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O Setting: A Criação

de um Novo
Espaço
O setting é um novo espaço, muitíssimo especial, que está sendo conquistado pelo
paciente, no qual ele concede ao seu analista uma nova oportunidade de poder reviver
com esse – à espera de outros significados e soluções – as antigas e penosas experi-
ências afetivas que foram malsolucionadas em seu passado remoto.

CONCEITUAÇÃO analítico”, o qual é uma estrutura diferente de


uma soma de seus componentes, da mesma
Toda terapia psicanalítica deve se forma como uma melodia nã o é uma mera
proces- sar em um ambiente especial, tanto do soma de elementos musicais.
ponto de vista físico quanto de uma atmosfera O relevante a destacar é que o setting
emo- cional apropriada para a efetivaçã o de nã o se deve comportar como uma situaçã o
conti- nuadas e prolongadas experiências me- ramente formal e passiva. Pelo contrá rio,
emocionais, em uma situaçã o rara, ú nica e ele tem uma funçã o bastante ativa e
singular. Tudo isso configura a formaçã o de determinante na evoluçã o da aná lise, serve
um setting (comu- mente traduzido em de cená rio para a reproduçã o de velhas e
português por “enqua- dre”), que pode ser novas experiências emocionais, além de estar
conceituado como a soma de todos os sob uma contínua ameaça em vir a ser
procedimentos que organizam, normatizam e desvirtuado tanto pelo analisando quanto
possibilitam o processo psica- nalítico. também pelo analista, em funçã o do impacto
Assim, o setting resulta de uma conjun- de contínuas e mú ltiplas pressõ es de toda
çã o de regras, atitudes e combinaçõ es, tanto ordem. A propó sito, penso que o paciente está
as contidas no “contrato analítico” (conforme no seu direito de tentar transgredir o
descrito no capítulo anterior) como também enquadre, porém é inadmissí- vel que
aquelas que vã o se definindo durante a evolu- transgrida os princípios bá sicos, que se
çã o da aná lise, como os dias e horá rios das assentam em uma confiabilidade, regulari-
ses- sõ es, os honorá rios com a respectiva dade, estabilidade e no cumprimento das com-
modali- dade de pagamento, o plano de binaçõ es prévias, embora com uma relativa
férias, etc. flexibilidade.
É o conjunto das combinaçõ es que, cabe Destarte, o setting, por si mesmo, fun-
frisar – nã o deve ser o de uma mera imposição ciona como um importante fator terapêutico
do analista, mas, sim, o de proposição, de sorte psicanalítico, pela criação de um novo espaço
a, junto com o paciente, fazerem, dialetica- que possibilita ao paciente reproduzir, no vín-
mente, uma construçã o a dois –, constitui-se culo transferencial, seus aspectos infantis e, a
“nas regras do jogo”, mas nã o no “jogo propri- um mesmo tempo, poder usar a sua parte
amente dito”, porque, além de que ao longo adulta para ajudar o crescimento daquelas
da aná lise quase sempre acontecem algumas partes infantis, possivelmente frá geis e algo
alteraçõ es em relação às combinaçõ es desamparadas. Igualmente o enquadre age
originais, também há muitas outras variá veis como modelo de um prová vel novo funciona-
que per- tencem ao setting e que compõ em mento parental, no interior do psiquismo do
o “campo
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paciente, que consiste na criaçã o, pelo ana-


FUNÇÕES TERAPÊUTICAS DO SETTING
lista, de uma atmosfera de trabalho, a um
mesmo tempo de muita firmeza (é diferente
O enquadre, conforme já destacado, for-
de rigidez) no indispensá vel cumprimento e
mado com o paciente, vai muito além de uma
na preservaçã o das combinaçõ es feitas, jun-
mera medida prática, resumida a uma série de
tamente com uma atitude de acolhimento, res-
combinaçõ es que possibilitem a realizaçã o do
peito e empatia.
