Você está na página 1de 19

3

A FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE

O FIM DA UNIDADE POLÍTICA

Mesmo quando o poder do califa abácida estava no auge, seu governo


efetivo era limitado. Existia sobretudo nas cidades e nas áreas produtoras em
torno delas; havia regiões distantes, nas montanhas e estepes, que permane­
ceram praticamente insubmissas. Com o passar do tempo, essa autoridade
viu-se colhida nas contradições dos sistemas de governo centralizados e bu­
rocráticos. A fim de administrar as províncias distantes, o califa tinha de dar
a seus governadores o poder de coletar impostos e usar parte da renda na
manutenção de forças locais. Embora tenha procurado mantê-los sob con­
trole com a ajuda de um sistema de informações, não pôde impedir que al­
guns governadores fortalecessem suas posições ao ponto de poderem entre­
gar o poder a suas famílias, permanecendo ao mesmo tempo — pelo menos
em princípio — leais aos interesses maiores de seu suserano. Deste modo, sur­
giram dinastias locais, como a dos safaridas no Irã Oriental (867-c. 1495), os
samanidas no Curasão (819-1005), os tulunidas no Egito (868-905) e os agla-
bidas na Tunísia (800-909); da Tunísia, os aglabidas conquistaram a Sicília,
que continuou a ser governada por dinastias árabes até ser tomada pelos nor-
mandos na segunda metade do século xi. Enquanto isso acontecia, diminuía
o envio de tributos a Bagdá, numa época em que houve um declínio no siste­
ma de irrigação e na produção agrícola do próprio Iraque. Para fortalecer
sua posição nas províncias centrais, o califa teve de depender cada vez mais
de seu exército profissional, cujos chefes, por sua vez, adquiriram maior po­
der sobre ele. Em 945, uma família de chefes militares, os Buyids, originá­
rios das margens do mar Cáspio, depois de obter o controle de algumas pro­
víncias, acabou por tomar o poder na própria Bagdá.
Os Buyids adotaram vários títulos, incluindo o antigo título iraniano de
xainxá (“xá dos xás”, ou “rei dos reis”), mas não o de califa. Os abácidas
iriam sobreviver por mais três séculos, mas começava uma nova fase em sua

57
história. De agora em diante, o poder de fato nas regiões centrais do Império nato de Isma'il, filho mais velho de Ja’far al-Sadiq, reconhecido por grande
estava nas mãos de outras dinastias apoiadas por grupos militares, as quais, parte do xiismo como o sexto imã. Isma’ií morreu em 760, cinco anos antes
contudo, continuavam a reconhecer o Califado dos Abácidas, que às vezes de seu pai, e a maioria dos xiitas acabou reconhecendo seu irmão Musa al-
podia reafirmar uma autoridade residual. Mas essa autoridade era exercida Kazim (m. 799) como imã. Os ismaelitas, porém, acreditavam que Isma’il
sobre uma área mais limitada que antes e, em algumas partes do antigo Im­ tinha sido irrevogavelmente nomeado sucessor do pai, e que seu filho Mu­
pério, os governantes locais não apenas detinham o poder, como nem sequer hammad se tornara imã depois dele. Afirmavam que Muhammad voltaria
aceitavam a autoridade formal dos abácidas. mais cedo ou mais tarde como o mahdi, enviado para revelar o significado
Em algumas regiões, surgiram movimentos oposicionistas e separatistas secreto da revelação corâmica e governar o mundo com justiça.
em nome de dissidências do Islã. Tais movimentos resultaram na criação de O movimento organizou atividades missionárias em larga escala. Um gru­
unidades políticas separadas, mas ao mesmo tempo ajudaram a disseminar po de adeptos criou uma espécie de república na Arábia Oriental, a dos qarami-
o Islã, dando-lhe uma forma que não perturbava a ordem sodal. tas (carmácios), e outro estabeleceu-se no Magreb, recrutou soldados berberes
Alguns desses eram movimentos em nome do kharijismo, ou pelo me­ e ocupou Kairuan. Em 910, chegou à Tunísia ‘Ubaiadullah, que alegava ser
nos de um de seus rebentos, o ibadismo. A crença de que o cargo de chefe descendente de ‘Ali e Fátima. Proclamou-se califa, e no meio século seguinte
da comunidade ou imã devia ser ocupado pela pessoa mais digna (que seria sua família criou uma dinastia estável, que recebeu o nome de fatímida (do
afastada caso se revelasse indigna), adequava-se bem às necessidades das frou­ nome da filha do Profeta, Fátima). Tanto por motivos religiosos como polí­
xas reuniões de grupos tribais vivendo em lugares isolados, que poderiam pre­ ticos, marchou para leste, em direção às terras dos abácidas, e em 968 ocu­
pou o Egito. Dali, estendeu seu domínio pela Arábia Ocidental e o interior
cisar de ura chefe ou árbitro de vez em quando, mas não queriam que ele
da Síria, mas logo perdeu a Tunísia.
tivesse um poder permanente e organizado. Assim, surgiu um imanato ibadi-
Os fatímidas usaram os títulos de imã e califa. Como imãs, reivindica­
ta em Omã fUman) no sudeste da Arábia, de meados do século VIII até o
vam autoridade universal sobre os muçulmanos, e seu Estado tornou-se um
fim do ix, quando foi suprimido pelos abácidas. Em algumas regiões do Ma-
centro de onde se enviavam missionários. Muito depois do desaparecimento
greb, parte da população berbere resistiu à chegada do governo islâmico e,
do Estado fatímida, as comunidades fundadas por esses missionários conti­
ao se tornar muçulmana, adotou as idéias kharijitas. Por algum tempo, hou­
nuaram existindo: no Iêmen, Síria, Irã, e depois na índia Ocidental.
ve uma poderosa dinastia de imãs ibaditas, os rustamidas, com capital em
Os fatímidas não eram apenas imãs, mas governantes de um grande Es­
Tahart, na Argélia Ocidental (777-909); suas crenças foram também reconhe­
tado, com o centro no vale do Nilo. O Cairo foi fundado por eles, uma cida­
cidas pelos ibaditas de Omã. de imperial construída ao norte de Fustat como símbolo de seu poder e inde­
Mais difundidos foram os movimentos de apoio às pretensões dos des­ pendência. O governo deles seguiu as linhas estabelecidas pelo Califado em
cendentes de * Ali ibn Abi Talib ao imanato. A maior parte dos xiitas, dentro Bagdá. O poder concentrava-se nas mãos do califa, e manifestava-se por meio
e em torno do Iraque, aceitou o domínio abácida, ou pelo menos a ele aquies­ da magnificência e de um cerimonial elaborado. Era prática dos califas fatí­
ceu. Os imãs reconhecidos por eles viveram discretamente sob os abácidas, midas mostrarem-se ao povo em desfiles solenes. As grandes autoridades do
embora às vezes sofressem confinamento na capital. Os Buyids eram vaga­ Estado entravam no salão do palácio; o califa saía de detrás de uma cortina,
mente xiitas, mas não contestavam a suserania dos califas; o mesmo se aplica trazendo o cetro nas mãos; montava em seu cavalo e seguia para o portão
à dinastia local dos hamdanidas, no norte da Síria (905-1004). do palácio, onde todas as trombetas soavam. Precedido e seguido por sua
Outros movimentos xiitas, no entanto, acabaram criando dinastias dis­ entourage e soldados, cavalgava por ruas enfeitadas pelos mercadores com
sidentes. Os zaiditas afirmavam que o imã devia ser o membro mais digno brocados e fino linho. Os desfiles manifestavam os dois aspectos do governo
da família do Profeta que estivesse disposto a opor-se aos governantes ilegí­ fatímida. Alguns deles religiosos, e outros mostravam a identificação do go­
timos. Não admitiram Muhammad al-Baqir (m. 731), reconhecido pela maioria vernante com a vida da cidade e o rio.
dos xiitas como o quinto imã, e sim o irmão dele, Zayd (de onde o seu no­ A base do poder fatímida era a receita das férteis terras do delta e do
me). Criaram um imanato no Iêmen, no século ix, e houve também um ima­ vale do Nilo, dos ofícios das cidades, e do comércio na bacia do Mediterrâ­
nato zaidita na região do mar Cáspio. neo, e também no mar Vermelho. Isso bastava para manter um exército re­
Um desafio mais direto aos abácidas veio de movimentos ligados a ou­ crutado fora do Egito: berberes, negros do Sudão e turcos. O califa não fez
tro ramo do xiisrao, os ismaelitas. Suas origens não são claras, mas parecem uma tentativa sistemática de impor as doutrinas ismaelitas aos muçulmanos
ter começado como um movimento secreto sediado primeiro no Iraque e no egípcios, que permaneceram em sua maior parte sunitas, com grandes popu­
Kuzistão, no sudoeste do Irã, e depois na Síria. Apoiavam a pretensão do ima- lações cristãs e judias vivendo, em geral, em pacífica simbiose cora eles.

58 59
A pretensão fatímida ao Califado era um desafio direto aos abácidas; Como na Síria, os omíadas, citadinos desde suas origens no Hedjaz, usa­
outro desafio, tanto aos abácidas quanto aos fatímidas, veio do extremo oes­ ram seu poder para promover os interesses das aldeias e do interior coloniza­
te do mundo muçulmano. As regiões conquistadas pelos árabes, Marrocos do. As cidades cresceram — primeiro Córdoba, depois Sevilha — sustenta­
e a maior parte da Espanha, eram de difícil controle a partir do Mediterrâ- das por terras irrigadas, nas quais se produzia um excedente, com técnicas
necTOriental, e impossível do Iraque. Os soldados e oficiais árabes nelas logo importadas do Oriente Próximo. Nessas áreas, os árabes eram importantes
adquiriam interesses próprios, e podiam facilmente expressá-los em termos como proprietários rurais e cultivadores, embora a maior parte da popula­
que reviviam memórias do impulso que os levara para tão longe da Arábia. ção nativa tenha permanecido. Além das planícies irrigadas, nos planaltos,
Lá pelo fim do século viu, Idris, um bisneto de ‘Ali, foi para o Marrocos, imigrantes berberes das montanhas do Magreb viviam da agricultura em pe­
conquistou apoio local e fundou uma dinastia importante na história do Mar­ quena escala e do pastoreio de carneiros.
rocos, pois os idrisidas construíram Fez e iniciaram uma tradição que dura O movimento de berberes do Magreb para a Espanha continuou por mais
até hoje, de dinastias independentes governando o país e justificando-se no tempo que a imigração vinda do Oriente, e foi provavelmente maior. Com
poder com alegações de que descendiam do Profeta. o tempo, também, parte da população nativa converteu-se ao Islã, e no fim
Mais importante para a história do mundo muçulmano como um todo do século x é possível que a maioria do povo de Andalus fosse muçulmana;
foi o caminho separado tomado pela Espanha, ou Andalus, para dar-lhe seu mas ao lado deles viviam aqueles que não se converteram, cristãos e uma con­
nome árabe. Os árabes desembarcaram pela primeira vez na Espanha em 710, siderável população judia de artesãos e comerciantes. Os diferentes grupos
e logo criaram ali uma província do Califado que se estendeu até o norte da mantiveram-se juntos graças à tolerância dos omíadas para com judeus e cris­
península. Aos árabes e berberes do primeiro núcleo, juntou-se uma segunda tãos, e também à disseminação da língua árabe, que se tornara a da maioria,
leva de soldados vindos da Síria, que iriam ter um papel importante, pois tanto para judeus e cristãos quanto para os muçulmanos, no século xj. A
após a revolução abácida um membro da família omíada pôde refugiar-se tolerância, uma língua comum e uma longa tradição de governo separado aju­
na Espanha e lá encontrar defensores. Criou-se uma nova dinastia omíada, daram a criar uma consciência e sociedade andaluzas distintas. Sua cultura
que governou por quase trezentos anos, embora só em meados do século X religiosa islâmica desenvolveu-se em linhas mais ou menos diferentes das dos
o governante tomasse o título de califa. países orientais, e sua cultura judaica também se tornou independente da do
Em seu novo reino, os omíadas envolveram-se no mesmo processo de Iraque, principal centro da vida religiosa judaica.
mudança que ocorria no Oriente. Uma sociedade em que os muçulmanos go­ Assim, foram não só os interesses da dinastia, mas também a identidade
vernavam uma maioria não muçulmana foi-se transformando numa sociedade separada dos andaluzes que se manifestaram na adoção do título de califa
em que a maior parte da população aceitava a religião e a língua dos gover­ por ‘Abd al-Rahman Ui (912-61). Seu reinado assinala o auge do poder in­
nantes, e um poder que governava a princípio de um modo descentralizado dependente dos omíadas da Espanha. Pouco depois, no século xi, esse rei­
foi-se tornando, por manipulação política, um poder poderosamente centra­ nado ia dividir-se em vários menores, governados por dinastias árabes ou ber­
lizado, governando mediante o controle burocrático. beres (os “reis de partido” ou “reis de facção”, muluk al-tawa3ij)y por um
Mais uma vez, criou-se uma nova capital: Córdoba, sobre o rio Guadal- processo semelhante àquele que ocorria no Império Abácida.
quivir. O rio proporcionava o curso d*água para trazer o volume de produ­
tos necessários à alimentação e à indústria; nas planícies em torno, os grãos
e outros produtos agrícolas que a cidade precisava eram cultivados em terras UMA SOCIEDADE UNIFICADA: AS BASES ECONÔMICAS
irrigadas. Córdoba era também um ponto de encontro de estradas, eum mer­
cado para o intercâmbio de produtos agrícolas entre as regiões. Mais uma O desaparecimento de uma estrutura unitária de governo, no Oriente e
vez, à medida que a dinastia se tornava mais autocrática, mais se retirava no Ocidente, não foi um sinal de fraquez^ social ou cultural. A essa altura
da vida da cidade. O governante mudou-se de Córdoba para uma cidade real, já se criara um mundo muçulmano, cimentado por muitas ligações, e com
Medinat-al-Zahra, a certa distância da capital. Ali, reinava com grande pompa, muitos centros de poder e alta cultura.
cercado por um grupo governante que incluía famílias árabes e arabizadas A absorção de uma área tão grande num único Império acabara criando
— mas que também tinha um elemento oriundo dos escravos importados da uma unidade econômica importante não só pelo seu tamanho, mas porque
região do mar Negro, da Itália e de outras partes. Também o exército tinha' ligava duas grandes bacias marítimas do mundo civilizado, as do Mediterrâ­
um núcleo de mercenários estrangeiros, embora incluísse igualmente árabes neo e do oceano índico. A movimentação de exércitos, mercadores, artesãos,
e berberes assentados na terra em troca de serviço militar. estudiosos e peregrinos entre elas tornou-se mais fácil, e também a de idéias,

