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Faculdade Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro

Danilo Morais Telles

O ENÜMA ELISH E O GÊNESIS 1,1 – 2,4a

O papel do mito de criação babilônico na preservação da memória

cultural judaica

RIO DE JANEIRO

JULHO – 2013
Faculdade Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro

O Enüma Elish e o Gênesis 1,1 – 2,4a: O papel do mito de criação

babilônico na preservação da memória cultural judaica.

Danilo Morais Telles

Monografia apresentada à Faculdade de São Bento do

Rio de Janeiro (FSB/RJ) para a obtenção do Certificado

de Especialização em História Antiga e Medieval do

Programa de Pós-graduação Lato Sensu.

Orientador(a): Prof. Doutora Nely Feitoza

RIO DE JANEIRO

JULHO – 2013
FICHA CATALOGRÁFICA

TELLES, Danilo Morais. O Enüma Elish e o Gênesis 1.1-2.4a: O papel do mito de criação

babilônico na preservação da memória cultural judaica. Rio de Janeiro: FSB/RJ, 2013.

55 páginas

Monografia do Curso de Especialização em História Antiga e Medieval, apresentada à Faculdade

de São Bento do Rio de Janeiro, no Programa de Pós-graduação Lato Sensu.

Orientador(a): Prof. Doutora Nely Feitoza.

Palavras-chaves: Mitos de criação, Memória Cultural, Enüma Elish, Gênesis, Tiamat, Marduk,

Babilônia, Israel, Iahveh


À minha esposa Ana Carolina e meu filho Nicolas, meu legado, pelo

apoio e dedicação.
RESUMO

Em sociedades que compartilham regiões próximas, a troca de ideias e culturas não só é algo

comum, mas inevitável. Tal confluência é ainda mais evidente em períodos de convivência

direta, especialmente quando há uma relação de dominação e subjugo, como foi o caso das

nações de Israel e Babilônia – nosso objeto de estudo. Desta forma, buscamos estudar a

preservação da memória cultural judaica através de uma análise comparativa dos mitos de

criação de ambos os povos: o Enüma Elish para os babilônicos e o Gênesis 1,1-2,4a para o

povo judeu. Estudou-se cada texto separadamente, para só depois analisar os elementos

comuns, buscando assim compreender a influência que os babilônicos e seu poema

cosmogônico tiveram sobre a visão de criação do povo de Israel.

Palavras-chave: Israel, Babilônia, mitos de criação, cosmogonia, Marduk, Tiamat, cativeiro,

memória, Enuma Elish, Gênesis.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – As sete tábuas do Enuma Elish................................................................................16

Figura 2 – Batalha entre Marduk e Tiamat ..............................................................................22

Figura 3 – Cosmologia mesopotâmica......................................................................................24

Figura 4 – Concepção hebraica do mundo................................................................................36


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9

1. O ENUMA ELISH................................................................................................................13

1.1 Datação do texto..................................................................................................................13

1.2 A organização do poema.....................................................................................................15

1.2.1 O surgimento das primeiras divindades...........................................................................17

1.2.2 O mito de Ea e Apsu........................................................................................................18

1.2.3 O mito de Tiamat.............................................................................................................21

1.2.4 A criação do mundo........................................................................................................22

1.2.5 A criação do homem........................................................................................................25

1.3 Liturgia................................................................................................................................26

2. O MITO DE CRIAÇÃO EM GÊNESIS 1............................................................................28

2.1 Composição........................................................................................................................28

2.2 Estrutura do mito de criação...............................................................................................31

2.2.1 O princípio.......................................................................................................................31

2.2.3 O primeiro dia e a luz, a primeira criação........................................................................33

2.2.4 Segundo dia......................................................................................................................35

2.2.5 Terceiro dia......................................................................................................................36

2.2.6 Quarto dia.........................................................................................................................38

2.2.7 Quinto dia.........................................................................................................................39

2.2.8 Sexto dia...........................................................................................................................40


3. OS MITOS COMPARADOS..............................................................................................42

3.1 Historiografia.....................................................................................................................43

3.2 Análise comparativa..........................................................................................................44

3.2.1 O universo anterior à criação.........................................................................................44

3.2.2 A criação........................................................................................................................47

3.2.2.1 A luz e os astros..........................................................................................................47

3.2.2.2 O firmamento..............................................................................................................48

3.2.2.3 O homem.....................................................................................................................49

CONCLUSÃO........................................................................................................................52

REFERÊNCIAS........................................................................................................................53
9

INTRODUÇÃO

O contato do povo de Israel com a cultura babilônica não se deu apenas nos

anos do cativeiro babilônico, entre 597 e 538 a.C. São os próprios hebreus que traçam suas

origens até a Mesopotâmia, na cidade de “Ur dos caldeus”, de onde vem Abraão, seu

patriarca. Essas raízes influenciaram sua língua, leis, e também sua religião.

Apesar disso, tal período é considerado o de maior contato entre as duas

nações, quando Israel pôde absorver diretamente a cultura da Babilônia, como informa

Bottéro1.

Não podemos deixar de pensar que a cosmogonia mesopotâmica, pouco ou mal


conhecida em Israel antes do exílio – pelo menos a julgar por nossos documentos –
foi, ou conhecida pela primeira vez, ou muito mais estimada e, em certa medida,
adotada por seus pensadores, quando se puseram em contato imediato com ela, na
própria Mesopotâmia. (BOTTÉRO, 1993, p. 207).

Com sua libertação, que aconteceu após a ocupação da Babilônia pelo rei

persa Ciro II em 539 a.C., os sacerdotes israelitas sentiram a necessidade de reforçar a

identidade de seu povo, através de uma releitura de sua história. Desta forma, devemos olhar

para isto pelo viés da memória coletiva e cultural.

Segundo Maurice Halbwachs2, o sentimento de identidade de um povo está

diretamente ligado às memórias de seu passado coletivo, e são estas que o possibilitam

identificar-se como um grupo distinto.

Para Halbwachs, as memórias subsistem porque fazem parte de um conjunto de


valorações e acepções que são comuns a todos os membros do grupo, deixando de
existir à medida que este grupo vai desaparecendo, ou porque se desfez, ou porque
simplesmente as pessoas deixam de existir. (HALBWACHS, 1968, apud
ARDERIUS, 2010, p.39)

1
Jean Bottéro (1914-2007) foi um renomado historiador francês que tinha como áreas de pesquisa a
assiriologia e o Antigo Oriente Próximo.
2
Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês de escola durkheimiana que teve como obra mais
influente seus estudos sobre memória coletiva, conceito criado pelo próprio.
10

Os estudos de Halbwachs no campo da memória foram aprofundados pelo

egiptólogo Jan Assmann3, no que chamou de memória cultural. O conceito de memória

cultural, segundo ele,

engloba o corpo de textos reutilizáveis, imagens e rituais específicos de cada


sociedade em cada época, cujo «cultivo» serve para estabilizar e transmitir a auto-
imagem dessa sociedade. Perante tal conhecimento colectivo, na sua maioria (mas
não exclusivamente) do passado, cada grupo baseia a sua consciência de unidade e
especificidade. (ASSMANN, 1995 apud ARDERIUS, 2010, p.49)

O exílio na Babilônia representou uma ruptura na memória cultural de

Israel. A destruição de Jerusalém foi certamente o maior desafio na história do Antigo Israel,

segundo o próprio livro de Lamentações. Separados de suas raízes e em contato direto com a

cultura de seu dominador – mesmo que vivendo sob certa liberdade, como diz Rainer Kessler4

(2009, p.162), “Os exilados podem promover reuniões nos seus lugares de moradia. Os

anciãos funcionam como seus representantes,” o resultado não poderia ser diferente de uma

sobreposição cultural e a subsequente perda de identidade.

Para Assmann, em sua obra Religion and Cultural Memory (2006, p.69),

onde traz uma série de ensaios sobre o papel da religião na memória cultural, com a perda de

contato com suas origens, busca-se uma direção nos textos sagrados, que surgem quando há

uma interrupção na tradição oral. “In such situations we find not only that new texts emerge,

but also that already existing texts are given an enhanced normative value. (...) That is the

situation during the Babylonian exile and the Diaspora.”

Traditions are normally not written. Where they are, it points to a break in tradition,
or at the very least, a crisis. The tendency toward the use of writing is not
necessarily the result of an internal logical development. The natural path of

3
Jan Assmann é um egiptólogo alemão que além de seus muitos trabalhos relacionados ao Antigo Egito,
escreveu influentes obras sobre a memória comunicativa e cultural.
4
Rainer Kessler é professor de Antigo Testamento e Teologia Protestante na Faculdade de Teologia da
Universidade de Marburg, na Alemanha.
11

tradition leads not to writing, but to habit, not to explication, but to a process of
becoming implicit, to habitualization and a making unconscious. The impetus to
introduce writing must come from outside, and when it comes it alters the tradition
(ASSMANN, 2006, p.64)

De acordo com as definições de Assmann (2006. p.38), os mitos de criação

– assim como outros textos como genealogias e epopeias heroicas - encaixam-se na categoria

de textos formativos, que tem como objetivo definir e estabelecer a identidade do povo a qual

pertencem, ao narrar histórias compartilhadas por todos. Ele afirma também que, sem um

monarca, que anteriormente detinha a autoridade legislativa, coube à Torá assumir este papel,

trazendo a figura divina como legislador. Segundo ele, isto é feito inicialmente pela criação, e

em seguida com uma genealogia de Adão até Moisés, ao invés de uma lista de reis. (Assmann,

2006, p.67).

Sendo assim, é o objetivo deste trabalho estudar parte da reconstrução desta

identidade, através de uma análise comparativa das cosmogonias judaica, em Gênesis 1.1 –

2.4a, e mesopotâmica, o poema de criação conhecido como Enuma Elish. Pretendemos

ponderar sobre as influências que, na confluência de ideias e culturas durante o cativeiro

babilônico, o Enuma Elish possa ter no mito cosmogônico presente no primeiro capítulo do

Gênesis.

Para tanto, este trabalho foi organizado em três capítulos. No primeiro,

analisamos o Enuma Elish em vários aspectos: sua datação e as diversas visões históricas a

este respeito; sua liturgia com o festival de Ano Novo; a estrutura, dividido em sete tabuletas;

para só então realizar um estudo mais detalhado do épico de criação em si, desde o

surgimento dos primeiros deuses babilônicos, o conflito com Apsu e Tiamat, o nascimento de

Marduk e sua posterior batalha com Tiamat, resultando na criação do universo como visto

pelos babilônicos.