tratamento analítico. Pelo contrá rio, há mui-
Em se tratando de pacientes muito re-
tas particularidades invisíveis – sutilezas, ar-
gressivos, como é o caso de crianças autistas,
madilhas, transgressõ es, a pessoa real do ana-
F. Tustin (1981) sugere que o setting analíti-
lista como um novo modelo de identificaçã o,
co deve ser visto como uma incubadora, na
etc. – que tanto podem agir de uma forma
qual o “prematuro psicoló gico” possa encon-
terapeuticamente positiva quanto negativa,
trar as gratificaçõ es bá sicas – calor, compre-
conforme for o manejo técnico do terapeuta.
ensã o, amor e paz – que a criança ainda nã o
Seguem, enumeradas, algumas das caracterís-
realizou, porquanto, desde o nascer, ela ain-
ticas que me parecem ser sobremodo relevan-
da nã o teve as condiçõ es ambientais míni-
tes na prática clínica:
mas para satisfazê-las. Trata-se de pacientes
que necessitam da presença viva de um obje-
1. De uma maneira geral, o setting analí-
to externo (no caso, o terapeuta) que, tal como
tico é o mesmo para qualquer tipo de pacien-
um “ú tero psicoló gico”, acolha, aqueça, pro-
te; no entanto, no caso de crianças autistas ou
teja e estimule a criança e que, da mesma for-
qualquer outro paciente que esteja protegido
ma como uma “pele psíquica”, mantenha uni-
por uma densa cá psula autística, como já foi
das as partes do self que ainda estã o disper-
acentuado, é possível que o profissional seja
sas e desunidas.
mais ativo, aceite algumas mudanças em rela-
O destaque que está sendo dado à parti-
çã o à s medidas habituais, interaja mais com
cipaçã o do analista no enquadre e no respecti-
os familiares e tenha a liberdade para criar al-
vo campo analítico visa a enfatizar que já vai
gumas formas de aproximaçã o, incentivo e co-
longe o tempo em que ele se conduzia como
municaçã o nã o unicamente verbal. Assim, na
um privilegiado observador neutro, atento
base do ditado “se Maomé nã o vai à monta-
uni- camente para entender, decodificar e
nha, a montanha vai a Maomé”, o analista deve
interpre- tar o “material” trazido pelo
sair em procura desse paciente autista, tendo
paciente. Pelo con- trá rio, hoje é consensual
em vista que ele nã o está fugindo, mas, sim,
que a estrutura psí- quica do terapeuta, sua
que ele está realmente perdido!
ideologia psicanalíti- ca, empatia, conteú do e
2. O fato de o paciente com autismo
forma das interpreta- çõ es, demais atributos
psicó geno estar à espera de que seus vazios
de sua personalidade e modo de “ser”, enfim, a
sejam preenchidos e que o setting funcione
sua pessoa real contri- buem de forma decisiva
como uma verdadeira incubadora ou “ú tero”
nos significados e nos rumos da terapia
psicoló gico” nã o significa que o analista deva
analítica.
se comportar como uma “mã e substituta”,
Isso está de acordo com o “princípio da
mas, sim, com uma nova condição de
incerteza”, uma concepçã o de Heisenberg que
maternagem, que permita, por meio de sua
postula o fato de que o observador muda a
atividade analí- tica, a suplementaçã o de
realidade observada, conforme for o seu es-
falhas e vazios origi- nais, assim possibilitando
tado mental durante uma determinada situa-
a internalizaçã o de uma figura materna
çã o, a exemplo do que se passa na física
suficientemente boa, que sempre lhe faltou.
subatô mica, na qual uma mesma energia em
3. Uma vez instituído, o setting deverá
um dado momento é “onda” e em outro é “par-
ser preservado ao máximo. Diante da habitu-
tícula”. Nesse contexto, analista e analisando
al pergunta “se isso também vale para pacien-
fazem parte da realidade psíquica que está
tes muito regredidos, como os psicó ticos”,
sendo observada e, portanto, ambos sã o agen-
penso que uma resposta adequada seja a de
tes da modificaçã o da realidade exterior à
que tal recomendaçã o vale principalmente
medida que modificam as respectivas reali-
para esse tipo de pacientes – desde que nã o
dades interiores.