60 61
estilos e técnicas. Dentro dessa vasta esfera de interação, foi possível surgi­ caravanas grandes, bem organizadas, e em curtas distâncias por mulas e ju-^
rem governos fortes, grandes cidades, comércio internacional e uma zona agrí­ mentos. Na maior parte do Oriente Próximo, o transporte por rodas desapa­
cola florescente, mantendo as condições para a existência uns dos outros. receu após a ascensão do Império Muçulmano, só retornando no século Xix,

..m
A criação do Império Muçulmano, e depois de estados dentro de seus e várias razões foram sugeridas para isso: as estradas romanas deterioraram-
antigos territórios, levou ao surgimento de grandes cidades, em que palácios, se, os novos grupos governantes árabes tinham interesse na criação de came­
governos e populações urbanas precisavam de alimentos, matérias-primas para los, e o transporte em lombo de camelo era mais econômico que por carroça.
a manufatura e luxos para a ostentação de riqueza e poder, e onde as mudan­ O comércio no Mediterrâneo foi a princípio mais precário e limitado.
ças e complexidades da vida urbana levaram ao desejo de novidade e imita­ A Europa Ocidental ainda não chegara a um ponto de recuperação em que
ção dos poderosos ou do estrangeiro. A demanda urbana e a relativa facili­ produzisse muita coisa para exportação ou absorvesse muita, e o Império Bi­
dade de comunicações deram novas direções e métodos de organização ao zantino tentou por algum tempo restringir o poder naval e o comércio marí­
comércio a longa distância que sempre existira. Produtos muito volumosos timo árabes. O comércio mais importante era o feito ao longo da costa sul,
não podiam ser transportados lucrativamente para muito longe, e em relação ligando a Espanha e o Magreb com o Egito e a Síria, tendo a Tunísia como
à maioria de alimentos a cidade tinha de recorrer ao seu interior imediato; entreposto. Ao longo dessa rot^ os mercadores, muitos deles judeus, organi­
mas em alguns produtos o retorno era tal que justificava o seu transporte por zaram o comércio de seda espanhola, ouro trazido do oeste africano, metais
longas distâncias. Pimenta e outras especiarias, pedras preciosas, tecidos fi­ e azeite de oliva. Mais tarde, no século x, o comércio com Veneza e Amalfi
nos e porcelana vinham da índia e da China, peles dos países do Norte; em começou a ganhar importância.
troca, mandavam-se coral, marfim e têxteis. As cidades do Oriente Médio Governos fortes e grandes cidades não podiam viver sem um campo pro­
eram não apenas consumidoras, mas produtoras de bens manufaturados pa­ dutivo, mas o campo, por sua vez, não podia florescer se não houvesse um
ra exportação e para consumo próprio. Parte da produção era em grande es­ governo forte e cidades para investir na produção. Nos países conquistados
cala — armamentos de guerra fabricados em arsenais do Estado, têxteis fi­ pelos árabes, e sobretudo naqueles onde houve grande imigração árabe, sur­
nos para o palácio, refinarias de açúcar e fábricas de papel —, mas a maioria giu uma nova classe de proprietários rurais. Terras que haviam sido tomadas
se fazia em pequenas oficinas de têxteis ou metalurgia. de proprietários anteriores e formalmente pertenciam ao governante eram da­
Antes da chegada da estrada de ferro e, depois, do automóvel nos tem­ das a árabes, com a obrigação de pagar impostos; mais tarde, no século X,
pos modernos, o transporte por água era mais barato, rápido e seguro que começou a surgir um acordo pelo qual a coleta de impostos sobre tratos de
por terra. Para alimentar seus habitantes, era quase essencial que as grandes terra era entregue a funcionários ou comandantes de exércitos, que por esse
cidades ficassem perto de um mar ou rio navegável, e também as principais meio se tornavam virtuais proprietários e tinham interesse na manutenção
rotas de comércio a longa distância eram rotas marítimas, nesse período so­ da produção. Em grande parte, os cultivadores que já estavam lá antes conti­
bretudo as do oceano índico. Sob os abácidas, os principais centros de orga­ nuaram a cuidar da terra, embora em alguns lugares lavradores e pastores
nização do comércio nessas rotas eram Basra, no baixo Iraque, e Siraf, na migrassem. As evidências existentes indicam que as relações entre terratenentes
costa iraniana do golfo, ambas dentro do controle abácida e em posição de e cultivadores eram de meia, de uma forma ou de outra: após o pagamento
satisfazer as demandas da capital. No século x, houve uma certa mudança do imposto, dividia-se a produção em proporções combinadas entre os que
do comércio do golfo Pérsico para o mar Vermelho, devido à ascensão do entravam com a terra, as sementes, os animais e o trabalho. Havia acordos
Cairo como um centro de comércio e poder e a uma crescente demanda das mais complicados para a terra irrigada, ou para aquela onde se iam plantar
cidades mercantis da Itália, mas isso foi apenas um princípio. árvores.
De Basra e Siraf, o comércio com o Oriente era feito principalmente por Os proprietários rurais que acumulavam dinheiro no comércio ou de ou­
mercadores iranianos, árabes ou judeus; a certa altura, eles chegaram até a tros modos podiam usá-lo na produção agrícola, e com a ajuda desse novo
China, mas depois do século X não foram além dos portos do sudeste da Ásia. capital introduziam-se novas técnicas. Há indícios de que a expansão do Im­
Dirigiram-se também para o sul, para o sul e o oeste da Arábia e o leste da pério Muçulmano trouxe novas colheitas, ou pelo menos levou à ampliação
África. De Basra, os produtos podiam ser transportados por rio até Bagdá, das já conhecidas. Em geral, o movimento era para oeste, da China ou ín­
e daí em diante pelas rotas do deserto sírio até a Síria e o Egito, ou através dia, através do Irã, para a bacia do Mediterrâneo: cultivavam-se arroz, cana-
da Anatólia até Constantinopla e Trebizonda, ou pela grande rota que ia de de-açúcar, algodão, melancia, berinjela, laranja e limão numa vasta área. Al­
Bagdá a Nishapur no nordeste do Irã, e de lá para a Ásia Central e a China. gumas dessas colheitas exigiam grande investimento em irrigação e melhoria
Em longas distâncias, os bens eram transportados em lombo de camelo, em da terra. Velhas obras de irrigação eram restauradas, por exemplo as do sul

62 63
do Iraque, e novas construídas. O movimento para oeste pode ser visto na tribos árabes que já estavam no Iraque e na Síria antes da conquista muçul­
Espanha, que adquiriu a roda-d!água (na’ura, noria) da Síria e o canal sub­ mana, a maioria dos convertidos pode ter vindo ou das camadas inferiores
terrâneo (qanat) do Irã; novos métodos de rotatividade de colheitas também da sociedade — por exemplo, soldados capturados em combate — ou de fun­
entraram na Espanha. cionários do governo sassânida que entravam a serviço dos novos governan­
Com tais melhorias, o excedente agrícola aumentou, e isso, junto com tes; não havia pressão ou incentivo positivo para que outros se convertessem.
o crescimento da manufatura e do comércio, aumentou a importância do di­ Os convertidos viviam em sua maior parte dentro ou próximo dos principais
nheiro na economia do Oriente Próximo e da bacia do Mediterrâneo. Surgiu centros urbanos de população e poder árabes, onde havia os primórdios de
um sistema monetário reconhecido internacionalmente. O fluxo de metais pre­ instituições especificamente islâmicas — a mesquita, o tribunal —e foram
ciosos, e sobretudo de ouro africano, para as terras do Califado possibilitou essas cidades, as do Iraque e do Irã, Kairuan na África e Córdoba na Espa­
a expansão da cunhagem; o dinar de ouro dos abácidas continuou sendo um nha, que serviram de centros par^ a irradiação do Islã.
instrumento de troca durante séculos, e moedas de prata islâmicas foram en­ No fim do quarto século islâmico (século x d.C.), o quadro mudara.
contradas na Finlândia e na floresta de Wychwood, ao norte de Oxford. Li­ Grande parte da população tornara-se muçulmana. Não apenas a população
gado ao desenvolvimento da cunhagem veio o de um sistema de crédito. Os urbana, mas um número considerável de habitantes rurais devia ter-se conver­
tido. Um motivo para isso poíie ter sido que o Islã se tornara mais claramen­
grandes mercadores aceitavam depósitos e faziam empréstimos; os prestamistas
e coletores de impostos também usavam seu dinheiro acumulado para em­ te definido, e a linha entre muçulmanos e não-muçulmanos mais nitidamente
préstimos. Os mercadores que tinham correspondentes ou clientes em outras traçada. Os muçulmanos agora viviam dentro de um elaborado sistema de
praças sacavam contra eles ou emitiam cartas de crédito. ritual, doutrina c lei claramente diferente do dos não-muçulmanos; tinham
Não poderia ter havido uma economia complexa e extensa sem um siste­ mais consciência de si mesmos como muçulmanos. O status dos cristãos, ju­
ma de expectativas comuns entre os que tinham de negociar uns com os ou­ deus e zoroastrianos estava mais precisamente definido, e em alguns aspectos
tros sem contato ou conhecimento pessoal. Em alguns casos, laços de família era inferior. Eles eram vistos como o “Povo do Livro”, aqueles que possuíam
podiam proporcionar isso, por exemplo entre os mercadores judeus que viaja­ uma escritura sagrada, ou “Povo da Aliança”, com o qual se tinham feito
vam pelo mundo mediterrâneo e além, cruzando fronteiras entre países mu­ pactos de proteção (o chamado Pacto de ‘Umar). Em geral, não eram obri­
çulmanos e cristãos. Se tais laços não existiam, eram necessárias leis ou normas gados a converter-se, mas sofriam com as restrições. Pagavam um imposto
de moralidade social geralmente aceitas. Do mesmo modo, os proprietários especial; não deviam usar certas cores; não podiam desposar muçulmanas;
rurais e cultivadores precisavam de regras claras e aceitas sobre propriedade, seu testemunho não era aceito contra o dos muçulmanos nos tribunais; suas
divisão da produção, impostos e direitos sobre água, árvores e minérios sob casas ou locais de culto não deviam ser ostensivos; eram excluídos das posi­
o solo. ções de mando (embora em vários lugares judeus e cristãos trabalhassem co­
As relações econômicas, portanto, exigiram um sistema comum de con­ mo secretários ou autoridades financeiras para governantes muçulmanos). A
duta, e isso se tornou possível à medida que uma parte cada vez maior da seriedade da aplicação dessas regras dependia das condições locais, mas mes­
população das terras governadas por muçulmanos foi-se tornando ela pró­ mo nas melhores circunstâncias a posição de uma minoria é incômoda, e a
pria muçulmana, e que se extraíam as implicações para a vida social da reve­ indução à conversão existia.
lação feita a Maomé. O processo de conversão não era completo, porém. Os judeus haviam
sido excluídos da maior parte da península Arábica nos primeiros dias do Is­
lã, mas continuaram presentes nas grandes cidades de outros países muçul­
UNIDADE DE FÉ E DE LINGUAGEM manos como mercadores e artesãos, e também como pequenos comerciantes
em alguns distritos rurais: norte do Iraque, Iêmen, Marrocos. O fato de te­
Não é fácil descobrir muita coisa sobre os estágios pelos quais os povos rem sobrevivido e prosperado deveu-se não só à força de sua organização co­
súditos se tornaram muçulmanos, mas um estudo baseado na adoção de no­ munal, mas à sua capacidade de ocupar certas posições econômicas nos in­
mes especificamente muçulmanos sugeriu ordens de magnitude que parecem terstícios de uma sociedade complexa, e também à sua não-identificação com
plausíveis.1 Segundo essa estimativa, no fim do período omíada (ou seja, nos qualquer dos estados com os quais os governantes muçulmanos estavam em
anos médios dos séculos H islâmico e viu cristão), menos de 10Vo da popula­ guerra de tempos em tempos.
ção do Irã e do Iraque, Síria e Egito, Tunísia e Espanha era muçulmana, em­ A situação dos cristãos não era a mesma. Alguns tinham ligações reli­
bora a proporção deva ter sido bem maior na península Arábica. Além das giosas com o Império Bizantino, e podem ter incorrido em suspeita em tem-