No capítulo seguinte, uma análise similar é feita com o mito cosmogônico

presente em Genesis 1.1-2.4a. Aqui, estudamos a composição não só do Gênesis em si, mas
12

da Torá, analisando com mais detalhes a teoria da Hipótese Documental ou Teoria JEDP, que

examina os autores da Torá e seus respectivos estilos, buscando também uma datação para o

texto criativo. Em seguida, perscrutamos o texto do Gênesis, refletindo sobre cada um dos

dias da criação.

Por fim, o terceiro capítulo apresenta um estudo comparativo dos dois

mitos, tentando encontrar contrastes e similaridades entre eles, analisando minuciosamente

cada ato criativo, além de trazer uma breve introdução historiográfica sobre a pesquisa de tal

interação, que certamente não se iniciou neste trabalho e continuará muito depois deste.
13

1. O ENUMA ELISH

A criação do mundo de acordo com os mesopotâmicos foi registrada em um

poema chamado Enuma Elish, nomeado a partir de suas primeiras palavras, neste caso,

“Quando no alto”. O objetivo principal do texto é a exaltação do deus Marduk, que em uma

batalha épica derrotou Tiamat e a partir de seus restos, criou o céu e a terra.

1.1 DATAÇÃO DO TEXTO

É provável que o poema épico de criação esteja diretamente ligado à

ascensão da Babilônia como principal cidade da Mesopotâmia, entre 2000 e 1600 a.C., e

tenha sido utilizado para justificar religiosamente o poderio da cidade. Mas assim como

muitos textos da antiguidade, é deveras difícil precisar a data em que o Enuma Elish foi

escrito, sendo alvo de várias controvérsias. Segundo Antônio Pontes5, o poema data do século

XII a.C.: “O fato da imagem de Marduk ter sido trazida de volta de Elam para Babilônia, no

período do soberano Nabucodonosor I (1124-1103 a.C.), tem permitido considerar que o

poema Enuma Elish tenha sido composto nessa época.” (Pontes, 2010, p.71).

Essa periodização é contestada por Stephanie Dalley6, que afirma que

surgiram evidências de que o Enuma Elish é anterior ao reinado de Nabucodonosor. De

acordo com Dalley, uma lista dos deuses do panteão babilônico e os outros nomes pelos quais

são conhecidos, chamada An-Anum, é anterior à Nabucodonosor, e contém uma seção com

nomes de Marduk similares aos encontrados no Enuma Elish.

5
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco. Sua dissertação de mestrado teve
como tema “A ‘influência’ do mito babilônico da criação, Enuma Elish’ em Gênesis 1,1-2,4a.”
6
Stephanie M. Dalley é assirióloga aposentada da Faculdade de Estudos Orientais na Universidade de Oxford.
Ela tem como principais áreas de pesquisa a literatura e história acadiana.
14

The reign of Nebuchadnezzar I (1125-1104 BC) has also been suggested, during
which the cult statue of Marduk was returned once again from captivity, and Marduk
is attested with the title ‘King of the Gods’, but there is now good evidence to show
that such a date for composition is too low. A lexical text known as An-Anum lists
the major gods of the Babylonian pantheon together with their secondary names by
assimilation and some of their epithets. [...] Evidence from a tablet with a listo f
gods found at the Hittite capital in Anatolia shows that An-Anum must have included
the Epic of Creation’s list of Marduk’s name long before the time of
Nebuchadnezzar I, and probably excludes a dating for his reign . (Dalley, 2008, p.
230).

Para Dalley, a linguística mostra que é possível que o mito tenha sua origem

entre os Amoritas, pois o tema comum de um deus enfrentando o mar também pode ser

encontrado entre eles, e o nome desta divindade, Addu, é um dos nomes dados à Marduk na

supracitada lista de nomes divinos.

A possible indication of Amorite origins come from the West Semitic name of the
weather-god, Addu, which is included among Marduk’s name [...] The evidence is
very tenuous, but it remains possible that the basic story of the epic is Amorite, and
that the last two tablets were added during the Kassite period, a time which is
recognized increasingly as one of composition as well as compilation. If so, an
Amorite god, rather than Marduk, may have been the ‘original’ hero . (Dalley, 2008,
p. 230).

Já Thorkild Jacobsen7, através de uma análise etimológica, nos mostra a

significação dos nomes de Marduk e Tiamat, e tenta chegar não só ao significado do mito,

mas também às suas origens. Segundo ele, o nome Tiamat é o termo comum para o mar no

antigo idioma acadiano, ti’amtum, posteriormente tâmtum. Da mesma forma, ele diz que a

forma mais antiga do nome de Marduk, marutuk, representa o “Filho da tempestade.”

(Jacobsen, 1968, p. 105). Para ele, o Enuma Elish pode ter sua datação no período do antigo

7
Thorkild Jacobsen foi um historiador especializado em assiriologia e litetura suméria. Após se aposentar de
seu cargo como professor de assiriologia na Universidade de Harvard, ele foi presidente da Sociedade Oriental
Americana, organização de acadêmicos devotados aos estudos de todos os aspectos das sociedades orientais.
15

idioma acádio, no início do período Isin-Larsa8, mas também não descarta a possibilidade de

uma data anterior, já que é possível que os amoritas, utilizassem o termo tihamatum para

representar o mar, fazendo referência ao nome Tihamat.

Considerando visões tão conflitantes, não foi possível encontrar um

consenso neste sentido. Por isso, acreditamos que seja melhor não fazer qualquer tipo de

afirmação acerca da data de origem do Enuma Elish, já que todos os argumentos acima

citados são razoáveis e apresentam explicações lógicas.

1.2 A ORGANIZAÇÃO DO POEMA

O texto do mito babilônico de criação é dividido em sete tábuas de argila,

que foram encontradas por Austen Henry Layard nas ruínas da biblioteca de Assurbanípal, em

Nínive, no ano de 1849, e sua primeira tradução foi publicada em 1876 por George Smith no

livro The Chaldean Account of Genesis. Embora essas tábuas estivessem perdidas até então,

o mito não estava esquecido. Sobreviveu através do historiador babilônico Beroso9, que

registrou o poema em sua obra História da Babilônia, e que mais tarde foi brevemente citada

pelo neo-platônico Damáscio10 em seu principal trabalho, Dificuldades e Soluções dos

Primeiros Princípios.

8
Entre 2004 e 1790 a.C., Teve início com a queda da 3ª Dinastia de Ur e é nomeado pelos dois reinos mais
fortes da época, Isin e Larsa. -<Disponível em http://i-cias.com/e.o/isin-larsa_period.htm> Acesso em 18 de
março de 2012.)
9
Sacerdote caldeu da Babilônia, viveu no Século III a.C. e escreveu em língua grega a “História da Babilónia”
composta por três livros. A História da Babilônia como um texto completo está agora perdido na Antiguidade, e
o que ainda resta vem de fontes secundárias de escritores clássicos (como Flávio Josefo e Jorge Sincelo).
10
Damáscio, conhecido como "o último dos neoplatônicos", foi um dos filósofos pagãos perseguidos por
Justiniano, no início do século VI, e foi forçado se refugiar por um tempo na corte do Império Sassânida (persa),
antes de receber permissão para voltar ao Império Bizantino. De sua obra restam atualmente apenas três
comentários sobre as obras de Platão, e um texto metafísico intitulado Dificuldades e Soluções dos Primeiros
Princípios.
16

The date of the epic cannot be fixed precisely. Tablets on which the work was
written date mainly to the first millenium, and the epic continued well into the
Seleucid period when it was used by Berossus in his Babyloniaca¸and was still
known in the fifth to sixth centuries AD, when the writer Damascius quoted from
Berossus. (Dalley, 2008, p. 228).

Figura 1: As sete tábuas do Enuma Elish. (Disponível em <http://www.sacred-texts.com/ane/mba/mba13.htm>

Acesso em 18 de março de 2012).

Embora o objetivo do poema seja único - mostrar a supremacia de Marduk

sobre os outros deuses – o Enuma Elish apresenta cinco temas entrelaçados, segundo nos diz

Pontes (2010, p. 71): “o mito de criação, a origem dos deuses, o mito de Ea e Apsu, o mito de

Tiamat e o hino a Marduk.” Apesar de o foco desta pesquisa seja analisar especificamente a

criação do mundo, não é possível dissociá-la dos demais temas, considerando que são

sequenciais, e sendo assim, dependentes entre si.


17

1.2.1 O SURGIMENTO DAS PRIMEIRAS DIVINDADES

O texto começa pelo surgimento das primeiras divindades, na origem dos

tempos, quando “o céu ainda não tinha nome, a terra firme abaixo não tinha sido chamada

pelo nome.” Neste momento, apenas dois deuses existiam, Apsu, que representava as águas

doces primordiais debaixo da terra, e sua consorte Tiamat (ou Mummu-Tiamat),

representando as águas caóticas do mar. De sua união, a junção das águas doces e salgadas,

“suas águas mesclando-se num só corpo,” surgem Lahmu e Lahamu, que segundo Mircea

Eliade11, são sacrificados em outra tradição, a qual ele não citou, por terem criado o homem.

Ambos, por sua vez, são os pais de Anshar e Kishar, o pai céu e a mãe terra, ou “a totalidade

dos elementos superiores” e “totalidade dos elementos inferiores” respectivamente, em idioma

sumério, segundo Eliade (2010, p. 78), Este é o segundo casal proveniente da união entre

Apsu e Tiamat, e seu hieròs gamos12 resulta em Anu, o deus do céu, que segundo Josef

Klima13, é o primeiro nome nas listas de deuses babilônicos, embora não lhe seja atribuída

uma função específica. Ele gera Nudimmud, também conhecido como Ea, ou entre os

sumérios, Enki. Para Klima, Ea era o deus das águas doces e consequentemente, da sabedoria,

já que “los benefactores efectos del agua eran sobradamente conocidos.”(Klima, 2007 p. 168).

Klima diz ainda que Ea é divindade mais antiga conhecida por nós, pois seu nome aparece em

documentos de Uruk, Shuruppak e outras cidades sumérias.

11
Mircea Eliade foi um importante historiador das religiões, mitólogo, filósofo e romancista. Ele é considerado
um dos fundadores do moderno estudo da história das religiões e grande estudioso dos mitos.
12
Casamento ou união sagrada
13
Josef Klima se graduou em direito na Faculdade de Karlsuniverstät, em Praga, e estudou filosofia oriental
antiga, se especializando em documentos jurídicos cuneiformes. Em 1947, passou a lecionar na área de direito
sucessório em documentos cuneiformes, gregos e romanos, e em 1964 foi nomeado Doutor Honoris Causa pela
Universidade Jagelónica, na Cracóvia. Foi também diretor de investigações do Oriente Antigo no Instituto da
Academia de Ciências de Praga entre os anos de 1950 e 1971.
18

Este Nudimmud dos seus pais era o mestre; de sabedoria ampla, compreensivo,
poderoso na força, muito mais poderoso de que Anshar, seu avô. Entre os deuses,
seus irmãos, não tinha rival. (Eliade, 1995, p. 75).