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haja, por parte do analista, uma rigidez ou do par analítico devem, necessariamente, ser
uma surdez à s proposiçõ es e necessidades diferenciados; caso contrá rio, haverá um cli-
desse paciente. ma de confusã o, que age como um caldo de
4. A vantagem de preservar ao má ximo o cultura para que a terapia analítica fracasse.
enquadre combinado encontra respaldo em 10. A propó sito, é corrente a idéia de
argumentos analíticos como o de estabelecer que o analista deve ser “humano”, o que,
o aporte da realidade exterior (a qual, comu- obvia- mente, é inquestioná vel. No entanto,
mente, está muito prejudicada nos pacientes uma gran- de parte das pessoas (inclusive,
severamente regredidos, visto que eles ainda muitos tera- peutas) confunde a condiçã o de
funcionam muito mais no “princípio do pra- ser uma pes- soa humana com a de nã o
zer” do que no da “realidade”), com as suas frustrar os pacien- tes, atender todos os
inevitá veis privaçõ es e frustraçõ es, pró prias pedidos dele, nã o lhe pro- vocar dores, etc.,
da vida real. como se isso fosse uma “de- sumanidade”.
5. Assim, as regras do setting ajudam a Creio que, do ponto de vista psi- canalítico, há
prover uma necessá ria delimitação entre o um significativo equívoco nessa crença, pois é
“eu” e “os outros”, por meio de desfazer a imperioso estabelecer uma níti- da distinção
indiscrimi- naçã o e indiferenciaçã o e, portanto, entre o que é ser um analista “bom” (frustra
facilitan- do a obtençã o das capacidades adequadamente, quando necessá rio) e
adultas de dife- renciação, separação e “bonzinho” (nunca frustra).
individuação. 11. Assim, no caso do terapeuta “bonzi-
6. Igualmente, as regras que foram insti- nho”, ele nã o só nã o saberá provocar eventu-
tuídas no enquadre auxiliam a definir a noçã o ais frustraçõ es a certos pedidos e expectativas
de limites, limitações, lugares e diferenças que do paciente como também nã o terá condiçõ es
provavelmente estã o algo borradas pela influ- de colocar limites e definir limitaçõ es, nem
ência da onipotência e onisciência, pró prias da pro- piciar a possibilidade de analisar
parte psicótica da personalidade, segundo Bion sentimentos difíceis (mergulhar na depressã o
(1967), a qual sempre existe em qualquer pa- do paciente ou nas suas partes psicó ticas, etc.)
ciente. e, tampouco, despertará o lado adulto do
7. Neste contexto, o enquadre auxilia a paciente que deve aprender a enfrentar as
desfazer as fantasias daquele analisando que, dificuldades, no lugar de fugir delas por meio
de alguma forma, sempre está em busca de de diferentes tá ticas de evitaçã o e de fuga, o
uma ilusória simetria – pela qual ele busca a que perpetua o estado de onipotência, ou,
mesma hierarquia de lugar e de papéis que o ainda, a de usar o recurso de acionar a que
analista tem – e de uma similaridade, ou seja, outros enfrentem as dificulda- des por ele, o
a crença do paciente de que ele tem uma que vai reforçar a condiçã o de criança
igual- dade nos valores, funçõ es e capacidades dependente.
