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Filosofia,

mística e
espiritualidade.
Simone Weil,
cem anos
Emmanuel Gabellieri
A exigência de uma
nova universalidade
E mais:
Bartomeu Estelrich >> José Antonio Zamora:
Filosofia weiliana: um
Walter Benjamin e o
processo de contemplação
império do instante
313
Ano IX
Maria Clara Bingemer >>Ana Luisa Janeira:
Simone Weil. A vida As missões jesuíticas.
03.11.2009
ISSN 1981-8469 em busca da verdade O quarto centenário
Simone Weil, cem anos

O centenário do nascimento de Simone Weil, escrito-


ra, operária e filósofa francesa, que morreu aos 34 anos
de idade, enseja que a revista IHU On-Line, retome, em
parceria com o Centro de Teologia e Ciências Humanas da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – CTCH
- PUC-Rio, a sua fascinante trajetória filosófica, mística
e espiritual.

Especialistas nacionais e internacionais na filosofia


weiliana contribuem nesta edição: Bartomeu Estelrich,
filósofo e professor do Boston College, USA; Emmanuel
Gabellieri, professor da Universidade Católica de Lyon,
França; Giulia Paola di Nicola e Attilio Danese, italianos,
diretores da revista Perspectiva Persona; Maria Clara Bin-
gemer, professora do Departamento de Teologia da Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio; Fernando
Rey Puente, filósofo e professor de Filosofia da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Miguel Ângelo
Guimarães Juliano, professor de Filosofia do Centro de
Ensino Superior de Juiz de Fora, MG.

Três entrevistas completam esta edição: Ana Luisa Janeira, professora na Universidade de
Lisboa, Portugal, e que numa edição anterior desta revista narrou a sua trajetória intelectual,
informa algo das suas pesquisas sobre as missões jesuíticas. Aliás, no próximo ano, celebra-se o
quarto centenário do início deste experimento. Por sua vez, José Antonio Zamora, professor no
Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, reflete
sobre a contribuição de Walter Benjamin na compreensão do progresso como ideologia que institui
o império do instante, destruindo a experiência em função da fugacidade e da velocidade sempre
mais acelerada na modernidade capitalista. Por fim, François Euvé, teólogo francês, descreve a
sua trajetória intelectual de diálogo com a ciência, especialmente a física.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
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Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi-
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do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.
Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 05 | Miguel Ângelo Guimarães Juliano: Um perfil de Simone Weil
PÁGINA 12 | Bartomeu Estelrich: Filosofia weiliana: um processo de contemplação
PÁGINA 14 | Giulia Paola di Nicola e Attilio Danese: A busca da verdade pautada pela mística
PÁGINA 20 | Maria Clara Bingemer: Simone Weil. A vida em busca da verdade
PÁGINA 24 | Emmanuel Gabellieri: A exigência de uma nova universalidade
PÁGINA 28 | Fernando Rey Puente: Metaxu: a união de planos diferentes de realidade

B. Destaques da semana
» Entrevistas da Semana
PÁGINA 32 | Ana Luisa Janeira: Missões jesuíticas em terras não cristãs
PÁGINA 34 | José Antonio Zamora: Walter Benjamin e o império do instante
» Teologia Pública
PÁGINA 39 | François Euvé: A humanidade como o centro da revelação
» Coluna Cepos
PÁGINA 43 | Jacqueline Lima Dourado: Olha o passarinho! Microblogging como o twitter configura-se
como um novo canal de poder e comunicação

» Destaques On-Line
PÁGINA 45 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» Eventos »
PÁGINA 50| Rosa Maria Zaia Borges Abrão: A mediação comunitária como prática jurídica popular inovadora
» Sala de Leitura
» IHU Repórter
PÁGINA 34| Mirian Dazzi

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 


 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313
Um perfil de Simone Weil
Por Miguel Ângelo Guimarães Juliano

M
iguel Ângelo Guimarães Juliano, professor de Filosofia do Centro de Ensino Superior
de Juiz de Fora, MG, descreve o perfil de Simone Weil. Doutor em Teologia pela Uni-
versidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, com a tese Mística e ética em Simone
Weil (2005), e conhecedor da obra da escritora e filósofa francesa, Juliano descreve,
especialmente para a IHU On-Line, o ambiente familiar e os sentimentos marcantes
da personalidade de Simone Weil, como a compaixão. “Essa compaixão precoce desenvolve nela a
compreensão da dignidade de cada ser humano como portador de um valor absoluto, que traduz uma
forma precoce do ideal kantiano do imperativo de humanidade como fim em si”.
Juliano é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre em Teologia
pela Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Confira o artigo. Os subtítulos são nossos.

Simone Weil nasceu em Paris a 3 de a respeito do que se conversa. O lar la ideia de uma sociedade solidária e
fevereiro de 1909 e morreu na noite é também o lugar do aprendizado da uma política profundamente marcada
de 24 de agosto de 1943. Seu pai, o vida política. A inteligência e a pesqui- pelo sentido dos nossos deveres para
Dr. Bernard Weil, judeu de origem al- sa livres de preconceitos projetam o com os outros seres humanos. A ordem
saciana, era médico; sua mãe, Selma coração dos membros da família para política deve ser definida pelo senso
Weil, era de origem russa. André, seu as grandes questões do seu tempo. Os de justiça como virtude fundamental
irmão, foi um precoce matemático. Weil se amavam muito, e as crianças da convivência humana, sem a qual as
Crescendo num ambiente apaixonado interagiam com seus pais. Às vezes, as ideias de igualdade e fraternidade não
pela cultura, Simone, com seis anos, crianças se divertiam à mesa quando passariam de propaganda e espetácu-
recitava Corneille e Racine, e fazia, notavam que seus pais, ao procurarem lo, como ocorre de fato com os discur-
juntamente com seu irmão, algumas deixar um para o outro o prato de que sos políticos atuais. O que interessa é
apresentações de peças teatrais. Na mais gostavam, comiam sempre o que permitir e incentivar uma conversação
casa dos Weil se respirava um ambien- menos gostavam, sem proveito para cada vez mais informada pela pesqui-
te literário e se falava sobre todos os ninguém. sa e pela capacidade de dialogar com
assuntos. À literatura e à poesia se so- A pequena Simone sabia o que sig- franqueza e abertura de espírito ao
mavam as acaloradas discussões sobre nificava solidariedade e empenhava- que o outro diz. A vida política pode
os acontecimentos que se desenrola- se desde muito cedo a não ter mais ser norteada por uma postura que in-
vam no cenário político e intelectu- do que o necessário para viver. Essa terliga o saber bem informado e os
al do início do século XX. O ambien- compaixão precoce desenvolve nela a compromissos que os membros de uma
te familiar era aberto e permeável a compreensão da dignidade de cada ser comunidade são capazes de estabele-
um estilo de vida marcado pela viva humano como portador de um valor cer em virtude dessa abertura da in-
experiência de liberdade; poder pen- absoluto, que traduz uma forma pre- teligência. Uma política não esclareci-
sar, dizer e expressar o que se julga coce do ideal kantiano do imperativo da ou mal informada só interessa aos
importante é também permitir que de humanidade como fim em si. Simo- inimigos da inteligência, incapazes do
os outros possam dizer o que pensam ne Pétrément narra, em sua biografia, diálogo franco.
que durante a primeira guerra mundial
 Pierre Corneille: mais conhecido por Cor- ela adotara um soldado que estava no Ensinamentos
neille (1606-1684) foi um dramaturgo de tra-
gédias francês. Ele foi um dos três maiores front, como afilhado de guerra, fa-
produtores de dramas na França, durante o zendo pequenos trabalhos domésticos Simone cresceu numa atmosfera
século XVII, ao lado de Molière e Racine. Era com os quais ela recebia uns trocados alegre e luminosa. Os Weil também
chamado de “fundador da tragédia francesa”,
e escreveu peças por mais de 40 anos. (Nota para enviar a este seu afilhado. Muitos gostavam de morar junto à natureza,
da IHU On-Line) gestos de solidariedade são apresen- mudando sempre de casa devido ao
 Jean Baptiste Racine (1639-1699): foi um tados pela sua biógrafa no sentido de trabalho do pai que era médico. A ad-
poeta trágico, dramaturgo, matemático e his-
toriador francês. É considerado, juntamente demonstrar a resoluta decisão em par- miração pela natureza estará sempre
com Pierre Corneille, como um dos maiores ticipar da vida dos últimos da Terra. presente em seus escritos. Essa per-
dramaturgos clássicos da França. (Nota da IHU Essas atitudes já antecipam aque- cepção ganha força e um significado
On-Line)

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todo especial, por ser uma mediação
entre a natureza bruta e o engenho de
“Ela não teme discutir Com um penetrante olhar filosófi-
co, ela consegue perceber, através dos
uma liberdade que a transforma. Atra-
vés do trabalho humano, como ela irá
alguns temas exigentes problemas levantados pela cultura do
seu tempo, a dificuldade que se abre
testemunhar alguns anos mais tarde, o
homem se torna natureza transforma-
da filosofia e, sobretudo, para uma ciência submetida à massifi-
cação do saber científico na técnica. E
da; e entrando no ciclo das transfor-
mações, concede ao seu próprio corpo
o das relações entre a uma técnica que está mais empenha-
da em glorificar o saber utilitário, au-
uma participação viva no mistério do
Espírito que habita o mundo. Como
ciência moderna, a mentando sobremaneira o fosso entre
os movimentos do corpo e a formação
natureza transformada, o homem res-
gata o pacto com o mundo natural,
cultura de massa e a de uma razão exigente através do pen-
samento. A luta de Simone no front do
devolvendo às suas próprias criações
o autêntico significado de uma espiri-
formalização de uma pensamento filosófico foi certamente
o que mais exigiu dela e permanece
tualidade do trabalho. Essa temática
faz parte de seu estilo de vida e de
linguagem apta a ainda um desafio para a cultura. O ho-
mem de cultura tem uma responsabili-
seu pensamento desde o início. Ela irá
alcançar um significado multifacetado
redimensionar a dade incontornável no que se refere à
criação de conceitos e à determinação
no estilo filosófico de pensamento, na
opção pela participação direta na vida
experiência humana nos destes na experiência vivida. Ela dei-
xou precisas reflexões sobre os temas
política e, finalmente, nas intuições
metafísicas e religiosas dos últimos
próximos séculos nos que mais chamam a atenção nos dias
de hoje. Os problemas de ordem antro-
anos de sua vida. Ofereço apenas al-
gumas pistas para uma compreensão
termos de redescoberta pológicos na relação entre indivíduo e
sociedade; os conceitos fundamentais
mais ampla do seu pensamento, com-
preendendo-o a partir de sua preocu-
do papel de um para compreender a articulação en-
tre a dimensão intelectiva e física da
pação com uma perspectiva de fundo
que tende a buscar níveis de compre-
cristianismo profano experiência humana, seja no âmbito
de um saber especializado ou nas exi-
ensão sempre mais amplos para o sig-
nificado de seu desejo pela verdade;
frente a um gências que estimulam o cotidiano; a
questão do desenvolvimento da cultura
o que, em Simone Weil, nada tinha de
projeção em fantasias pessoais ou que
cientificismo raso” científica e suas relações com dimen-
sões espirituais tão importantes para o
pudesse mesmo ser redutível a uma conceito de ser humano; uma comple-
biografia empolgante e envolvente. Sua permanente discussão com gran- xa análise do processo de construção
Traço apenas algumas intuições iniciais des nomes da filosofia como Platão, de símbolos e suas relações com o tra-
que precisam ser pesquisadas a partir Descartes e Kant, para citar alguns balho humano; uma interpretação da
da leitura de suas obras, pretendendo exemplos, fazem dela uma autêntica história universal segundo um procedi-
despertar o interesse do leitor pelos pensadora do espírito de liberdade e mento não cumulativo e nem quanti-
traços mais gerais de sua pesquisa, da força da razão argumentativa. É o tativo, mas segundo o reconhecimento
tendo em vista fazer uma homenagem que nos faz pensar a tarefa da razão de culturas subterrâneas esquecidas,
à memória dos seus cem anos de nas- em diferentes direções. Ela não teme em seu aparato metafísico e religioso;
cimento. Meu objetivo, porém, é o de discutir alguns temas exigentes da fi- uma aguda percepção dos nexos entre
incentivar o leitor a tornar-se também losofia e, sobretudo, o das relações a matemática abstrata e a formula-
um interlocutor, fazendo com que seja entre a ciência moderna, a cultura de ção de signos relativos à experiência
capaz de perguntar se o que ela diz é massa e a formalização de uma lingua- positiva e não-positiva dos eventos; a
verdade, como ela mesma se propôs. gem apta a redimensionar a experiên- equiparação dos sistemas linguísticos
cia humana nos próximos séculos nos e simbólicos das tradições que uniam
A filósofa termos de redescoberta do papel de religião e conhecimentos empíricos,
um cristianismo profano frente a um como são hoje vulgarizados pelos con-
Simone Weil é dotada de uma filo- cientificismo raso. Um traço marcan- ceitos genéricos de cultura oriental;
sofia de difícil penetração por causa te de sua obra é o desenvolvimento uma percepção unificada e complexa
da riqueza de detalhes com a qual ela da reflexão filosófica em permanente de códigos pré-científicos que podem
enlaça os temas entre si. De fato, o diálogo com o passado em função das indicar uma linha de continuidade en-
seu pensamento está enredado em sua urgências do tempo presente. tre as religiões, as operações técnicas
 Sobre Platão, confira a revista IHU On-Line
vida, o que não pode, contudo, fazer- número 294, de 25-05-2009, intitulada Platão,
e organização social, e que poderia
nos esquecer de traçar os conceitos a totalidade em movimento, disponível no link colocar em questão evidências natu-
que direcionam sua reflexão filosófica. http://www.ihuonline.unisinos.br//index. ralistas e contratualistas que explicam
php?id_edicao=322 (Nota da IHU On-Line)

