as mesquitas, embora fiquem isoladas dos homens e em alguns locais se verifique uma oposição cultural à presença feminina. Imposta a todos os muçulmanos cinco vezes por dia, a salat (prece) é em geral realizada individualmente, em casa ou no trabalho. A reunião para a juma (prece de sexta-feira ao meio-dia) é obrigatória para os adultos livres do sexo masculino, assim como o congraçamento em importantes festividades, como a Eid al- Fitr (Quebra do Jejum), no término do Ramadão, e a Eid al-Kabir (Grande Festa do Sacrifício), durante o mês de hajj (Peregrinação). Em al-Azhar, no Cairo, ainda se pode observar o método tradicional de ensino, em que um xeque sábio se sentava ao lado de uma pilastra e o "círculo" de alunos se reunia à sua volta. Al-Azhar tem sido um dos mais influentes centros da sabedoria islâmica. Desde meados do século XX, o escopo da sua jamia (universidade) ampliou-se para incluir a medicina e várias disciplinas seculares. Muitas mesquitas tinham - e no mundo árabe continuam a ter - a sua madrasa, originalmente uma escola religiosa onde os jovens muçulmanos aprendiam a recitar o Alcorão de cor, a ler e a escrever versos corânicos, bem como, mais tarde, a ler comentários autorizados sobre o Alcorão, a hadith e biografias de especialistas em hadith. 13 Hoje, o termo madrasa indica uma escola comum, primária ou secundária. No entanto, a palavra ainda se refere a tradicionais escolas religiosas, algumas estabelecidas além do mundo muçulmano, como as do Norte de Inglaterra, onde existem grandes comunidades muçulmanas. As madrasas localizadas em Bury e em Dewsbury fazem parte de uma rede de várias madrasas Deoband, nas quais os alunos obedecem a uma rotina baseada numa instrução medieval. REFORMAS E CONFLITOS INTERNOS Na tentativa de retardar a decadência, os governos otomanos levaram a cabo vários programas de reformas, em grande parte seguindo padrões europeus. A modernização começou mais seriamente durante o reinado de Mahmud II (1807- 1839), que aboliu os janízaros e obteve sucesso no restabelecimento do controlo central sobre boa parte do Império. As reformas continuaram no período da Tanzimat ("Reorganização", 1839-1876), com ênfase no governo e na lei, instituindo-se um sistema de educação secular. Alguns códigos de leis baseavam-se na lei europeia, ainda que a Mejelle (1870) tenha sido uma codificação de partes da Lei Charia. Nas décadas de 1850 e 1860 os súbditos otomanos não-muçulmanos tiveram os seus direitos garantidos por lei. E, em 1856, um decreto imperial assegurou-lhes a igualdade relativamente aos muçulmanos, num movimento que realçava o conceito de cidadania, sendo ainda susceptível de encorajar a identidade e a lealdade otomanas. O período da Tanzimat fez surgir uma nova classe administrativa, educada segundo os padrões modernos. Nessa classe, um grupo de intelectuais (os Novos Otomanos) ressentiu-se com o que julgava ser uma atitude conciliatória dos principais estadistas para com as potências europeias. Esse grupo provocou a opinião pública através da imprensa e iniciou uma campanha aberta em prol de um governo constitucional e representativo. O reinado de Abd al-Hamid II (1876-1908) iniciou-se com os seus partidários, forçando-o a aceitar uma Constituição de natureza mais democrática. Porém, uma vez no poder, al-Hamid rejeitou-a e deu início a um período de governo autocrático e conservador em termos religiosos. Abd al-Hamid enfatizou o carácter islâmico do 14 Estado e chegou a propor-se como líder natural dos muçulmanos do mundo inteiro. As condições repressivas do seu reinado forçaram elementos da oposição a fugir para o estrangeiro e, na década de 1890, em Paris, os "Jovens Turcos" fundaram a Sociedade Otomana para a União e o Progresso, empenhada em derrubar o regime. Em 1907, oficiais do exército envolveram-se com o movimento oposicionista, levando à "revolução" de 1908, que forçou Abd al-Hamid a restaurar a malograda Constituição de 1876. A última década do governo otomano foi um período de grande turbulência e de novas perdas territoriais. Assistiu-se a uma centralização, e cada vez mais as políticas nacionalistas dos Jovens Turcos "unionistas" se voltavam contra as tendências mais liberais e descentralizadoras. Depois do hiato do governo de Abd alHamid, outras