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A esfera de Riemann

SMA-Funções de uma variável complexa

ICMC-USP
Verão de 2022

December 23, 2021

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A esfera de Riemann
Consideremos um elemento ∞ 6∈ C.
O conjunto C̄ = C ∪ {∞} é chamado de esfera de Riemann.
Os pontos de C são chamados de pontos finitos.
Um subconjunto V ⊂ C̄ é uma vizinhança de ∞ se ∞ ∈ V e existe r > 0
tal que C \ Dr (0) ⊂ V .
É fácil ver que
Uma união qualquer de vizinhanças de ∞ é uma vizinhança de ∞;
Uma interseção finita de vizinhanças de ∞ é uma vizinhança de ∞;
Para quaisquer z0 ∈ C e r ≥ 0, C̄ é uma vizinhança de ∞.
Além disso,
\ \
(C̄ \ Dr (z0 )) = (C̄ \ Dn (z0 )) = {∞}.
r ≥0 n∈N

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Um subconjunto A ⊂ C̄ é aberto se A é uma vizinhança de todos os
seus pontos;
Uma sequência {an }n≥1 em C̄ converge para a ∈ C̄ se para toda
vizinhança V de a existe n0 ≥ 1 (que depende de V ) tal que zn ∈ V
para todo n ≥ n0 .
Se f : A ⊂ C̄ → C̄ é uma função e z0 é um ponto de acumulação de
A, diz-se que limz→z0 f (z) = w0 ∈ C̄ se, para toda vizinhança V de
w0 , existe uma vizinhança U de z0 tal que f (U ∩ A \ {z0 }) ⊂ V .
Uma função f : A ⊂ C̄ → C̄ é contı́nua em z0 ∈ A se z0 for um ponto
isolado de A ou se z0 for um ponto de acumulação de A e
limz→z0 f (z) = f (z0 ).

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Exemplo: Sejam P(z) e Q(z) polinômios de uma variável complexa sem
raı́zes comuns.
A função f : C̄ → C̄, definida por

P(z)
 Q(z) , se z ∈ C e Q(z) 6= 0;



f (z) = ∞, se z ∈ C e Q(z) = 0;

 limw →∞ P(z) , se z = ∞,


Q(z)

é contı́nua em todo ponto z0 ∈ C̄.


De fato, isso é claro se z0 ∈ C e Q(z0 ) 6= 0.
Se z0 ∈ C e Q(z0 ) = 0, isso decorre do fato de que, como P(z0 ) 6= 0,
P(z)
então limz→z0 Q(z) = ∞.
Finalmente, limz→∞ f (z) sempre existe (podendo ser finito ou infinito),
logo f (∞) está bem definido e f é automaticamente contı́nua em ∞.

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As homografias

Uma homografia, ou transformação de Moebius, é uma função racional


f : C̄ → C̄ não constante que é o quociente de polinômios de grau no
máximo 1.

Assim, existem a, b, c, d ∈ C, com ad − bc 6= 0, tais que


 az+b

 f (z) = cz+d , se z ∈ C;

 f (−d/c) = ∞, se c 6= 0;



 f (∞) = ca , se c 6= 0;


f (∞) = ∞, se c = 0.

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Temos:

A composta de duas homografias é uma homografia;


Toda homografia possui uma inversa, a qual é também uma
homografia.

Segue-se que

O conjunto das homografias é um grupo com respeito à composição


de funções, cujo elemento neutro é a aplicação identidade;
Toda homografia é um homeomorfismo de C̄ sobre C̄.

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Funções holomorfas f : U ⊂ C̄ → C̄

Uma função contı́nua f : U → C̄, definida em um subconjunto aberto


U ⊂ C̄, é holomorfa em z0 ∈ U se uma das quatro condições abaixo se
verifica:
z0 6= ∞, f (z0 ) 6= ∞ e f é holomorfa em z0 no sentido usual;
z0 6= ∞, f (z0 ) = ∞ e 1/f (z) é holomorfa em z0 no sentido usual;
z0 = ∞, f (z0 ) 6= ∞ e f (1/z) é holomorfa em 0 no sentido usual;
z0 = ∞, f (z0 ) = ∞ e 1/f (1/z) é holomorfa em 0 no sentido usual.
A função contı́nua f : U → C̄, definida em um subconjunto aberto U ⊂ C̄,
é holomorfa em U se é holomorfa em todods os pontos de U.