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a origem da vida social. De maneira éticos sobre as descobertas científicas extraordinárias. Para ela, as pessoas
audaciosa e fundamentada, ela esta- pareceriam disputas sem fundamen- não deveriam considerar como exce-
belece grandes linhas de continuidade to por faltarem o compromisso com ção um gesto que tem sua razão de ser
entre as ciências antigas, encontradas uma orientação de fundo ao mesmo na consciência da própria responsabi-
entre os gregos, os povos do oriente e tempo metafísica, espiritual e moral. lidade. A santidade para algumas pes-
a tradição judaico-cristã. Ninguém poderia assumir uma posição soas requer um tipo de investimento
Esses escritos encontram-se con- como a mais defensável, supondo que que rejeita de maneira desonesta e
centrados nos Cahiers, que são anota- o seu modo de propor a solução dos irresponsável o reconhecimento desta
ções feitas durante os anos de 1933 a problemas torna inválido e desprovido Terra como nossa verdadeira pátria.
1942 (sobretudo nos anos que vão de de sentido a compreensão que o outro O mundo está estranhamente dividi-
1941 a 1942) no sentido de dar conta tem desse mesmo problema, se fosse do entre aqueles que fazem dele um
de um dos desafios postos pelo amigo capaz de pensar sua maneira científi- lugar de passagem e aqueles que se
Padre Perrin, que era o de unir uma ca de abordar tal problema como re- consagram em sonhar com um paraíso
cultura científica e profana a uma sultante de uma operação, ao mesmo terrestre. Como uma filósofa da ação,
cultura de inspiração profundamente tempo, espiritualmente defensável. O Simone Weil não se detém em admitir
religiosa. Concepções que poderão, que ela entende por uma espirituali- a atitude dos que ficam à espera de
no futuro, modificar nossa visão dos dade renovada da cultura é o que dei- um milagre ou a intervenção de uma
acontecimentos históricos e o desen- força superior para mudar os rumos
volvimento das relações entre as ciên-
cias em geral e o conhecimento que
“O reencantamento hoje das coisas. Acredita na força da inteli-
gência animada pela do amor gratuito
temos do ser humano. É impressionan-
te notar que esse tipo de preocupação
aparece como revanche e empenhado em favor de um mundo
melhor. Não crê que isto seja obra de
tenha se estabelecido entre nós muito
tempo depois de ter sido colocado em
das interpretações ficção romântica. Toma atitude de re-
jeitar o que não está à altura das exi-
questão o problema do reencanta-
mento do mundo e que tende a seguir,
religiosas contra as gências do tempo presente. Por isso
recusa as honras e o reconhecimento
infelizmente, num sentido oposto ao
proposto por ela. O reencantamento
ciências em geral. pessoal ao chamar os homens de cul-
tura a assumirem uma posição capaz
hoje aparece como revanche das inter-
pretações religiosas contra as ciências
Simone Weil havia de responder lucidamente aos desafios
postos pela miséria e pela falta de li-
em geral. Simone Weil havia pensado
a possibilidade de encontrar traços
pensado a possibilidade berdade.
O apreço que temos por sua vida
comuns de afinidade entre ciência e
espiritualidade. Ela tinha consciência
de encontrar traços e suas obras não deve obscurecer as
exigências que sua leitura nos impõe,
dessas relações bem como dos riscos
de uma assimilação incerta entre es-
comuns de afinidade pois, entrar em contato com seu pen-
samento nos desafia nos termos por
ses dois âmbitos da experiência huma-
na. Ela parece acenar para o ressurgi-
entre ciência e ela postos: “o sábio tem por finalida-
de a união de seu próprio espírito com
mento de uma metafísica diversa da
tradição comumente conhecida entre
espiritualidade” a sabedoria misteriosa eternamente
inscrita no universo” e uma vez que a
nós. Tal metafísica não teria outra separação entre ciência e espírito re-
missão senão a de reorientar um modo xo para as pesquisas dos leitores. Indi- ligioso não faz sentido, ele deve con-
de vida renovado em instituições e co a possibilidade de encontrar estes ceber “que a investigação científica só
opções pessoais, moldados pela com- temas nos seus Cahiers. Ela não teria pode ser uma forma de contemplação
preensão global das grandes questões aprovado a posição dos que defendem religiosa” (FIORI, 1993, p. 166); e que
levantadas pela cultura atual. Ela fala a separação entre ciência, saber ético não devemos nos iludir quanto à exi-
então de uma recriação do homem e e espiritualidade. gência de uma inteligência perspicaz
da cultura moderna, sem propor-se Apesar do depoimento da senhora e, ao mesmo tempo, responsável por
nos termos de uma revanche. A ciên- que cuidava da pequena Simone, “Si- toda criação em sua ordem interna de
cia, a literatura e a espiritualidade mone é uma santa!”, ela, às vezes, sentido. Há inúmeras leituras possíveis
não poderiam se separar de um pro- fica irritada com esses gestos de sim- de suas obras, mas em todas uma tal
jeto novo de ser humano. Essa arti- patia, que dão a entender que tudo exigência permanece como um traço
culação deveria possibilitar uma nova não passa de um traço de sua persona- incontornável. Seus leitores têm em
maneira de estabelecer coexistência lidade. Não, ela não somente é assim, comum o fato guardar por ela cer-
entre os homens, as culturas e a or- mas sabe que esta é uma atitude de- to sentimento de afeição, chamando
dem produtiva e de pesquisa. As nos- fensável diante de qualquer um. Nos- Gabriella FIORI. Simone Weil – Une femme
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sas disputas em torno dos problemas sa razão não precisa de justificativas absolue (�������������������������������������
Paris: Ed. ��������������������������
Du Félin, 1993). (Nota da
IHU On-Line)

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atenção para a dimensão religiosa, experiência de liberdade; poder pen- absoluto, que traduz uma forma pre-
política ou filosófica de seus escritos. sar, dizer e expressar o que se julga coce do ideal kantiano do imperativo
Suas palavras e sua escrita são de uma importante é também permitir que de humanidade como fim em si. Simo-
admirável penetração e conseguem di- os outros possam dizer o que pensam ne Pétrément narra, em sua biografia,
zer algo que gostaríamos alguma vez a respeito do que se conversa. O lar que durante a primeira guerra mundial
ter pensado ou esboçado apenas. Há é também o lugar do aprendizado da ela adotara um soldado que estava no
sempre um certo sentimento comum vida política. A inteligência e a pesqui- front, como afilhado de guerra, fa-
que cobre o coração de seus leitores sa livres de preconceitos projetam o zendo pequenos trabalhos domésticos
assíduos: a força de uma palavra que coração dos membros da família para com os quais ela recebia uns trocados
não precisa excluir ninguém, nem as grandes questões do seu tempo. Os para enviar a este seu afilhado. Muitos
qualquer tema, e que traz um certo Weil se amavam muito, e as crianças gestos de solidariedade são apresen-
incômodo por sabermos que algo não interagiam com seus pais. Às vezes, as tados pela sua biógrafa no sentido de
se coaduna com nossa maneira habitu- crianças se divertiam à mesa quando demonstrar a resoluta decisão em par-
al de encarar a vida. Temos, sim, algo notavam que seus pais, ao procurarem ticipar da vida dos últimos da Terra.
a aprender com ela. E os seus textos Essas atitudes já antecipam aque-
são um convite a essa aventura.
Termino com uma citação de Em-
“Ela parece acenar para la ideia de uma sociedade solidária e
uma política profundamente marcada
manuel Gabellieri, o filósofo que mais
tem chamado atenção para a ideia de
o ressurgimento de uma pelo sentido dos nossos deveres para
com os outros seres humanos. A ordem
uma filosofia da mediação em Simone
Weil, e que nos convida à aventura do
metafísica diversa da política deve ser definida pelo senso
de justiça como virtude fundamental
pensamento filosófico para além das
estreitas formulações teóricas de uma
tradição comumente da convivência humana, sem a qual as
ideias de igualdade e fraternidade não
metafísica desencarnada, ao citar
nossa autora, cujas consequências es-
conhecida entre nós. passariam de propaganda e espetácu-
lo, como ocorre de fato com os discur-
pirituais para a cultura são inegáveis:
“assim, nos últimos meses de sua vida,
Tal metafísica não teria sos políticos atuais. O que interessa é
permitir e incentivar uma conversação
foi para ela um martírio não poder
conciliar e ‘...pensar conjuntamente
outra missão senão a de cada vez mais informada pela pesqui-
sa e pela capacidade de dialogar com
na verdade a infelicidade dos homens,
a perfeição de Deus e a ligação en-
reorientar um modo de franqueza e abertura de espírito ao
que o outro diz. A vida política pode
tre os dois’.” (GABELLIERI, E. Simone
Weil: uma filósofa da mediação e do
vida renovado em ser norteada por uma postura que in-
terliga o saber bem informado e os
dom., p. 213. Em: di NICOLA, G. P. e
BINGEMER, M. C. L. Simone Weil, ação
instituições e opções compromissos que os membros de uma
comunidade são capazes de estabele-
e contemplação).
Simone Weil nasceu em Paris a 3 de
pessoais moldados pela cer em virtude dessa abertura da in-
teligência. Uma política não esclareci-
fevereiro de 1909 e morreu na noite
de 24 de agosto de 1943. Seu pai, o
compreensão global das da ou mal informada só interessa aos
inimigos da inteligência, incapazes do
Dr. Bernard Weil, judeu de origem al-
saciana, era médico; sua mãe, Selma
grandes questões diálogo franco.