Há ainda uma outra divindade no panteão mesopotâmico que não é citada

neste momento, En-lil, que é principalmente o deus soberano da cidade de Nippur, e era

responsável pelo destino humano. De acordo com Eliade (2010, p. 78), En-lil não aparece no

poema devido ao fato de que ele foi posteriormente substituído por Marduk, filho de Ea.

Marduk também ainda não é citado, o que nos parece estranho inicialmente,

já que o objetivo principal do poema é engrandecer a este deus. Mas Leonard King 14, em sua

já clássica obra The Seven Tablets of Creation, esclarece que neste momento inicial do

poema, Ea é o grande herói do mito, e seu nascimento é o ápice deste “primeiro ato”.

This omission of Marduk's name from the earlier lines of the First Tablet and the
prominence given to that of Ea may at first sight seem strange, but it is in
accordance with the other newly recovered portions of the text of the First and
Second Tablets, which indirectly throw an interesting light on the composite
character and literary history of the great poem. It will be seen that of the deities
mentioned in these earlier lines Nudimmud (Ea) is the only god whose
characteristics are described in detail; his birth, moreover, forms the climax to which
the previous lines lead up, and, after the description of his character, the story
proceeds at once to relate the rebellion of the primeval gods and the part which Ea
played in detecting and frustrating their plans. In fact, Ea and not Marduk is the hero
of the earlier episodes of the Creation story. (King, 1902, p. 37).

1.2.2 O MITO DE EA E APSU

A fase seguinte do texto relata como Ea ascende ao posto principal entre os

deuses, após matar seu avô, o deus primordial Apsu.

14
Leonard King foi um arqueólogo e assiriólogo inglês que reuniu inscrições em pedra do Antigo Oriente
Próximo e ensinou arqueologia assíria e babilônica no King’s College, além de ser Assistente do Curador de
Antiguidades Egípcias e Assírias no Museu Britânico. Ele também trabalhou em traduções de textos como o
Código de Hamurabi.
19

Incomodado com os gritos das divindades mais jovens, Apsu trama suas

mortes, para que possa ter sossego e voltar a dormir. E é Tiamat, que depois será a grande

antagonista dos deuses, que os defende perante Apsu.

Os irmãos divinos uniram-se, importunaram Tiamat com sua turbulência, sim,


perturbaram a natureza de Tiamat com sua hilariedade na Morada do Céu. Apsu não
conseguiu reduzir seu alarido e Tiamat ficou pasma com seu vandalismo. Os atos
deles foram abomináveis para [...] Repugnantes as suas maneiras, eles foram
despóticos. E Apsu, o genitor dos grandes deuses, gritou, dirigindo-se a Mummu,
seu vizir: “ó Mummu, meu vizir, que alegras meu espírito, vem cá e vamos ver
Tiamat.” Foram a Tiamat e sentaram-se perante ela, trocando pareceres sobre os
deuses, seus filhos. Apsu, abrindo a boca, disse à Tiamat: “tenho aversão ao
comportamento deles. De dia não tenho descanso, à noite não posso dormir. Devo
destruir, devo anular sua maneira de proceder, para que volte a tranquilidade.
Precisamos de sossego!” Ao ouvir isto, Tiamat encolerizou-se e gritou com o
marido. Ofendida, protestou e esbravejou, revelando aflição em seu estado de
espírito. “Quê? Destruir aquilo que criamos? O comportamento deles é importuno,
mas sejamos benignos! (Eliade, 1995, p. 76)

Já na tradução apresentada por Stephanie Dalley15, vinte anos depois da

obra de Eliade acima citada, Tiamat é ainda mais condescendente com os jovens deuses.

Sendo assim, parece contraditório que, em momentos posteriores do poema, seja ela o grande

inimigo a quem Marduk deve derrotar.

However grievous their behaviour to her, however bad their ways, she would
indulge them. (Dalley, 2008, p.33)

Para Eliade, o comportamento de Apsu reflete a inércia referente ao período

anterior à cosmogonia, ou seja, a falta de ação ou movimento que representa o momento

anterior à criação do mundo.

Pode-se descobrir nesses versos a nostalgia da “matéria” (isto é, de um modo de ser


que corresponde à inércia e à inconsciência da substância) para a imobilidade
primordial, a resistência qualquer movimento, condição prévia da cosmogonia.
(Eliade, 2010, p. 78).

15
Tradução disponível em DALLEY, Stephanie. Myths from Mesopotamia - Creation, the Flood, Gilgamesh and
Others. New York, Oxford University Press, 2008, p. 233
20

Da mesma forma, King diz que os novos deuses e suas atitudes representam

o nascimento da ordem no universo, enquanto Apsu e Tiamat significam a confusão

primordial. “While the newly created gods represented the birth of order and system in the

universe, Apsû and Tiamat still remained in confusion and undiminished in might”. (1902, p.

37)

Também devemos notar que, neste momento, temos a primeira indicação de

que estes deuses vivem em mundo paralelo ao mundo físico, que ainda não foi criado, quando

Apsu diz que não consegue descansar de dia ou de noite, o que sugere que estes conceitos já

estavam presentes antes que Marduk criasse o mundo físico.

O plano de Apsu é descoberto por Ea, que é o protagonista neste momento

inicial do poema. Sendo assim, ele é relatado como “de grande sabedoria, pleno de atributos,

engenhoso, sapiente,” (Eliade, 1995, p. 76) e estes atributos o permitem traçar um plano para

matar Apsu e tomar seu lugar como divindade principal do panteão.

Arquitetou então uma trama magistral e a pôs em execução, preparando um


encantamento ardiloso, sacro e poderoso. Recitou-o e fê-lo ter validade nas águas
profundas, enquanto produzia um sono profundo em Apsu. Quando Apsu jazia
prostrado, imerso em sonolência, Mummu, o conselheiro, era incapaz de agir. Ea
desatou a faixa de Apsu, arrancou-lhe a coroa, retirou-lhe o halo e colocou-o em si
mesmo. Tendo agrilhoado Apsu, matou-o. (Eliade, 1995, p. 76)

É desta forma que Ea torna-se o deus das águas doces, as quais batiza

também de Apsu, e nelas, em seu templo que, que com sua esposa Damkina ele gera Marduk,

“o mais poderoso e sábio dos deuses.” As próximas linhas do texto trazem apenas exaltações

ao mais novo dos deuses.


21

1.2.3 O MITO DE TIAMAT

Aqui, o poema mostra as ações de Tiamat para vingar Apsu, incentivada

pelos seus primeiros filhos. Ela então escolhe Kingu como seu consorte e nomeia-o como

comandante de seus exércitos de onze monstros e criaturas, para combater os deuses mais

jovens. Também dá a ele as Tábuas do Destino, onde estava escrita a sorte de todos e que

dava poder supremo àquele que a possuísse (Dalley, 2008, p. 329).

O poema descreve então como diversas divindades falham em enfrentar

Tiamat, pois têm medo. Até mesmo o até então poderoso Ea, esconde-se da deusa das águas

salgadas primordiais, o que contribui para o posterior engrandecimento de Marduk. Este

voluntaria-se para derrotar Tiamat, mas estabelece como condição que seja nomeado supremo

entre os deuses.

Se, na verdade, como teu vingador, devo derrotar Tiamat e salvar vossas vidas,
16
convoca a Assembléia, proclama supremo meu destino! Quando em Ubshukinna te
sentares com todos, em regozijo, seja minha palavra, e não tu, a determinar os
destinos. Inalterável será aquilo que farei acontecer; a ordem de meus lábios não
será revogada nem mudada. (Eliade, 1995, p. 78)

Os deuses aceitam as condições de Marduk, e o texto então segue com mais

palavras de exaltação ao deus da Babilônia. A partir deste momento, ele ganha mais um título,

Bel, significando apenas “o Senhor.” Após preparar suas armas, Marduk parte para o embate

com Tiamat, utilizando seus quatro ventos, que “para que ela não pudesse escapar” e uma

flecha, com a qual “atravessou suas vísceras, fendeu-lhe o coração.”

Matando Tiamat, Marduk volta sua atenção para Kingu, que não é morto,

mas acorrentado por Marduk, que retira-lhe as Tábuas do Destino e as prende em seu próprio

peito. Dessa forma, Marduk assume realmente o poder supremo sobre todas as coisas.

16
Também chamada de Câmara dos Destinos, salão onde se reuniam os deuses.
22

Figura 2: Batalha entre Marduk e Tiamat. (Disponível na internet. <http://www.tali-

virtualmidrash.org.il/ArticleEng.aspx?art=3> Acesso em 18/04/2012).

1.2.4 A CRIAÇÃO DO MUNDO

É então que acontece a criação do mundo propriamente dita, quando

Marduk divide o corpo de Tiamat em duas partes, a partir das quais cria o firmamento e a

terra. O primeiro ato criativo de Marduk é o firmamento, com o objetivo de guardar as águas

de Tiamat, para que não escapem, ou seja, caiam na terra. Ele então cria os astros e suas

constelações e organiza o tempo, com a divisão do ano em doze meses. Surge também a lua, a

qual Marduk confia as noites e a marcação da passagem dos dias.

He sliced her in half like a fish for drying:


Half of her he put up to roof the sky,
Drew a bolt across and made a guard hold it.
Her waters he arranged so that they could not escape.
[...] He fashioned stands for the great gods.
As for the stars, he set up constellations corresponding to them.
He designed the year and marked out its divisions,
Apportioned three stars each to the twelve months.
17
He founded the stand of Neberu to mark out their courses,

17
Planeta Júpiter (Dalley, 2008, p. 325).
23

So that none of them could go wrong or stray.


18
He fixed the stand of Ellil and Ea together with it,
Opened up gates in both ribs,
Made Strong bolts to left and right.
With her liver he located the Heights;
He made the crescente moon appear, entrusted night (to it)
And designated it the jewel of night to mark out the days. (Dalley, 2008, p. 255).