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Com esta definição, uma função meromorfa f : U ⊂ C → C pode ser
considerada como uma função holomorfa f : U ⊂ C̄ → C̄.
De fato, se z0 ∈ U é um polo de f , estendemos a definição de f colocando
f (∞) = ∞.
Como limz→∞ f (z) = ∞, tal extensão é contı́nua em z0 .
Por outro lado, como
g (z)
f (z) =
(z − z0 )n
em uma vizinhança perfurada V de z0 , em que n ≥ 1, g é holomorfa em
V ∪ {∞} e g (z0 ) 6= 0, é imediato que

1 (z − z0 )n
=
f (z) g (z)

é holomorfa em z0 , logo f é holomorfa em z0 no sentido da definição


anterior.

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Funções holomorfas f : C̄ → C̄
Teorema: Seja f : C̄ → C̄ uma função holomorfa.
(a) Se f (C̄) 6= C̄, então f é constante;
(b) Se f não é constante, então f |C é uma função racional.

Demonstração: (a) : Observamos inicialmente que o Teorema da aplicação


aberta contı́nua válido para funções holomorfas g : U ⊂ C̄ → C̄:
Se U ⊂ C̄ é um aberto conexo e g : U ⊂ C̄ → C̄ é uma função holomorfa
não constante, então g (U) é um subconjunto aberto de C̄.
Seja então f : C̄ → C̄ uma função holomorfa não constante.
Então f (C̄) é um aberto de C̄.
Por outro lado, como C̄ é compacto, o mesmo vale para f (C̄), pois f é
contı́nua.
Assim, f (C̄) é um subconjunto não vazio simultaneamente aberto e
fechado em C̄. Logo f (C̄) = C̄.
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(b) : Primeiramente mostraremos que f −1 (w0 ) é finito para todo w0 ∈ C̄.
Para isso usaremos o fato de que se U é um subconjunto aberto e conexo
de C̄ e g , h : U → C̄ são funções holomorfas que coincidem em um
subconjunto A ⊂ U que possui um ponto de acumulação em U, então
g = h.
Fixemos então w0 ∈ C̄ e suponhamos que f −1 (w0 ) seja infinito.
Como C̄ é compacto, o conjunto f −1 (w0 ) possui um ponto de acumulação
em C̄.
Portanto f coincide com a função constante igual a w0 no subconjunto
f −1 (w0 ), o qual possui um ponto de acumulação em C̄.
Logo f ≡ w0 , absurdo.

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Seja {z1 , . . . , zn } = f −1 (w0 ) ∩ C.
Os pontos z1 , . . . , zn são polos de g = f |C̄ .
Seja rj a ordem de zj como polo de g , 1 ≤ j ≤ n.
Podemos então escrever g (z) = ḡ (z)/(z − zj )rj em uma vizinhança
perfurada de zj , em que ḡ é holomorfa e ḡ (zj ) 6= 0.
Isto implica que a função

z 7→ (z − z1 )r1 · · · (z − zn )rn g (z)

se estende a uma função inteira, a qual chamaremos de h.


Como limz→∞ g (z) = f (∞), segue que existe ` = limz→∞ h(z).
Se ` 6= ∞, então h é uma função inteira limitada, logo constante.
Se ` = ∞, então h é um polinômio.
Em ambos os casos, g é uma função racional.

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Automorfismos holomorfos de C̄

Corolário: Seja f : C̄ → C̄ uma função holomorfa. As seguintes


afirmações são equivalentes:
(a) f é uma homografia;
(b) f é um difeomorfismo;
(c) f é uma bijeção.
Demonstração: Decorre do fato de que uma função racional P(z)/Q(z) é
uma bijeção se, e somente se, max{grau(P), grau(P)} = 1 e P(z)Q(z)
não é constante.