64 65
pos de guerra. Não tinham a mesma organização comunal compacta dos ju­ Sob os omíadas, continuou a florescer a tradição de composição poéti­
deus; em partes do campo talvez não fossem tão profundamente cristãos. Em ca, e os mais famosos poetas do primeiro período ainda eram de origem be-
alguns lugares, o cristianismo desapareceu por completo, embora não por mui­ duína árabe: Akhtal, Farazdaq, Jarir. Mas havia uma diferença: a patronato
to tempo; em outros, continuou como credo de uma minoria. Na Espanha, das cortes — a dos próprios omíadas em Damasco, mas também as dos po­
grande parte da população continuou pertencendo à Igreja Católica romana; derosos chefes tribais — estendeu o alcance geográfico da poesia, e também
em outras partes, os que sobreviveram tenderam a filiar-se a igrejas dissiden­ tendeu a mudar sua natureza. Ganharam mais destaque os panegíricos de go­
tes, que se haviam separado do corpo principal devido às grandes divergên­ vernantes e poderosos, e ao mesmo tempo a poesia de amor, o ghazal, adqui­
cias dos primeiros séculos sobre a natureza de Cristo: nestorianos, monofi- riu um tom mais pessoal.
sistas, monoteletas. Os cristãos viviam não só em cidades, mas em partes do No fim do período omíada, e no início do período de dominio abácida,
campo, sobretudo no alto Egito, nas montanhas libanesas e no norte do Iraque. deu-se uma transformação mais fundamental. O advento do Islã alterou o
A língua árabe difundiu-se junto com o Islã, ou mesmo antes dele em modo como as pessoas viam a língua árabe. O Corão foi o primeiro livro
alguns lugares. No interior da Síria e no oeste do Iraque, grande parte da escrito em árabe, e os muçulmanos acreditavam que esta era a língua em que
população já falava árabe na época da conquista muçulmana. As novas ci­ fora revelado. Era expresso na linguagem elevada em que se compunha a poe­
dades, com suas populações de imigrantes e governos dominados pelos ára­ sia dos primeiros tempos, más agora usada para um fim diferente. Para os
bes, atuavam como centros de uma mais ampla irradiação da língua. Ela que aceitavam o Corão como a Palavra de Deus, era essencial entender a sua
espalhou-se tanto como língua falada, em vários dialetos locais influencia­ língua; para eles, a poesia antiga era não só o diwan dos árabes, mas também
dos pelas línguas vernáculas anteriores, quanto escrita, numa forma cuja uni­ a norma de linguagem correta.
dade e continuidade eram preservadas pelo Corão, o livro enviado do Céu O árabe tornava-se agora o meio de expressão não só para os que chega­
em língua árabe. vam da península Arábica às várias regiões do Império, mas para os de ou­
Quanto à língua falada, o árabe enfrentou uma barreira no Irã, onde per­ tras origens que aceitavam a religião do Islã, ou que pelo menos precisavam
sistia o uso da língua persa. Como língua escrita, porém, não encontrou fron­ usar a língua para o trabalho ou a vida, e em particular para os funcionários
teira dentro do mundo islâmico. A religião levava-a consigo. Os convertidos persas e outros que serviam aos novos governantes. O centro de atividade
de origem não árabe, e sobretudo os iranianos, liam o Corão em árabe, e de­ literária passou das aldeias nos oásis e acampamentos tribais para as novas
sempenharam um grande papel na articulação do sistema de pensamento e cidades: Basra e Kufa a principio, e depois a nova capital imperial, Bagdá.
lei que dele resultou. Os não-convertidos continuaram a usar suas línguas pa­ O meio literário mudou e expandiu-se, incluindo o califa e suas cortes, os
ra fins religiosos e literários: as liturgias de algumas das igrejas orientais ain­ altos funcionários e a nova elite urbana, de origens diversas. Embora a prática
da retinham o siríaco e o copta; hebraico e aramaico eram as línguas de culto de composição e declamação orais de poesia possa ter continuado, começa­
e ensino religiosos judeus; as escrituras zoroastrianas receberam sua forma ram a escrever-se obras literárias, e a partir do início do século ix a circula­
final em pálavi, a forma de persa usada antes da conquista, após o advento ção de obras escritas foi ajudada pela introdução do papel. Antes usavam-se
do Islã. Mesmo nisso, porém, deu-se a mudança: o árabe tornou-se uma lín­ papiros e pergaminhos, mas na última parte do século ix a técnica de fabri­
gua de culto e literatura religiosos em algumas das igrejas orientais; os judeus cação do papel foi trazida da China. Fabricado primeiro no Curasão, espalhou-
da Espanha passaram a usá-lo para filosofia, ciência e poesia. A primeira bar­ se para outras partes do Império, e em meados do século x já havia quase
reira séria à difusão do árabe ocorreu no século ix, quando o persa começou substituído o papiro.
a surgir numa forma islamizada como língua literária; mas também no Irã Um dos efeitos naturais da difusão da língua árabe foi que muitos de
o árabe continuou a ser a principal língua de doutrina legal e religiosa. seus usuários acabaram por querer compreendê-la. As ciências da linguagem
Assim, na literatura desse período, palavras como *‘árabe’9 ou ‘‘arábi­ foram criadas em grande parte por pessoas para as quais o árabe era uma
co*' assumem sentidos mais amplos, que eclipsam os antigos. Podem referir- língua adquirida, e que portanto tinham de pensar sobre ela: a lexicografia,
se aos originários da península Arábica, e sobretudo aos que podiam alegar coleta e classificação de palavras, foi desenvolvida por estudiosos que fre-
filiação às tribos nômades de tradição militar; ou podem ser usados em rela­ qüentavam as feiras que reuniam os beduínos; a gramática, explicação do mo­
ção a todos aqueles, do Marrocos e Espanha à fronteira do Irã, que haviam do de funcionamento do árabe, foi exposta sistematicamente pela primeira
adotado o árabe como língua vernácula; ou, num sentido, podem ir mais além, vez por um homem de origem não árabe, Sibawayh (m. 793), de cujos textos
abrangendo aqueles para os quais o árabe se tornara o principal meio de ex­ derivaram todas as outras obras. O mesmo impulso levou estudiosos a cole­
pressão de uma alta cultura literária. tar e estudar a antiga poesia da Arábia. Ao editarem os poemas, devem tê-los

66 67
modificado, e ao mesmo tempo elaboraram-se princípios formais de compo­
Associado a isso, porém, há um veio de louvor a si próprio, como num
sição poética, que iriam influenciar poetas posteriores. O primeiro teórico
poema escrito quando, ele pensava, Sayf al-Dawla transferiu seu favor para
literário importante, Ibn Qutayba (828-89), produziu uma descrição da qasi­
outro:
da típica que poetas posteriores iriam levar em conta: sugeriu que a qasida
devia começar com a evocação de moradas e amores perdidos, continuar com Ó mais justo dos homens, exceto no modo como me tratais, minha briga é con­
a descrição de uma viagem, e culminar no verdadeiro tema, panegírico, ele­ vosco, e sois ao mesmo tempo meu adversário e meu juiz [...] Eu sou aquele de
gia ou sátira. quem mesmo os cegos podem ver o que escreveu, e que fez até os surdos ouvirem
Os textos dos teóricos foram talvez menos importantes no desenvolvi­ suas palavras. Eu durmo com as pálpebras fechadas para as palavras que vagam
mento da poesia que a prática de novos tipos de poetas. A poesia deles era lá fora, enquanto outros homens não dormem por causa delas, e competem uns
mais individual que a dos autores das qasidas pré-islâmicas. Alguns eram de com os outros com que linguagem a ralé, que não é nem árabe nem persa,
proclama sua poesia perante vós? Isto é uma reprovação a vós, mas feita com
origem não árabe, viviam em cidades, conheciam a tradição poética que her­
amor; é incrustada de pérolas, mas elas são minhas palavras.3
davam, mas usavam-na com uma arte literária autoconsciente. Surgiu um novo
estilo, o badi\ caracterizado pelo uso de uma liguagem elaborada e figuras Os poetas davam continuidade a uma antiga tradição, mas a escrita da
de retórica: usava-se um vocabulário precioso, punham-se as palavras em an­ prosa árabe era algo novd. O Corão foi a primeira obra em prosa composta
títeses umas com as outras, e tudo era expresso segundo o rígido esquema na alta língua árabe (ou pelo menos a primeira que sobreviveu), e a produção
de métricas e rimas càracterístico da poesia anterior. de outras foi em certo sentido uma conseqüência natural dele. Recolheram-
Os temas da poesia eram mais variados que antes. Os poetas escreviam se e escreveram-se histórias sobre o Profeta e as vitórias árabes, e pregadores
sobre o amor erótico, não apenas um lamento formal pela amada perdida populares criaram uma retórica de temas islâmicos. Um tanto tardiamente,
ou proibida. Alguns deles participaram das polêmicas religiosas e éticas dos surgiu uma nova espécie de prosa artística, explorando temas tirados de ou­
primeiros séculos islâmicos: um poeta sírio, AbuVAla al Ma‘arri (937-1057), tras culturas; um dos primeiros e mais famosos exemplos disso foi Kalila wa
escreveu poemas e uma elaborada obra em prosa em que se lançavam dúvi­ Dimna, uma coletânea de fábulas moralistas da vida animal, derivada do sâns-
das sobre as idéias em geral aceitas sobre a revelação e a vida após a morte. crito, através do pálavi, e posta em prosa árabe por um funcionário abácida
Era natural que se desse uma ênfase especial ao panegírico, o louvor não de origem iraniana, Ibn al-Muqaffa‘ (c. 720-56).
só da tribo do poeta, mas do governante ou patrono. No panegírico, a pri­ Ele era um exemplo dos secretários arabizados e islamizados que traziam
meira parte do que Ibn Qutayba tinha encarado como a qasida típica enco­ ao árabe idéias e gêneros literários derivados de sua própria tradição herda­
lheu e tornou-se apenas uma introdução ao tema principal; o governante ou da, mas ao lado desses havia outro grupo de escritores que extraíam inspira­
patrono era louvado em linguagem elaborada e formal, por meio da qual às ção do vasto mundo criado pela difusão do Islã e seu Império: a multiplicidade
vezes aparecem a personalidade e os sentimentos do poeta. de povos e países, a nova variedade de personagens humanos, os novos pro­
Al-Mutanabbi (915-68) foi reconhecido por críticos literários posterio­ blemas de moralidade e conduta. Eles tentavam ver essas coisas à luz das nor­
res como o mestre desse tipo de poesia. Nascido em Kufa, de origem árabe, mas da nova fé islâmica, e expressá-las numa forma literária agradável. Entre
viveu parte de seus primeiros anos no seio da tribo árabe de Banu Qalb. Pas­ os praticantes desse novo tipo de literatura ou adab, al-Jahiz (776/7-868/9)
sou parte da juventude em atividade política, e os últimos anos como poeta destaca-se como um escritor de excepcional alcance e vividez de reação, ex­
da corte de uma sucessão de governantes, em Alepo, Cairo, Bagdá e Shiraz. pressos numa linguagem exemplar. Tinha raízes numa das famílias africanas,
Talvez seus anos mais férteis tenham sido aqueles em que foi poeta do gover­ de origem escrava, ligadas às tribos árabes, mas há muito tempo completa-
nante hamdanida de Alepo e do norte da Síria, Sayf a-Dawla. O governante mente arabizadas. Criou-se em Basra, mas depois teve a proteção do califa
é louvado em termos hiperbólicos. Quando este se recuperou de uma doença, al-Ma’mun. Sua curiosidade intelectual ia longe, e suas obras são coletâneas
seu poeta declarou: de um raro e interessante saber relativo ao mundo humano e natural: países,
A glória e a honra curaram-se quando vos curastes, e a dor passou de vós para animais, a excentricidade dos seres humanos. Por baixo disso, corre uma veia
vossos inimigos [...] A luz, que deixara o sol, como se sua perda fosse uma doen­ de comentário moral: sobre amizade e amor, inveja e orgulho, avareza, falsi­
ça do corpo, a ele retornou [...] Os árabes são únicos no mundo por pertencerem dade e sinceridade:
a vossa raça, mas os estrangeiros partilham com os árabes de vossas beneficên­
O homem que é nobre não finge ser nobre, não mais do que o que é eloqüente
cias [.,.] Não apenas eu me congratulo com vossa recuperação; quando estais
finge eloqüência. Quando um homem exagera suas qualidades, é porque alguma
bem, todos os homens estão bem.2
coisa lhe falta; o valentão dá-se ares porque sabe de sua fraqueza. O orgulho

