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novembro de 2022

O mar profundo (ou seja, a coluna de água abaixo dos 200 metros de profundidade, o solo e
subsolo) é o maior bioma da Terra.
Totaliza 90% do ambiente marinho e tem um papel muito importante na regulação dos sistemas
terrestres.
A mineração em mar profundo consiste na extração de depósitos minerais e terras raras.
Apesar de ainda não haver exploração comercial, trabalhos experimentais têm sido levados a cabo em
vários pontos do globo e existe um forte interesse da indústria em avançar com a atividade nas
áreas internacionais do oceano.
Este documento pretende reunir e desmistificar alguns pontos que têm acompanhado a
narrativa e o crescente interesse que a indústria tem demonstrado nesta atividade.

• O conhecimento sobre o mar profundo está numa fase suficientemente desenvolvida


para que se avance com esta atividade?
R: O mar profundo é o ecossistema menos conhecido do nosso planeta. Estima-se que conhecemos menos de
10% do oceano e, se nos referirmos apenas ao mar profundo, este número cai para menos de 1%. É realmente
verdade que conhecemos melhor a superfície lunar do que a do mar profundo. A comunidade científica concorda
que estamos a, no mínimo, 10 anos de ter um conhecimento de base sobre este ecossistema que nos permita
tomar decisões conscientes e informadas.

• Qual é a importância do oceano na luta contra a crise climática?


R: O oceano é o maior reservatório de carbono do planeta e as relações entre as várias camadas de água ao longo
de toda a coluna são, como tudo no mar profundo, ainda pouco compreendidas. É amplamente reconhecida a
necessidade de se reduzir a libertação de carbono para a atmosfera. Nesta fase, libertar carbono dos fundos
marinhos, onde se acumulou nos últimos milhões de anos, através da mineração poderá ter consequências
graves na mitigação da crise climática.

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• A mineração irá impactar o mar profundo a uma escala mínima e muito localizada
quando comparada com a vastidão do meio marinho?
R: Os fundos marinhos são habitat de milhares de espécies e certamente de muitas outras ainda por descobrir.
O seu valor para a ciência, incluindo a descoberta de potenciais aplicações tecnológicas e biomédicas, é virtual-
mente incalculável. É altamente improvável que, num meio com tanta conectividade e com condições
físico-químicas tão particulares, os impactos se limitem a poucos metros do local de exploração. Por exemplo,
um estudo recente indica que o ruído poderá afetar espécies marinhas até 500 km de distância e outro que os
sedimentos poderão ter uma dispersão vertical de até 800 m na coluna de água. Por estas razões, proteger
alguns lugares da mineração – onde a atividade nunca poderá ocorrer – é manifestamente insuficiente.

• A mineração em mar profundo irá beneficiar essencialmente os países em vias de


desenvolvimento?
R: É importante referir que as grandes empresas mineiras não estão sediadas no sul global. Além disso, não há
qualquer evidência de que os minérios provenientes do fundo do mar vão efetivamente potenciar o desenvolvi-
mento dos países que mais necessitam. Pelo contrário, o recente passado extrativista tem-nos mostrado que
raras vezes os países que sentem de forma mais premente os impactos de determinada atividade são aqueles
que beneficiam da mesma.

• O avanço da mineração nos fundos marinhos irá retirar pressão da mineração em


terra e, por exemplo, ajudar a acabar com os atropelos aos direitos humanos verificados
noutros pontos do planeta?
R: A atual indústria da mineração em terra apresenta gigantescos problemas não apenas de ordem ambiental,
mas também social e económica (inclusivamente do ponto de vista dos direitos humanos e laborais). No entanto,
nada indica que, iniciando-se esta atividade no mar, sejam levados a cabo esforços que diminuam os problemas
em terra. É urgente, isso sim, que a atividade em terra seja regulada e fiscalizada de forma séria, contínua e
transparente.

• A implementação de uma moratória significa que toda a investigação pára ou fica


impossibilitada?
R: Não. Uma moratória é um adiamento da atividade e assenta no princípio da precaução que incita a maior
procura do conhecimento de base que permita informar decisões justas e conscientes. Como tal, é crucial que
haja um investimento na investigação do mar profundo que seja independente de qualquer agenda extrativista.
Uma moratória ou pausa precaucionária é a única forma de realmente materializar o princípio da precaução e
garantir que, até se reunir mais conhecimento, a atividade não avança.

• É verdade que, nesta fase, estamos só a fazer prospeção para aumentar o


conhecimento e que isso não abre necessariamente a porta à exploração?
R: Qualquer atividade extrativa precisa de ter uma primeira fase de prospeção para que, entre outras coisas, se
avalie a viabilidade económica de uma possível exploração. No entanto, o avanço ou não para exploração comercial
de um projeto não deve estar unicamente dependente da sua viabilidade económica, mas também de outras
questões como a justiça social, intergeracional e ambiental.

• São apenas as empresas do sector privado que têm capacidade para financiar este
tipo de expedições?
R: Ainda que o sector privado possua maior capacidade financeira, é problemático que quase toda a ciência
necessária para informar a decisão de avançar ou não com esta atividade tenha por base interesses primários
(ou secundários) de exploração. O conhecimento do mar profundo é muito importante, mas é igualmente importante
que seja realizado o mais possível de forma transparente, isenta e livre de interesses e ganhos económicos.