leis de carácter secular chegaram a colocar sob a autoridade do Estado escolas religiosas e tribunais. O sentido de identidade otomana deslocava-se aos poucos para uma identidade étnica turca - a Anatólia como lar do povo turco, fixado na Ásia Central. A Primeira Guerra Mundial alterou consideravelmente o mapa. O governo otomano, agora sob o controlo dos unionistas (Comité para a União e o Progresso), apoiou a Alemanha. A Arábia, sob o comando de Husayn, sharif (governante) de Meca, insistiu na guerrilha contra os turcos, esperando obter a independência. Entretanto, britânicos e franceses dividiam o Médio Oriente em "esferas de influência". Em 1918, quando os otomanos foram derrotados, a Liga das Nações concedeu à Grã-Bretanha a condição de mandatária sobre a Palestina e o Iraque. A França obteve poderes similares sobre o Líbano e a Síria. Mustafá Kemal (mais tarde conhecido como Ataturk), general otomano que repeliu os Aliados em Galípoli durante a guerra, tornou-se o líder do movimento de resistência nacional contra as potências que ocupavam áreas da pátria turca. Uma luta de três anos, principalmente contra os invasores gregos, terminou em 1923 com o Tratado de Lausanne, que reconheceu a Turquia como Estado independente. Uma vez abolido o Sultanato Otomano, em 1922 foi proclamada a República da Turquia, tendo Mustafá Kemal como primeiro Presidente (1923-1938). Em 1924, o califado foi formalmente abolido. As ordens sufistas foram banidas em 1925, e em 1928 a escrita arábica otomana foi compulsoriamente substituída pela escrita latina. A 15 Charia foi substituída por novos códigos de leis de origem inteiramente europeia, alterando radicalmente a condição legal das mulheres na Turquia. Ataturk faleceu em 1938, mas o regime de um partido que ele estabelecera durou até 1945. A partir do final da década de 1940, com a introdução da política multipartidária, a expressão religiosa islâmica obteve muito maior liberdade, e o Islamismo passou a ser ensinado nas escolas. Desde a década de 1970 que o Islamismo ocupa um lugar na vida política da Turquia. O ISLAMISMO NO MUNDO MODERNO O século XX testemunhou várias mudanças no mundo muçulmano: guerras mundiais; fim do domínio colonial; surgimento de novos Estados na Ásia, no Médio Oriente e em África; descoberta de petróleo; desenvolvimento de novas indústrias e sua exploração comercial por empresas multinacionais; crescente facilidade e frequência de viagens; comunicação através de rádio, televisão e Internet; migração em massa - tudo isto propiciou aos muçulmanos um contacto com comunidades e culturas estrangeiras e não-islâmicas. Ao nível intelectual e religioso, o Islamismo teve de reconhecer os rápidos progressos dos tempos modernos. No mundo islâmico, a reacção à modernidade varia muito, segundo circunstâncias geográficas, históricas e económicas. Dúvidas sérias a respeito dos valores morais do Ocidente não impedem os países árabes e muçulmanos de adoptar quaisquer inovações e tecnologias que considerem benéficas. A resistência à mudança tem vindo a ser chamada pelos observadores estrangeiros de "fundamentalismo islâmico", e muitas vezes utiliza-se o termo "extremista" para significar "o uso de meios violentos em vista de fins políticos". Na verdade, o "fundamentalismo" só é adequado se implicar um "retorno às bases". Um dos primeiros movimentos reformistas, ainda hoje existente, é o movimento Wahabita, criado no século XVIII por Mohamed Abd al-Ulahab (1703-1787), um hanabalita rígido que rejeitou o Sufismo e todos os tipos de inovação (bida), fundando, juntamente com Ibn Saud (1746-1765), um chefe tribal árabe, o futuro Reino Saudita, que continuou a sustentar o Islamismo ortodoxo. 