Ensinamentos
Weil, era de origem russa. André, seu
irmão, foi um precoce matemático.
levantadas pela cultura
Crescendo num ambiente apaixonado
pela cultura, Simone, com seis anos,
atual” Simone cresceu numa atmosfera
alegre e luminosa. Os Weil também
recitava Corneille e Racine, e fazia, gostavam de morar junto à nature-
juntamente com seu irmão, algumas deixar um para o outro o prato de que za, mudando sempre de casa devido
apresentações de peças teatrais. Na mais gostavam, comiam sempre o que ao trabalho do pai que era médico.
casa dos Weil se respirava um ambien- menos gostavam, sem proveito para A admiração pela natureza estará
te literário e se falava sobre todos os ninguém. sempre presente em seus escritos.
assuntos. À literatura e à poesia se so- A pequena Simone sabia o que sig- Essa percepção ganha força e um
mavam as acaloradas discussões sobre nificava solidariedade e empenhava- significado todo especial, por ser
os acontecimentos que se desenrola- se desde muito cedo a não ter mais uma mediação entre a natureza bru-
vam no cenário político e intelectu- do que o necessário para viver. Essa ta e o engenho de uma liberdade que
al do início do século XX. O ambien- compaixão precoce desenvolve nela a a transforma. Através do trabalho
te familiar era aberto e permeável a compreensão da dignidade de cada ser humano, como ela irá testemunhar
um estilo de vida marcado pela viva humano como portador de um valor alguns anos mais tarde, o homem se

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torna natureza transformada; e en- e Kant, para citar alguns exemplos, tre a dimensão intelectiva e física da
trando no ciclo das transformações, fazem dela uma autêntica pensadora experiência humana, seja no âmbito
concede ao seu próprio corpo uma do espírito de liberdade e da força de um saber especializado ou nas exi-
participação viva no mistério do Es- da razão argumentativa. É o que nos gências que estimulam o cotidiano; a
pírito que habita o mundo. Como na- faz pensar a tarefa da razão em di- questão do desenvolvimento da cultura
tureza transformada, o homem res- ferentes direções. Ela não teme dis- científica e suas relações com dimen-
gata o pacto com o mundo natural, cutir alguns temas exigentes da fi- sões espirituais tão importantes para o
devolvendo às suas próprias criações losofia e, sobretudo, o das relações conceito de ser humano; uma comple-
o autêntico significado de uma espi- entre a ciência moderna, a cultura xa análise do processo de construção
ritualidade do trabalho. Essa temá- de massa e a formalização de uma de símbolos e suas relações com o tra-
tica faz parte de seu estilo de vida linguagem apta a redimensionar a balho humano; uma interpretação da
e de seu pensamento desde o início. experiência humana nos próximos história universal segundo um procedi-
Ela irá alcançar um significado multi- séculos nos termos de redescoberta mento não cumulativo e nem quanti-
facetado no estilo filosófico de pen- do papel de um cristianismo profa- tativo, mas segundo o reconhecimento
samento, na opção pela participação no frente a um cientificismo raso. de culturas subterrâneas esquecidas,
direta na vida política e, finalmen- Um traço marcante de sua obra é o em seu aparato metafísico e religioso;
te, nas intuições metafísicas e reli- desenvolvimento da reflexão filosó- uma aguda percepção dos nexos entre
giosas dos últimos anos de sua vida. fica em permanente diálogo com o a matemática abstrata e a formula-
Ofereço apenas algumas pistas para passado em função das urgências do ção de signos relativos à experiência
uma compreensão mais ampla do seu tempo presente. positiva e não-positiva dos eventos; a
pensamento, compreendendo-o a Com um penetrante olhar filosófi- equiparação dos sistemas linguísticos
partir de sua preocupação com uma co, ela consegue perceber, através dos e simbólicos das tradições que uniam
perspectiva de fundo que tende a religião e conhecimentos empíricos,
buscar níveis de compreensão sem-
pre mais amplos para o significado
“Ela não teria aprovado como são hoje vulgarizados pelos con-
ceitos genéricos de cultura oriental;
de seu desejo pela verdade; o que,
em Simone Weil, nada tinha de pro-
a posição dos que uma percepção unificada e complexa
de códigos pré-científicos que podem
jeção em fantasias pessoais ou que
pudesse mesmo ser redutível a uma
defendem a separação indicar uma linha de continuidade en-
tre as religiões, as operações técnicas
biografia empolgante e envolvente.
Traço apenas algumas intuições ini-
entre ciência, saber e organização social, e que poderia
colocar em questão evidências natu-
ciais que precisam ser pesquisadas a
partir da leitura de suas obras, pre-
ético e espiritualidade” ralistas e contratualistas que explicam
a origem da vida social. De maneira
tendendo despertar o interesse do audaciosa e fundamentada, ela esta-
leitor pelos traços mais gerais de sua problemas levantados pela cultura do belece grandes linhas de continuidade
pesquisa, tendo em vista fazer uma seu tempo, a dificuldade que se abre entre as ciências antigas, encontradas
homenagem à memória dos seus cem para uma ciência submetida à massifi- entre os gregos, os povos do oriente e
anos de nascimento. Meu objetivo, cação do saber científico na técnica. E a tradição judaico-cristã.
porém, é o de incentivar o leitor a uma técnica que está mais empenha- Esses escritos encontram-se con-
tornar-se também um interlocutor, da em glorificar o saber utilitário, au- centrados nos Cahiers, que são anota-
fazendo com que seja capaz de per- mentando sobremaneira o fosso entre ções feitas durante os anos de 1933 a
guntar se o que ela diz é verdade, os movimentos do corpo e a formação 1942 (sobretudo nos anos que vão de
como ela mesma se propôs. de uma razão exigente através do pen- 1941 a 1942) no sentido de dar conta
samento. A luta de Simone no front do de um dos desafios postos pelo amigo
A filósofa pensamento filosófico foi certamente Padre Perrin, que era o de unir uma
o que mais exigiu dela e permanece cultura científica e profana a uma
Simone Weil é dotada de uma ainda um desafio para a cultura. O ho- cultura de inspiração profundamente
filosofia de difícil penetração por mem de cultura tem uma responsabili- religiosa. Concepções que poderão,
causa da riqueza de detalhes com a dade incontornável no que se refere à no futuro, modificar nossa visão dos
qual ela enlaça os temas entre si. De criação de conceitos e à determinação acontecimentos históricos e o desen-
fato, o seu pensamento está enre- destes na experiência vivida. Ela dei- volvimento das relações entre as ciên-
dado em sua vida, o que não pode, xou precisas reflexões sobre os temas cias em geral e o conhecimento que
contudo, fazer-nos esquecer de que mais chamam a atenção nos dias temos do ser humano. É impressionan-
traçar os conceitos que direcionam de hoje. Os problemas de ordem antro- te notar que esse tipo de preocupação
sua reflexão filosófica. Sua perma- pológicos na relação entre indivíduo e tenha se estabelecido entre nós muito
nente discussão com grandes nomes sociedade; os conceitos fundamentais tempo depois de ter sido colocado em
da filosofia como Platão, Descartes para compreender a articulação en- questão o problema do reencanta-

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 


mento do mundo e que tende a seguir, em favor de um mundo melhor. Não
infelizmente, num sentido oposto ao
“Como uma filósofa da crê que isto seja obra de ficção ro-
proposto por ela. O reencantamento mântica. Toma atitude de rejeitar o
hoje aparece como revanche das in-
ação, Simone Weil não que não está à altura das exigências
terpretações religiosas contra as ci- do tempo presente. Por isso recusa
ências em geral. Simone Weil havia
se detém em admitir a as honras e o reconhecimento pes-
pensado a possibilidade de encontrar soal ao chamar os homens de cultura
traços comuns de afinidade entre ciên-
atitude dos que ficam à a assumirem uma posição capaz de
cia e espiritualidade. Ela tinha cons- responder lucidamente aos desafios
ciência dessas relações bem como dos
espera de um milagre ou postos pela miséria e pela falta de
riscos de uma assimilação incerta en- liberdade.
tre esses dois âmbitos da experiência
a intervenção de uma O apreço que temos por sua vida
humana. Ela parece acenar para o res- e suas obras não deve obscurecer as
surgimento de uma metafísica diversa
força superior para exigências que sua leitura nos im-
da tradição comumente conhecida en- põe, pois, entrar em contato com
tre nós. Tal metafísica não teria outra
mudar os rumos das seu pensamento nos desafia nos ter-
missão senão a de reorientar um modo mos por ela postos: “o sábio tem por
de vida renovado em instituições e
coisas. Acredita na força finalidade a união de seu próprio
opções pessoais, moldados pela com- espírito com a sabedoria misteriosa
preensão global das grandes questões
da inteligência animada eternamente inscrita no universo” e
levantadas pela cultura atual. Ela fala uma vez que a separação entre ciên-
então de uma recriação do homem e
pela do amor gratuito e cia e espírito religioso não faz senti-
da cultura moderna, sem propor-se do, ele deve conceber “que a inves-
nos termos de uma revanche. A ciên-
empenhado em favor de tigação científica só pode ser uma
cia, a literatura e a espiritualidade forma de contemplação religiosa”
não poderiam se separar de um pro-
um mundo melhor” (FIORI, 1993, p. 166) ; e que não de-
jeto novo de ser humano. Essa arti- vemos nos iludir quanto à exigência
culação deveria possibilitar uma nova “Simone é uma santa!”, ela, às ve- de uma inteligência perspicaz e, ao
maneira de estabelecer coexistência zes, fica irritada com esses gestos mesmo tempo, responsável por toda
entre os homens, as culturas e a or- de simpatia, que dão a entender criação em sua ordem interna de
dem produtiva e de pesquisa. As nos- que tudo não passa de um traço de sentido. Há inúmeras leituras pos-
sas disputas em torno dos problemas sua personalidade. Não, ela não so- síveis de suas obras, mas em todas
éticos sobre as descobertas científicas mente é assim, mas sabe que esta uma tal exigência permanece como
pareceriam disputas sem fundamen- é uma atitude defensável diante de um traço incontornável. Seus leito-
to por faltarem o compromisso com qualquer um. Nossa razão não preci- res têm em comum o fato guardar
uma orientação de fundo ao mesmo sa de justificativas extraordinárias. por ela certo sentimento de afeição,
tempo metafísica, espiritual e moral. Para ela, as pessoas não deveriam chamando atenção para a dimensão
Ninguém poderia assumir uma posição considerar como exceção um gesto religiosa, política ou filosófica de
como a mais defensável, supondo que que tem sua razão de ser na cons- seus escritos. Suas palavras e sua
o seu modo de propor a solução dos ciência da própria responsabilidade. escrita são de uma admirável pene-
problemas torna inválido e desprovido A santidade para algumas pessoas tração e conseguem dizer algo que
de sentido a compreensão que o outro requer um tipo de investimento que gostaríamos alguma vez ter pensado
tem desse mesmo problema, se fosse rejeita de maneira desonesta e ir- ou esboçado apenas. Há sempre um
capaz de pensar sua maneira científi- responsável o reconhecimento desta certo sentimento comum que cobre
ca de abordar tal problema como re- Terra como nossa verdadeira pátria. o coração de seus leitores assíduos:
sultante de uma operação, ao mesmo O mundo está estranhamente divi- a força de uma palavra que não pre-
tempo, espiritualmente defensável. O dido entre aqueles que fazem dele cisa excluir ninguém, nem qualquer
que ela entende por uma espirituali- um lugar de passagem e aqueles que tema, e que traz um certo incômodo
dade renovada da cultura é o que dei- se consagram em sonhar com um pa- por sabermos que algo não se coa-
xo para as pesquisas dos leitores. Indi- raíso terrestre. Como uma filósofa duna com nossa maneira habitual de
co a possibilidade de encontrar estes da ação, Simone Weil não se detém encarar a vida. Temos, sim, algo a
temas nos seus Cahiers. Ela não teria em admitir a atitude dos que ficam aprender com ela. E os seus textos
aprovado a posição dos que defendem à espera de um milagre ou a inter- são um convite a essa aventura.
a separação entre ciência, saber ético venção de uma força superior para Termino com uma citação de Em-
e espiritualidade. mudar os rumos das coisas. Acredi-
Apesar do depoimento da senho- ta na força da inteligência animada Gabriella FIORI. Simone Weil – Une femme
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ra que cuidava da pequena Simone, pela do amor gratuito e empenhado absolue (�������������������������������������
Paris: Ed. ��������������������������
Du Félin, 1993). (Nota da
IHU On-Line)