Podemos ver aqui a concepção que os antigos babilônicos tinham sobre o

universo, que era visto como uma esfera cuja parte superior, o firmamento, tinha seu simétrico

inferior, o inferno. O firmamento era sustentado por montanhas em nos extremos oriental e

ocidental da esfera, que era “cortada” diametralmente pela terra, que ficava sob as águas

doces, o Apsu, residência de Ea. Todas as manhãs, o sol passava por uma abertura na

extremidade ocidental e percorria o céu, retornando por uma abertura do lado oposto, até

chegar ao seu ponto de partida. A esta abertura ocidental, pensava-se que era precedida por

um espaço aquoso chamado “Rio infernal.” (Bottéro, 1998, p. 59). É interessante notar aqui

que, os conceitos de cosmologia, ou seja, da estrutura do universo, são anteriores à

cosmogonia, as lendas e mitos sobre as origens deste, pois o papel do mito é tentar explicar os

conceitos vigentes, como bem nos diz Jean Bottéro (1998, p. 59): “La cosmogonia estaba em

función de la cosmologia pues el procedimento mitológico exigia que se partiera del objeto

que había que explicar para ajustar a él las ‘imaginaciones calculadas’ que lo explicaban.”

18
Outro nome para a divindade En-lil.
24

Figura 3: Cosmologia mesopotâmica. Disponível em Bottéro, 1998, p. 59.

O poema entra ainda em maiores detalhes sobre a construção do mundo a

partir dos restos de Tiamat. De seus olhos, ele criou os rios Tigre e Eufrates, que cercam a

Mesopotâmia, e de sua cabeça, uma massa montanhosa que, segundo Bottéro (1995. p.66), é a

cordilheira do Cáucaso.

He placed her head, heaped up


Opened up springs: water gushed out.
He opened the Euphrates and the Tigris from her eyes,
Closed her nostrils, [ ].
He piled up clear-cut mountains from her udder. (Dalley, 2008, p. 257).

Para Eliade, o poema mostra que concepção mesopotâmica era de que o

mundo tem uma essência ambígua, pois embora seja formado pelo corpo de Tiamat, é uma

obra benigna, pois foi criado por Marduk, que santificou a terra com templos e cidades. Se
25

extrapolarmos, é possível ver aí também uma explicação para a presença do bem e do mal no

mundo.

Afinal, o mundo se revela o resultado de uma “mistura” de “primordialidade”


caótica, e demoníaca, de um lado, e, do outro, de criatividade, presença e sabedoria
divinas. Essa talvez seja a fórmula cosmogonia mais complexa a que se chegou a
especulação mesopotâmica, pois reúne, numa audaciosa síntese, todas as estruturas
de uma sociedade divina, algumas das quais se tinham tornado incompreensíveis ou
inutilizáveis. (Eliade, 2010, p.80)

1.2.5 A CRIAÇÃO DO HOMEM

Após dividir o corpo de Tiamat e utilizá-lo para criar o mundo, Marduk

decide então matar Kingu, e a partir de seu sangue, dá-se a criação do homem, com o objetivo

de que sirvam aos deuses. Note-se que o homem foi criado não por Marduk, que apenas deu a

ideia, e sim por Ea.

Quando Marduque ouve a palavra dos deuses,


Seu coração (o) induz a realizar obras engenhosas,.
Abrindo a boca, dirige-se a Ea,
Para comunicar o plano dirige-se a Ea,
Para comunicar o plano que concebera em seu coração:
“Do sangue farei massa e com ela ossos formarei.
Comporei um selvagem, ‘homem’ será seu nome.
Na verdade, homem-selvagem eu criarei.
Ele será incumbido do serviço dos deuses
Para que estes possam ficar tranquilos!
[...] Quingu foi amarrado e trazido à presença de Ea.
Declararam-no culpado e abriram suas veias.
Com o sangue dele criaram a humanidade. (Eliade, 1995, p.82)

Da mesma forma que podemos dizer que a maldade (ou a natureza caótica)

no mundo explica-se com a formação deste a partir da substância de Tiamat, para os

mesopotâmicos, o mal é inerente ao homem, pois este surgiu a partir da substância maléfica

de Kingu. Mas segundo Eliade (2010, p. 80) há ainda uma esperança para a humanidade:

“Pode-se falar de um pessimismo trágico, pois o homem já parece condenado por sua própria
26

gênese. Sua única esperança é ter sido fabricado por Ea; ele possui portanto uma forma criada

por um grande deus.”

1.3 LITURGIA

O Enuma Elish deveria ser recitado durante o festival de Ano Novo, a maior

festividade da Babilônia antiga, e também a mais conhecida por nós atualmente. O Akitu,

como era chamado o festival, tinha duração de doze dias, e o poema épico de criação era

recitado durante o quarto dia.

Para Julye Bidmead19 (2004, p. 2), o ritual servia como uma ferramenta

política utilizada para garantir a supremacia não só do rei, mas também de Marduk como

divindade nacional, e da Babilônia como cidade principal.

O festival tinha início nos primeiros dias do mês de Nissanu (março e abril),

o que coincidia com o equinócio de primavera20 e também com a data da colheita de cevada,

um dos pontos principais da agricultura babilônica. Segundo Jane Mcintosh21 (2005, p.221), o

principal objetivo do Akitu era “inaugurar o Ano Novo quando os deuses não somente

reiniciavam o ciclo anual mas também recriavam o mundo.” Como divindade principal da

Babilônia e principalmente criador do universo, Marduk era o personagem central das

festividades.

19
Professora assistente de Estudos Religiosos na Universidade Chapman, nos EUA. Ensina as disciplinas Bíblia
Hebraica, arqueologia bíblica e estudos de gênero e é autora do livro The Akitu Festival: Religious Continuity
and Royal Legitimation in Mesopotamia
20
Na astronomia, equinócio é definido como o instante em que o Sol, em sua órbita aparente (como
vista da Terra), cruza o plano do equador celeste (a linha do equador terrestre projetada na esfera
celeste). Mais precisamente é o ponto no qual a eclíptica cruza o equador celeste.
21
Mestre em arqueologia e antropologia, doutora em arqueologia indiana pela Universidade de Cambridge. Já
publicou oito livros relacionados ao mundo antigo.
27

Na primeira fase do festival, representava-se o cativeiro de Marduk22 e sua

posterior libertação, o que para Eliade (2005, p. 81) significava “regressão do mundo ao caos

pré-cosmogônico”. Podemos compreender então que era necessário este retorno ao estado

anterior à criação para que o mundo pudesse então ser recriado. Eliade afirma ainda que a

expressão utilizada para o aprisionamento de Marduk, que se dizia estar preso na montanha,

indicava na verdade a morte da divindade que, após ressuscitar, reunia-se aos outros deuses

para determinar os destinos do mundo, assim como fez no poema de criação.

A recitação do Enuma Elish pelo sumo-sacerdote de Marduk se dava no

quarto dia do festival, e tinha objetivos teológicos - para reconectar os homens com a

divindade e reestabelecer a ordem natural - e políticos – para promover e reforçar a ideologia

da monarquia e da classe sacerdotal babilônica. (Bidmead, 2004, p.2)

22
A estátua de Marduk foi capturada pelos elamitas (Leick, 2007, p 349), o que representou o aprisionamento
da divindade em si. A recuperação posterior da mesma por Nabucodonosor I significou também a libertação do
deus.
28

2 O MITO DE CRIAÇÃO EM GÊNESIS 1

O mito judaico de criação do universo é conhecido por nós pelo nome

Gênesis, termo introduzido pela tradução grega da Bíblia, a Septuaginta. No idioma hebraico,

é conhecido como Bereshit, segundo as primeiras palavras do livro, “bere’shit bara’ ‘elohim’,

que traduzem-se como “No princípio, quando Deus criou”. Este nome é dado ao livro que

relata não só a cosmogonia de acordo com a religião judaica, mas também as primeira

histórias do povo hebreu, representando as origens do mundo e dos hebreus como o povo

escolhido por Iahweh.

O livro do Gênesis traz duas diferentes versões para o mito de criação. A

primeira versão, que é o objeto de nosso estudo, é apresentada em Gênesis 1.1 – 2.4a, e tem

como foco a origem do mundo e o papel do homem na terra, enquanto a segunda versão, em

Gênesis 2.4b – 3.24, busca explicar os motivos para sofrimento humano. (Krauss23; Küchler24,

2012, p. 17).

2.1 COMPOSIÇÃO

Até metade do século XVIII, acreditava-se que o autor do Gênesis – e dos

outros livros do Pentateuco – era realmente Moisés. Segundo Pontes (2010 p.78), isso se deu

porque “a partir da fase desta obra, que compreende o livro do Êxodo, tudo é marcado pela

figura de Moisés, ao qual é atribuído, entre outros papéis decisivos, o de promulgador de

23
Heinrich Krauss é PhD em direito, estudos jesuítas, filosofia, teologia, ciências administrativas e
escreveu diversas obras sobre a Bíblia e o Cristianismo.
24
Max Küchler estudou teologia, exegese e literatura judica antiga e história da Palestina e Israel na
Universidade de Freibourg. Junto com Heinrich Krauss escreveu a obra As origens: um estudo de
Gênesis 1-11.
29

todas as leis.” Mas, de acordo com Hamilton25 (1990, p.12) a partir de 1753, com o trabalho

de Jean Astruc26 começou-se a perceber que o livro de Gênesis (e os primeiros capítulos do

Êxodo) chamam o deus judaico por diferentes nomes – Iahweh (transliteração do tetragrama

YHWH) e Elohim (palavra que representa divindade ou divindades, atualmente é mais

utilizada com o significado de “o Eterno”). A partir de seus estudos, surgiu então uma teoria

chamada Hipótese Documental ou Teoria JEDP, desenvolvida por Julius Wellhausen27.

Esta teoria afirma que os livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e

Deuteronômio foram escritos não por Moisés, mas por quatro autores desconhecidos. Em seu

livro The Book of Genesis: Chapters 1-17, (1990, p. 14) Hamilton apresenta um útil resumo

sobre cada uma destas fontes:

1. The Yahwist (J) (850 B.C. – Wellhausen; 960-930 B.C. – post-Wellhausen


scholars), written anonymously in Judah during the reign of Solomon. This source
traces Israel’s history from its patriarcal beginnings to its preparation for entry into
Canaan; narratives from prepatriarchal times were added at some point. It may have
functioned as the national epic for the Davidic/Solomonic kingdon. “J” is the
symbol for this document, primarily because of its almost exclusive use of
“Yahweh.”
2. The Elohist (E) (850 B.C), also written anonymously in northern Israel,
shortly after the colapse of the United monarchy. It covers substantially the same
period of Israel’s history as J, but it starts with the patriarchs and not with creation.
Because it prefers the name “Elohim” for God, it is style the Elohist.
3. Deuteronomy (D), written at least by the Josianic reform (ca. 620 B.C.), but
perhaps as old as E, and originally from northern Israel, as was E. It is confined
obviously, as far as the Pentateuch is concerned, to Deuteronomy.
4. The Priestly Writer (P) (550-450 B.C), heavily concerned with chronological,
liturgial and genealogical matters. Wellhausen’s major innovation here was to shift
the Priestly code from the earlist document to the latest document, written someti-
me after the Babylonian exile. Unlike J and E, P is not concerned with presenting
history as such, but with establishing the basis of Israel’s sacral institutions through
their connection with history. Thus, the Creation story provides the reason for the
Sabbath’s institution (Gen. 1), and the covenant with Abraham (Gen. 17) establishes
the reason for circumcision. Today debate on P focuses on two issues: (1) Is it post-
D (JEDP) or is it pre-D (JEPD)? (2) Is P a source or a redaction?