68
69
É& âl
é feio em todos os homens [...] é pior que a crueldade, que é o pior dos pecados, A tradição de escrever história atingiu a maturidade no século IX, com
e a humildade é melhor que a clemência, que é a melhor das boas obras.4 o aparecimento de histórias de mais amplo escopo e maior poder de com­
0 adab que se desenvolveu no início do período abácida destinava-se a preensão: as de ai-Baladhuri (m. 892), al-Tabari (839-923) e al-Mas‘udi (m.
edificar e divertir. Um cádi de Bagdá, al-Tanukhi (940-94), escreveu três vo­ 928). Esses escritores tomaram como tema toda a história islâmica, e às vezes
lumes de histórias que são ao mesmo tempo um divertimento literário e uma tudo que consideravam importante da história humana. Assim, Mas‘udi tra­
série de documentos sociais sobre o mundo dos ministros, juízes e dignitários ta dos anais dos sete povos antigos que ele encara como tendo tido uma ver­
menores que cercavam a corte abácida. No século seguinte, Abu Hayyan al- dadeira história: os persas, caldeus, gregos, egípcios, turcos, indianos e chi­
neses. O volume de informações precisava ser ordenado: no caso da história
Tawhidi (m. 1023) escreveu ensaios e tratados sobre uma vasta gama de tó­
islâmica, por anos; nas outras, por critérios como os períodos dos reis. Tam­
picos que estavam na moda entre os intelectuais e escritores de sua época;
compostos num estilo literário atraente, revelam largo conhecimento e uma bém tinha de ser julgada por critérios críticos. O critério mais óbvio era o
fornecido pelo isnad: qual era a cadeia de testemunhas para um certo fato,
mente distinta. Divertimento era o principal objetivo do maqamat: uma se-
e até onde se podia confiar no depoimento delas? Havia outros critérios, po­
qüência de narrativas escritas em prosa rimada (saj*), em que um narrador
rém: um registro transmitido podia ser encarado como plausível ou não à luz
conta histórias de um malandro ou vagabundo em várias situações. Levado
de uma compreensão geral de como os governantes agiam e como as socieda­
a um alto pico de desenvolvimento por al-Hamadhani (985-1110) e al-Hariri
des humanas mudavam.
(1054-1122), esse gênero continuaria popular nos círculos literários árabes até
Outro escritor, al-Biruni (973-c. 1050), é único no alcance de seus in­
o século xx.
teresses e compreensão. Sua famosa Tahqiq ma IVl-Hind (História da ín­
O registro do que aconteceu no passado é importante em todas as so­
dia) é talvez a tentativa mais séria de um escritor muçulmano de ir além
ciedades humanas, mas tem um significado especial nas comunidades fun­
do mundo islâmico e apropriar-se do que havia de valioso em outra tradi­
dadas na crença de que acontecimentos únicos ocorreram em certas épocas ção cultural. Sua obra não é polêmica, como ele próprio deixa claro no
e lugares. Antes da ascensão do Islâ, as tribos árabes tinham seus próprios prefácio:
registros orais dos atos de seus ancestrais, e de certa forma esses registros
estão incorporados nos poemas que nos chegaram daquele período. Nos pri­ Este não é um livro de polêmica e debate, apresentando os argumentos de um
meiros séculos do Islã, a história adquiriu um novo tipo de importância adversário e distinguindo neles o que é falso do que é verdadeiro. É uma narra­
e começou a ser registrada por escrito. Desenvolveram-se dois tipos diferen­ tiva direta, dando as declarações dos hindus e acrescentando o que os gregos
tes de textos literários, intimamente ligados um ao outro. Por um lado, os disseram sobre questões semelhantes, de modo a fazer uma comparação entre
filólogos e genealogistas recolheram e escreveram a história oral das tribos eles.5
árabes; eram importantes não apenas para o estudo da língua árabe, mas
O pensamento religioso e filosófico hindu é descrito no que tem de melhor:
também podiam proporcionar importantes documentos para questões práti­
cas sobre a distribuição do butim das conquistas ou de terras nas novas Já que estamos descrevendo o que há na índia, mencionamos suas superstições,
colônias. Por outro lado, era mais importante ainda registrar os aconteci­ mas devemos observar que isso se refere apenas à gente comum. Os que seguem
mentos da vida do Profeta, os primeiros califas, as primeiras conquistas, o caminho da salvação ou a trilha da razão e da argumentação, e que querem
e os assuntos públicos da comunidade muçulmana. Transmitidas por estu­ a verdade, evitariam adorar qualquer outro que não Deus apenas, ou qualquer
diosos responsáveis, às vezes modificadas ou mesmo inventadas durante con­ imagem gravada dele.6
trovérsias políticas e teológicas, enfeitadas por contadores de histórias, for­
Em última análise, observa, as crenças dos hindus são semelhantes às
mou-se aos poucos um volume de narrativas, e disso surgiram vários tipos
dos gregos; também entre eles a gente comum adorava ídolos, nos dias de
de literatura: coletâneas de hadiths; biografias do Profeta; coletâneas de
ignorância religiosa antes do advento do cristianismo, mas os educados ti­
vidas de transmissores de hadiths; e, por fim, obras de história narrativa,
nham opiniões semelhantes às dos hindus. De certa forma, porém, mesmo
registrando a gesta Dei, a providência de Deus para Sua comunidade —
a elite hindu diferia dos muçulmanos:
contendo um elemento de narrativa exemplar, mas também um sólido nú­
cleo de verdade. A invenção do calendário islâmico, oferecendo uma data­ Os indianos de nossa época fazem inúmeras distinções entre seres humanos. Nós
ção cronológica a partir da hégira, proporcionou um quadro dentro do qual diferimos deles nisso, pois encaramos todos os homens como iguais, a não ser
se podiam registrar os acontecimentos. na religião. Esta é grande barreira entre eles e o Islã.7

70 71
O MUNDO ISLÂMICO des era um ato de sábia política, e a irrigação da terra foi uma prática que
se disseminou com a expansão dos árabes no Mediterrâneo. Foram os palá­
Nos séculos III e IV islâmicos (séculos ix ou X d.C), surgiu algo que era cios, no entanto, que mais bem expressaram a grandeza imperial: pavilhões
reconhecivelmente um “mundo islâmico”. Um viajante ao redor do mundo de prazer instalados em meio a jardins e água corrente, símbolos de um pa­
poderia dizer, pelo que via e ouvia, se uma terra era governada e povoada raíso isolado, e palácios oficiais, centros de governo e justiça, e também de
por muçulmanos. Essas formas externas tinham sido levadas por movimen­ vida principesca. Conhece-se alguma coisa dos palácios abácidas por descri­
tos de povos: por dinastias e seus exércitos, mercadores cruzando os mundos ções de escritores e pelas ruínas que ainda existem em Samarra. Para chegar-
do oceano Índico e do mar Mediterrâneo, e artesãos atraídos de uma cidade se a eles, atravessavam-se espaços abertos destinados a desfiles ou jogos eqües-
para outra pelo patrocínio de governantes ou dos ricos. Também eram leva­ tres; dentro de altos muros, trilhas que passavam por jardins levavam a uma
dos por objetos importados ou exportados que expressavam um certo estilo: sucessão de portões internos, até o centro, onde ficavam a residência e os es­
livros, metalurgia, cerâmica e sobretudo têxteis, principal artigo do comér­ critórios do califa, e o salão abobadado onde ele mantinha a corte. Esses pré­
cio a longas distâncias. dios, significando poder, foram imitados por todo o mundo muçulmano, e
Os grandes prédios, acima de tudo, eram os símbolos externos desse criaram um estilo internacional que durou séculos.
“mundo do Islã”. Num período posterior, iriam aparecer estilos de construção Em certo sentido, nada havia de particularmente “islâmico” nos palácios.
de mesquitas, mas nos primeiros séculos encontravam-se algumas caracterís­ Mais uma vez, a inclusão de tantas coisas do mundo num único Império reuniu
ticas comuns desde Córdoba até o Iraque e além. Fora as grandes mesquitas, elementos de origens diferentes numa nova unidade. Os governantes estavam
havia outras menores para os bazares, bairros ou aldeias, onde se oferecia em contato uns com os outros, além do mundo do Islã; trocavam-se presen­
a prece mas não se pregava o sermão da sexta-feira; estas provavelmente eram tes, embaixadas traziam de volta histórias de maravilhas, e as elites gover­
construídas com materiais locais e refletiam gostos e tradições locais. nantes são particularmente abertas ao desejo de novidade. A decoração dos
A mesquita agora podia ficar no centro de todo um sistema de constru­ palácios expressava temas da vida dos príncipes em toda parte, a batalha e
ções religiosas, a casa onde o cádi administrava justiça, hospedarias para via­ a caça, o vinho e a dança.
jantes ou peregrinos, e hospitais para os doentes; fundá-las e mantê-las eram Esses temas eram usados para murais, onde se destacavam figuras ani­
obras de caridade ordenadas pelo Corão. Outro tipo de prédio desempenha­ mais e humanas. Nos prédios de finalidade religiosa, porém, evitavam-se fi­
va um papel especial na união da comunidade muçulmana além dos limites guras de criaturas vivas; embora a pintura de formas vivas não fosse explici­
de uma cidade ou região. Era o santuário. Alguns deles assinalavam lugares tamente proibida pelo Corão, a maioria dos juristas, baseando-se no Hadith,
de peregrinação e prece tomados de tradições religiosas anteriores, e que re­ considerava tal prática uma infração do poder divino único de criar vida. Na
cebiam um significado islâmico: a Caaba em Meca, o Domo da Rocha em mesquita omíada em Damasco, os mosaicos, feitos num período anterior, re­
Jerusalém, o túmulo de Abraão em Hebron. Ao lado desses, surgiram novos tratam o mundo natural e casas de uma maneira bastante realista, e que lem­
pontos de atração: os túmulos de pessoas ligadas à história inicial do Islã. bra os murais romanos, mas mostra-as sem criaturas vivas. As paredes das
Embora os muçulmanos encarassem Maomé como um homem igual aos ou­ mesquitas e outros prédios públicos não eram absolutamente simples, porém.
tros, tornou-se aceita a idéia de que ele intercederia por seu povo no Dia do As superfícies eram cobertas de decorações: formas de plantas e flores, ten­
Juízo Final, e os muçulmanos visitavam seu túmulo em Medina durante a dendo a uma alta estilização, e desenhos em linhas e círculos complexamente
peregrinação a Meca. Os imãs xiitas, sobretudo os que haviam sofrido, atraí­ ligados e interminavelmente repetidos, e acima de tudo caligrafia. A arte da
ram peregrinos desde o princípio; o túmulo de ‘Ali em Najaf tem elementos bela escrita pode ter sido criada em grande parte por funcionários nas chan­
que datam do século IX. Aos poucos, os túmulos daqueles que eram encara­ celarias dos governantes, mas tinha um significado especial para os muçul­
dos como “amigos de Deus”, e com poderes de intercessão junto a Ele, manos, que acreditavam que Deus Se comunicou com muitos através de Sua
multiplicaram-se pelo mundo muçulmano; sem dúvida, alguns deles surgi­ Palavra, na língua árabe; a escrita dessa língua foi desenvolvida por calígra-
ram em lugares considerados sagrados por outras religiões, ou pela imemo­ fos em formas adequadas à decoração arquitetônica. Palavras de formas in­
rial tradição do campo. terminavelmente variadas, repetidas ou em frases, misturavam-se com for­
Um segundo tipo de prédio era o que expressava o poder do governante. mas vegetais ou geométricas. Assim, a caligrafia tornou-se uma das artes
Entre eles, estavam grandes obras de utilidade pública, caravançarás nas ro­ islâmicas mais importantes, e a escrita árabe enfeitava não apenas prédjps,
tas comerciais, e aquedutos ou outras obras de canalização de água; nos paí­ mas moedas, objetos de bronze ou cerâmica, e têxteis, sobretudo os que eram
ses secos do Oriente Médio e do Magreb, levar água aos habitantes das cida­ tecidos nas tecelagens reais e dados como presentes. Usava-se a escrita para

72 73
proclamar a glória e a eternidade de Deus, como nas inscrições em torno do Nossa religião e nosso Império são árabes e gêmeos, uma protegida pelo poder
Domo da Rocha, ou a generosidade e esplendor de um benfeitor, ou a habili­ de Deus, outro pelo Senhor do Céu. Quantas vezes as tribos de súditos congre­
dade de um arquiteto. garam-se para dar um caráter não árabe ao Estado! Mas não tiveram êxito em
seu objetivo.8
As casas construídas nesse período peia população muçulmana das ci­
dades desapareceram, mas restou o suficiente dos artefatos usados nelas pa­ O conceito de nacionalismo étnico moderno, de que aqueles que parti­
ra mostrar que algumas continham obras de arte semelhantes às dos palá­ lham uma língua comum devem viver juntos numa sociedade política exclu­
cios. Transcreviam-se e ilustravam-se livros para mercadores e estudiosos; siva, evidentemente não existia, como não existia o de nação territorial, um
fabricavam-se vidro, objetos de metal e cerâmica para eles; os têxteis tinham pedaço de terra isolado de outros por fronteiras. Havia, no entanto, certa
importância especial — os pisos eram cobertos com tapetes, sofás baixos ti­ consciência das características especiais de uma cidade e sua região circundante,
nham forros têxteis, penduravam-se tapetes ou panos nas paredes. Todos eles que podia expressar-se em termos islâmicos. Um estudo do Egito mostrou
mostram, em geral, o mesmo tipo de decoração dos prédios religiosos, plan­ como a consciência de sua natureza especial persistiu: suas dádivas e fertili­
tas e flores formalizadas, desenhos geométricos e palavras árabes. Não há dade naturais, seu lugar na história islâmica, seus heróis, mártires e santos.
temas especificamente reais, mas a figura humana não está ausente, ou pelo Por trás disso ainda vivia alguma lembrança de um passado que remontava
menos não por muito tempo; a cerâmica feita no Egito mostra figuras huma­ a antes do Islã: as maravilhas deixadas pelo mundo antigo, as pirâmides e
nas, e os manuscritos usam animais e seres humanos para ilustrar fábulas ou a Esfinge, os santuários, rituais e crenças antigos do campo, aos quais ho­
descrever cenas do cotidiano. mens e mulheres ainda podiam recorrer em busca de proteção.
No século x, portanto, homens e mulheres do Oriente Próximo e do Ma-
greb viviam num universo definido em termos do Islã. O mundo dívidia-se
na Morada do Islã e na Morada da Guerra, e lugares santos para os muçul­
manos ou ligados aos primórdios de sua história davam à Morada do Islã
sua feição distinta. O tempo era marcado pelas cinco preces diárias, o ser­
mão semanal na mesquita, o jejum anual no mês do Ramadan e a peregrina­
ção a Meca, e o calendário muçulmano.
O Islã também dava aos homens uma identidade pela qual definir-se em
relação aos outros. Como todos os homens, os muçulmanos viviam em dife­
rentes níveis. Não passavam o tempo todo pensando no Juízo Final e no Céu.
Além de sua existência individual, definiam-se para a maioria das finalida­
des diárias em termos de família ou grupo de parentesco mais amplo, a uni­
dade pastoril ou tribo, a aldeia ou distrito rural, o bairro ou cidade. Além
desses, porém, sabiam que pertenciam a uma coisa mais ampla: a comunida­
de dos fiéis (a umma). Os atos rituais que realizavam em comum, a aceitação
de uma visão partilhada do destino humano neste mundo e no próximo,
ligavam-nos uns aos outros e separavam-nos dos de outras fés, quer vives­
sem entre eles na Morada do Islã ou além de suas fronteiras.
Dentro desse “mundo do Islã”, num nível intermediário entre ele e as
pequenas unidades coesivas da vida diária, havia identidades de um tipo que
não criava, em geral, lealdades tão fortes e duradouras. O serviço ou obe­
diência a uma dinastia, sobretudo se de longa duração, podia criar tal lealda­
de. Uma língua comum também deve ter criado uma sensação de facilidade
na comunicação, e um certo tipo de orgulho. No século xi, a identificação
dos árabes com o Islã ainda era suficientemente forte para al-Biruni, ele pró­
prio de origem iraniana, dizer:

74 75
dentemente de quando tenha tomado sua forma final, não parece haver mo­
tivo para duvidar que sua substância existia desde o tempo do Profeta: Deus
todo-poderoso; os profetas por meio dos quais Ele se comunicava com a hu­
manidade; a fé, gratidão e obras de prece e caridade que Ele exigia dos ho­
4 mens; o Juízo Final, quando Sua misericórdia, juntamente com Sua justiça,
seriam demonstradas. Segundo, havia uma tradição viva de como a comuni­
A ARTICULAÇÃO dade se conduzira do tempo do Profeta em diante, passada para gerações pos­
DO ISLÃ teriores e por elas elaborada, tendo, no seu núcleo, uma espécie de memória
coletiva de como fora o próprio Profeta. Havia também a memória dos atos
públicos da comunidade e de seus líderes, os califas, suas políticas e confli­
tos; e em particular das dissensões e conflitos do reinado de ‘Uthman, os mo­
vimentos de oposição em que ele acabou, e do de ‘Ali e dos primeiros cismas
entre os seguidores de Maoàié..
Não apenas a tradição de convertidos letrados, mas a natureza essencial
A QUESTÃO DA AUTORIDADE do próprio Islã — a revelação de palavras, e portanto de idéias e conheci­
mento — tornavam imperativo que os que desejavam submeter-se à Vontade
A disseminação da língua árabe para outros povos mudou a natureza de Deus buscassem o conhecimento e refletissem a respeito. A busca de co­
do que nela estava escrito, e isso se mostrou não apenas na escrita secular, nhecimento religioso, 7lm, começou cedo na história do Islã, e desenvolveu-
mas, de forma ainda mais impressionante, num novo tipo de literatura em se aos poucos um corpo de estudiosos (W/w, plural ulemás) muçulmanos in­
que se articularam o significado e as implicações da revelação entregue a Mao- formados e interessados.
mé. Os que aceitavam o Islã viram-se diante de questões inevitáveis sobre ele: As linhas de pensamento e estudo ao longo das quais se articulou o Islã
questões que surgiam não apenas da curiosidade intelectual, mas da crítica foram numerosas, mas claramente relacionadas umas com as outras. O primei­
feita por cristãos, judeus e zoroastrianos, e ainda mais, talvez, da necessida­ ro problema a surgir, e com mais urgência, foi o da autoridade. A pregação
de de extrair as implicações da fé para a vida em sociedade. Eles tentaram, de Maomé dera origem a uma comunidade empenhada em viver de acordo
naturalmente, responder a tais questões à luz do conhecimento de que dispu­ com as normas contidas ou implícitas no Corão. Quem devia ter autoridade
nham e de seus próprios métodos de pensamento: aqueles que haviam trazi­ nessa comunidade, e que tipo de autoridade? Esta foi uma questão levantada
do consigo para sua nova comunidade, ou que encontraram entre os que não pelas dissensões e conflitos do primeiro meio século, e respondidas à luz da
se haviam convertido, pois nos primeiros séculos o judaísmo, o cristianismo reflexão sobre essas perturbações. Devia a sucessão de Maomé, o Califado
e o Islã permaneceram mais abertos uns aos outros do que o seriam depois. ou, como também era chamado, o imanato, estar aberto a todos os muçul­
Naturalmente, também, o processo foi mais fecundo nos lugares onde as tra­ manos, ou apenas aos Companheiros do Profeta, ou apenas à sua família?
dições de pensamento e conjuntos de conhecimento eram mais fortes. A mu­ Como se deveria escolher o califa? Quais eram os limites de sua ação legíti­
dança de escala e a transferência do centro de gravidade que se deu no corpo ma? Se ele agisse injustamente, devia ser desobedecido ou deposto?
político do Islã teve seu paralelo no domínio do pensamento. Medina e Meca Aos poucos, foi ocorrendo uma cristalização de diferentes atitudes em
não deixaram de ser importantes, mas a Síria se tornou mais, e o Iraque mais relação a esses problemas. Segundo aqueles que a certa altura passaram a
que todos, com seu rico solo cultural de judaísmo, cristianismo nestoriano chamar-se sunitas, o importante era que todos os muçulmanos vivessem jun­
e as religiões do Irã. tos em paz e unidade, e isso implicava que deviam aceitar o que acontecera.
A articulação do Islã num corpo de ciências e práticas religiosas ocorreu Eles aceitaram como legítimos, e como virtuosos e corretamente guiados
em grande parte no Iraque do período abácida, e num certo sentido foi uma (rashidun), todos os quatro primeiros califas; os califas posteriores podiam
continuação de movimentos de pensamento que tinham começado muito an­ nem sempre ter agido com justiça, mas deviam ser aceitos como legítimos,
tes do advento do Islã, embora isso não queira dizer que o Islã não lhe deu desde que não fossem contra os mandamentos básicos de Deus. Há certa evi­
uma nova direção. dência de que os califas omíadas mostraram pretensões de ser não apenas os
Os materiais sobre os quais os estudiosos e pensadores podiam traba­ sucessores do Profeta como chefes da comunidade, mas subgerentes de Deus
lhar eram de mais de um tipo. Primeiro que tudo, havia o Corão. Indepen­ na Terra e intérpretes últimos da lei divina.1 O sunismo em sua forma desen-

76 77
volvida, porém, não encarava o califa nem como profeta nem como intér­ ismaelitas, cada um desses grupos à sua maneira, queriam uma autoridade
prete infalível da fé, mas como um chefe cuja tarefa era manter a paz e a que pudesse ao mesmo tempo manter a lei e a ordem da sociedade; uma vez
justiça na comunidade; para isso, devia possuir virtudes adequadas e conhe­ acabada a primeira era, a consequência disso foi a separação de facto entre
cimento da lei religiosa. Era amplamente aceito que devia descender da tribo os que mantinham a lei (para os sunitas o ulemá e para os xiitas o imã oculto)
dos coraixitas, à qual pertencera o Profeta. e o homem da espada, que tinha o poder de impor a ordem temporal.
Esses movimentos de contestação da autoridade dos califas desenvolve­
ram aos poucos suas teorias de autoridade legítima. Os ibaditas afirmavam
não ser necessário que houvesse sempre um imã, mas qualquer muçulmano O PODER E A JUSTIÇA DE DEUS
podia tornar-se imã, independentemente de família ou origem. Devia ser es­
colhido pela comunidade; agir de acordo com a lei derivada do Corão e do A questão da autoridade era, de certa forma, reflexo de questões mais
Hadith, e ser deposto se se revelasse injusto. Os movimentos xiitas não acei­ fundamentais surgidas do Corão; sobre a natureza de Deus e suas relações
taram as pretensões dos três primeiros califas, mas acreditavam que ‘Ali ibn com a humanidade, sobre Sua unidade e justiça.
Abi Talib fora o único sucessor legítimo e nomeado do Profeta como imã. O Deus do Corão é transcendente e uno, mas o livro fala d’Ele como
Divergiam entre si, no entanto, quanto à linha de sucessão de ‘Ali e à autori­ tendo atributos — vontade, conhecimento, audição, visão e fala; e em certo
dade dos imãs. Os zaiditas aproximavam-se dos sunitas em suas opiniões. Afir­ sentido o Corão é a Sua Palavra. Como se pode conciliar a posse de atribu­
mavam que qualquer descendente de ‘Ali com sua esposa Fátima podia ser tos com a unidade de Deus? Como, em particular, podem esses atributos,
imã, contanto que tivesse o conhecimento e a religiosidade necessários, e hou­ que são também os dos seres humanos, ser descritos em termos que preser­
vesse demonstrado a força de levantar-se contra a injustiça. Podia assim ha­ vem a infinita distância entre Deus e o homem? Qual a relação do Corão com
ver uma linha de imãs perpetuamente renovada. Eles não acreditavam que Deus? Pode ser chamado de fala de Deus sem deixar implícito que Deus tem
o imã tivesse autoridade infalível ou sobre-humana. um atributo da fala semelhante ao de Suas criaturas? São problemas de um
Os outros dois movimentos xiitas importantes iam mais longe, no en­ tipo inerente a qualquer religião que acredite na existência de um Deus su­
tanto. Ambos afirmavam que o imanato era concedido por designação do premo, que de alguma forma se revela aos seres humanos. Para os cristãos,
imã da época, e que o imã assim designado era o único e infalível intérprete a revelação é de uma pessoa, e a questão teológica básica nos primeiros sécu­
da revelação de Deus através do Profeta. O movimento que iria conquistar los era o da relação dessa Pessoa com Deus; para os muçulmanos, a revela­
mais adeptos afirmava que a sucessão passara entre os descendentes de ‘Ali, ção é um Livro, e portanto o problema do status do Livro é fundamental,
até que o décimo segundo da linhagem desaparecera no século ix (daí seu A questão da natureza de Deus leva logicamente à de Suas relações com
nome popular de “adeptos do Duodécimo**, ou Ithna *ashariyya). Como o os homens. Duas impressões certamente ficavam na mente de qualquer um
mundo não podia existir sem um imã, acreditava-se que o décimo segundo que lesse o Corão ou o ouvisse recitado; que Deus era todo-poderoso e onis­
não morrera, mas vivia em “ocultamento** (ghayba); a princípio, comunicava- ciente, mas que de algum modo o homem era responsável por seus atos, e
se com o povo muçulmano por intermediários, mas depois disso sumira do por eles receberia o julgamento divino. Como se podiam conciliar essas duas
mundo dos vivos, que permanecia na expectativa de seu reaparecimento, pa­ afirmações? Mais uma vez, é um problema inerente a uma fé monoteísta: se
ra trazer o reinado da justiça. Os ismaelitas, por sua vez, concordavam que Deus é todo-poderoso, como pode permitir o mal, ecomo pode, com justiça,
o imã era o intérprete infalível da verdade, mas afirmavam que a linha de condenar os homens por seus maus atos? Colocando a questão em termos
imãs visívds acabara com o sétimo, Muhammad ibn Isma‘il. (Alguns deles mais amplos: é o homem livre para iniciar seus atos, ou vêm eles de Deus?
modificaram sua crença, porém, quando os califas fatímidas apresentaram Se ele não é livre, será justo Deus julgá-lo? Se é livre, e por conseguinte pode
sua pretensão a imãs.) ser julgado por Deus, será ele julgado por um princípio de justiça que pode re­
Essas diferentes opiniões sobre o Califado ou imanato acabariam tendo conhecer? Se assim é, não haverá um princípio de justiça determinando os
variadas implicações para a natureza de governo e seu lugar na sociedade. atos de Deus, e pode Deus então ser chamado de todo-poderoso? Como se­
Ibaditas e ismaelitas eram comunidades que se haviam retirado da sociedade rão julgados os muçulmanos: só por sua fé, pelaTé juntamente com a expres­
islâmica universal, em rejeição ao domínio de governos injustos; desejavam são verbal dela, ou também pelas boas obras?
viver sob a lei religiosa como a interpretavam, e não estavam dispostos a dar Tais questões estão implícitas no Corão, e se apresentavam a qualquer
a um imã ou a qualquer outro governante o poder que podia levá-lo a agir um que o levasse a sério, mas o pensamento sistemático sobre elas envolvia
injustamente. Por outro lado, os sunitas, os xiitas adeptos do Duodécimo e não apenas um texto a considerar, mas um método de fazer isso: uma crença