10 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


manuel Gabellieri, o filósofo que mais
tem chamado atenção para a ideia de Leia mais...
uma filosofia da mediação em Simone Pequena indicação bibliográfica
Weil, e que nos convida à aventura do
pensamento filosófico para além das Os inúmeros escritos de Simone Weil são, em grande parte, póstumos, e a história de sua publicação, bem
complexa. Os títulos das obras foram dados pelos editores e os seus amigos. Nelas estão reunidos diversos
estreitas formulações teóricas de uma artigos, ensaios entre outros que Simone Weil escreveu de forma não sistemática. Ela segue duas correntes
metafísica desencarnada, ao citar paralelas: uma, por iniciativa do Pe. Jean-Marie Perrin e Gustave Thibon, e outra, feita por sua família e
nossa autora, cujas consequências es- Albert Camus. Ao P. Perrin, deixou seus ensaios espirituais, sua meditação sobre o amor de Deus, o seu co-
mentário ao Pai-nosso e sua pesquisa sobre os gregos, que faziam parte do diálogo mantido com ele entre
pirituais para a cultura são inegáveis: junho de 1941 e a primavera de 1942. O P. Perrin os publicou no texto que recebeu o título Attente de Dieu,
“assim, nos últimos meses de sua vida, em 1949. As traduções e comentários aos textos gregos apareceram com o título Intuitions pré-chrétiennes
foi para ela um martírio não poder em 1951. Para Gustave Thibon, deixou onze cadernos muito densos, Thibon publica apenas uma quinta par-
te desses cadernos de Marselha com o título La Pesanteur e la Grâce em 1947. Outra corrente de escritos
conciliar e ‘...pensar conjuntamente vem com a chegada da família Weil a Paris, em 1949. Sua família reúne alguns textos entregues por Pierre
na verdade a infelicidade dos homens, Honnorat e por Simone Pétrement. Closon e outros amigos enviam à família os manuscritos de Londres.
a perfeição de Deus e a ligação en- Os Weil devem limitar-se na organização dos textos à sua disposição, especialmente, os sete Cahiers
d’Amérique e o Carnet de Londres, juntamente com inúmeros textos e fragmentos inéditos dos anos trinta.
tre os dois’.” (GABELLIERI, E. Simone Albert Camus publica pela Gallimard, na coleção Espoir, o ensaio L’Enracinement. Prélude à une décla-
Weil: uma filósofa da mediação e do ration des devoirs envers l’être humain, em 1949. Em 1950, os Cahiers d’Amérique e o Carnet aparecem
dom., p. 213. Em: di NICOLA, G. P. e com o título La Connaissance surnaturelle. Os outros cadernos apareceram com o título Cahiers entre os
anos de 1951-56, pela Plon. As suas obras completas estão em andamento pela Gallimard, intulada Œuvres
BINGEMER, M. C. L. Simone Weil, ação Complètes (OC): - Tome I : Premiers écrits philosophiques ; - Tome II : Écrits historiques et politiques,
e contemplação). volumes 1, 2, 3 ; – Tome III : Poèmes et Venise sauvée; – Tome IV : Écrits de Marseille, volumes 1 et 2 ;
Tome V : Écrits de New York et de Londres, volumes 1 et 2 ; Tome VI : Cahiers (vol. 1-4), Tome VI : Corres-
pondance, volumes 1, 2 et 3. Emmanuel Gabellieri numa pequena apresentação do pensamento e das obras
de Simone Weil conclui, afirmando que a filosofia de Simone Weil, em sentido amplo do termo, é um raro
testemunho na história do seu tempo que une especulação filosófica, empenho e mística, e completa com
Baú da IHU On-Line uma interessante observação: « la singularité de Simone Weil est d’ignorer le dilemme entre immanence et
transcendance, Amor Mundi et Amor Dei, qui ne cesse d’agiter la (post) modernité.» GABELLIERI, E. Simone
>> Sobre Simone Wail a IHU On-Line dedi- Weil. Paris: Eclipses, 2001. p. 33. Veja também outros autores: VETÖ, M. La métaphisique religieuse de
cou duas edições. Confira no sítio do IHU (www. Simone Weil. 1971; ________. La metafísica religiosa di Simone Weil. Casalecchio: Arianna, 2001. p. 6;
ihu.unisinos.br). CHENAVIER, R. Découvrir Simone Weil. Cahiers de Meylan, 2001-1. p. 4. Sua biografia foi realizada por Si-
mone Pétrément numa monumental obra na qual encontramos muitos detalhes sobre sua vida e suas obras.
• Simone Weil. Palavra viva. Edição número 84, Cf. ________. La vie de Simone Weil. Paris: Fayard, 1973. Ver também o texto de Gabriella FIORI. Simone
de 17-11-2003. O material está disponível no Weil – Une femme absolue. Paris: Ed. Du Félin, 1993. O testemunho do Padre Perrin pode ser acrescentado
endereço http://www.ihuonline.unisinos.br// à sua biografia, para os que se interessam pelas questões religiosas. Cf. PERRIN, J.-M.; THIBON, G. Simone
uploads/edicoes/1161201356.89word.doc; Weil telle que nous l’avons connue. 1952. Uma rica fonte de informações sobre o contexto histórico e os
• Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. embates teóricos nos quais o pensamento de Simone Weil está inserido podemos ainda encontrar no exce-
Três mulheres que marcaram o século XX. Edição lente estudo feito por Domenico Canciani. Cf. CANCIANI, D. Tra sventura e bellezza. Riflessione religiosa e
número 168, de 12-12-2005. O material está dis- esperienza mística in Simone Weil. Roma: Lavoro, 1996. No Brasil, o interesse por suas obras tem crescido
ponível no link http://www.ihuonline.unisinos. paulatinamente. Algumas traduções de suas obras foram publicadas pela EDUSC, mais recentemente. Um
br//uploads/edicoes/1158350658.23word.doc. grupo de estudiosos tem se reunido periodicamente para estudar suas obras e os diferentes temas por elas
abordados em vista do diálogo com questões que têm surgido na cultura atual. Cito alguns textos apenas:
NICOLA, G. P. / BINGEMER, M. C. L. Simone Weil – Ação e Contemplação. São Paulo: EDUSC, 2005; BINGE-
 Confira nesta edição uma entrevista com Em- MER, M. C. L. Simone Weil e o encontro entre as culturas. Rio de Janeiro: PUC e Paulinas, 2009.
manuel Gabellieri. (Nota da IHU On-Line)

A linguagem e a singularidade na atividade de trabalho

IHU Ideias de 05-11-2009

Informações no sítio do IHU

www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 11


Filosofia weiliana: um processo de contemplação
Na percepção de Bartomeu Estelrich, professor e pesquisador do Boston College,
USA, a filosofia weiliana responde as questões pós-modernas através de conceitos
antigos e modernos

Por Gilda Carvalho e Patrícia Fachin | Tradução Lucas Schlupp

A
filosofia de Simone Weil é fragmentária e antissistemática, e seu objetivo principal não é
teórico, “mas eminentemente para uma mudança de vida”. Isso justifica o fato da filosofia
weiliana ser pouco conhecida no Brasil, e considerada confusa, por alguns, e intricada, por
outros, assinala Bartomeu Estelrich, na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU
On-Line. Fascinada pela “profundeza impenetrável” escondida na relação íntima entre
microcosmo e macrocosmo e seguindo os ensinamentos de Sócrates, Simone Weil “percebeu, que
filosofar não era uma atividade teórico-abstrata, mas um processo de purificação e transformação da
alma e, em segundo, que filosofar era um diálogo constante na busca pela verdade, justiça, obediên-
cia e o bem”, menciona.
Segundo Estelrich, Simone Weil considerava o desapego como o primeiro passo para o aperfeiçoa-
mento espiritual. “Ao ser desapegada, a pessoa é capaz de quebrar as correntes que a ligam a desejos
e medos terrenos; para transformar a concepção de tempo ‘histórico-linear’ em ‘enterno-circular’; e
para ser transformada pela contemplação da beleza da Terra”, frisa.
Estelrich é doutor em Filosofia, pela Universidad Pontifícia Comillas, Madri, Espanha, com a tese
El amor en La metafísica de Simone Weil. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que a obra de Si- uma forma muito pessoal, e, às vezes, Estilo de Vida. Exercícios Espirituais
mone Weil é tão pouco conhecida? incomum; 3) não oferece uma filosofia de Sócrates a Foucault. New York:
Bartomeu Estelrich - Acredito que há acabada e sistematicamente organiza- Blackwell, 1995). Para ele, a filosofia
dois motivos principais para a filoso- da, mas, pelo contrário, uma filosofia antiga pode ser considerada um exer-
fia weiliana ser pouco conhecida. O fragmentária e antissistemática na cício espiritual porque envolve uma
primeiro é circunstancial. Muitos não qual o objetivo principal não é teóri- transformação da visão de mundo e a
conhecem a filosofia de Simone Weil, co, mas eminentemente para uma mu- conversão da personalidade; um pro-
porque: 1) não tiveram um professor dança de vida. cesso que coloca de cabeça para baixo
que incluiu a filosofia dela em seu pla- a nossa vida, fazendo com que ela seja
no de estudos; 2) ou não tiveram sorte IHU On-Line - A sua comunicação no mais repleta, e melhor. Weil também
suficiente para encontrar qualquer re- Simpósio Internacional “O pensa- buscou esse mesmo objetivo em sua fi-
ferência sobre ela em outros livros de mento de Simone Weil e o encontro losofia. Para ela, filosofia é um exercí-
filosofia; 3) ou (no caso de já conhece- entre as culturas”, realizado no Rio cio espiritual que procura elevar o in-
rem a filosofia de Weil) não se deram o de Janeiro, em 2007, teve como tí- divíduo a um novo nível de vida e uma
trabalho de ir a uma livraria, comprar tulo principal “Filosofia como exer- nova compreensão do mundo; um pro-
um de seus livros, e lê-lo. O segundo cício espiritual”. Podemos dizer que cesso que exige uma conversão radical
motivo é filosófico. Para alguns leito- para Simone Weil a Filosofia era efe- da forma de ser do indivíduo, convi-
res, o pensamento de Weil é tido como tivamente um exercício espiritual? dando-o para entrar em um processo
intricado e até confuso. Em minha opi- Bartomeu Estelrich - Acho que sim, quádruplo: “desapego” do mundo ao
nião, sua filosofia pode ser vista desta se definirmos “exercício espiritual” derredor, “atenção” ao instante pre-
forma por três motivos principais: 1) da mesma forma que Pierre Hadot o sente, “harmonia” com a imensidão e
a filosofia weiliana utiliza conceitos fi- fez, em seu livro Philosophy as a Way beleza do universo, e por fim “descria-
losóficos “antigos” e “modernos” para of Life. Spiritual Exerceises from So- ção” do eu [ser].
responder a questões “pós-modernas”; crates to Foucault (Filosofia como
2) ela é o resultado da combinação de IHU On-Line - Que conexões pode-
 Pierre Hadot (1922): filósofo francês, espe-
conceitos cristãos, gregos e judeus de cialista em filosofia antiga, particularmente mos estabelecer entre a filosofia de
neoplatonismo. (Nota da IHU On-Line)