25
Victor P. Hamilton foi professor de Bíblia e teologia na Universidade de Asbury por mais de 30
anos. Escreveu diversos livros sobre o Gênesis e o Pentateuco.
26
Jean Astruc (1684-1766) foi o primeiro estudioso a utilizar a crítica textual para analisar os livros do
Gênesis.
27
Julius Wellhausen (1844 – 1918) foi um estudioso alemão da Bíblia conhecido como um dos
principais estudiosos do Antigo Testamento. Sua principal obra, Prolegomena zur Geschichte Israels
sintetiza as visões da época sobre a autoria dos primeiros livros do AT, e apresenta a Hipótese
Documental.
30

Hamilton (1990, p. 15) nos mostra também quais são os fatores que levaram

a essa hipótese: (1) os diferentes nomes para o deus judaico; (2) a presença de histórias

duplicadas, mas contadas de maneira diferentes, como o mito de criação (Gn 1:1-2:4a; 2:4b-

24), o dilúvio, que mistura dois relatos (Gn 6-9) e o pacto com Abraão (Gn. 12:10s; 20;26) (3)

a presença de anacronismos que podem ser traçados para uma data posterior ao período de

Moisés, a exemplo das referências às origens de Abraão na cidade de Ur, como “Ur dos

Caldeus”, já que os “Caldeus” só aparecem na Mesopotâmia muito posteriormente ao período

patriarcal; (4) os variados estilos literários encontrados no livro de Gênesis, como o estilo

mais formal e repetitivo de P e as tendências antropomórficas em que J coloca Iahveh em

contato direto com os patriarcas, enquanto E apresenta esse contato através de intermediários

como sonhos e anjos.

Em relação à datação, Hamilton (1990, p.17) afirma que, segundo a teoria

de Wellhausen, mais tarde apoiada por Gunkel28, as fontes Javista e Elohista provavelmente já

existiam em forma de tradição oral, formadas a principio como narrativas menores entre 1800

e 1200 a.C, tornando-se mais complexas entre 1200 e 1000 a.C., “como parte de uma

afirmação litúrgica da fé em atos comunitários de adoração”, e por fim passando a tradição

escrita em 950 a.C para o Javista e 850 a.C. para o Eloísta. Já a escrita de P se deu após o

exílio babilônico, em 550 a.C ou posterior.

Falando especificamente sobre nosso objeto de estudo deste capítulo, o mito

de criação relatado em Gênesis 1, Smith29 (2009, p.41) afirma que a datação da fonte

sacerdotal (P) pode ser estimada a partir de outros livros bíblicos que fazem relação aos temas

tratados em Gênesis 1, como o Salmo 74, que faz referência à destruição de Jerusalém,

28
Hermann Gunkel (1862-1932) foi um estudioso alemão do Antigo Testamento que estudou
principalmente a tradição oral dos textos bíblicos. Foi o primeiro estudioso a sugerir a influência do
Enuma Elish no mito de criação hebraico.
29
Mark S. Smith é um professor de estudos bíblicos e de Antigo Oriente Próximo no Departamento de
Estudos Hebreus e Judaicos na Universidade de New York.
31

ocorrida em 586 a.C; Ezequiel 1:3, que se refere aos exilados, e Isaías 45, relacionado ao rei

babilônico Ciro, que concedeu a liberdade aos hebreus cativos na Babilônia.

Smith afirma que este é o único método encontrado para chegar a uma data

aproximada para a redação deste texto. “Unfortunately, it is hard to be more specific than this.

We do not know whether the composition was before the destruction of Jerusalem in 586

BCE, or during the Exile in Babylon (ca. 586-538 BCE), or in the following decades.” (2009,

p. 41)”

Para ele, a linguagem utilizada em Gênesis 1 deixa evidente que seu autor

foi um sacerdote importante na comunidade hebraica, que teve contato com as correntes de

pensamento sobre a criação do universo conhecidas durante o período, como o Enuma Elish e

a cosmogonia egípcia de Mênfis e o mito fenício descrito no trabalho de Filo de Biblos.

Whatever the precise reach and range of his knowledge, the author of Genesis 1 was
evidently a sophisticated priest. As a member of an importante group in ancient
Israel, this author belonged to a privileged class within the larger society. We may
suppose that this figure would have been a man and not a woman, since the
priesthood was na occupation only held by males in ancient Israel in this period. The
writer of Genesis 1 was also someone who shared the fate of Israel’s society living
in na oppressed “colonial” situation, perhaps under the Babylonian or Persian
empire. In sum, the author of Genesis 1 wrote as na elite figure in a colonized
society dominated by a foreign power. (Smith, 2009. p. 43)

2.2 ESTRUTURA DO MITO DE CRIAÇÃO

2.2.1 O PRINCÍPIO (Gn 1:1-2)

As primeiras palavras do livro de Gênesis, “No princípio, criou Deus o céu e

a terra,” certamente estão entre as mais conhecidas da Bíblia, e no idioma hebraico dão nome

ao livro. Mas mesmo que pareçam uma simples introdução à criação, essas palavras geraram

uma importante discussão: o que é este princípio a que o autor sacerdotal se refere? O mundo

foi criado a partir do nada, ou a matéria já existia antes da criação dos céus e da terra?
32

As traduções mais utilizadas da Bíblia dão a entender que Iahveh criou o

mundo a partir do nada, de acordo com o verso 2: “Ora, a terra estava vazia e vaga.” Mas para

Smith, (2009, p.50), o idioma hebraico utiliza os termos tohu wabohu, que contextualizados

com os versos seguintes sugerem não um vazio, mas águas profundas. Sendo assim, tais águas

primordiais já existiam antes da Criação. Esta ideia é corroborada por outros textos

contemporâneos encontrados na Bíblia, como o Salmo 74:13, que também citam as águas:

“Tu dividiste o mar com o teu poder, quebraste as cabeças dos monstros das águas.”

Nothingness” is not the Picture of the situation at the beginning. Unformed as the
world is, tohu wabohu (void and vacuum) is far from being nothingness or
connoting nothingness. Indeed, the context that immediately follows in verse 2
characterizes them as “waters” that form a “deep”, which sould seem to suggest a
universe filled with a great watery mass rather than nothingness. (SMITH, 2009, p.
50)

O autor afirma ainda que céu e terra também são pré-existentes à Criação,

mais uma vez de acordo com outros trechos contemporâneos como Amós 9:6. “Aquele que

constrói nos céus suas altas moradas e funda na terra a sua abóbada.”

Este pensamento é compartilhado por Krauss e Küchler (2012, p. 21), que

afirmam:

Deserta e caótica” é a tradução da nossa estranha palavra proveniente do hebraico


tohuwabohu. Significa também “inóspita e vazia”, portanto inabitável e inimiga da
vida. “Trevas” desperta associações com algo que provoca medo e inquietude. As
águas primordiais (ou em outras traduções: profundeza/abismo) aparecem
ameaçadoramente, com sua imensa extensão, a qual, devido à falta de limites, perde-
se de vista e, por isso, torna-se angustiante.

Da mesma forma, Bottéro (1993, p.200), diz que tais águas representam o

caos primordial, que será ordenado pela criação. “O ponto de partida não é mais a terra

deserta que tem de ser fertilizada, mas um enorme Caos a ser posto em ordem e, em seguida, a

ser preenchido. E esse Caos é feito, não de terra, mas de água.”


33

A ideia de criação a partir de elementos pré-existentes, particularmente as

águas primordiais, não é incomum ao Antigo Oriente Próximo. Outros mitos de criação, como

o Enuma Elish, também consideram a existência de tais elementos em seus textos.

Smith diz então que, de acordo com a gramática hebraica, a melhor leitura

do texto seria “quando Deus começou a criar,” o que significa uma existência de matéria

anterior à Criação.

The first three words of Genesis, bere’shit bara’ ‘elohim, are not a simple frase, and
the sense grammatically speaking is not “In the beggining, God created.” These
words really mean something like “when at first God created,” or “in the beggining
of when God created,” or less literally, “when God began to create.” (...) The New
Jewish Publication Society (NJPS) translation is similar: “When God began to create
heaven and Earth.

Segundo ele, isso afeta nosso entendimento dos versos 2 e 3, que agora não

são mais independentes do verso 1, mas condicionais para a criação. Além da gramática,

Smith tem outros motivos para acreditar que esta é a tradução mais acertada: a similaridade

com o Enuma Elish, que também abre seu texto com formas gramaticais condicionadas, e o

fato de que a primeira criação de Iahveh, a luz, só acontece no verso 3.

I personally think that this exegeses is really beyond dispute; first, because it is
supported by gramar and syntax; second, because other creation narratives similarly
open with temporal or circumstantial clauses; and third because the first of God’s
creative injunctions does not come until v.3. (Sasson, apud SMITH, 2009, p. 45).

2.2.3 O PRIMEIRO DIA E A LUZ, A PRIMEIRA CRIAÇÃO (Gn 1:3-5)

No verso 3, somos apresentados ao modelo de criação utilizado por Iahveh:

através da palavra. “Deus disse: ‘Haja luz. E houve luz.’” Para Krauss e Küchler, este verso

tem dois objetivos: (1) fazer uma analogia com o poder de um rei soberano, que realiza seus

desejos apenas expressando-os e (2) estabelecer a luz como uma criatura divina, para que não

seja relacionada às divindades solares de outros mitos.


34

A afirmação “E houve luz” faz da luz uma criatura de Deus, provavelmente para não
relacionar a origem da luz com o sol, considerado no Egito como a mais alta das
divindades. Por exemplo, no famoso hino solar de Akhenaton, o deus Sol é que
provoca o brilho da luz quando ele se levanta sobre o oceano primordial. (Krauss,
Küchler, 2012, p. 25).