• A pesca de arrasto de fundo não é uma ameaça muito mais grave e urgente aos
fundos marinhos?
R: O arrasto de fundo, particularmente em algumas áreas, é uma ameaça à biodiversidade e à integridade dos
fundos e as organizações ambientais também têm lutado contra isso. Mas uma coisa não invalida a outra; há
zonas onde o arrasto de fundo, sendo uma atividade económica já estabelecida, deve ser proibido, mas a mineração
em mar profundo não existe ainda enquanto sector, então para quê permitir que se estabeleça no contexto
atual?

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• Qual é a alternativa para efetivarmos a tão necessária transição energética?
R: Alargar esta atividade aos ecossistemas marinhos irá perpetuar a nossa dependência de matérias raras e
finitas. A única forma de dar resposta às necessidades energéticas do século XXI é a transição para uma economia
circular de aproveitamento e valorização dos recursos, quer através da promoção do direito à reparação, quer
através do investimento na reciclagem de equipamentos elétricos e eletrónicos, dando assim resposta a parte
da procura por metais raros. Os incentivos financeiros devem refletir-se tanto no desenvolvimento das energias
renováveis que permitam gradualmente abandonar os combustíveis fósseis, como no avanço tecnológico
necessário para que os dispositivos precisem cada vez menos de metais na sua composição.

A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês) foi criada em
1994 e é um organismo da ONU com sede na Jamaica. Reúne os países signatários da Convenção
das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) e tem como função regular e controlar as ativi-
dades relacionadas com minerais naquela que é conhecida como a Área, ou seja, além dos limites da
jurisdição nacional dos países.
A 25 de junho de 2021, Nauru ativou, na ISA, a chamada “regra dos dois anos”. Esta é uma
provisão legal que permite que, na ausência de regulamentos mais robustos, a atividade possa
avançar no prazo de dois anos com as regras que estiverem em vigor na altura.

• A mineração em mar profundo é uma atividade prevista pela CNUDM e, por isso,
legítima?
R: A ISA governa a Área, assim como os seus recursos, que são património comum da Humanidade. Nesse sentido,
deve ser linha orientadora da ação da ISA trabalhar em benefício da Humanidade. Os serviços ecossistémicos
representam um benefício incomparável com aquele promovido pela extração de minérios. A mineração em mar
profundo é uma das várias atividades económicas previstas na CNUDM, celebrada em 1982, quando o conheci-
mento vigente era de que o mar profundo era essencialmente um deserto de vida. No entanto, daquilo que sabemos
hoje sobre a importância dos fundos marinhos para a biodiversidade e para o armazenamento de carbono, a
opção responsável é adiar o início da atividade até que mais conhecimento seja produzido.

• A mineração em mar profundo ainda não existe como atividade comercial. Porquê
tanta preocupação?
R: Devido à ativação da “regra dos dois anos”, em julho de 2023, a atividade poderá efetivamente ter início se a
comunidade internacional não tomar a decisão de a adiar. Até este momento, a ISA atribuiu todos os pedidos de
licença para prospeção que foram feitos, perfazendo um total de 31 contratos que cobrem quase 1,5 milhões de
km quadrados de fundos marinhos.

• É mesmo necessário que os regulamentos sejam adotados até julho de 2023 para
que seja estabelecida uma base mínima de proteção do meio?
R: A adoção dos regulamentos até julho de 2023 significa abrir as portas à mineração em mar profundo, podendo
então ter início, e pela primeira vez desde sempre, a atividade na Área. No entanto, e apesar disso, os 36 países
membros do Conselho podem decidir tanto não adotar os regulamentos como não permitir que a atividade
comece. Assim sendo, é da maior importância que os países negociem uma pausa precaucionária até que mais
informação seja recolhida. A única coisa que garante uma base mínima de proteção do meio é a estrita aplicação
do princípio da precaução até que a comunidade científica tenha um melhor entendimento sobre o ecossistema.
• A governança e funcionamento da ISA apresenta algum problema de transparência
ou de conflito de interesses?
R: As ONG que têm trabalhado no âmbito da ISA nos últimos anos não têm dúvidas: a ISA não serve o propósito
para que foi criada. A ISA tem um mandato conflituoso em que, por um lado, tem como objetivo fomentar a
extração mineira e, por outro, proteger o mar profundo. Além disso, há outras questões que tornam o processo
mais opaco: a estrutura de votação favorece a atribuição de licenças para minerar, não existe um comité científico
ou ambiental, as reuniões da Comissão Jurídica e Técnica (um órgão consultivo do Conselho) decorrem à porta
fechada, de forma pouco escrutinável, e há evidência de que o Secretariado terá partilhado dados confidenciais
com uma das empresas.

• Portugal faz-se representar na ISA?


R: A Assembleia é o “órgão supremo” da ISA e inclui os 167 países signatários da CNUDM e a União Europeia.
Apesar disso, os países membros do Conselho – ao qual Portugal não pertence – têm poderes muito mais
amplos do que a Assembleia sobre o futuro dos fundos marinhos. O órgão do Governo português que representa
formalmente Portugal na Assembleia da ISA é o Ministério dos Negócios Estrangeiros. No entanto, é fundamental
que a delegação se faça acompanhar por peritos em mar profundo e conservação marinha e ambiental, o que,
até agora, não aconteceu.

• Que países defendem uma moratória ou pausa precaucionária?


R: Até agora, França, Alemanha, Espanha, Chile, Costa Rica, Panamá, Nova Zelândia, Equador, Palau, Fiji, Samoa
e Micronésia foram alguns dos países que pediram uma moratória ou pausa precaucionária à atividade.

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