12 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


Simone Weil e a Filosofia Antiga? “Graças a Platão, Weil Simone Weil com a tradição cristã: 1)
Bartomeu Estelrich - Seguindo o ca- Sua convicção de que Cristo é “o único
minho aberto por Sócrates, Weil per- compreendeu que a mediador”, e 2) o processo kenótico-
cebeu, primeiramente, que filosofar descriacionista para alcançar a sal-
não era uma atividade teórico-abstra- filosofia era um vação. Mas, para vermos como estes
ta, mas um processo de purificação e dois aspectos são centrais na filosofia
transformação da alma e, em segundo, treinamento para a de Weil, temos que analisar um pouco
que filosofar era um diálogo constante de história: Weil ficou vinculada com
na busca pela verdade, justiça, obe- morte; um processo de Cristo através de um encontro pessoal
diência e o bem. Ela, assim como os com ele, que a levou a uma entrega
pitagoreanos, era fascinada pela “pro- autodescoberta e total à sua pessoa. Weil, imitando a
fundeza impenetrável” que estava es- kenosis [esvaziamento] de Cristo na
condida por trás da relação íntima en- aniquilação do ego [self]; cruz, esvaziou-se de qualquer tipo de
tre o microcosmo (seres humanos) e o idolatria; ela implorou desesperada-
macrocosmo (o universo). Como eles, de aquisição de uma mente a Deus para tornar em nada; e
ela descobriu que, no centro dessa re- ela reproduziu, no seu estilo de vida
lação, havia tensão e contradição, mas nova visão da realidade, e morte, o último sacrifício de Cristo.
também uma ordem transcendente Mesmo que Weil nunca tenha usado o
(divina). Seguindo-os, ela estabeleceu de ser transformado conceito de “kenosis“ em seus escri-
que para um ser humano ter uma exis- tos, se olharmos com mais atenção a
tência harmoniosa, ele deve reprodu- progressivamente pela sua filosofia, descobriremos que este
zir a ordem transcendente do universo conceito é muito parecido com o de
em sua alma. Graças a Platão, Weil presença de Deus, e, descriação. Na teologia cristã, kenosis
compreendeu que a filosofia era um é o termo usado para descrever o auto-
treinamento para a morte; um proces- através de todos estes esvaziamento da própria vontade, e o
so de autodescoberta e aniquilação do processo de tornar-se completamente
ego [self]; de aquisição de uma nova meios, alcançar a receptivo às ordens de Deus. Na filoso-
visão da realidade, de ser transfor- fia weiliana, descriação é o processo
mado progressivamente pela presen- salvação” de “autoesvaziamento”, “autocance-
ça de Deus, e, através de todos estes lamento”, e “autossacrifício” que tor-
meios, alcançar a salvação. Seguindo na uma pessoa totalmente obediente
ne), justiça (dikaiosyne), e verdade
Marco Aurélio e a tradição estóica, à vontade de Deus. Para Weil, é ape-
(aletheia). Finalmente, em um estilo
Weil compreendeu que a filosofia era nas aceitando este processo kenótico-
que lembra muito o de Plotino e a
um processo de autodisciplina e busca descriacional que a pessoa é capaz de
tradição neo-platôncia, ela compre-
constante por temperança (sophrosy- descobrir o único mediador em Cristo,
endeu que a filosofia era um processo
 Sócrates (470-399 a. C.): Filósofo ateniense isto é, “a chave que junta o Criador e
e um dos mais importantes ícones da tradição de contemplação e calma, que implica
a criação”, a ponte que conecta “Deus
filosófica ocidental. (Nota da IHU On-Line) em abandonar toda atividade interna,
 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. e nós, de um lado, e do outro, Deus e o
representações distintas, obstinação,
Criador de sistemas filosóficos influentes até universo” (Doutrina Pitagoreana).
hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética. e bens pessoais, a fim de receber uma
Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de invasão mística do divino.
Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A IHU On-Line - Em sua filosofia, Simo-
República e o Fédon. Sobre Platão, confira e ne Weil delineou quatro estágios do
entrevista As implicações éticas da cosmolo- IHU On-Line - E com a tradição espi-
progresso espiritual: desapego, de-
gia de Platão, concedida pelo filósofo Prof. ritual-filosófica cristã?
Dr. Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU satenção, harmonia e descriação. O
Bartomeu Estelrich - Há dois aspec-
On-Line, de 04-09-2006,disponível em http:// senhor poderia falar um pouco sobre
www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/ tos principais que ligam a filosofia de
cada um deles?
1158342983.13pdf.pdf. Leia, também, a edição
294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009,  Plotino (205-270): filósofo egípcio, discípu- Bartomeu Estelrich - Para Weil, desa-
disponível em http://www.ihuonline.unisinos. lo de Amônio Sacas e mestre de Porfírio, que pego é o primeiro passo para o aperfei-
br/uploads/edicoes/1243280653.711pdf.pdf. nos legou seus ensinamentos em seis livros de çoamento espiritual. Pode ser descrito
(Nota da IHU On-Line) nove capítulos cada, chamados de As Enéadas.
 César Marco Aurélio Antonino Augusto, co- Acompanhou uma expedição à Pérsia, onde to- como um esforço humano que acaba
nhecido como Marco Aurélio (121-180): foi mou contato com a filosofia persa e indiana. com a ligação com objetos e segurança
imperador romano desde 161 até sua morte. Regressou à Alexandria e, aos 40 anos, estabe- terrenos, e encoraja a pessoa a viver
Seu reinado foi marcado por guerras na par- leceu-se em Roma. Desenvolveu as doutrinas
te oriental do Império contra os partas, e na aprendidas de Amônio numa escola de filosofia uma vida melhor orientada para a trans-
fronteira norte, contra os germanos. Foi o últi- com seleto grupo de alunos. Pretendia fundar cendência. Ao ser desapegada, a pessoa
mo dos cinco bons imperadores, e é lembrado uma cidade chamada Platonópolis, baseada é capaz de quebrar as correntes que a
como um governante bem-sucedido e culto; nos ensinamentos da República de Platão. Plo-
dedicou-se à filosofia, especialmente à cor- tino dividia o universo em três hipóstases: o ligam a desejos e medos terrenos para
rente filosófica do estoicismo, e escreveu uma Uno, o Nous (ou mente) e a alma. (Nota da transformar a concepção de tempo “his-
obra que até hoje é lida, Meditações. (Nota da IHU On-Line) tórico-linear” em “enterno-circular”; e
IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 13


para ser transformada pela contemplação
da beleza da Terra. Quando o desapego é
alcançado, a pessoa está pronta para en-
trar em um segundo estágio da perfeição A busca da verdade
espiritual: atenção. Para Weil, a atenção
consiste em suspender nosso pensamen-
to, deixando-o distante, vazio, sem bus-
pautada pela mística
car qualquer coisa, e pronto para rece-
ber aquilo que deve preenchê-lo em sua
Na opinião de Giulia Paola di Nicola e Attilio Danese, o pen-
verdade pura. Pelo exercício da atenção,
alguém se livra das preocupações do pas- samento de Simone Weil foi constituído de traços existentes
sado e do futuro, e é capaz de perceber o entre filosofia, teologia e a fenomenologia do vivido
instante presente em toda a sua intensi-
dade. Quando isso ocorre, a pessoa entra
em um terceiro estágio do progresso es- Por Gilda Carvalho e Patrícia Fachin | Tradução Benno Dischinger
piritual: harmonia. Para Weil, a harmonia

“S
é um ajuste melódico entre a pessoa e o
universo. Uma pessoa alcança esse esta- imone chegou à mística pela via da busca da verdade. Não
do através da contemplação da beleza do desenvolveu seu pensamento após o encontro com Deus”,
mundo e as contradições que compõem dizem Giulia Paola di Nicola e Attilio Danese, diretores
a estrutura da realidade. Através dela, da revista Perspectiva Persona, da Itália. Cem anos após
a alma é arrastada em direção a presen- o nascimento de Simone Weil e pouco mais de 60 anos de
ça de Deus, e aprende como obedecer. sua morte, a obra da filósofa francesa é revisitada e, segundo os entrevista-
Quando isto ocorre, o indivíduo atingiu dos, “os estudos dedicados aos cátaros, ao hinduísmo, à gnose, às religiões
o último estágio da perfeição espiritual: pré-cristãs estão a demonstrar a importância do pensamento de Simone Weil
descriação. O conceito de descriação é para um diálogo entre as religiões baseado, acima de tudo, sobre as intui-
difícil de definir porque Weil utilizou-o
ções dos respectivos místicos”.
com três diferentes significados: 1) como
Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, eles desta-
um processo dialético, 2) como um pro-
cesso de divinização, e como um 3) es- cam a questão da estética na filosofia de Simone Weil e afirmam que a filósofa
tágio final da alma. Como um processo “antecipou os tempos, atribuindo ao ‘belo’ um caráter sacramental como via e
dialético, a descriação é a metodologia mediação do céu”. Sobre essa perspectiva, Giulia Paola di Nicola e Attilio Da-
através da qual as estruturas do ego são nese assinalam que a “teologia contemporânea reclama uma estética filosófica
dissolvidas progressivamente permitindo para poder continuar a falar de Deus numa fase pós-metafísica. As condições
que o sujeito desapareça e não perturbe do ato de fé são mais importantes do que os conteúdos da fé”.
a harmonia da criação. Como processo de Eles comentam ainda a relação de Simone Weil com o ritual do batismo e
divinização, a descriação é uma metodo- narram alguns motivos que provavelmente a fizeram esperar por este sacra-
logia pela qual a alma humana reproduz mento até o momento de sua morte.
uma reversão da criação de Deus. Assim, Giulia Paola Di Nicola ensina Sociologia em várias universidades italianas
se a criação é, de acordo com Weil, o
e é professora visitante em universidades do Canadá, Bélgica, Alemanha e
ato através do qual Deus “renuncia ser
Brasil. É vice-presidente da Parity Commission of the Abruzzo Region. Com
tudo”, para um ser humano, descriação
é renunciar seu próprio ser. Se a criação Maria Clara Bingemer, é autora de Simone Weil: Ação e Contemplação.
é atitude de Deus se esvaziar a si mesmo Attilio Danese é professor de filosofia em universidades italianas e, em
da sua divindade, descriação é a forma parceria com Giulia Paola Di Nicola, publicou Abissi e Vette. Il percorso spi-
pela qual um ser humano se esvazia da rituale e mistico di Simone Weil (LEV: Città del Vaticano, 2002) traduzido
falsa divindade com a qual nasceu. E se a para o português com o título Abismos e ápices (São Paulo: Edições Loyola,
criação é o ato supremo do amor divino 2003). Confira a entrevista.
pela humanidade, descriação é o ato ex-
tremo do amor humano por Deus. E como
um estágio final da alma, a descriação é IHU On-Line - Apesar de ter sido nese - Como sublinhamos nos nossos
o estágio que uma pessoa alcança no final profundamente tocada pelo Cristia- trabalhos sobre Simone Weil, até o
do seu processo espiritual, no qual ela al- nismo e seus pressupostos, sabe-se  Permitimo-nos remeter a: G. P. Di Nicola
cança uma profunda compreensão da re- que Simone Weil tinha sérias resis- – A. Danese, Simone Weil. Abitare la contra-
alidade; é capaz de penetrar os inúmeros tências em receber o sacramento ddizione, Dehoniane, Roma, 1992; Id., Abissi
e vette. Il percorso spirituale e místico di
véus que a separam de Deus; e alcança do Batismo. Quais eram essas resis- Simone Weil, Lew, Cidade do Vaticano, 2002
perfeição espiritual. tências? (em português: Abismos e ápices. Percursos
Giulia Paola di Nicola e Attilio Da- espirituais e místicos em Simone Weil, Ed.
Loyola, S.P., 2003; Bingemer M. C. – Di Nicola