Apesar disso, este é o único momento no qual a criação é realizada pelo

poder da palavra. Tudo o mais é criado pela conjunção da ordem divina com o ato criativo.

Nos versos 4 e 5, após a criação da luz, Iahveh realiza três importantes

ações que se repetirão nos dias subsequentes: a avaliação, a separação e a nomeação. “Deus

viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas

‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã: primeiro dia.”

Para Krauss e Küchler (2012, p. 25), a palavra “boa” não tem conotação

moralista, e sim de avaliação de resultado. “Antes, significa tanto ‘salutar, propícia’, como

também ‘bela’. O vocabulário é tomado emprestado do artesão que avalia seu trabalho ou o

expõe à apreciação de outros.”

Neste ponto, podemos notar que Iahveh avalia a luz como boa, mas não se

expressa em relação às trevas, que embora vistas como sua criação, não simbolizam a

salvação (Westermann30, 2004, p.8)

O ato de separar, que se repete diversas vezes durante a criação, tem o

sentido de dar ordem ao caos, mas para A. Kapelrud (apud Hamilton, 1990, p.17) também

pode estar relacionado à necessidade de distinguir a religião de Israel dos mitos babilônicos,

que na verdade é o objetivo de todo o poema de criação de Gênesis 1.

Beginning with the idea that this story was composed for the sake of exiled Judeans
who were in jeopardy of compromising their faith, Kapelrud makes the point that the
proliferation of “separate” in Gen. 1 functions as a subtle exhortation to the exiles to
separate themselves from every possibility of contamination with pagans.

30
Claus Westermann (1909-2002) é um acadêmico alemão considerado como um dos maiores especialistas no
Antigo testamento.
35

Já a nomeação, assim como a criação pela palavra, é uma demonstração do

poder soberano de Iahveh, segundo Krauss e Küchler (2012, p.26). “Com isso se demonstra

que tanto a luminosidade do dia quanto a escuridão da noite estão submissas a Deus.”

É interessante notar também que a noção de tempo é gerada pela separação

de dia e noite é anterior à criação do sol, que só surge no quarto dia. Para Hamilton (1990, p.

120), a denominação da luz como dia e das trevas como noite representa que o tempo é a

primeira criação Iahveh. “God’s first creation is time (vv.3-5). His second creation is space

(vv.6-10). Can it be without significance that this Creation story commences in the context of

time and concludes (2:1-3) with a return to that category, a day of rest?”

2.2.4 SEGUNDO DIA (Gn 1:6-8)

No segundo dia de criação, Iahveh cria o firmamento, em Gênesis 1:6-8:

“Deus disse: haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das águas, e

assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das

águas que estão acima do firmamento.”

A Bíblia de Jerusalém (2010, p.33), em nota de rodapé referente a este

verso, explica que:

À criação pela palavra, “Deus disse”, acrescenta-se a criação pelo ato, “Deus fez” o
firmamento, os astros (v.16), os animais terrestres (v.25), o homem (v.26). O autor
sacerdotal integra assim à sua concepção mais espiritual da criação uma tradição
antiga, paralela à da segunda narração (2,4b-25), em que Deus “fez” o céu e a terra,
o homem e os animais.

A criação do firmamento segue o conceito que se tinha do mundo no Antigo

Oriente Próximo, segundo o qual a terra era cercada por águas acima e abaixo, separadas por

uma cúpula metálica.


36

Tal imagem do mundo pode ser apresentada como segue: tanto por cima quanto por
baixo, a terra habitável para os humanos estava rodeada de água, a qual, na parte de
cima, estava contida pelo céu, que parecia ao olho como uma abóboda (...) na qual
estavam fixos também os corpos celestes, devia ser estável o bastante a fim de
conter a inundação que havia lá em cima. Na abóboda, havia comportas para as
águas, que chegavam à terra normalmente em forma de chuva ou, em tempos
especiais, como mais tarde na história do dilúvio, causavam a inundação da terra
(Gn 7,11). Sob a terra, encontrava-se o mundo inferior, o reino dos mortos; ao
mesmo tempo, porém, as águas do abismo, que alcançavam a superfície por meio
das fontes, a fim de nos rios, voltarem para o mar. (Krauss e Küchler, 2012, p. 28)

Tal visão cosmogônica pode ser visualizada na seguinte imagem,

apresentada na Bíblia da Editora Vozes (2005, p.24):

Figura 4: Concepção hebraica do mundo (Disponível em Bíblia, 2005, p.24)

2.2.5 TERCEIRO DIA (Gn 1:9-13)

No verso 9 vemos mais uma sequência de comando, ação, avaliação e, pela

última vez, denominação. “Deus disse: ‘Que as águas que estão sob o céu se reúnam num só
37

lugar e que apareça o continente’, e assim se fez. Deus chamou ao continente ‘terra’ e à massa

das águas ‘mares’, e Deus viu que isso era bom.”

Novamente, temos aqui uma amostra de elemento anterior à criação, já que

a ordem para a aparição do continente, ou segundo outras traduções, o seco, supõe-se que a

terra já existia e estava misturada com a água. O que houve então foi a separação dos dois

elementos, como diz a nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém (2010, p.34): “O texto hebraico

tem um sentido: as águas não ocuparão mais toda a superfície, elas terão seu lugar próprio e

delimitado. Que a terra tenha já tenha estado lá e não tenha de ser libertada faz parte da

descrição do caos e, pois, da tradição recebida.”

Este foi o último ato de nomeação, e tudo que será criado a partir daí será

nomeado pelo homem. Para Westermann (2004, p.7), isto demonstra o domínio de Iahveh

sobre o tempo e o espaço. “By associating acts of naming with these three separations, P

establishes that the fundamental organization of time and espace is defined andestablished by

God. Human beings cannot change it.”

Ainda no segundo dia, há também a criação da vegetação, no verso 11:

“Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura: ervas que deem semente e árvores frutíferas que

deem sobre a terra, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente’, e assim se fez.”

Aqui, a produção espontânea da natureza, a partir de um comando do

criador, é vista por alguns estudiosos como um reflexo do antigo mito de mãe terra ou mãe

natureza. Para Westermann (2004, p.9), isso mostra que a criação sobrenatural e a geração

natural podem coexistir. “When God commands the Earth to bring forth plants, we hear

echoes of the ancient notion of Mother Earth. P is saying here that creation and generation are

not mutually exclusive.”

Já Krauss e Küchler (2012, p. 31), concordam com esta representação do

antigo mito, mas afirmam que a divindade da natureza é refutada pelo comando divino.
38

Contudo, a divindade da terra é expressamente negada pela afirmação de que ela só


se torna frutífera mediante uma ordem de Deus. Na mundividência antigo-oriental,
as plantas não eram consideradas seres vivos autônomos, mas parte da terra,
semelhante aos pelos do corpo.

Neste verso, também vemos novamente o ato de separação, quando é ordenado que as plantas

gerassem sementes segundo sua espécie. E pela segunda vez, há o ato de avaliação,

caracterizando duas criações no mesmo dia, ao contrário dos dias anteriores.

2.2.6 QUARTO DIA (Gn 1:14-19)

Neste dia, dá-se a criação do sol, da lua e das estrelas, cada um com uma

função específica.

Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite;
que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que
sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra”, e assim se fez. Deus fez
dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro como
poder da noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a
terra, para comandar o dia e a noite, para separar a luz e as trevas, e Deus viu que
isso era bom. Houve uma tarde e manhã: quarto dia.

Podemos notar que o sol e a luz não são nomeados, sendo chamados apenas

de luzeiros. Há um consenso entre os estudiosos que o motivo para tal era não diviniza-los,

para que sejam vistos como apenas mais uma criação divina, como diz a Bíblia de Jerusalém

(2010, p. 34).

Os nomes são omitidos propositalmente: o Sol e a Lua, divinizados por todos os

povos vizinhos, aqui são simples luzeiros que iluminam a terra e fixam o calendário.

A divinização dos astros era tão tentadora que o autor deve ainda lhes reconhecer

um papel de “poder” (v. 16), podendo “comandar” (v.18) o que faz parte também

das representações tradicionais.


39

Para Krauss e Küchler (2012, p. 32) essa desmistificação ocorre também

quando são atribuídas funções específicas a estas criações, que devem obedecer aos desígnios

divinos. Westermann (2004, p.10) vai ainda mais além, e afirma que por este motivo a criação

dos astros se deu antes da criação dos animais, para que os homens vejam-nos como apenas

mais uma criatura.

2.2.6 QUINTO DIA (Gn 1:20-23)

Só após preparar o ambiente Iahveh introduz os primeiros seres vivos, aqui

separados em animais da água e do ar.

Deus disse: “Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem
acima da terra, sob o firmamento do céu”, e assim se fez. Deus criou as grandes
serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas
segundo sua espécie, e as aves aladas segundo sua espécie, e Deus viu que isso era
bom. Deus os abençoou e disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei as águas
dos mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra.”

Segundo Krauss e Küchler (2012, p.37), o ato de respirar era para os antigos

o equivalente a viver, e por isso os animais são os primeiros seres vivos, e não as plantas,

criadas no dia anterior.

Para Westermann (2009, p. 10), isso se deve porque Iahveh introduz aqui

um novo ato, a benção divina, que é o que confere a vida. Ele afirma também que as palavras

“sede fecundos, multiplicai-vos” não são um comando, mas sim o que dá aos animais a

habilidade de reprodução. Este pensamento é compartilhado por Krauss e Küchler (2012,

p.38), que afirmam:


40

A segunda palavra desse dia traz algo novo, uma bênção divina. Não é nenhuma
ordem, mas, antes, a atribuição de uma aptidão especial, a saber, a capacidade da
transmissão da vida. Significa a concessão de uma força especial para a fertilidade e
para a reprodução. Diferentemente da renovação das plantas por meio de suas
sementes, essa bênção põe em movimento uma dinâmica própria para a transmissão
da vida, a saber, a reprodução mediante a procriação e o nascimento.

2.2.7 SEXTO DIA (Gn 1:24-31)

No último dia de sua obra, Iahveh cria os seres terrestres, animais em

primeiro lugar, e homens, que tem uma criação mais detalhada. Diferente dos outros, este dia

não se encerra ao fim das criações, mas após uma série de regras e atribuições dadas ao

homem.

Deus disse: “Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais
domésticos, répteis e feras segundo sua espécie”, e assim se fez. Deus fez as feras
segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis
do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom. (Gn 1:24-25)

Com a ordem para que a terra produza os seres vivos, lembramos do retorno

ao mito da terra criadora, mas novamente, este poder só é possível através do comando

divino, que é seguido pela expressão “e assim se fez.”

Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que
eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas
as feras e todos os répteis que rastejem sobre a terra.” Deus criou o homem à sua
imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou. Deus os
abençoou e lhes disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a;
dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam
sobre a terra.” Deus disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão
sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente:
isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo o que
rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento dtoda a verdura
das plantas,” e assim se fez. Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. Houve
uma tarde e uma manhã: sexto dia. (Gn 1:25-31)
41

A criação do homem começa com o plural “Façamos”. Segundo a Bíblia de

Jerusalém (2010, p.34), a tradução da grega do texto compreende isso como uma deliberação

de Iahveh com sua corte de anjos, que posteriormente foi interpretada como uma sugestão ou

até mesmo evidência para a Trindade divina.

Em relação à semelhança do homem para com seu criador, Krauss e Küchler

(2012, p. 42) compreendem não como representação da imagem divina, mas representa a

atribuição da função do homem perante a criação. “Ela indica a posição do ser humano como

representante de Deus, o qual, em seu ambiente vital, deve comportar-se em relação à terra e

aos animais de acordo com a imagem de Deus.”

Isso vai de acordo com o papel que é atribuído ao homem, de dominar sobre

toda a criação. Para Krauss e Küchler (2012, p.43), isso é visto como uma oposição à visão

mesopotâmica, na qual o homem foi criado para servir aos deuses. Westermann (2009, p.11)

concorda, mas afirma que esta dominação não tem o sentido de exploração, mas de

responsabilidade sobre a criação. “According to the ancient view, however, there is no

suggestion of exploitation; on the contratry, the king is personally responsible for the well-

being and prosperity of those he rules. (...) This is what is meant here by humanity’s rule over

the rest of the creation.”.


42

3 OS MITOS COMPARADOS

O contato do povo de Israel com a cultura babilônica não se deu apenas nos

anos do cativeiro babilônico, entre 598 e 538 a.C.

São os próprios hebreus que traçam suas origens até a Mesopotâmia, na

cidade de “Ur dos caldeus”, de onde vem Abraão, seu patriarca. Essas raízes influenciaram

sua língua, leis, e também sua religião.

Apesar disso, tal período é considerado o de maior contato entre as duas

nações, quando Israel pôde absorver diretamente a cultura da Babilônia, como informa

Bottéro.

Não podemos deixar de pensar que a cosmogonia mesopotâmica, pouco ou mal


conhecida em Israel antes do exílio – pelo menos a julgar por nossos documentos –
foi, ou conhecida pela primeira vez, ou muito mais estimada e, em certa medida,
adotada por seus pensadores, quando se puseram em contato imediato com ela, na
própria Mesopotâmia. (BOTTÉRO, 1993, p. 207).

Acredita-se que, após o supracitado cativeiro, os sacerdotes israelitas viram

a necessidade de preservar sua identidade, através de uma releitura da sua história. Isso levou

a redação do mito de criação encontrado em Gênesis 1.1-2.4a, que apresenta um foco

diferente do texto de criação em Gênesis 2.4b e que foi redigido quase cinco séculos antes.

3.1 HISTORIOGRAFIA

Foi Hermann Gunkel 31 quem primeiro sugeriu uma interação entre os mitos

de criação babilônico e judaico, eu sua já clássica obra “Creation and Chaos In The Primeval

31
Hermann Gunkel (1862-1932) foi um historiador das religiões alemão que desenvolveu o método de crítica
bíblica conhecido como crítica das formas. Especializado na história de Israel, publicou importantes obras na
43

Era and The Eschaton”, escrita ainda em 1895, pouco após a primeira tradução das tabuletas

babilônicas por George Smith.

Gunkel descobriu uma série de paralelos entre os dois textos, e afirmou que

o através do Enuma Elish, a tradição babilônica moldou a percepção dos hebreus sobre a

figura divina e sua visão cosmogônica.

It has certainly been apparent from Genesis 1 that this narrative is simply the Jewish
adaptation of a much older thing, which originally must have been more
mythological. Some echos suggest a polytheistic origin. One feature points to astral
religion. [...] The Palestinian climate and the ancient Hebrew beginning of the year
also speak against a local Israelite origin for the narrative. On the other hand,
climate, the beggining of the year, and the lingering astral religion point to a
Babyloian background. (GUNKEL, 2006, p. 78).

A tese de Gunkel se tornou amplamente conhecida na comunidade

acadêmica e é aceita até os dias atuais, sendo estudada por diversos historiadores, como Jean

Bottéro que, em relação ao primeiro capítulo do Gênesis, diz:

Mas a cosmologia imaginada pelo ordenamento das áreas do universo é, em suas


linhas essenciais, idêntica à que fora imaginada pelos sábios da Mesopotâmia, bem
antes que Israel existisse e começasse a pensar e a escrever. E, muito especialmente,
o primeiro ato da criação do mundo traduz exatamente a mitologia das origens tal
como a encontramos elaborada na famosa “Epopéia babilônica da criação”, a Enûma
Elish. (BOTTERO, 1993, p. 205).

área como Die israelitische Literatur (A literatura de Israel), Die Urgeschichte und die Patriarchen (História
Antiga e os Patriarcas) e outros voltados para a Bíblia como The Legends of Genesis e Israel and Babylon: The
Babylonian Influence on Israelite Religion
44

3.2 ANÁLISE COMPARATIVA

A versão do Gênesis utilizada para esta comparação foi a da Bíblia de

Jerusalém (Editora Paulus, 2010). Já os trechos do Enuma Elish foram retirados do livro

Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, editado por James B. Pritchard32.

3.2.1 O UNIVERSO ANTERIOR À CRIAÇÃO

Gênesis

No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas
cobriam o abismo, e um sopro de Deus agitava a superfície das águas. (Gn 1.1-2).

Enuma Elish

When on high the heaven had not been named, Firm ground blow had not been
called by name, Naught but primordial Apsu, their begetter, (And) Mummu-tiamat,
she who bore them all, Their waters commingling as a single body; No reed hut had
been matted, no marsh land had appeared, When no gods whatever had been brought
into being, Uncalled by name, their destinies undermined – Then it was that the gods
were formed within them. (ENUMA ELISH, Tábua I, linhas 1-8)

Ambos os textos mostram que, antes da criação do mundo como o

conhecemos algo já existia, embora tomado pelo caos.

A Bíblia de Jerusalém, em nota de rodapé referente ao verso 1, diz que há

duas possíveis traduções para o trecho “No principio, Deus criou o céu e a terra”, sendo uma

delas “quando Deus começou a criar”, tradução essa apoiada por Mark Smith, que afirma que

32
James Bennett Pritchard (1909 – 1997) foi um arqueólogo americano cujo trabalho explicou as inter-relações
entre o antigo Israel, Canaã, Egito, Assíria e Babilônia. Sua maior obra é o livro Ancient Near Eastern Texts
Relating to the Old Testament (universalmente conhecido como ANET), que trouxe as mais confiáveis
traduções de textos relacionados ao Antigo Oriente Próximo em relação com a Bíblia Hebraica.
45

o mais correto gramaticalmente seria “No princípio, quando Deus começou a criar, a terra

estava vaga e vazia”, mostrando a existência de matéria anterior à Criação.

Da mesma forma, as palavras “vaga e vazia”, no original tohu wabohu não

representam o nada, e sim as águas primordiais, também de acordo com nota de rodapé da

Bíblia de Jerusalém (2010, p.33). “Em hebraico, ‘tohû e bohû’ expressão que se tornou

proverbial para toda falta de ordem, sobretudo quando considerável. (...) Este versículo

descrever a situação de caos que precede a criação.”

No poema babilônico há evidências mais claras de matéria anterior à

criação, embora apenas na forma das águas primordiais, já que “o junco ainda não havia sido

traçado, e terras pantanosas não haviam aparecido” (No reed hut had been matted, no marsh

land had appeared). Tais águas primordiais também estão presentes no mito judaico, e é

interessante notar que não há menção de que foram criadas por Iahveh. O texto diz apenas que

“um sopro de Deus agitava a superfície das águas.”

Na verdade, o confronto com as águas primordiais é o elemento central de

ambos os mitos de criação, pois representam o caos que deve ser dominado para dar lugar a

ordem e consequentemente, tudo o que existe.

O ponto de partida não é mais a terra deserta que tem de ser fertilizada, mas um
enorme Caos a ser posto em ordem e, em seguida, a ser preenchido. E esse Caos é
feito não de terra, mas de água. (...) Quando surge a Luz (Gênesis 1,3 e seg.),
condição indispensável a qualquer ordenamento, tudo vai sair desse Abismo, dessa
mistura primordial das águas. (BOTTÉRO, 1993, p.200).

Este conceito é comprovado em outros textos bíblicos contemporâneos ao

Gênesis 1, como o Salmo 89, que declara mais claramente a supremacia de Iahveh sobre o

caos aquoso. “És tu que dominas o orgulho do mar, quando suas ondas se elevam, tu as

amansas; esmagaste raab como um cadáver, dispersaste teus inimigos com teu braço
46

poderoso.” Para Bottéro, fica então evidente então a ligação entre as águas do Gênesis e o

monstro marinho representado Tiamat no mito babilônico.

Evidentemente, esses textos colocam nas origens do universo uma luta formidável
entre o Criador e a gigantesca força da massa das águas, do grande Abismo. Este
parece incorporado num monstro enorme, que tem diversos nomes misteriosos:
Raab, Leviatã, o Dragão (Tannîm), a Serpente tortuosa. (BOTTÉRO, 1993, p. 203).

Através de uma análise etimológica, Jacobsen33 concorda que, no Enuma

Elish, Tiamat é a representação do mar, vencido posteriormente por Marduk.

In the case of Tiamat there can hardly be any question; her ultimate identity as a
personification of the sea and its powers can not be in doubt. The name Tiamat is the
common word for sea in Akkadian, ti'amtum, later tamtum. (...)That she is, in
fact, the sea can be seen from the opening lines of the epic where it is said that
she and the sweet waters, Apsuf, mingled their waters together, and from the
fact that some copyists of Enuma elish write toamtum, the normal form of the
word for "sea," for Tiamat. This would hardly have been possible if her identity
with the sea had not been clearly felt by the copyist and his readers (JACOBSEN,
1968, p. 105)

Outro elemento que também está presente no momento anterior à criação do

mundo é a escuridão, ou trevas. Esta só é “conquistada” com a primeira criação de Iahveh: a

luz, enquanto no Enuma Elish, a luz não é citada como criação independente, já que para os

babilônicos, ao contrário dos hebreus, esta provém diretamente do sol, e surge quando este é

criado.

