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Ibn Qasi: A Complexa Trajetória do Aliado Muçulmano em

Terras Ibérica

Conheça a figura enigmática de Abu al-Qasim ibn Qasi, um


personagem crucial e inesperado durante o período da Reconquista
na Península Ibérica. Sua aliança com Afonso Henriques, sua
influência sobre Mértola e Silves e as reviravoltas de suas alianças
ainda ecoam na memória histórica da região.

A concepção comum da Reconquista muitas vezes simplifica o


conflito como uma luta entre forças cristãs e muçulmanas. No
entanto, a realidade complexa e multifacetada revela indivíduos que
se moviam entre esses lados, como El Cid ou Geraldo Sem Pavor,
e alianças imprevisíveis que surgiam no seio das forças
muçulmanas.

Ibn Qasi, também conhecido como Abu-l-Qasim Ahmad ibn al-


Husayn ibn Qasi, nasceu em Silves no século XII, numa família de
muladis, descendentes de cristãos convertidos ao islamismo após a
conquista do Sul da Península. Especula-se que o sobrenome
"Qasi" seja uma adaptação do latim "Cassius", possivelmente o
nome ancestral de sua família.

Órfão ainda jovem, Ibn Qasi percorreu a Península Ibérica e o Norte


da África, visitando líderes religiosos e, eventualmente, abdicando
da maior parte de seus bens para erguer um ribat, uma estrutura
que combinava local de culto com fortificação militar, próximo a
Arrifana, no concelho de Aljezur.
Foi nesse local que se acredita ter escrito sua obra fundamental, "O
Descalçar das Sandálias", onde expôs sua filosofia religiosa de
origem sufi, impulsionando o surgimento do movimento Muridismo,
do qual os seguidores se autodenominavam muridines, com Ibn
Qasi se referindo a si mesmo como mahdi, uma figura religiosa de
extrema importância.

O crescimento de sua influência religiosa logo almejou uma


concretização política, levando-o a tentar conquistar o castelo de
Monteagudo dos Almorávidas. Porém, essa investida fracassou,
levando-o a um período de reclusão até sua bem-sucedida
conquista de Mértola em 14 de agosto de 1144, sendo aclamado
como imam, um líder com autoridade na comunidade muçulmana.

Durante seu reinado em Mértola, os senhores locais Ibn Wazir e Ibn


al-Mundhir também se rebelaram contra os Almorávidas e, como
resultado, receberam territórios como Beja e Silves,
respectivamente, em um esforço conjunto com Ibn Qasi para
expandir suas influências sobre Niebla, Huelva e em uma tentativa
malsucedida de cerco a Sevilha, que os obrigou a recuar.

Entretanto, as rivalidades e traições entre esses senhores


acabaram por favorecer Ibn Wazir, que, descontente com a suposta
preferência de Ibn Qasi por Ibn al-Mundhir, se aliou ao senhor de
Córdoba e capturou Ibn al-Mundhir. A situação se agravou quando
os Almóadas, procurados por Ibn Qasi em busca de apoio, não
responderam, resultando na perda de Mértola para Ibn Wazir após
pouco mais de um ano de governo.
Ibn Qasi fugiu para o Norte da África e, com a ajuda dos Almóadas,
lançou uma ofensiva bem-sucedida sobre o Sul da Península
Ibérica, conquistando Jerez, Niebla, Mértola e Silves. Porém, com a
queda dos Almorávidas e a ascensão dos Almóadas, o caos político
se instaurou na região, levando Ibn Qasi a declarar sua
independência.

Enquanto outros líderes locais juraram lealdade aos Almóadas, Ibn


Qasi optou por se recusar, buscando uma aliança com os cristãos,
especialmente com Afonso Henriques, recém-conquistador de
Lisboa, cuja independência em relação a Castela admirava. Afonso
teria aceitado a aliança, enviando simbolicamente um presente
composto por um cavalo, um escudo e uma lança para cimentar o
pacto.

No entanto, essa aliança provou ser sua ruína. Descontentes com


sua associação com os cristãos, os Almóadas patrocinaram um
golpe bem-sucedido, culminando na execução de Ibn Qasi em
1151, com sua cabeça sendo separada do corpo e exibida cravada
na lança que supostamente Afonso Henriques lhe oferecera,
acompanhada pelos gritos de "Aqui está o mahdi dos cristãos!".

A queda de Ibn Qasi não apenas encerrou seu breve reinado, mas
também marcou o fim do movimento Muridismo. Mesmo assim, as
complexas alianças e traições que permearam sua trajetória ainda
ecoam nos anais da história da Península Ibérica, deixando uma
herança de intrigas e colaborações improváveis em meio ao
turbulento período da Reconquista.

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