14 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


fim da vida, ela opôs resistência aos assinala a transformação do indivíduo tino. Padre Perrin a compara a um sino
católicos que a convidavam a receber autocentrado num ser pelo qual passa que está no exterior do edifício e soa
o Batismo. As resistências de Simone o Bem no mundo. A ação não agente convidando a entrar na igreja. Para Si-
podem ser reconduzidas a diversas ra- supõe a “descriação” através da qual mone, é importante uma posição ex-
zões. Podemos sublinhar algumas: o homem habitado pelo Espírito Santo terna que permita um ponto de vista
- Sentia-se indigna por seu estado renuncia ao seu eu e se torna canal do desencantado e de certo modo capaz
de imperfeição. Padre Perrin, que não amor divino. de retocar o olhar de quem está den-
duvida da veracidade das experiências tro: “O retoque filosófico da religião
de fé e místicas de Simone, pensa que - Acreditava sinceramente que o católica jamais foi feito. Para fazê-lo,
ela teria recusado o batismo por exces- próprio Deus lhe solicitava que per- seria preciso estar dentro e fora”. Se-
so de escrúpulos. Simone corrige esta manecesse fora da Igreja. Simone gundo esta linha também outros intér-
sua impressão: “Já lhe disse outro dia acredita que, já que não percebe este pretes leram o “estar no limiar” como
que me creio indigna dos sacramentos. impulso irresistível, provavelmente o uma vocação de chamar quantos per-
Não é um pensamento que provém de próprio Deus a queira longe da Igre- manecem fora da Igreja.
um excesso de escrúpulos, como você ja por alguma misteriosa razão que
acreditou. Baseia-se, ao invés, de uma corresponde para ela a uma vocação. - Recusava conceber uma autori-
parte, sobre a consciência de culpas Simone esperou até o fim um sinal da dade eclesial com o poder de definir a
bem precisa na ordem e na ação com precisa vontade de Deus: “Se a vonta- verdade, avocando a poucos a tarefa
os seres humanos e, de outra parte, e de de Deus é que eu entre na Igreja, de exercitar a inteligência. A partir
em maior medida, se baseia num di- do momento em que Simone atribuía
fuso sentimento de insuficiência”. Ela, grande importância à liberdade da in-
de fato, reconhecia em si “o germe de “Deus é sempre maior teligência, que devia ser absoluta no
todo crime”. seu campo e rigorosamente individu-
do que aquilo que al no seu método, talvez não pudesse
- Não teve tempo de completar aceitar que Deus escolhesse homens
seu itinerário, truncado aos 34 anos de conseguimos imaginar. “privilegiados” como tarefa de pen-
vida, deixando uma marca de pensa- sar por todos, formulando a verdade
mentos expressos de modo provisório, Este princípio é de modo dogmático. Da mesma forma,
passíveis de desenvolvimentos cuja não podia suportar que Deus tivesse um
maturação devia ter seus ritmos, sem fundamental para toda povo “eleito”. Considerava, de fato,
acelerações. P. Perrin escreve: “Ex- que a própria noção de eleição fos-
pressou suas ideias numa forma provi- a teologia, mas com se incompatível com o Deus de todos
sória, não destinada à publicação. Ela (“trata-se de idolatria social, a pior”).
tem algumas anotações, tanto aquelas Simone se torna Todavia, não obstante as expressões ir-
consignadas a mim como a longa carta rompentes contra o abuso de poder da
destinada ao padre Couturier. Foram seguramente mais Igreja, não se pode dizer que faltem,
publicadas, comentadas e até idola- entre os apontamentos, pensamentos
tradas por alguns, porém se trata sem- evidente” de aceitação de uma função indicati-
pre de anotações”. va da mesma, embora não impositiva.
Tendia, além disso, a sublinhar a im-
- Não teria mudado suas ideias Ele me imporá esta vontade no mes- portância da adesão de amor, e não da
se não tivesse ficado profundamente mo momento em que merecerei o que ortodoxia dos conteúdos.
convencida. Para Simone, não é pre- ele me impõe. No segundo caso, se
ciso sequer fazer uma “boa ação”, se sua vontade é que eu não entre nela, - Atribuía grande valor ao pudor
não se é impelido diretamente por um como poderei entrar?” e à distância. Simone embalava uma
impulso interior que tem a ver com concepção do esponsalício nutrido
o bem: “Mas nós não devemos fazer - Desejava estar do lado dos “dis- de respeito e de abstenção voluntá-
nada mais do que aquilo a que somos tantes”, “confundir-se” com a massa ria da consumação do amplexo. Esta
irresistivelmente impelidos, nem mes- dos muitos que pertencem a todas as distância valia tanto nas relações de
mo em vista do bem”. Trata-se da te- raças e culturas, que não tiveram a amizade como no amor. Preferia espe-
oria da “ação não agente”, que vale sorte de encontrar o Cristo no passa- rar, sabendo sem dúvida nenhuma que
principalmente no campo do Espírito e do e no presente. Era demasiado im- o próprio destino era o de ser esposa,
G. P. Simone Weil. Azione e contemplazione. portante para ela permanecer próxi- mas reservando a união ao momento
Effatà Editrice, Turim, 2005 (em português: ma dos não crentes, dos hereges, dos em que sua alma estivesse pronta para
Simone Weil. Ação e contemplação, EDUSC, S. crentes de outras religiões; sentia que Cristo, livremente e por própria inicia-
P., 2005; em espanhol: Simone Weil. Acción
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contemplación, Desclée De Brouwer, Bilbau, seu lugar era entre eles e que, para tiva, e lhe faria então o dom de si. A
2007); G. P. Di Nicola – A. Danese, Persona e ser honesta e fiel com sua vocação, Eucaristia, o batismo, os sacramentos
impersonale in Simone Weil, Rubbettino, So- não poderia abandoná-los ao seu des- lhe apareciam como o sigilo de um
veria Mannelli, 2009. ������������������������
(Nota dos entrevistados)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 15


amor realizado, enquanto ela queria sed magis amica veritas [Platão é ami- batismo acreditaram A. Devaux (“É in-
continuar olhando de longe, não quei- go, mas a verdade é mais amiga]. contestável, hoje, que Simone Weil foi
mar a santidade do desejo, não salvar batizada”) e padre Perrin, que susten-
a alma pensando ter atingido a meta, IHU On-Line - E, por fim, ela foi ou tou ter encontrado “a amiga que de-
não entrar na rotina do amor “tumba não foi batizada? sejava permanecer anônima” durante
do matrimônio”, não correr aos sacra- Giulia Paola di Nicola e Attilio Dane- uma viagem, em outubro de 1987. Não
mentos para se enriquecer aos olhos se - Sim, foi batizada, embora per- temos razões sérias para duvidar da
de Deus. O desejo de união lhe parece manecesse fiel às suas convicções. À verdade de tais testemunhos e, de res-
mais forte, mais intacto se não reali- notícia do ocorrido batismo reações to, padre Perrin sustenta que por mais
zado, se capaz de se abster, de olhar de mal-estar foram manifestadas da vezes Simone lhe havia confiado que
amorosamente e esperar, sem nenhu- parte de quem a catalogara entre os “receber o batismo no momento da
ma pressa. socialistas anárquicos, agnósticos e morte podia ser para ela desejável”.
anticlericais e se apressara a assumi- Veja-se também o testemunho repas-
- Temia reduzir a intensidade do la como modelo de uma voluntária sado por Eric Springsted, que encon-
contato com Deus, reduzindo-o a ritos posição antieclesial. Hoje se conside- trou Deitz e escutou sua narrativa, na
costumeiros. Simone recomenda “ser- ra confiável o testemunho transmiti- Convenção de Téramo (Dezembro de
mos felizes de saber que Ele está infi- do por G. Hourdin: “Nós estamos con- 2008), e cujas atas são reproduzidas
nitamente fora do nosso alcance”. Se, vencidos, enquanto é possível, que no livro Pessoa e impessoal em Simone
ao contrário, “cremos ter um pai aqui Simone Weil foi batizada em Londres Weil.
em baixo, então não é Ele, mas um fal-
so Deus”. O temor do social, do qual IHU On-Line – Os acontecimentos que
vê encharcada a experiência da Igre- “Somente a verdadeira cercam o final de sua vida e seu se-
ja, vale também para os sacramentos pultamento também são carregados
que, além do contato com Deus, têm renúncia ao poder de de discussões sobre sua adesão ou
um valor humano enquanto símbolos e não ao catolicismo. O que se pode
cerimônias, e nisto lhe parece que não pensar tudo na dizer efetivamente a esse respeito?
diferem dos cantos, gestos e palavras Giulia Paola di Nicola e Attilio Dane-
de ordem de certos partidos políticos. primeira pessoa, esta se - Seria preciso evitar o engaiola-
mento dos grandes temas da espiritu-
- Não queria confundir amizade renúncia que não é o alidade suscitados por Simone dentro
e verdade. Ao P. Perrin e a Bousquet, da questão do batismo. Hoje se tende
Simone confessa que atribui à amizade simples transfer, a colocar na devida luz a fecundidade
uma importância ilimitada: “a amiza- do pensamento de Simone ao longo
de é para mim um bem incomparável, permite ao homem saber de todo o circuito de sua breve vida,
sem medida comum, uma fonte de a fim de favorecer um diálogo mais
vida, não em sentido metafórico, mas que os outros são seus aberto entre crentes e não crentes,
literal. Porque não só o meu corpo, entre católicos e seguidores de ou-
mas minha própria alma, inteiramente semelhantes” tras religiões. Embora as fontes que
envenenada pelo sofrimento, ambos atestam a ocorrência do batismo se-
resultam inabitáveis para meu pensa- jam confiáveis, do ponto de vista da
mento e é necessário que este se des- quando ainda estava no hospital. Foi vocação espiritual de Simone, todos
loque para outro lugar. Pode habitar batizada de maneira reservada, por os que foram atingidos por seu per-
em Deus somente por breves espaços uma pessoa de seu círculo, Simone curso espiritual a imaginam, em todo
de tempo. Habita mais frequentemen- Deitz, que era então sua melhor ami- o caso, na paz do abraço do Cristo,
te nas coisas. Mas, seria contra a natu- ga, e que o reconhece, que o afirma, quer tenha o batismo ocorrido de fato
reza que um pensamento humano não que é, para dizer a verdade, a úni- ou tenha sido um batismo de desejo.
habitasse em algo humano. Por isso, ca testemunha do fato, mas que não Ele, de fato, prometeu ir habitar jun-
literalmente, a amizade dá ao meu quer que se publique o seu nome...”. to a quantos o amam e prenunciou
pensamento toda a parte de vida que Simone Deitz manteve, de fato, se- um “exame final” não baseado sobre
não lhe deriva de Deus ou da bondade creto o fato por quase meio século, os sacramentos recebidos ou sobre a
do mundo. Ele pode, então, entender embora já J. Cabaud e Simone Pé- simples adesão às verdades, mas so-
que benefício me fez concedendo-me trément tivessem tido notícia disso, bre os pequenos gestos de caridade
sua amizade”. No entanto, precisa- sem nomear a autora do batismo, que com o próximo (“Tive fome e me des-
mente pelo valor que atribui à amiza- queria permanecer desconhecida. te de comer...”), gestos pelos quais a
de, Simone sabe que seria errada uma Hourdin sempre atestou que Simo- vida de Simone foi tecida. É verdade,
escolha feita para imitar ou dar prazer ne solicitou o batismo explicitamente,
ao amigo, se ela antes não fosse susci- que, portanto, não lhe foi subministra- �� Persona e impersonale. La questione antro-
pologica in Simone Weil (Soveria Manelli: Ru-
tada pelo próprio Cristo: Amicus Plato do sob pressão de alguma pessoa. No bettino, 2008). (Nota da IHU On-Line)