78 79
em que se podia atingir o conhecimento pela razão humana trabalhando se­ re atributos humanos, eles devem ser aceitos como atributos divinos, não por
gundo certas regras. Essa crença na razão corretamente orientada tinha for­ analogia com os humanos, e sem perguntar por que são inerentes a Ele. En­
mado a vida intelectual nas regiões por onde o Islã se espalhou, incluindo tre esses atributos está o Corão. É a fala d*Ele, porque o próprio Corão as­
o Hedjaz; há vestígios de raciocínio dialético no próprio Corão. Não surpreen­ sim o diz; e não é criado, pois “nada em Deus é criado, e o Corão é de Deus”.
de, portanto, que, talvez no final do primeiro século islâmico, ou do século O homem deve responder à Vontade de Deus com atos, além da fé. Esse con­
vii d.C., os primeiros documentos existentes mostrem sua aplicação à eluci­
ceito de um Deus que julga de modo misterioso pode parecer brutal, mas im­
dação do Corão no Hedjaz, Síria e Irã. Apareceram os primeiros grupos que plícito nele há uma espécie de garantia de certo interesse divino último pelo
podem ser chamados de escolas de pensamento: os que afirmavam que o ho­ mundo, mesmo que seus modos não sejam os humanos, e de que o que acon­
mem tem livre-arbítrio e cria seus próprios atos, e os que afirmavam que ele teceu na história deles é parte da Vontade de Deus para eles. Com esse corpo
não tem livre-arbítrio, e também que Deus não tem atributos comuns com de idéias, o sunismo torna-se articulado.
os homens, pelos quais possa ser descrito. A polêmica entre os racionalistas e os seguidores de Ibn Hanbal conti­
Em meados do século n islâmico (século vm d.C.) surgiu uma escola num nuou por um longo tempo, e as linhas de argumentação mudaram. Pensadores
sentido mais pleno, de pensadores com opiniões claras e coerentes sobre uma mutazilitas posteriores foram profundamente influenciados pelo pensamen­
vasta gama de problemas; mas evidentemente chamá-los de escola não impli­ to grego; aos poucos, foram perdendo importância dentro da comunidade
ca que tivessem todos as mesmas idéias, ou que essas idéias não evoluíssem sunita emergente, mas sua influência continuou forte nas escolas de pensa­
de uma geração para outra. Eram os Mu‘tazilis (ou “os que se mantêm à■par­ mento xiitas que se desenvolveram a partir do século xi. Um pensador que
te”)- Eles acreditavam que se podia chegar à verdade usando-se a razão so­ apoiou em grande parte a posição “tradicionalista” usou o método do dis­
bre o que é dado no Corão, e dessa forma alcançar respostas para questões curso racional (kalam) para defendê-lo: al-Ash‘ari (m. 935) apegava-se à in­
já colocadas. Deus é Uno. Não tem atributos que pertençam à Sua essência. terpretação literal do Corão, mas afirmava que ele podia ser justificado pela
Em particular, não tem atributos humanos; o Corão não poderia ter sido di­ razão, pelo menos até certo ponto, e depois desse ponto devia simplesmente
tado por Ele — devia ter sido criado de outro modo. Deus é justo, e portanto ser aceito. Deus era Uno; Seus atributos faziam parte de Sua essência; não
limitado por um princípio; o homem deve portanto ser livre, pois não seria eram Deus, mas não eram outra coisa senão Deus. Entre eles estavam o da
justo julgá-lo por atos que ele não é livre para cometer. Se os atos humanos audição, visão e fala humanos; deviam ser aceitos “sem se perguntar como”
são livres e sujeitos a julgamento, segue-se que a fé não basta sem as boas (bila kayf). Deus é a causa direta de tudo que acontece no Universo, e não
obras: o muçulmano culpado de graves faltas não pode ser chamado de infiel é limitado por nada de fora d’EIe próprio. No momento da ação, Ele dá aos
nem de verdadeiro crente, mas ocupa uma posição intermediária entre os dois. homens o poder de agir; Ele quer e cria tanto o que é bom quanto o que é
Ao mesmo tempo, porém, surgia outra forma de ver esses problemas, mau no mundo. A resposta correta do homem à Palavra de Deus revelada
uma forma mais cautelosa e mais cética quanto à possibilidade de alcançar é a fé; se ele tem fé, sem obras, ainda é um crente, e o Profeta intercederá
a verdade aceita por meio da razão, e também mais consciente do dano para por ele no último dia.
a comunidade que resultaria da tentativa de levar muito longe a argumenta­ No pensamento de A$h‘ari, há uma ênfase na importância de não se dis­
ção e discussão racionais. Os que assim pensavam consideravam mais impor­ cutir com a religião, e também em aceitar o domínio do imã ou califa, e não
tante manter a unidade do povo de Deus do que chegar a um acordo sobre se revoltar contra ele com a espada. Persistiram, porém, divergências de opi­
questões de doutrina. Para eles, a palavra do Corão era a única base firme nião; sobre a legitimidade da interpretação metafórica contra a interpreta­
sobre a qual se podiam assentar a fé e a paz comunal; e o Corão devia ser ção literal do Corão; sobre o sentido exato em que o Corão é “incriado” —
interpretado, até onde fosse necessária a interpretação, à luz da prática habi­ isso se refere ao próprio texto, ou apenas à transmissão do texto aos homens?
tual do Profeta e seus Companheiros, os suna, como fora transmitido a ge­ — e sobre a necessidade de obras, além de fé. Essas divergências, no entan­
rações posteriores. Esse era um estado de espírito que devia existir desde o to, em geral não levaram a conflitos dentro da comunidade sunita.
princípio, mas que por sua natureza tendeu a cristalizar-se num corpo dou­
trinário um tanto mais tarde que as escolas mais especulativas. O maior res­
ponsável pela formulação desse estado de espírito foi Ahmad ibn Hanbal A CHARIA
(780-855), ele próprio vítima de perseguição. A única posição a ser tomada
é sobre o Corão e os sufia do Profeta, e estes mostram-nos que Deus é todo- A não ser por ilação, o Corão não contém dentro de si um sistema de
poderoso, e Sua justiça não é igual à justiça humana. Se o Corão Lhe confe­ doutrinas, mas diz aos homens o que deseja que eles façam. É acima de tudo

81
uma revelação da Vontade d'Ele: o que os homens devem fazer para agradá- lado da comunidade julgava ser a maneira correta de agir (o suna da comu­
Lo, e como serão julgados no último dia. Contém algumas ordens específi­ nidade).
cas, por exemplo em relação ao casamento e à divisão da propriedade do mu­ Esses dois processos não eram inteiramente diferentes um do outro. O
çulmano após a morte, mas são limitadas, e na maior parte a Vontade de califa, governador ou cádi sem dúvida modificava costumes existentes à luz
Deus é expressa em termos de princípios gerais. As ordens e princípios referem- das idéias em desenvolvimento sobre o que exigia o Islã; os sábios introdu­
se tanto aos modos como os homens devem adorar a Deus quanto àqueles ziam em seu sistema ideal alguma coisa dos costumes herdados de suas co­
como devem agir uns com os outros, mas em certa medida isso é uma distin­ munidades. Durante as primeiras fases, porém, permaneceram largamente
ção artificial, pois os atos de culto têm um aspecto social, e os atos de justiça separados. No interior de cada processo, além disso, havia tendências dife­
e caridade são também, num certo sentido, dirigidas a Deus. rentes. Em vista do modo como o Império fora criado e administrado, os
A reflexão sobre o Corão e a prática da comunidade inicial logo produ­ costumes e regulamentos das várias regiões devem ter divergido muito. Os
ziram concordância geral sobre certas obrigações básicas do muçulmano, os sábios, de seu lado, espalhavam-se por várias cidades, Meca e Medina, Kufa
chamados “Pilares do Islã". Entre eles estavam o testemunho oral de que e Basra, e cidades da Síria, e cada uma delas tinha seu próprio modo de pen­
“só há um Deus, e Maomé é o Seu Profeta". Segundo, havia a prece ritual, sar, refletindo suas memóriasSxansmitidas juntamente com as necessidades
certas formas de palavras repetidas um certo número de vezes e com postu­ e práticas da região, e cristalizadas num consenso local (ijma*).
ras particulares do corpo; deviam ser feitas cinco vezes por dia. Outros “Pi­ Com o advento dos abácidas, em meados do segundo século islâmico
lares" eram a doação de uma certa proporção dos ganhos da pessoa para ti­ (século vin d.C.), a situação mudou. A criação de um Estado centralizado,
pos específicos de obras de caridade ou beneficência pública; um severo jejum, burocraticamente governado, tornou necessário chegar a um acordo sobre
do amanhecer ao anoitecer, durante todo um mês do ano, o de Ramadan, os modos como se deviam resolver as disputas e regular a sociedade; e a pre­
que termina numa festa; e o hadj, a peregrinação a Meca, num tempo fixado tensão dos abácidas a uma justificação religiosa para seu governo tornou es­
do ano, envolvendo vários atos rituais, e também terminando numa festa ce­ sencial que, qualquer que fosse o acordo a que se chegasse, fosse visto como
lebrada por toda a comunidade. A esses atos específicos acrescentava-se ain­ baseado nos ensinamentos do Islã. Assim, os dois processos aproximaram-se
da uma exortação a seguir o caminho de Deus (jihad), que podia ter um sen­ um do outro. O cádi tornou-se, pelo menos em teoria, um juiz independente
tido mais amplo ou mais preciso: combater pela expansão das fronteiras do do podei executivo, tomando decisões à luz dos ensinamentos da religião.
Islã. Assim, tornou-se maior a necessidade de um acordo sobre as inferências prá­
Desde o início, porém, era preciso mais que um acordo sobre os atos ticas do Islã. O Corão, a prática ou suna do Profeta incorporada nos hadiths,
essenciais de culto. Por um lado, havia aqueles que levavam o Corão a sério as opiniões de grupos de sábios, a prática ou-suna em desenvolvimento das
e acreditavam que ele continha, por inferência, preceitos para toda a vida, comunidades locais: tudo isso era importante, mas até então não havia acor­
desde que todos os atos humanos têm significado aos olhos de Deus e todos do sobre as relações entre eles. Os sábios tinham opiniões variadas: Abu Ha-
serão levados em conta no Dia do Julgamento. Por outro lado, havia o go­ nifa (c. 699-767) dava mais ênfase às opiniões alcançadas pelo raciocínio in­
vernante e seus delegados, que tinham de tomar decisões sobre uma vasta ga­ dividual, Malik (c. 715-95) à prática de Medina, embora também admitisse
ma de problemas, e tanto suas convicções quanto os termos em que justifica­ a validade do raciocínio à luz do interesse da comunidade.
vam seu governo deviam levá-los a decisões que no mínimo não estivessem O passo decisivo na definição das relações entre as diferentes bases para
em contradição com o que se entendia significasse ou inferisse o Corão. decisões legais foi dado por al-Shafiri (767-820). O Corão, afirmava, era a
No período dos primeiros califas e dos omíadas, assim, ocorreram dois Palavra literal de Deus: expressava a Vontade de Deus tanto em forma de
processos. O governante, seus governadores e delegados especiais, os cádis, princípios gerais quando de mandamentos específicos em relação a certos as­
ministravam justiça e decidiam disputas, levando em conta os costumes e leis suntos (prece, esmolas, jejum, peregrinação, proibição do adultério, do con­
existentes das várias regiões. Ao mesmo tempo, muçulmanos sérios e preo­ sumo de vinho e carne de porco). Igualmente importante, porém, era a práti­
cupados tentavam levar todos os atos humanos ao julgamento de sua reli­ ca ou suna do Profeta, como registrada nos hadiths; isso tinha peso maior
gião, elaborar um sistema ideal de conduta humana. Ao fazerem isso, tinham que a prática cumulativa das comunidades. O suna do Profeta era uma clara
de levar em conta as palavras do Corão e interpretá-las, e também as memó­ manifestação da Vontade de Deus, e seu statoera confirmado por versícu­
rias transmitidas da comunidade: como se supunha que o Profeta tivesse agido los do Corão: “Ó vós que acreditastes, obedecei a Deus e a Seu Apóstolo”.2
(seu comportamento habitual, ou suna, cada vez mais registrado nas “tradi­ Os atos e palavras do Profeta extraíam as inferências das provisões gerais
ções" ou hadiths); como os primeiros califas decidiam; o que o saber acumu­ do Corão, e também proporcionavam orientação sobre assuntos em que o

82 83
Corão silenciava. Segundo Shafi‘i, o Corão e o suna eram igualmente infalí­ os shafitas de al-ShafPi, os hanbalitas de Ibn Hanbal, e alguns outros que