do seu analista. 12. Também devemos considerar o fato
8. Da mesma forma como pode haver um de que o analista, que evita ao má ximo frus-
desvirtuamento do enquadre em decorrência trar o paciente em seus pedidos por mudan-
de uma excessiva rigidez do analista, também ças nas combinaçõ es do setting, chegando a
nã o podemos ignorar os inconvenientes, por ponto de fazer alguns sacrifícios pessoais,
vezes graves, que decorrem de uma exagerada pode estar encobrindo uma atitude sedutora
permissividade na aplicaçã o e na indispensá vel a serviço de seu narcisismo ou o seu medo
preservaçã o – da essência – das condiçõ es diante de uma possível revolta e rejeiçã o por
normativas que foram combinadas no contra- parte do analisando. Além disso, também
to, e se essas nã o foram claramente definidas, acresce o inconveniente de um reforço no
torna-se ainda mais sério o erro técnico. paciente, de uma falsa concepçã o de que a
9. Deve ficar claro que, como seres hu- frustraçã o é sempre má e que deve ser evita-
manos, nã o deve existir uma distinçã o entre da, assim como também a de que o analista
analista e paciente, porém, na situação analíti- deve ser poupado de suas cargas de avidez;
ca, é fundamental que os direitos, deveres, pa- nesses casos, o enquadre corre o risco de fi-
péis, lugares a serem ocupados, atribuiçõ es e car estruturado em uma busca ú nica de grati-
funçõ es a serem desempenhadas por cada um ficaçõ es recíprocas, o que desvirtua a
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essencia- lidade do processo analítico.
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13. Em contrapartida, outras vezes pode lembrando que esse paciente quase nunca
ocorrer o inverso, isto é, o analista cria exa- sabe estabelecer uma diferença entre o que é
gerados obstá culos para atender certos pedi- uma “agressividade” (boa e construtiva,
dos dos pacientes, por mais justos e inofensi- porque dá garra, ambiçã o, tenacidade...) e uma
vos que sejam (por exemplo, mudar a hora “agres- sã o” (destrutiva, com a predominâ ncia
de uma sessã o para uma outra possível, em de in- veja maligna...). Para uma melhor
uma mesma semana, pois aquele horá rio co- distinçã o conceitual entre estes dois termos,
incide com um exame que deve prestar...), de sugiro que o leitor consulte o glossá rio de
sorte a repetir uma prová vel conduta similar expressõ es ana- líticas que proponho.
a que o paciente, quando criança pequena, 17. Como exemplo trivial, recordo de um
teve com os pais. Trata-se de pacientes que, paciente que se mostrava algo apá tico e con-
desde pequeninos, foram condicionados pe- formado em sua vida profissional monó tona,
los pais a ganhar as coisas com muito choro, em flagrante contraste com a evidência de no-
luta, promessas, formaçõ es reativas e prová - tó rias capacidades, e que nã o conseguia ex-
veis humilhaçõ es, de modo que uma atitude pressar um mínimo de sentimento mais ran-
aná loga por parte do analista pode incremen- coroso em relaçã o a mim, embora a sua vida
tar no paciente a crença de que para que ele exterior estivesse sendo pautada por emoçõ es
consiga ganhar algo, deve ser como prêmio muito rancorosas e vingativas que ele retinha,
pelo sofrimento, ou merecimento pelo seu mas que se expressavam por uma retocolite
esforço, ou por um bom comportamento. ulcerativa. Tal situaçã o persistiu até que ele
14. Em outras palavras, o controle sá di- lembrou-se de um violento tapa na boca que,
co, inconsciente, por parte do analista (nã o é quando menino, ao pronunciar um desaforo
a mesma coisa que impor frustraçõ es neces- raivoso, levou do pai para aprender a “respei-
sá rias) pode levá -lo a utilizar frustraçõ es e tar os mais velhos”. Isso permitiu que anali-
pri- vaçõ es severas e desnecessá rias, podendo sá ssemos o quanto persistia nele uma signifi-
ele pensar que está acertadamente caçã o de perigo diante de qualquer sensaçã o
obedecendo à regra da abstinência e que raivosa, de sorte que as reprimiu todas, inclu-
Freud se orgu- lharia dele. sive as construtivas. Por meio de um trabalho
15. É relevante que o analista reconheça analítico de ressignificação dessas experiências
que é unicamente sofrendo as inevitáveis frus- emocionais, o paciente foi resgatando a capa-
trações impostas pelo setting, desde que essas cidade de fazer um bom uso da agressividade
nã o sejam exageradamente excessivas, escas- sadia.