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no entanto, que, além da perspec- Cristo. Pelo menos me agrada crê-
tiva católica, o batismo é um dado
“Muitos leitores de lo”. Somente deixando saltar a ló-
que não pode ser esquecido ou su- gica da verdade para entrar naquela
bestimado, precisamente porque foi
Simone ficam da comunhão, Simone pode solicitar
requerido após um longo período de o batismo quando a “fome” supera
suspensão e de recusa, e ocorreu de
impressionados pela a necessidade de abster-se, de des-
modo “laico”, com água de torneira, conectar o desejo do objeto porque
subministrado por uma mulher e não
coexistência, até os uma evidência interior entrou elimi-
registrado nos livros paroquiais. nando a distância.
Por que Simone se convenceu a
últimos dias, de
aceitar o Batismo? O evento conserva IHU On-Line - Simone Weil era, sem
certo mistério nupcial. Canciani co-
experiências místicas dúvida, uma pessoa crente em Deus
menta assim: “O problema do batismo e absolutamente tomada pela expe-
é considerado muito seriamente. Como
e de empenho político. riência de Jesus Cristo que sofre no
conciliar a autonomia da inteligência outro que sofre. Quais as contribui-
com a iniciativa de Deus? Como é que
Simone mantém com ções mútuas dessa mística weiliana
o Cristo que é verdade, que desceu e para com a Teologia?
a buscou, não venceu esta última re-
naturalidade estes dois Giulia Paola di Nicola e Attilio Dane-
sistência? Por que a lançou na câmara se - Não queremos fazer-nos nem os
nupcial antes que fosse oficialmente a
registros, mostrando a censores nem os defensores da san-
esposa? Mas, o Amor talvez tenha uma tidade da pessoa e da obra de Simo-
obrigação, deve submeter-se ao sinal,
impossibilidade de viver ne. Gostaríamos antes de recolher de
a um sinal visível, e o sacramento, o seu pensamento alguns breves traços
batismo não é um sinal? Talvez conve-
a santidade fora das construtivos existentes entre filoso-
nha calar a esta altura, num fato de fia, teologia e fenomenologia do vi-
fé o silêncio tem a última palavra. P.
características vido. De uma parte, eles brotam do
Perrin, após haver experimentado to- aprofundamento relativo à sua obra
dos os caminhos, no final reconhece:
específicas da e, da outra, do significado que assu-
‘Se podemos denunciar um perigo, se- me sua vivência para a sensibilidade
ria muito inoportuno pretender julgar,
personalidade e das contemporânea. De resto, a teologia
porque estamos de cheio no segredo é sempre ‘biográfica’, no sentido de
de Deus’”.
tendências de cada um” ser a reflexão de um sujeito que vive
Pode-se pensar que ela tenha que- num contexto concreto.
rido aderir a um impulso interior de to particularmente fecundos nos últi- • Deus é sempre maior do que
origem sobrenatural, antes do que dar mos tempos. É o caso de sublinhar a aquilo que conseguimos imaginar. Este
prazer a quantos o tenham desejado continuidade de um percurso que ia princípio é fundamental para toda a
para ela. Certamente não se tratou de madurando com os anos e nos quais o teologia, mas com Simone se torna se-
uma escolha, segundo suas próprias papel primário da probidade, conduta guramente mais evidente.
palavras: “A mais bela vida possível culminante da coerência intelectual • O ato de entrega a um Deus
sempre me pareceu ser aquela na qual juvenil, cede o passo à caridade, sem pessoal está no cume do conhecimen-
tudo é determinado, tanto pela cons- desaparecer. to. Na filosofia da religião de Simone,
trição das circunstâncias quanto por Talvez também conviesse fazer a teoria do conhecimento conflui no
impulsos semelhantes e nos quais ja- referência àquele gênero de “loucu- ato de fé porque o ser humano en-
mais há lugar para alguma escolha”. ra” redescoberta especialmente nos contra seu cumprimento na dimensão
O evento se realizou não obstante as últimos tempos, que permite fazer espiritual. A pedra angular do implan-
suas convicções intelectuais, que a por amor o que seria impossível por te weiliano é o ato de fé que se apre-
certo ponto deixam de ser considera- via normal. Agora é somente o amor senta como livre consenso a um Deus
das como obstáculo insuperável. a caracterizar a verdade, assinalan- pessoal, ponto de chegada de uma
Seria redutivo interpretar o batis- do a passagem daquilo que a inte- metafísica do conhecimento.
mo em termos de “rendição” ou de ligência consegue atingir, daquilo • A linguagem da mística é a
marcha ré; não temos razões provadas que lhe é dado em acréscimo pela mais adequada para falar de Deus.
para crer que as opiniões de Simone Sapiência: “O órgão com o qual nós Simone coloca este problema no
Weil tenham mudado durante os úl- vemos a verdade é a inteligência; o contexto da cultura contemporânea,
timos meses. Ao contrário, as Cartas órgão em nós com o qual vemos Deus seguindo um percurso místico. Não
a um religioso parecem acentuar as é o amor”. Pode valer, a propósito do se pode falar de Deus a não ser por
dificuldades já expressas em outros batismo, o que ela mesa comunica a analogia. Isto se torna particular-
textos. Também a carta aos pais acena Schumann: “Esta adesão é amor, não mente evidente a propósito do dis-
para desenvolvimentos de pensamen- afirmação. Certamente pertenço a curso sobre a pessoa, conceito muito
SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 17
diverso se visto a partir do homem
ou de Deus. “Só Deus tem o direito
“Para Simone, a religião ricidade, ao estabelecer a descon-
tinuidade entre o Antigo e o Novo
de dizer “Eu sou”. O Eu sou de Deus
que é verdadeiro difere infinitamen-
ou é experiência mística Testamento. O Antigo Testamento,
como profecia da Aliança realizada,
te do eu sou ilusório dos homens.
Deus não é uma pessoa na maneira
do amor entre Cristo e é indispensável para historicizar o
evento da encarnação. Ao contrário,
pela qual um homem acredita sê-lo.
Somente a verdadeira renúncia ao
a alma, ou não é senão Simone tende a dissociar o Antigo
Testamento do Novo Testamento e,
poder de pensar tudo na primeira
pessoa, esta renúncia que não é o
aparato, rito, em geral, tudo o que considera bom,
ao contrário, condena ao esqueci-
simples transfer, permite ao homem
saber que os outros são seus seme-
consagração do social. mento. A brevidade de sua vida e a
relativa falta de aprofundamentos
lhantes. Esta renúncia a outra coisa
não é senão o amor de Deus, quer
Para o fato de que Deus históricos justificam em parte os li-
mites de certos juízos que não po-
seu nome esteja ou não presente em
seu pensamento”. O fato que todo
fala ‘no segredo’ o dem ser compartilhados.
• Mística e teologia. No centro
discurso sobre Deus seja analógico
constitui um convite para purificar
respeito da consciência da vida das almas há, para Simone,
a experiência do contato com Deus.
a fé de toda forma de projeção, de
transfer e de ideologia.
às coisas de Deus é Esta tende a ser contraposta à te-
ologia sistemática, enquanto hoje
• Os sacramentos e o sacra-
mento. Simone enfrenta a questão
coisa sagrada” se reconhece a fecundidade da in-
tegração entre a dimensão mística e
dos sacramentos segundo um con- o discurso teológico, purificando os
ceito de encarnação que lhe permite havia falado do “simbolismo do belo” excessos da razão e o outro as deri-
afirmar que o contato com Deus, por como condição da teologia que deixa vas espiritualistas.
qualquer caminho que se realize, é o às costas a metafísica. Com efeito, a • Eclesiologia. O contraste de
sacramento por excelência. Ela põe teologia contemporânea reclama uma Simone com a Igreja enquanto “corpo
em evidência o caráter sacramental estética filosófica para poder continu- social” adquire hoje uma ressonância
de toda a criação e a estrutura sim- ar a falar de Deus numa fase pós-me- particular, tanto do ponto de vista in-
bólica do conhecimento que capta a tafísica. As condições do ato de fé são telectual, referente às relações entre
relação com Deus. A reflexão simbó- mais importantes do que os conteú- indivíduo e coletividade, quanto do
lica é considerada como postulado dos da fé. Falou-se de uma teologia ponto de vista cultural, pela difundida
da teologia. da beleza em Simone, precisamente recusa do aparato institucional da fé.
• Estética. Simone antecipou os porque seu pensamento é rico de es- Ela privilegia a presença do Cristo no
tempos, atribuindo ao “belo” um ca- tética teológica. segredo ou “entre dois ou mais”. Tal-
ráter sacramental como via e media- • Diálogo inter-religioso. Os vez isso contribua a tornar mais claro
ção do céu. Kant, na Crítica do juízo, estudos dedicados aos cátaros, ao aquilo que dom Urine dizia ao jovem
hinduísmo, à gnose, às religiões pré- Silone: “E recorda-te disto: ‘Deus não
 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prus- cristãs estão a demonstrar a impor-
siano, considerado como o último grande filó- está somente na Igreja’”. Privilegia
sofo dos princípios da era moderna, represen-
tância do pensamento de Simone seguramente a igreja invisível à Igreja
tante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos Weil para um diálogo entre religiões, ‘aparato’ da verdade tendencialmente
seus pensadores mais influentes da Filosofia. baseado, acima de tudo, sobre as in-
Kant teve um grande impacto no Romantismo dogmática.
alemão e nas filosofias idealistas do século
tuições dos respectivos místicos.
XIX, tendo esta faceta idealista sido um ponto • Antropologia e teoria da Gra- Cf. D. Silone, Carta [Lettera] (in A. Danes- G.
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de partida para Hegel. Kant estabeleceu uma ça. Em teologia há uma tendência à P. Di Nicola, Silone. ���������������������������
Percorsi di uma conscienza
distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si inquieta, Fundação Silone, L’Aquila 2005; em
(que chamou noumenon), isto é, entre o que
reflexão sistemática que se desenvol- português: Ignazio Silone. Percursos de uma
nos aparece e o que existiria em si mesmo. A ve em torno da teoria da graça e da consciência inquieta, Publicações monásticas,
coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser ob- antropologia teológica. Simone Weil Rio de Janeiro 2005). A carta de Darina, mu-
jeto de conhecimento científico, como até en- lher de Silone, continua assim: “Silone (como
tão pretendera a metafísica clássica. A ciência
deu um significativo impulso à teoria Simone Weil de outro lado, ao pensamento da
se restringiria, assim, ao mundo dos fenôme- da graça contemporânea. qual se ligou muito depois que em 1950 lhe dei
nos, e seria constituída pelas formas a priori • Historicidade e a-historici- de presente A espera de Deus [L’Attente de
da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas ca- Dieu]) teria sido um homem “extramoenia”,
tegorias do entendimento. A IHU On-Line nú-
dade. A atenção de Simone às diver- fora dos muros que não significa, todavia, fora
mero 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria sas tradições vivas e escritas exalta da Igreja”, mas “dentro de uma Igreja maior”,
de capa à vida e à obra do pensador com o tí- a historicidade acima da reflexão a das consciências, da autêntica e universal
tulo Kant: razão, liberdade e ética, disponível fraternidade, o Cristo maior do que a Igreja”.
para download em http://www.ihuonline.uni-
da teologia sistemática. Ao mesmo Veja-se também: M. C. Lucchetti Bingemer,
sinos.br/uploads/edicoes/1161093369.8pdf. tempo, isto comporta certa a-histo- Mounier, Weil e Silone. Três testemunhas do
pdf. Também sobre Kant foi publicado o Ca- ética, que pode ser acessado em http://www. século XX. Rio de Janeiro, Editora PUC - Rio
dernos IHU em formação número 2, intitulado ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/ e Ed. UAPÊ, 2007, p 159-192). (Nota dos en-
Emmanuel Kant - Razão, liberdade, lógica e 1158328261.83pdf.pdf. (Nota da IHU On-Line) trevistados)

18 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


“A contradição não é somente o cume ao qual deve
chegar uma inteligência honesta consigo mesma,
mas também a característica de Deus, onipotente e
onisciente, pessoal e impessoal, uno e trino, puro
sofrimento e pura alegria. Tais contradições não se

Leia as Notícias do Dia e a Entrevista do Dia


podem explicar com a teologia, mas somente
contemplar na ‘loucura do amor’ e da mística”

no endereço www.ihu.unisinos.br
• O testemunho do vivido. De • Atenção à verdade e à san-
fato Simone constitui hoje um mode- tidade. Simone chegou à mística
lo de percurso espiritual que passa do pela via da busca da verdade. Não
agnosticismo à recusa da mentira, à desenvolveu seu pensamento após
busca da verdade. É um testemunho o encontro com Deus, com o fim de
que interroga a teologia. De fato, tornar compreensível a revelação,
esta se nutre de testemunhos que as- embora tenha impostado sua vida so-
sinalam uma época e que se tornam bre a atenção à verdade, consagran-
um precioso objeto de reflexão, do do a ela todas as suas energias. O
qual a teologia necessita para pôr-se Cristo lhe respondeu e se doou a ela.
em sintonia com o próprio tempo. A atenção foi para Simone o caminho
• Santidade encarnada. A vida e que a conduziu diretamente à meta.
a obra de Simone contêm claramente “Muito lhe é perdoado porque muito
sinais indicadores de santidade, em- amou” é a frase que Jesus pronuncia
bora em contraste com as afirmações no Evangelho em defesa da Madalena
particulares de seu pensamento. Isso ante os fariseus e os bem pensantes,
convida a desvincular o reconheci- frase que se pode aplicar a Simone
mento da santidade da complexa or- se o ter amado indica aquele seu ba-
todoxia de toda frase particular e de ter incessantemente à porta, aque-
toda convicção. Pode-se ter pensado, la sua doação sem reservas à qual a
escrito e feito coisas que hoje o sen- Verdade em pessoa respondeu.
so ético comum não compartilha e, • A essência da religião. Para Si-
no entanto, haver tocado os cumes mone, a religião ou é experiência mís-
da unidade da alma com Deus. Isto tica do amor entre Cristo e a alma, ou
vale para Simone como para os gran- não é senão aparato, rito, consagração
des santos reconhecidos pela Igreja, do social. Para o fato de que Deus fala
algumas afirmações dos quais podem “no segredo” o respeito da consciência
hoje soar de forma dissonante e até às coisas de Deus é coisa sagrada.
contraditória com respeito ao atual • Contradição e loucura. A con-
magistério, e, no entanto, não invali- tradição não é somente o cume ao
dam o carisma de fundo. qual deve chegar uma inteligência
• Mística e política. Muitos lei- honesta consigo mesma, mas tam-
tores de Simone ficam impressionados bém a característica de Deus, onipo-
pela coexistência, até os últimos dias, tente e onisciente, pessoal e impes-
de experiências místicas e de empenho soal, uno e trino, puro sofrimento e
político. Simone mantém com natura- pura alegria. Tais contradições não
lidade estes dois registros, mostrando se podem explicar com a teologia,
a impossibilidade de viver a santida- mas somente contemplar na “loucu-
de fora das características específicas ra do amor” e da mística.
da personalidade e das tendências de
cada um.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 19