33
Thorkild Jacobsen (1904-1993) foi um renomado assiriólogo, com cadeiras nas universidades de Chicago,
onde recebeu seu PhD, e Harvard.
47

3.2.2 A CRIAÇÃO

3.2.2.1 A LUZ E OS ASTROS

Deus disse: “Haja luz”, e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus

separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz “dia” e às trevas “noite.” Houve uma tarde e uma

manhã: primeiro dia. (Gn 1.3-5)

Com a luz, tem início a criação do mundo pelas determinações de Iahveh. O

motivo de sua criação ser independente do sol é para que não haja relação com outras

divindades solares. Sua criação também é acompanhada do primeiro ato ordenativo, que é a

nomeação. Neste caso, não só a luz recebe seu nome, mas também as trevas, que passam a ser

chamadas de “noite.” Neste ponto, notamos também que a separação de dia e noite não é

relacionada aos astros, já que estes só são trazidos à existência no quarto dia de criação, e que

recebem também a atribuição de comandar o dia e a noite, que não foram criados, mas

surgiram com a criação da luz, que dividiu as trevas.

Deus disse: “Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite;
que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e os anos; que
sejam luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra,” e assim se fez. Deus fez
os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro
como poder da noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para
iluminar a terra, para comandar o dia e a noite, para separar a luz e as trevas, e Deus
viu que isso era bom. (Gn 1.14-18)

O Enuma Elish não cita especificamente a criação do sol, que é citado

apenas como referência na criação da lua, e esta sim tem o objetivo de marcar a passagem dos

dias e meses. Segundo Arana, o sol (Shamash) e a lua (Sin), eram considerados divindades

importantes para os mesopotâmicos: “Se aos astros se presta culto na Mesopotâmia como a

deuses, era antes de tudo, porque deles se recebia o milagre da luz.” “Se de todas as criaturas
48

de Deus, as únicas que em todo o Oriente Médio antigo eram divindades, e divindades de

máxima categoria, eram o sol e a luz”. (ARANA, apud Pontes, 2010, p. 65).

É interessante notar que apenas a lua recebeu menção de sua criação e

atribuição, entendendo-se então que seu culto era mais importante que o do sol, que recebeu

papel apenas auxiliar.

The Moon he caused to shine, the night (to him) entrusting. He appointed him a
creature of the night to signify the days: “Montly, without form designs with a
crown. At the month’s very start, rising over the land, Thou shalt have luminous
horns to signify six days, On the seventh day reaching a [half]-crown. At full moon
stand in opposition in mid-month. When the sun [overtakes] thee at the base of
heaven, Diminish [thy crown] and retrogress in light. At the time [of disappearance]
approach thou the course of the sun, And [on the thirtieth thou shalt again stand in
opposition to the sun.” (Tábua V, linhas 12-24)

3.2.2.2 O FIRMAMENTO

No poema babilônico de criação, o firmamento e a terra são as primeiras

obras de Marduk. São feitos a partir do corpo de Tiamat, que é dividido por Marduk. A

primeira metade tornou-se o céu, colocado acima para impedir que as águas primordiais de

Tiamat caíssem sobre o mundo. Já a segunda metade deu origem à terra, que não é citada no

texto.

Then the lord pause to view her dead body, That he might divide the monster and do
artful Works. He Split her like a shellfish into two parts: half of her te set up and
ceiled it as sky, Pulled down the bar and posted guards. He bade them to allow not
her waters to escape. (Tábua IV, linhas 135-140)

É possível ver aí a concepção que os povos do antigo oriente próximo tinha

do mundo, com o firmamento acima resguardando a terra das chuvas torrenciais (ver figura

3). Esta visão é também é compartilhada pelos hebreus, que vão mais além e estabelecem

também a criação da terra e dos mares.


49

Deus disse: “Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das
águas”, e assim se fez. Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o
firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou ao
firmamento “céu”. Houve uma tarde e uma manhã: segundo dia. Deus disse: “Que
as águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar e que apareça o continente”, e
assim se fez. Deus chamou ao continente terra e a massa das águas mares, e Deus
viu que isso era bom. (Gn 1.6-10)

Ao contrário do Enuma Elish, onde a criação se dá como consequência da

batalha entre Marduk e Tiamat, o Gênesis apresenta a criação como um ato trazido apenas

pela palavra de Iahveh, buscando mostrar a superioridade de sua divindade, já que esta não

precisa se esforçar para atingir seus objetivos: para isso, sua ordem é suficiente.

Embora o Gênesis também narre o surgimento da terra e dos mares, estes

não são consideramos como criação, já que o texto diz apenas que estes surgiram com a

reunião das águas pré-existentes em um só local.

3.2.2.3 O HOMEM

O Enuma Elish apresenta o homem como criado a partir do sangue de

Kingu, com o objetivo de assumir as tarefas dos deuses, para que estes possam então

descansar. A utilização do sangue de um deus maligno na criação do homem é uma tentativa

de explica a presença do mal na personalidade humana. A execução de Kingu também se dá

como punição pela sua atuação ao lado de Tiamat contra as outras divindades do panteão.

Nota-se aqui que Kingu recebe toda a culpa pelos atos de Tiamat, sendo acusado de

corromper Tiamat.

They bound him, holding him before Ea. They imposed on him his guilt and severed

his blood (vessels). Out of his blood they fashioned mankind. He imposed the

service and let free the gods. After Ea, the wise, had created mankind, Had imposed
50

upon it the service of the gods— That work was beyond comprehension; As artfully

planned by Marduk, did Nudimmud create it— (Tábua VI, linhas 31-38)

No texto hebraico, o homem é feito não com o objetivo de aliviar o fardo

dos deuses, mas para dominar sobre toda a criação. Aqui, a maldade humana não é inerente à

sua criação, já que para os hebreus sua divindade não poderia criar algo maligno: tudo que

Iahveh cria recebe sua posterior avaliação, e o mesmo se dá com o homem.

Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que
eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas
as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra”. Deus os abençoou e lhes
disse: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a: dominai sobre os
peixe s do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra.” Deus
disse: “Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que es tão sobre toda a superfície
da terra, e todas as árvores que dão frutos que dão semente: isso será vosso alimento.
A todas as feras, as todas as aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é
animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas”, e assim se fez.
Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom. (Gn. 1.26-31)

A intencional superioridade de Iahveh também fica clara, já que no Gênesis

ele é o único responsável por toda a criação, ao contrário do Enuma Elish, onde a criação do

homem é creditada não só a Marduk, responsável pela ideia do homem, mas também a Ea,

que executou a criação.

When Marduk hears the words of the gods, His heart prompts (him) to fashion artful
works. Opening his mouth, he addresses Ea To impart the plan he had conceived in
his heart: "Blood I will mass and cause bones to be. I will establish a savage, 'man'
shall be his name. Verily, savage-man I will create. He shall be charged with the
service of the gods That they might be at ease! [...] Ea answered him, speaking a
word to him, Giving him another plan for the relief of the gods: "Let but one of their
brothers be handed over; He alone shall perish that mankind may be fashioned. Let
the great gods be here in Assembly, Let the guilty be handed over that they may
endure." Marduk summoned the great gods to Assembly; Presiding graciously, he
issues instructions. To his utterance the gods pay heed. The king addresses a word to
the Anunnaki: "If your former statement was true, Do (now) the truth on oath by me
declare! Who was it that contrived the uprising, And made Tiamat rebel, and joined
battle? Let him be handed over who contrived the uprising. His guilt I will make him
bear. You shall dwell in peace P' The Igigi, the great gods, replied to him, To
Lugaldimmerankia, counselor of the gods, their lord: "It was Kingu who contrived
the uprising, And made Tiamat rebel, and joined batdei." (Tábua VI linhas 1-30)
51

CONCLUSÃO

Com sua recém-adquirida liberdade da Babilônia, Israel viu a necessidade de

reestabelecer sua identidade como um povo distinto e, principalmente, com uma crença religiosa

distinta de seus captores. O primeiro passo para isso foi caracterizar sua divindade, distinguindo-a do

panteão politeísta babilônico, através alguns fatores:

Monoteísmo: logo em seu primeiro verso, “No princípio, Deus criou o céu e a

terra” o Gênesis 1 institui a noção de uma divindade única. Este simples verso estabelece que existe

apenas um deus, citado no singular, e que este foi responsável pela criação de tudo o que há. Esta

noção é reforçada posteriormente na criação dos astros, que recebem o status de criatura divina,

distinguindo-os da concepção babilônica de que sol e lua representam divindades específicas. Da

mesma forma, enquanto no Enuma Elish céu e terra são criados como resultado de uma batalha entre

duas divindades, tal combate – embora existente no Gênesis da mesma forma, contra as águas

primordiais – não acontece entre Iahveh e uma outra divindade. As águas primordiais confrontadas por

este não representam um deus, apenas o conceito de caos que, de acordo com outros textos bíblicos

correlacionados, como o Salmo 89 e Isaías 51:9, apresentam a forma de um monstro marinho.

Igualmente, Iahveh é estabelecido como o único criador, enquanto no Enuma Elish Marduk é

acompanhado em sua obra criativa por seu pai, Ea.

Superioridade divina: o autor do Gênesis apresenta Iahveh como uma divindade de

poder superior ao de seu correlato, Marduk. Ao contrário deste, que realiza suas obras através do

esforço combativo, Iahveh efetua suas ações utilizando-se apenas da palavra, que não necessitam de

esforço algum. Ainda, Marduk enfrenta um ser de status semelhante, divino, enquanto Iahveh

confronta uma criatura, em um embate que não apresenta dificuldades.

Superioridade humana: de acordo com o texto do Enuma Elish, o homem foi

criado por Ea, segundo as determinações de Marduk, para aliviar o fardo dos deuses, assumindo suas

tarefas. Ou seja, a cultura babilônica afirmava que os homens foram concebidos para serem servos de
52

suas divindades. O mesmo não acontece na cosmogonia judaica, que apresenta o homem como

destinado a dominar sob a criação, e não ele mesmo ser dominado. Outro aspecto da superioridade

humana segundo a visão cosmogônica de Israel é que o homem feito por Iahveh é completamente puro

e sua maldade tem origem externa, enquanto no épico de criação babilônico tal qualidade é inerente ao

homem, já que este foi feito a partir do sangue de Kingu, uma divindade maligna.

Desta forma, podemos dizer que a supracitada influência ou justaposição do Enuma

Elish na cosmovisão do povo de Israel foi um dos meios encontrados para reafirmação não só de sua

identidade, mas também de sua autoestima como povo – necessária após tal separação de sua pátria e

cultura.
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