j
J
veis. O suna não podia invalidar o Corão, mas do mesmo modo o Corão não
podia invalidar o suna. Não podiam contradizer-se um ao outro; as aparen­
tes contradições podiam ser conciliadas, ou então um versículo ou palavra
posteriores do Profeta podiam ser encarados como invalidando outros ante­
não sobreviveram. Divergiam uns dos outros em certos pontos substanciais
de lei, sobre princípios de raciocínio legal (usul al-fiqh)y e também sobre o
lugar do Hadith e a legitimidade, limites e métodos do ijtihad.
Todas as quatro escolas situavam-se dentro da comunidade sunita. Ou­
riores.3 tros grupos muçulmanos tinham seus próprios sistemas de lei e moralidade
i Por mais clara que fosse a expressão da Vontade de Deus no Corão ou social. Os dos ibaditas e zaiditas não diferiam muito das escolas sunitas, mas
na suna, persistiam as questões de interpretação, ou da aplicação de princí­ entre os xiitas adeptos do Duodécimo as bases da lei eram definidas de mo­
pios a novas situações. Para a maneira de pensamento articulada por Shafi‘i, dos diferentes; o consenso da comunidade só era válido se o imã estivesse
ij o único método de evitar o erro era o muçulmano comum deixar os versados incluído. Havia também alguns pontos distintos de lei substancial xiita.
em religião usarem a razão para explicar o que estava contido no Corão ou Apesar da natureza em parte teórica da charia, ou talvez por isso mes­
i Hadith, e fazer isso dentro de severos limites. Diante de uma nova situação, mo, os que a ensinavam, interpretavam e administravam, os ulemás, iriam
os qualificados para exercer a razão deviam agir por analogia {giyas)\ deviam manter um lugar importante tfos estados e sociedades muçulmanos. Como
i tentar encontrar algum elemento na situação que fosse semelhante, de um guardiães de uma elaborada norma de conduta social, podiam, até certo ponto,
modo relevante, a um elemento numa situação em que já houvesse uma sen­ impor limites às ações dos governantes, ou pelo menos aconselhá-los; tam­
tença. Esse exercício disciplinado da razão era conhecido como ijtihad, e a bém podiam agir como porta-vozes da comunidade, ou pelo menos de sua
justificação para ele pode ser encontrado num hadith: “Os cultos são herdei­ parte urbana. Em geral, porém, tentavam manter-se à parte tanto do gover­
' ros do Profeta”.3 Quando havia concordância geral como resultado de tal no quanto da sociedade, preservando o sentido de uma comunidade divina­
exercício da razão, esse consenso (ijma*) era encarado como tendo o status mente guiada, persistindo pelo tempo afora e não ligada a interesses de go­
•; de verdade certa e inquestionável. vernantes ou ao capricho do sentimento popular.
O próprio Shafi‘i estabeleceu esse conceito de forma mais ampla: uma
vez que a comunidade como um todo chegue a um acordo sobre um assunto,
a questão estará encerrada para sempre; segundo um hadith, “na comunida­ AS TRADIÇÕES DO PROFETA
de como um todo não há erro sobre o significado do Corão, suna e analo­
gia”. Pensadores posteriores, porém, incluindo os que viam ShafPi como seu As controvérsias políticas e teológicas dos três séculos iniciais recorre­
mestre, formularam o princípio de forma um tanto diferente: o único ijma * ram ao Hadith; também para o sistema de jurisprudência que se desenvolvia
válido era o dos sábios, aqueles que tinham competência para exercer o ijti­ o Hadith foi importante como uma das bases da lei. Mas a relação da teolo­
had num determinado período. gia e da lei com o Hadith era mais complexa. Não apenas recorriam ao Ha­
A esses princípios de interpretação, Shafi‘i acrescentou uma espécie de dith, mas, em grande parte, criaram o conjunto de tradições que chegaram
apêndice, geralmente aceito: os que interpretavam o Corão e os suna não po­ até nós, e esse processo levou ao surgimento de outra ciência religiosa, à da
diam fazê-lo sem um conhecimento adequado da língua árabe. Shafi‘i citava crítica hadítica, desenvolvimento e uso de critérios para distinguir tradições
trechos do Corão que mencionavam o fato de o Corão ter sido revelado em que podiam ser encaradas como autênticas das mais duvidosas ou obvíamen-
árabe: “Revelamo-vos um Corão árabe [...] numa clara língua árabe”.4 To­ te falsas.
do muçulmano, na opinião de Shafi‘i, devia aprender árabe, pelo menos a Desde o início, a tradição que surgiu em torno de Maomé tinha um sis­
ponto de poder fazer o ato de testemunho (chahada), recitar o Corão e invo­ tema de conduta consuetudinário, um sunay em dois diferentes sentidos. Co­
car o nome de Deus (Ailahu akbar, “Deus é maior”); um sábio religioso pre­ mo comunidade, criou aos poucos seu próprio padrão de conduta justa,
cisava saber mais que isso. desenvolvendo-se e assegurada por uma espécie de consenso. Também com­
Uma vez estabelecidos e geralmente aceitos esses princípios, era possível preendia pessoas que tentavam preservar o suna do Profeta, a memória do
tentar relacionar o conjunto de leis e preceitos morais com eles. Esse proces­ que ele tinha feito e dito. Seus Companheiros o teriam lembrado, e passado
so de pensamento era conhecido como fiqhy e o produto dele acabou cha­ adiante o que sabiam para a geração seguinte. O registro de sua conduta e
mando-se charia. Aos poucos, foram surgindo várias escolas de lei (madh- palavras, os hadithsy foi passado adiante não apenas de forma oral, mas tam­
hab), que derivavam seus nomes de escritores anteriores com os quais identi­ bém por escrito, desde os primeiros tempos. Embora alguns muçulmanos de­
ficavam sua descendência: os hanafitas de Abu Hanifa, os maliquitas de Malik, votos olhassem de lado o texto dos hadiths, achando que podia comprometer

84 85
o status único do Livro, outros o encorajavam, e no fim do período omíada Pelo uso desses critérios, os estudiosos dos hadiths puderam classificá-
muitos dos hadiths que mais tarde seriam incorporados em biografias do Pro­ los de acordo com seus graus de confiabilidade. As duas grandes coletâneas,
feta já haviam assumido forma escrita. as de al-Bukhari (810-70) e Muslim (c. 817-75), só incluíram aqueles de cuja
O processo não terminou aí, porém. Tanto o suna da comunidade quan­ autenticidade tinham certeza; outras coletâneas tidas como de alguma auto­
to o registro do do Profeta variavam de um lugar para outro e de uma época ridade não foram tão severas. Os xiitas tinham suas próprias coletâneas de
para outra. As lembranças enfraquecem, as histórias modificam-se ao serem hadiths dos imãs.
contadas, e nem todos que as registram são dignos de confiança. A princípio, A maioria dos estudiosos ocidentais, e alguns muçulmanos modernos,
o suna da comunidade fora o mais importante dos dois, mas com o passar do seriam mais céticos que Bukhari e Muslim, e encarariam muitos dos hadiths
tempo advogados e alguns teólogos passaram a dar mais ênfase ao do Profe­ que eles julgaram autênticos como produtos de polêmicas sobre autoridade
ta. Especialistas legais desejavam relacionar os costumes sociais e regulamen­ e doutrina, ou da evolução da lei. Isso, porém, não significa lançar dúvida
tos administrativos que haviam derivado de princípios religiosos, e uma ma­ sobre o papel muito importante que eles desempenharam na história da co­
neira de fazer isso era remontá-los ao Profeta. Os empenhados nas grandes munidade muçulmana. Não menos importante que a questão de suas origens
controvérsias sobre onde devia recair a autoridade, ou sobre a natureza de Deus é a de como foram usados, fim momentos de tensão política, com o inimigo
ou do Corão, tentaram encontrar apoio para suas opiniões na vida e nas pa­ às portas, o governante podia pedir aos ulemás que lessem trechos de Bukha­
lavras de Maomé. Assim, durante os séculos n e m islâmicos (mais ou menos ri na grande mesquita, como uma espécie de confirmação do que Deus já ha­
os séculos VIII e IX d.C.), expandiu-se o conjunto de ditos atribuídos ao Pro­ via feito por Seu povo. Escritores posteriores sobre lei, teologia ou ciências
feta. Até certo ponto, isso foi geralmente aceito como um artifício literário, racionais podiam endossar suas idéias com hadiths tirados do enorme volu­
justificado por um hadith:4‘O que é dito de boa faia édito por mim”. Desde me que restou mesmo depois de Bukhari e Muslim terem acabado sua obra.
cedo, porém, reconheceram-se os perigos inerentes a isso, e teve início um mo­
vimento de crítica, com o objetivo de distinguir o verdadeiro do falso. Surgiu
a prática, talvez no fim do primeiro século islâmico, de especialistas viajarem O CAMINHO DOS MÍSTICOS
a locais distantes em busca de testemunhas que tinham recebido pessoalmen­
te a tradição de um pai ou mestre, e tentarem remontar a tradição, por meio As ciências da teologia, lei e tradição começaram todas com o que foi
de uma cadeia de testemunhas, até o Profeta ou um Companheiro. Ao faze­ dado no Corão, e terminaram reforçando as crenças do Islã e aumentando
rem isso, os conjuntos de tradição locais foram unificados. as barreiras entre ele e as outras religiões monoteístas com as quais tinha afi­
Por esse processo, parte coleta e parte invenção, os hadiths tomaram a nidade. Havia porém outras linhas de pensamento, que, começando em grande
forma que retêm hoje. Cada um tinha duas partes: um texto que preservava parte da mesma forma, tenderam a levar à afirmação de uma coisa que os
uma versão de alguma coisa dita ou feita pelo Profeta, e em alguns casos con­ muçulmanos podiam ter em comum com outros.
tendo palavras que ele dizia ter recebido de Deus, e o registro de uma cadeia Uma delas era a linha de pensamento e prática comumente chamada de
de testemunhas remontando ao Companheiro do Profeta que as vira ou ou­ “misticismo”; o equivalente árabe desta palavra é tasawwuf(da qual a for­
vira. Os dois elementos podiam estar sujeitos à dúvida. O texto podia ser in­ ma ocidentalizada sufismo), possivelmente derivada das túnicas de lã (suf)
ventado ou lembrado erroneamente, mas o mesmo podia acontecer à cadeia; que se supõe fossem usadas por um dos primeiros grupos. Hoje é geralmente
e parece que, em muitos casos pelo menos, a prolongação da cadeia para trás aceito que essa linha extraiu sua inspiração do Corão. Um fiel meditando so­
até o Profeta era também um artifício de advogados ou polemistas. Assim, bre o seu significado pode ter sido invadido por um senso da esmagadora trans­
havia necessidade de uma ciência de crítica hadítica, pela qual se pudesse dis­ cendência de Deus e da total dependência de todas as criaturas para com Ele;
tinguir o verdadeiro do falso segundo princípios claros. Deus todo-poderoso, o inescrutável, guiando aqueles que tinham fé n’Ele,
A principal atenção dos sábios que tomaram como tarefa o escrutínio apesar de toda a Sua grandeza estava presente e perto de toda alma humana
crítico de hadiths foi dedicada às cadeias registradas de testemunhas (isnad): que n’Ele se apoiava, “mais perto de ti que a veia em teu pescoço”. O Corão
se as datas de nascimento e morte e os locais de residência de testemunhas contém poderosas imagens da proximidade de Deus com o homem, e da manei­
em diferentes gerações eram de modo a tornar possível o encontro delas, e ra como o homem pode responder. Antes que o mundo fosse criado, diz-se
se eram dignas de confiança. Essa atividade, para ser adequadamente exercida, que Deus fez uma aliança (mithaq) com os seres humanos. Perguntou-lhes:
envolvia certa sensibilidade para a autenticidade ou plausibilidade do próprio “Não sou Eu o vosso Senhor?” e eles responderam: “Sim, nós atestamos”.5
texto; um tradicionalista experiente desenvolvia um sentido de discriminação. Diz-se que, em sua vida, Maomé fez uma misteriosa viagem, primeiro a Jeru-