sas, incoerentes e injustas, que o analisando 18. Esse exemplo também serve para
(tal como no passado evolutivo da criança ilus- trar que a capacidade de o analista
com seus educadores) pode desenvolver a, sobreviver a possíveis ataques dos pacientes
funda- mental, capacidade para pensar e (agressivos, eró ticos, narcisistas, perversos...)
simbolizar. constitui-se em um dos fatores mais
16. Pode-se dizer que a funçã o mais importantes do clima emocional do setting.
nobre do setting consiste na criaçã o de um 19. Levando-se em conta que
novo espa- ço onde o analisando terá a virtualmen- te todo paciente é, pelo menos em
oportunidade de reexperimentar com o seu parte, um sujeito que passou toda a sua vida
analista a vivência de antigas, e decisivamente sujeitado a uma série de mandamentos, sob a
marcantes, expe- riências emocionais forma de expectativas, ordens e ameaças, as
conflituosas que foram malcompreendidas, quais, em certas épocas, provieram do meio
atendidas e significadas pelos pais do passado exterior, mas que agora estã o sedimentadas
e, por conseguinte, malso- lucionadas pela no interior de seu psiquismo, acredito que
criança de ontem, que habita a mente do dificilmente have- rá uma experiência mais
paciente adulto de hoje. Cabe ilus- trar com fascinante do que aquela que ele está
uma situaçã o muito freqü ente na prá - tica revivendo com o seu ana- lista fortes emoçõ es,
analítica cotidiana de todos nó s: refiro-me aos os aspectos agressivos- destrutivos incluídos,
pacientes que têm uma dificuldade enor- me e que os resultados po- dem ser bem
em expressar, em relaçã o ao terapeuta, diferentes daqueles que imagina- va e aos
qualquer sentimento de natureza agressiva, quais ele já estava condicionado.
mesmo que essa seja benéfica. Explico melhor,
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20. A importâ ncia disso decorre do fato terapia analítica que, nos
de que, apesar de todos os sentimentos, atos e
verbalizaçõ es, significados pelos pacientes
como proibidos e perigosos, o setting mantém-
se inalterado. O analista nã o está destruído,
nem deprimido, tampouco colérico, nã o revida
nem retalia, nã o apela para a medicaçã o quan-
do essa nã o está indicada e, muito menos,
para uma hospitalizaçã o, nã o o encaminha
para outro terapeuta, sequer modificou o seu
esta- do de humor habitual e ainda se mostra
com- preensivo e o auxilia a dar um novo
significa- do, um nome, proporcionando-lhe,
ainda, ex- trair um aprendizado com a
experiência que, de forma tã o sofrida, ele
reexperimentou no campo analítico, tanto
diretamente, na trans- ferência com o analista,
ou, simplesmente, por meio da verbalizaçã o,
carregada de afetos, de experiências antigas,
fato que, mais do que uma simples catarse,
possibilitará a realizaçã o de novos
significados, com outros sentimentos em torno
daquelas recordaçõ es traumá ticas.