16 No Egipto, Mohamed Abdu (1849-1905), destacado juiz e reitor de al-Azhar, modernizou o currículo desse antigo, e então influente, centro de ensino sunita. Em sua opinião, a religião baseada no Alcorão, na hadith e no exemplo dos assalaf as-salih ("antepassados piedosos") era compatível com a ciência e com a razão. Abdu manifestou o desejo de reinterpretar o islamismo na obra «A Teologia da Unidade» (1897). O chamado movimento Salafiyya, inspirado por Abdu, influiu em todo o Médio Oriente. Ao mesmo tempo, no Subcontinente Indiano, Sayyid Ahmad Khan (1817-1898), outro reformador, escrevia um extenso comentário sobre o Alcorão. Mais tarde, Mohamed Iqbal dedicou-se à tarefa de revitalizar o islamismo indiano e defendeu a ideia de um Estado islâmico, que se concretizaria em 1947, com a criação do Paquistão. A rejeição do mundo moderno é uma característica da Ikhwan al-Muslimun (Irmandade Muçulmana), fundada em 1928 por Hasan al-Banna (1906-1949) , que discursava contra a corrupção da política egípcia. Foi, várias vezes, oficialmente banida do Egipto. Outro movimento reformista, o Jamaat-i Islami, foi fundado por Abu al-Ala al-Mawdudi (1903-1979) , em Lahore. Tal como a Irmandade Muçulmana, esse movimento associava um renascimento religioso à acção social, continuando a ser importante. Um verdadeiro Estado islâmico continua a ser um objectivo remoto. Em 1979, a queda do Xá do Irão por meio de um movimento popular revolucionário encabeçado pelo Aiatolá Ruhollah Khomeini (1902-1989), introduziu uma observância rígida da lei segundo os princípios xiitas, que restringiam a liberdade das mulheres e levaram à perseguição da comunidade Bahai. No final do século XX, o governo tornou-se consideravelmente mais suave, embora os talibãs, dirigentes do regime bem mais intolerante do vizinho Afeganistão, sejam sunitas e wahabitas e não simpatizem com o Irão. MIGRAÇÃO PARA O MUNDO NÃO-MUÇULMANO Um novo aspecto da vida islâmica, verificado no século XX, após 1945, foi a migração, em larga escala, de indivíduos e de grupos para o Ocidente não-muçulmano, em especial para a Europa, para onde seguiu a primeira onda de trabalhadores, migrantes ou "convidados", que pretendiam ganhar melhor e, depois, 17 voltar à pátria. A partir da década de 1960, particularmente na Grã-Bretanha, esse processo evoluiu para a migração de famílias e de comunidades inteiras, principalmente oriundas do Paquistão, da Índia e do Bangladesh. A migração tende a associar-se a vínculos coloniais e de comércio. Assim, os muçulmanos do Norte da África emigraram, muitas vezes, para França; os muçulmanos turcos, para a Alemanha; e os muçulmanos das Índias Orientais, para os Países Baixos. Mesquitas e centros foram construídos ou adaptados, e os governos viram-se na necessidade de propiciar serviços especiais de educação, de previdência e alojamento. Quando a segunda e a terceira gerações concluem a escola e a educação superior e aderem à força de trabalho, irrompem tensões inevitáveis na comunidade muçulmana: a distância entre as gerações é acentuada por um ambiente mais amplo e mais permissivo (polarizada, ademais, através de atitudes em relação à terra natal) e, muitas vezes, pela falta de conhecimento, por parte do imã, da língua e da realidade social locais. Esta realidade tem vindo a evoluir para melhor, através da actuação de sociedades islâmicas para estudantes e profissionais, centros de treino para imãs, escolas islâmicas (que despertam as mais diversas reacções) e também por meio do trabalho árduo e do êxito dos próprios muçulmanos. O caso de Salman Rushdie - ocorrido quando o Aiatolá Khomeini promulgou um fatwa (decreto legal com base na lei islâmica) condenando à morte o romancista por visível blasfémia na sua obra «Os Versículos Satânicos» (1988) - revelou uma certa incompreensão mútua entre os mundos muçulmano e nãomuçulmano, mas também trouxe à tona a consciência de que era preciso haver maior compreensão e cooperação. No estrangeiro, associações representando vários países muçulmanos visam manter vivos os contactos entre a pátria e as comunidades migrantes, bem como fortalecer a observância religiosa. A Irmandade Muçulmana e, particularmente, os Jamaat-i Islami actuam na Grã-Bretanha. Os muçulmanos do Subcontinente Indiano podem pertencer à tradição Barelwi (ou Brelvi), que venera especialmente o Profeta e os homens santos. Existe também uma outra tradição, estritamente ortodoxa, a Deobandi, que rejeita essas devoções. A partir da tradição Deobandi surgiu o movimento Tablighi Jamaat, fundado em 1927 e que, através da pregação e do exemplo, tenta fazer que os muçulmanos retornem a uma prática mais ardorosa da 18 sua religião. Com centros em África e na Ásia, este movimento está também activo nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha e noutros países da Europa, tendo vindo a angariar muitos seguidores.