86 87
mas essas aflições ajudaram-no a purificar seu coração. Então, uma noite,
salém, e depois ao Paraíso, onde lhe permitiram chegar a uma certa distância
voltando de uma sessão de lembrança de Deus, seu coração abriu-se e foi inun­
de Deus e ter uma visão da Sua face.
dado de doçura.7
Desde cedo na história do Islã, parece terem-se iniciado dois processos,
No século seguinte, tanto a exploração do caminho pelo qual homens
estreitamente interligados. Houve um movimento de religiosidade, de prece
e mulheres podem aproximar-se de Deus quanto a especulação sobre o seu
visando a pureza de intenção e renúncia a motivos egoístas e prazeres mun­
fim foram levadas mais adiante. Talvez já no século vm emergia o ritual dis­
danos, e um outro de meditação sobre o sentido do Corão; os dois ocorre­
tinto da repetição coletiva do nome de Deus (dhikr), acompanhada de vários
ram na Síria e no Iraque, mais do que no Hedjaz, e era natural que se apoias­
sem nos modos de pensamento e ação moral já existentes no mundo em que movimentos do corpo, exercícios respiratórios ou música, não como coisas
que induziriam automaticamente ao êxtase de ver a face de Deus, mas como
ós muçulmanos viviam. Os convertidos à nova religião haviam trazido para
meios de libertar a alma das distrações do mundo. Os pensamentos dos mes­
o Islã suas próprias práticas herdadas; viviam num ambiente ainda mais cris­
tres sufitas sobre a natureza do conhecimento que viria ao fim do caminho
tão e judeu que muçulmano. Essa foi a última grande época do monasticismo
foram primeiro preservados oralmente, e depois por escrito, por aqueles que
cristão oriental, e do pensamento e prática ascéticos. A princípio, o Profeta
os procuravam para aprender o caminho. Desse modo, surgiu uma lingua­
condenara o monasticismo: “Não haverá monasticismo no Islã”, mandava gem coletiva em que se poclia expressar a natureza da preparação e experiên­
um famoso hadith, e dizia-se que o equivalente islâmico era jihad. Na verda­
cia místicas e um senso de identidade corporativa entre os que empreendiam
de, porém, a influência dos monges cristãos parece ter sido generalizada: sua
a jornada.
idéia de um mundo secreto de virtude, além do da obediência à lei, e a crença
Foi nesse terceiro século islâmico (mais ou menos século ix d.C.) que
em que o abandono do mundo, a mortificação da carne e a repetição do no­
o caminho para o conhecimento de Deus, e da natureza desse conhecimento,
me de Deus na prece poderiam, com a ajuda de Deus, purificar o coração
foi pela primeira vez expresso de forma sistemática. Nos escritos de al-
e libertá-lo de todas as preocupações mundanas, passando a um conhecimento
Muhasibi (m. 857), descrevia-se o estilo de vida daquele que buscava o ver­
superior intuitivo de Deus.
dadeiro conhecimento, e nos de al-Junayd (m. 910) analisava-se a natureza
O germe dessas idéias, numa forma muçulmana, pode ser visto já no pri­
meiro século islâmico, nas palavras de al-Hasan al-Basri (642-728): da experiência que estava no fim do caminho. No fim da estrada, o crente
verdadeiro e sincero pode ver-se diante de Deus — como estavam todos os
o fiel acorda aflito e vai para a cama aflito, e isso é tudo que o envolve, porque homens no momento da Aliança — de tal modo que os atributos de Deus
está entre duas coisas terríveis: o pecado que passou, e não sabe o que Deus vai substituem os seus, e sua existência individual desaparece; mas só por um mo­
fazer com ele, e o tempo que resta, e não sabe que desastres se abaterão sobre mento. Depois, ele volta à sua própria existência e ao mundo, mas trazendo
ele {...] cuidado com esta morada, pois não há força nem poder senão em Deus, consigo a lembrança desse momento, da proximidade de Deus, e também de
e lembra-te da vida futura.6
Sua transcendência:
Nos primeiros místicos, o senso de distância e proximidade de Deus é expres­
O amor de Deus, em sua essência, é a iluminação do coração pelo júbilo, por
so em linguagem de amor: Deus é o único objeto adequado de amor huma­
causa da proximidade do Amado; e quando o coração se inunda desse júbilo ra­
no, a ser amado por Si só; a vida do verdadeiro fiel deve ser um caminho diante, encontra seu prazer em estar só com a lembrança do Amado [_] e quan­
que leve ao conhecimento d’Ele, e à medida que o homem se aproximar de do a solidão se mistura ao secreto intercurso com o Amado, o júbilo desse inter-
Deus, Ele se aproximará do homem, e se tornará “sua visão, sua audição, curso assoberba a mente, de modo que ela não mais se preocupa com este mundo
sua mão e sua língua”. e o que ele contém.8
Num fragmento de autobiografia, um escritor de assuntos espirituais du­
Muhasibi e Junayd viveram e escreveram dentro da sóbria tradição su-
rante o terceiro século islâmico, nono cristão, al-Tirmidhi, mostrou como uma
nita; eram homens que conheciam a charia e preocupavam-se com que, fosse
alma pode ser atraída para esse caminho. Quando em peregrinação e rezan­
qual fosse o avanço do muçulmano na estrada mística, observasse as ordens
do no haraniy ele teve um súbito momento de arrependimento de seus peca­
dela com sinceridade. O senso que tinham da esmagadora grandeza e poder
dos: buscando o meio correto de viver, encontrou um livro de al-Antaki que
de Deus não está muito longe do de um teólogo como al-Ash‘ari, para quem
o ajudou no sentido da autodisciplina. Aos poucos, fez progressos no cami­
o poder de agir vem de Deus e o fiel pode esperar por Sua orientação. Em
nho, contendo suas paixões e retirando-se da sociedade. Foi ajudado por so­
ambos há um senso da incursão do divino na vida humana, de uma inescru­
nhos com o Profeta, e também sua esposa teve sonhos e visões. Foi persegui­
tável providência modelando as vidas humanas à sua maneira. A sensação
do e caluniado pelos que diziam que ele trazia inovações ilegítimas à religião,
89
88
de ser invadido pela presença de Deus, mesmo que só por um momento, é Durante a primeira geração de domínio muçulmano, não foi preciso tra­
inebriante, e alguns dos sufitas, cujas idéias talvez não diferissem muito das duzir do grego para o árabe por meio do siríaco, uma vez que a maioria dos
de Junayd, tentaram expressar o inexprimível em linguagem exaltada e colo­ que continuavam a tradição ainda era de cristãos, judeus ou zoroastrianos,
rida, que podia provocar oposição. Abu Yazid al-Bistami (m. c. 875) tentou e mesmo os que se haviam convertido teriam retido o conhecimento das lín­
descrever o momento de êxtase, quando o místico é despido de sua existência guas de idéias, ou pelo menos continuado em contato com os que o faziam.
e invadido pela de Deus; e no entanto, no fim, ele compreendeu que nesta O grupo árabe dominante talvez não se interessasse muito em saber o que
vida isso é uma ilusão, que a vida humana na melhor das hipóteses é preen­ seus súditos estudavam, e dificilmente poderiam tê-lo feito, pois a língua árabe
chida pela alternância da presença e ausência de Deus. Um caso mais famoso ainda não adquirira a capacidade de expressar os conceitos científicos e filo­
é o de al-Hallaj (c. 857-922), executado em Bagdá por declarações blasfemas. sóficos de um modo preciso.
Discípulo de Junayd, suas doutrinas talvez não diferissem muito das do mes­ Da última parte do século II até o iv islâmicos (mais ou menos do sécu­
tre, mas ele as expressava em tom de êxtase e amor satisfeito. Sua exclama­ lo Viu até o X d.C.), contudo, o trabalho de tradução foi executado intensi­
ção: “Eu sou a Verdade [ou Deus}” talvez não fosse mais que uma tentativa vamente e— fenômeno raro — com o estímulo direto de alguns dos califas
de afirmar a experiência mística em que Os atributos humanos são substituí­ abácidas. Em sua maior parte, o trabalho foi feito por cristãos cuja primeira
dos pelos de Deus, mas podia muito bem ser tomada por algo mais; também língua cultural era o siríaco, è que traduziam do siríaco para o árabe, mas
sua sugestão de que a verdadeira peregrinação não era a Meca, mas a jorna­ algumas obras foram traduzidas diretamente do grego para o árabe. Parte
da espiritual que o místico realiza em seu próprio quarto, pode ser tomada essencial do trabalho desses homens foi expandir os recursos da língua ára­
como querendo dizer que o cumprimento literal das obrigações religiosas não be, seu vocabulário e idioma, torná-la um veículo mais adequado a toda a
era importante. Talvez tenha havido alguma coisa nele que acolhia tais mal­ vida intelectual da época. Parte importante nisso foi desempenhada pelo maior
entendidos, pois fora influenciado por uma tendência no pensamento sufita dos tradutores, Hunyan ibn Ishaq (808-73).
(a dos malamatis) que pode ter vindo do monasticismo cristão oriental: o de­ Praticamente toda a cultura grega da época, preservada nas escolas, foi
sejo de rebaixar-se por atos que incorrem nas reprovações do mundo, uma assimilada nessa linguagem ampliada. Sob certos aspectos, era uma cultura
espécie de mortificação da própria auto-estima. encolhida, A retórica, a poesia, o drama e a história não mais eram muito
ensinados ou estudados. Os estudos habituais incluíam filosofia (a maior parte
de Aristóteles, alguns diálogos de Platão, algumas obras neoplatônicas); me­
O CAMINHO DA RAZÃO dicina; as ciências exatas, matemática e astronomia; e as ciências ocultas, as­
trologia, alquimia e magia. Os estudos de filosofia, ciência e ocultismo não
As especulações sufitas posteriores sobre como Deus criou o homem, e eram tão claramente distintos quanto o são hoje. As fronteiras do que hoje
como o homem poderia retornar a Ele, foram muito influenciadas por outro se encara como “científico” foram mudando de época em época, e era muito
coerente com o que se conhecia do Universo acreditar que a natureza regula­
movimento de pensamento que começou cedo, uma tentativa de assimilar no
va a vida humana, que os Céus controlavam o que acontecia no mundo abai­
árabe a tradição de ciência e filosofia gregas; ou, pode dizer-se, de continuar
xo da Lua, e tentar compreender e usar essas forças.
e desenvolver essa tradição por meio do veículo da língua árabe.
Os motivos dos tradutores e seus patronos, os califas, talvez fossem em
A ascensão ao poder de uma dinastia árabe não causou uma interrupção
parte práticos; a profissão médica estava em demanda, e o controle sobre as
abrupta na vida intelectual do Egito ou da Síria, do Iraque ou Irã. A escola
forças naturais podia trazer poder e sucesso. Mas havia também uma grande
de Alexandria continuou a existir por algum tempo, embora seus sábios acabas­
curiosidade intelectual, como está expresso nas palavras de al-Kindi (c. 801-66),
sem mudando-se para o norte da Síria. A escola de medicina em Jundishapur,
o pensador com quem praticamente começa a história da filosofia islâmica:
no sul do Irã, criada por cristãos nestorianos sob o patronato dos sassânidas,
também continuou a existir. Nesses e noutros lugares, havia uma tradição Não devemos nos envergonhar de admitir a verdade de qualquer fonte que nos ve­
viva de pensamento e ciência helenísticos, embora nessa época seus interesses nha, mesmo que nos seja trazida por gerações anteriores e povos estrangeiros. Pa­
fossem mais limitados que antes, pois eram transmitidos mais por meio do ra aquele que busca a verdade, nada há de mais valioso que a própria verdade.9
siríaco que do grego. Havia também uma grande tradição de cultura judaica Estas palavras expressam não apenas a excitação que provocava a des­
no Iraque, e uma tradição iraniana expressa em pálavi e incorporando alguns coberta da tradição grega, mas também a confiança em si mesma de uma cul­
importantes elementos vindos da índia. tura imperial apoiada num poder mundial e na convicção do apoio divino.

90 91
--o As traduções estão na origem de uma tradição científica expressa em ára­ Um famoso autor médico no século ix, Abu Bakr al-Razi (865-925), res­
o
be. Em grande parte, ela continuou e desenvolveu a última tradição grega. pondeu a essas perguntas de maneira inequívoca. Só a razão humana podia
Um sinal dessa continuidade foi o fato de o historiador da medicina árabe, proporcionar conhecimento correto, a estrada da filosofia estava aberta a todos
Ibn Abi UsaybFa, reproduzir na íntegra o juramento de Hipócrates dos mé­ os usos, as supostas revelações eram falsas e as religiões perigosas.
dicos gregos: “Juro por Deus, Senhor da vida e da morte [...] e juro por Es­ Talvez mais típico dos filósofos que continuavam sendo muçulmanos con­
culápio, e pelos santos de Deus...”.10 victos foi a atitude de al-Farabi (m. 950). Ele acreditava que o filósofo podia
Entremeados com as ciências de origem grega, porém, havia elementos alcançar a verdade por meio da razão, e viver por ela, mas nem todos os se­
procedentes das tradições iraniana e indiana. Já no século IX, o matemático res humanos eram filósofos e capazes de apreender diretamente a verdade.
al-Khwarazmi (c. 800-47) escrevia sobre o uso de número indianos — os cha­ A maioria só podia alcançá-la por intermédio de símbolos. Alguns filósofos
mados arábicos — em cálculos matemáticos. Essa mistura de elementos é signi­ tinham o poder de compreender a verdade com a imaginação, além do inte­
ficativa. No momento em que os califas abácidas juntavam as terras do oceano lecto, e de expô-la sob a forma de imagens, além de idéias, e esses eram os
Índico e do Mediterrâneo numa única área comercial, também as tradições profetas. Assim, a religião profética era um meio de expor a verdade por meio
gregas, iranianas e indianas eram reunidas, e afirmou-se que, “pela primeira
de símbolos inteligíveis parj todos os homens. Diferentes sistemas de símbo­
vez na história, a ciência tornou-se internacional em larga escala”.
los formavam as diferentes religiões, mas todas tentavam expressar a mesma
Quaisquer que fossem suas origens, a ciência foi aceita sem dificuldade
verdade; o que não significava necessariamente que todas a expressassem com
na cultura e na sociedade expressas em árabe: os astrônomos tornaram-se os
a mesma competência.
monitores do tempo, fixando as horas de prece e muitas vezes das observân­
Implícita nas idéias de al-Farabi havia a sugestão de que a filosofia em
cias rituais; os médicos eram em geral respeitados, e podiam ter influência
sua forma pura não era para todos. A distinção entre a elite intelectual e as
sobre os governantes. Algumas das ciências, porém, suscitavam questões so­
bre os limites do conhecimento humano. Muitos dos médicos rejeitavam as massas iria tornar-se um lugar-comum do pensamento islâmico. A filosofia
afirmações da astronomia de que a conjunção de humores do corpo era regida continuou a existir, mas era exercida como uma atividade privada, em gran­
de parte por médicos, com discrição e muitas vezes enfrentando suspeitas.
pela conjunção dos astros; também não se aceitavam inteiramente as alega­
Apesar disso, algumas das idéias dos filósofos penetraram no pensamento
ções dos alquimistas. Acima de tudo, era a filosofia que colocava questões,
pois em alguns aspectos os métodos e conclusões da filosofia grega pareciam da época e de épocas posteriores. A época de al-Farabi foi também a dos fatí-
difíceis de conciliar com as doutrinas básicas do Islã, como estavam sendo midas, e idéias neoplatônicas da hierarquia de emanações divinas podem ser
desenvolvidas por teólogos e legisladores. encontradas no sistema plenamente desenvolvido dos ismaelitas. Num período
A suposição da filosofia era de que a razão humana, corretamente em­ um tanto tardio, iriam também entrar nos sistemas teóricos pelos quais os
pregada, podia proporcionar ao homem conhecimento do Universo, mas ser sufitas tentariam expücar sua busca e o que esperavam encontrar no fim dela.
muçulmano era acreditar que certo conhecimento essencial para a vida hu­
mana tinha de vir ao homem apenas pela revelação da Palavra de Deus aos
profetas, Se o Islã era verdadeiro, quais eram os limites da filosofia? O Co­
rão ensinava que Deus criara o mundo com Sua palavra criativa “Seja”; co­
mo podia isso conciliar-se com a teoria de Aristóteles, de que a matéria era
eterna e só sua forma fora criada? Platão chegou ao mundo de língua árabe
interpretado por pensadores posteriores, e até mesmo Aristóteles era inter­
pretado à luz de uma obra neoplatônica erroneamente intitulada “A Teolo­
gia de Aristóteles”. Para esses pensadores posteriores, Deus criara e manti­

O
nha o mundo por meio de uma hierarquia de inteligências intermediárias que
emanavam d’Ele; como se podia conciliar essa visão com a idéia de um deus
de poder total, que apesar disso intervinha diretamente no mundo humano?
Era a alma humana imortal? Como se podia conciliar a visão platônica de
que a melhor forma de governo era a do rei-filósofo com a visão muçulmana
de que o governo da época do Profeta e dos primeiros califas era o que me­
lhor se conformava com a Vontade de Deus para os homens?

92 93

Você também pode gostar