21. À s vezes, por razõ es distintas, o en-
quadre instituído sofre algumas
transgressõ es, em grau maior ou menor,
porém o importante é que o analista sinta que
está com o controle da situaçã o, e que possa
voltar à situaçã o ori- ginal, sempre que julgar
necessá rio. Em situa- çõ es mais extremas, o
setting pode ficar des- virtuado a um tamanho
tal que cabe a expres- sã o perversão do setting,
em cujo caso formam- se diversos tipos de
conluios inconscientes e até, por vezes,
conscientes, sendo o mais freqü en- te deles
aquele que foi determinado pela recí- proca
necessidade de seduçã o, para agradar e ser
agradado, um “faz-de-conta” que a aná lise está
evoluindo quando ela pode estar totalmen- te
estagnada, além daqueles casos mais graves
do ponto de vista de uma terapia analítica sé-
ria, nos quais há uma quebra de ética e uma
total perversã o analítica, sob a forma de en-
volvimento eró tico, negó cios em comum, pro-
gramas duvidosos fora do enquadre, etc.
22. Uma forma nada rara de perversã o
do setting é aquela na qual determinados
pacien- tes, mais comumente por parte dos
narcisistas de “pele grossa” (ver o capítulo
referente aos transtornos do narcisismo),
tentam, e muitas vezes conseguem, efetivar
uma mudança de lugares e de papéis que,
normalmente, o ana- lista e o paciente devem
desempenhar. Vou exemplificar com uma
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primeiros anos de minha formaçã o, devido à responder a certas perguntas que
minha inexperiência de entã o, permiti
descam- basse para uma perversã o do
enquadre analí- tico. Por alguma razã o que
nã o vem ao caso, recebi o encaminhamento
de um paciente que ocupava um alto nível
social e profissional. Ele trajava ternos
elegantes, falava com fluência, empostaçã o e
cor, quando adentrava no con- sultó rio para
iniciar a sessã o, já ia exclamando em tom
jubiloso: “Como vai o preclaro mes- tre?”, e
coisas parecidas. Começava a sessã o
discorrendo sobre os fatos cotidianos e,
diante de minhas “interpretaçõ es”, ele, com
seu pole- gar direito, dava sinais de
aprovaçã o ou repro- vaçã o. Nos primeiros
tempos, quase que siste- maticamente, ele
erguia o polegar de forma incisiva,
concedendo-me plena aprovaçã o, as- sim
conseguindo um dissimulado, porém enor-
me, jú bilo meu; mais tarde, o polegar ficava
balançando na linha horizontal, num gesto
de “mais ou menos”, e, por fim, ele se
animava a pô r o seu polegar voltado para
baixo, sinali- zando que reprovava o que eu
pensava que interpretava. Para um
desconforto crescente em mim, esse paciente
começou a alternar, em sucessõ es que me
pareciam rá pidas, as três posiçõ es do seu
polegar – para mim, o repre- sentante de um
superego –, a ponto de que, olhando
retrospectivamente, com uma ó ptica crítica
atual, eu estava quase que completamen- te
hipnotizado pelo dedã o do suposto pacien-
te. Partindo dessa crítica atual, nã o tenho dú -
vidas de que, em um legítimo movimento
per- verso, nã o importa se consciente ou
inconsci- ente, ele tomou o meu lugar,
enquanto eu fi- quei no dele, de modo que
nã o era ele quem dependeria de mim ou
ficaria ansioso com o que eu dissesse ou
pensasse dele; pelo contrá - rio, os papéis da
situaçã o analítica ficaram in- vertidos.
23. Um ponto importante em relaçã o à
preservaçã o do setting é o que diz respeito à
inclusã o, ou nã o, de parâmetros por parte do
analista. O termo “parâ metro” foi cunhado
por Eissler (1953), com o qual ele reafirmou
a sua posiçã o de que tudo aquilo que
transgredia o enquadre (dentro do rigor de
sua época) de- veria ser considerado um
parâ metro. Na atua- lidade, o critério de
“transgressã o” do enqua- dre está bastante
flexível de modo que, ao contrá rio dos
primeiros tempos, o analista permite-se
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os pacientes fazem, sugerir nomes de médi- cos especialistas no caso de os pacientes des-
conhecerem e solicitarem, providenciar o uso de medicaçã o concomitante com o curso da
psicaná lise, recomendar determinadas leitu- ras ou filmes e demais coisas do gênero. No entanto,
é necessá rio que o analista fique aten- to à possibilidade de estar cometendo peque- nas, mas
reiteradas, transgressõ es, como fal- tar muito, atrasar-se sistematicamente, ou se,
continuadamente, muda os horá rios, encurta ou prolonga excessivamente o tempo da ses- sã o,
faz espú rias combinaçõ es relativas ao pa- gamento, estimula os contatos telefô nicos de forma
ilimitada, envolve-se exageradamente com as circunstâ ncias externas da vida do ana- lisando,
expõ e demais a sua vida íntima para o paciente, usa o analisando para satisfazer a sua
curiosidade particular, ou para atraí-lo como aliado contra algum colega desafeto seu, ou rival,
detrator, etc.