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Algumas propriedades das homografias

Proposição: Toda homografia é uma composição de translações, rotações,


homotetias e da inversão z 7→ 1/z.
Demonstração: Escreva S(z) = (az + b)/(cz + d), ad − bc 6= 0.
Se c = 0, então S = T ◦ H, em que T (z) = z + (b/d) (uma translação) e
H(z) = (a/d)z (a composta de uma homotetia e uma rotação).
Se c 6= 0, então

az + b (bc − ad)/c) a
S(z) = = + .
cz + d cz + d c

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Proposição: Toda homografia diferente da identidade tem um ou dois
pontos fixos.
Demonstração: Escreva S(z) = (az + b)/(cz + d), ad − bc 6= 0.
Então S(z) = z se, e somente se, cz 2 + (d − a)z − b = 0.

Por exemplo, uma translação T (z) = z + b, b 6= 0, tem ∞ como seu


único ponto fixo.
As homotetias e as rotações têm dois pontos fixos: 0 e ∞.
A inversão tem 1 e −1 como pontos fixos.

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Proposição: Uma homografia fica completamente determinada por seus
valores em três pontos distintos.
Demonstração: Se z1 , z2 e z3 ∈ C̄ são pontos distintos e S, T são
homografias tais que S(zi ) = T (zi ), 1 ≤ i ≤ 3, então z1 , z2 e z3 são
pontos fixos da homografia T −1 ◦ S.
Logo T −1 ◦ S é a identidade pela proposição anterior, e portanto T = S.

Por exemplo, dados z1 , z2 , z3 ∈ C̄, a homografia S : C̄ → C̄ tal que


S(z1 ) = 0, S(z2 ) = 1 e S(z3 ) = ∞ é dada por
 (z −z )(z−z )
2 3 1


 (z2 −z1 )(z−z3 ) , se z1 , z2 , z3 ∈ C;

 z2 −z3 , se z = ∞;

z−z3 1
S(z) =
z−z1
z−z3 , se z2 = ∞;





 z−z1
z2 −z1 , se z3 = ∞.

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Seja F a famı́lia cujos elementos são os cı́rculos de C e as uniões r ∪ {∞},
em que r é uma reta de C.

Proposição: As homografias preservam F , isto é, S(C ) ∈ F para


qualquer C ∈ F e qualquer homografia S.
Demonstração: Do ponto de vista do plano C, a afirmação é que, se C é
um cı́rculo ou uma reta, então S(C ) é um cı́rculo ou uma reta.
Isto é claro se S representa uma translação, uma rotação ou uma
homotetia.
Mostraremos a seguir que isso também é verdade se S é uma inversão
z 7→ 1/z.

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Sejam A, C ∈ R e seja B = b1 + ib2 ∈ C tais que |B|2 > AC .
A equação
Az z̄ + Bz + B̄ z̄ + C = 0 (1)
se escreve, em coordenadas reais z = x + iy , como

Ax 2 + Ay 2 + 2b1 x − 2b2 y + C = 0,

a qual representa uma reta se A = 0. Caso contrário, podemos


reescrevê-la como

b1 2 b2 2 AC − b12 − b22
   
x+ + y− + = 0.
A A A2

A condição |B|2 > AC implica que a equação acima representa um cı́rculo.


Trocando z por 1/z na equação (1), obtemos

A + B z̄ + B̄z + Cz z̄ = 0,

que é uma equação do mesmo tipo.


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Exemplo: Encontraremos um difeomorfismo holomorfo entre o semi-plano
{Re (z) > 0} e o disco D(0, 1).
Buscamos inicialmente uma homografia que leva o eixo imaginário x = 0
no cı́rculo x 2 + y 2 = 1.
Para isso, determinamos a (única) homografia S tal que S(−i) = −1,
S(0) = i e S(i) = 1.
Escrevendo
az + b
, S(z) =
cz + d
a condição S(0) = i implica que b = di e as demais implicam então que
ai + di = ci + d e − ai + di = ci − d.
Daı́ obtemos que c = d e a = −di, logo
−diz + di −iz + i
S(z) = = .
dz + d z +1
Como S(1) = 0 ∈ D(0, 1), concluı́mos que S leva {Re (z) > 0} em
D(0, 1).
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