24. Relativamente à s combinaçõ es for- mais que devem reger o setting, perdura uma
polêmica, inclusive no seio pró prio da IPA, quanto ao número de sessões mínimas, para que o
tratamento possa ser considerado uma “aná - lise de verdade”. Na época pioneira da psica-
ná lise, o mais comum era a prá tica de seis ses- sõ es semanais; apó s algumas décadas, o nú -
mero oficial ficou reduzido para cinco, poste- riormente passou a prevalecer um consenso
de quatro sessõ es e, na atualidade, por razõ es de custo econô mico e coisas afins, existe um
gran- de movimento nas sociedades psicanalíticas no sentido de oficializar o nú mero
mínimo de ses- sõ es para três, medida essa que já vige em al- gumas instituiçõ es, como na
França, entre ou- tras. Essa posiçã o, de um rigor no cumprimen- to de um nú mero mínimo
de sessõ es por se- mana, na atualidade, está quase que restrita às análises que estejam
diretamente ligadas aos candidatos em formaçã o psicanalítica. Premi- dos por diversas
circunstâ ncias, os analistas contemporâ neos, que já têm suficiente experiência e
segurança, estã o bastante mais flexí- veis a esse respeito.
25. Assim, a aludida “flexibilidade”, no significado positivo dessa palavra, está sendo
cada vez mais necessá ria, até pela incontestá - vel razã o de que, em todo mundo
psicanalíti- co, existe uma crise na demanda de pacientes, e nã o só nos consultó rios dos
analistas mais jovens, e nã o só no Brasil... Dessa forma, a cla- ra evidência de um certo
esvaziamento dos consultó rios está obrigando os analistas a re- pensarem o problema do
modelo tradicional de quatro ou cinco sessõ es semanais, de modo a nã o se prender
rigidamente nesse nú mero mínimo e, em seu lugar, pensar, prioritaria- mente, em como
viabilizar um espaço de aná - lise de acordo com as necessidades de cada pa- ciente em
particular.
26. Algo equivalente poderia ser dito quanto à possibilidade de serem feitas mais de
uma sessã o em um mesmo dia; a obrigatorie- dade, ou nã o, do uso do divã , etc. Penso que,
indo muito além desses aspectos exteriores, o fundamental é o fato de que o setting, levado a
sério, comporta-se, por si só , com uma impor- tante funçã o de “continente”, em que o
pacien- te sabe que conquistou um espaço sagrado, uni- camente seu, que será contido nas
suas angú s- tias, entendido (é diferente de “atendido”) em suas necessidades, desejos e
demandas, respei- tado no ritmo de aná lise que ele é capaz e res- pirará uma atmosfera de
calor e paz, nã o obstante a possibilidade de que esteja em ple- na transferência negativa,
caso já tenha se de- senvolvido uma “aliança terapêutica” entre o par analítico.
27. O campo analítico deve ser regido por algumas regras técnicas que foram
originalmen- te legadas por Freud e que, embora conservem muito da sua essência,
sofreram profundas transformaçõ es, razã o por que decidi que cabe um capítulo específico –
o sexto – para abor- dar especificamente esse tema de especial re- levâ ncia para a prá tica
analítica.

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