Simone Weil. A vida em busca da verdade
Comungar com o sofrimento do outro era o desejo constante de Simone Weil. Ao
vivenciar a realidade, ela ensina que só há uma maneira de lidar eticamente com o
poder: transformá-lo em serviço, diz Maria Clara Bingemer

Por Gilda Carvalho e Patrícia Fachin

“C
omungar com o sofrimento do outro, e não apenas fazer teorias sobre ele; par-
ticipar das aflições do outro, e não apenas dissertar sobre elas; mergulhar pro-
fundamente na dor do mundo até o ponto de fazê-la sua, não ficando longe dela
e tratando-a assepticamente”. Na opinião de Maria Clara Bingemer, Decana do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro - PUC-Rio, essas são as marcas que caracterizam a mística de Simone Weil. Nascida
e criada em uma família cristã, a filósofa francesa sempre viveu de modo cristão, embora, segundo
Maria Clara Bingemer, “não se servia das noções ou dos conceitos cristãos em termos teóricos”.
Fiel à sua forma mentis e decidida a nunca buscar a Deus, “ela acreditava firmemente que não se
pode atingi-Lo aqui embaixo, na Terra, pelo pensamento e pela razão. Nunca O buscou a fim de não
se iludir pensando em tê-Lo encontrado e assim expressá-Lo falsamente”, menciona.
Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, a pesquisadora Maria Clara
Bingemer também explica o desejo de Simone Weil em vivenciar o momento da morte e o seu encon-
tro com o absoluto.
Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da Universidade Católica do Rio
de Janeiro - PUC-Rio. Pesquisadora da vida e obra de Simone Weil, publicou com G.P.di NICOLA Si-
mone Weil: ação e contemplação (São Paulo: EDUSC, 2005) e Simone Weil: A força e a fraqueza do
amor (Rio de Janeiro: Rocco, 2007). Organizou e publicou pelas editoras Paulinas e PUC-Rio, Simone
Weil e o encontro entre as culturas (São Paulo/ Rio de Janeiro: Paulinas / Editora PUC-Rio, 2009),
com os textos inéditos do colóquio de mesmo nome, realizado no Rio de Janeiro, em 2007. Confira a
entrevista.

IHU On-Line - A aproximação de Si- No entanto, afirmava também que uma vida futura, mas sim no momento
mone Weil do Cristianismo é marca- sempre considerou como única atitude da morte como aquele em que caem
da por uma profunda coerência en- possível para si mesma a atitude cris- todos os véus, e a verdade nua se
tre a sua experiência mística e sua tã. Dizia: “Nasci, cresci, sempre per- apresenta à alma. E dizia, claramen-
efetiva ação intelectual e política, maneci na inspiração cristã”. Sem usar te, nunca ter desejado outra coisa
que surpreende seus interlocutores as palavras teológicas e/ou morais, Si- na vida que encontrar essa verdade.
e impacta até hoje aqueles que to- mone Weil faz aí uma distinção impor- Segundo conta sua biógrafa, Simone
mam contato com seu pensamento. tante dentro do pensamento cristão: Pétrement, bem como todos os seus
Quem era Cristo para Simone Weil? ela vivia cristãmente (com atitudes demais biógrafos, isso está absolu-
Maria Clara Bingemer - No livro A espe- que somente depois chegaria a poder tamente certo: para assegurar-se de
ra de Deus, autobiografia que escreve nomear), mas não se servia das noções que estava sendo movida pela verda-
ao Pe. Perrin, Simone Weil, fiel a sua ou dos conceitos cristãos em termos de, Simone Weil sempre procurou agir
forma mentis, explica porque nunca teóricos. Essas concepções, tornadas pela obediência aos acontecimentos
buscou a Deus. Ela acreditava firme- práticas vitais, estavam nela desde ou às circunstâncias. Daí decorre,
mente que não se pode atingi-Lo aqui que tomara consciência de sua huma- segundo a biógrafa, sua decisão de ir
embaixo, na Terra, pelo pensamento e nidade. para a fábrica.
pela razão. Nunca O buscou a fim de Com a sede absoluta de verdade
não se iludir pensando em tê-Lo encon- que possuía, Simone Weil declarava  Simone Pétrement: notável historiadora
trado e assim expressá-Lo falsamente. nunca ter-se permitido pensar em francesa, especializada em filosofia clássica e
cristianismo primitivo. (Nota da IHU On-Line)

20 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


Encontro com o absoluto des místicos cristãos?
“É verdade que o Cristo Maria Clara Bingemer - Nisto ela se
Em seguida, ela descreve alguns aproxima muito de vários místicos cris-
episódios de sua vida nos quais encon- que Simone Weil tãos, sem dúvida. A sintonia com Jesus
trou o absoluto que tanto buscava e Crucificado, o desejo de participar de
o qual nomeava “verdade”. Dizia ela: conhece, apesar de lhe sua Paixão, sempre é uma constante
“Sob o nome de verdade eu engloba- na experiência dos místicos cristãos.
va também a beleza, a virtude e toda sorrir e lhe mostrar o Podemos confirmar isso, por exemplo,
espécie de bem, de maneira que se lendo a obra de Santa Teresa de Ávila
tratava para mim de uma concepção rosto do amor, é sempre, e de São João da Cruz, além de ou-
da relação entre a graça e o desejo”. tros. Mas, certamente, poucos tiveram
Narra sua crise dos catorze anos (quan- e inseparavelmente, o um desejo tão ardente de comunhão
do crê que, por não ter dons intelec- com a paixão como Simone Weil. Para
tuais excepcionais, nunca acederia à Cristo crucificado” ela, esse desejo era, indubitavelmen-
verdade), quando justamente recebe te, inseparável da compaixão que ex-
a revelação de que todo aquele que Foi um encontro pessoa a pessoa, algo perimentava diante do sofrimento do
busca realmente a verdade, pode en- totalmente novo para ela, que, no seu outro, do próximo, do infeliz. Essa
contrá-la. Depois, fala do espírito de próprio dizer, achava impossível para compaixão a acompanhou e a ator-
pobreza que jamais deixou de estar um ser humano em sua vida cronoló- mentou. É ela mesma que diz ao Pe.
nela; descreve seu amor por São Fran- gica e biológica, ou seja, um encontro Perrin no livro A espera de Deus: “para
cisco; fala da caridade para com o de pessoa a pessoa, face a face, de quem ama de verdade, a compaixão é
próximo, que o Evangelho chama jus- um ser humano com Deus. No entanto, um tormento”.
tiça (a qual sente presente em si des- foi isso que experimentou, identificou Durante toda a vida, desde a in-
de a mais tenra infância). Em seguida, e nomeou, ao afirmar, sem medo que fância até o momento de sua morte,
versa sobre a vocação para a pureza foi Cristo em pessoa (e não Deus, mais comungar com o sofrimento do outro
que experimenta e que assume, ao em geral) que desceu e a tomou para era um desejo e uma paixão constante
contemplar, aos dezesseis anos, uma si. Esse encontro, ela o relatará com para essa brilhante intelectual, filóso-
paisagem montanhosa. Por fim, fala os traços reais de um encontro pesso- fa e pensadora. Por isso, sua mística
do dever de aceitação da vontade de al: “um sorriso que se vê em um ros- é tão impressionantemente atual e,
Deus, que de início ela liga ao amor to amado”; presença de ternura, de apesar de suas “diferenças” com os
fati dos estóicos. amor etc. Cristo é Deus e é homem. É místicos cristãos mais ortodoxos (di-
Simone Weil diz saber que sua con- pessoa com quem outra pessoa se en- ficuldades com a instituição eclesiás-
cepção de vida era cristã. Eis porque contra, além de ser aquela figura dig- tica, resistências a receber o Batismo
nunca cogitou entrar oficialmente na na de grande admiração que sempre etc.), aproxima-se de tal maneira de-
instituição eclesial, por achar que já lhe havia atraído a atenção, mesmo les e, assim igualmente, dos homens e
estava dentro dela. Acrescentar a essa quando ainda não haviam acontecido mulheres de hoje que, muitas vezes,
vida, que a seu ver já era cristã, o seus outros encontros com o Cristianis-  Teresa de Ávila (1515 - 1582): freira car-
melita espanhola nascida em Ávila, Castela,
dogma – como ela dizia – lhe parecia mo. Em suma, a Cristologia de Simone famosa reformadora da ordem das Carmelitas.
uma falta de probidade. E, assim sen- Weil é muito integrada e mesmo mui- Canonizada por Gregório XV (1622), é feste-
do, levando a honestidade intelectual to atual, se a olharmos do ponto de jada na Espanha em 27 de agosto, e no resto
do mundo em 15 de outubro. Foi a primeira
até o fim como sempre o fizera, impe- vista da Teologia propriamente dita. mulher a receber o título de doutora da igreja,
dia-se de ir à Igreja, onde, no entanto, Trata-se de algo que integra, profunda por decreto de Paulo VI (1970). Entre seus li-
gostava de estar. e harmonicamente, transcendência e vros citam-se Libro de su vida (1601), Libro de
las fundaciones (1610), Camino de la perfec-
É muito surpreendente, portanto, humanidade. E é bem inserida no seio ción (1583) e Castillo interior ou Libro de las
sua experiência de ser, em suas pró- do Mistério Trinitário, tal como a Cris- siete moradas (1588). Escreveu também poe-
prias palavras, “tomada pelo Cristo”. tologia hoje faz questão de estar. Em mas, dos quais restam 31 deles, e enorme cor-
respondência, com 458 cartas autenticadas.
 São Francisco de Assis (1181-1226):�������
Sobre
todo caso, é verdade que o Cristo que Sobre Teresa, confira Teresa - A Santa Apaixo-
Francisco de Assis, confira a edição �������
238 da Simone Weil conhece, apesar de lhe nada, Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, de auto-
IHU On-Line, de 01-10-2007, intitulada Fran- sorrir e lhe mostrar o rosto do amor, é ria de Rosa Amanda Strausz; Obras completas.
cisco. O santo, disponível para download em São Paulo: Loyola, 1995; Santa Teresa de Jesus
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
sempre, e inseparavelmente, o Cristo – “Livro da vida”. 4ª ed., São Paulo: Ed. Pau-
edicoes/1191270143.68pdf.pdf. Leia também crucificado. lus, 1983. (Nota da IHU On-Line)
o artigo de Ildo Perondi, publicado nos Ca-  São João da Cruz (1542-1591): frade carme-
dernos Teologia Pública número 42, intitulado lita espanhol, famoso por suas poesias místi-
Contribuições da Espiritualidade Franciscana
IHU On-Line - Sua experiência mís- cas. Doutorou-se em teologia mística e fundou
no cuidado com a vida humana e o planeta, tica sempre esteve atrelada à expe- a ordem das Carmelitas Descalças, com Santa
disponível para download no link http://www. riência do sofrimento, inclusive o Teresa de Ávila. Seu dia é comemorado em 24
ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/ de novembro. Sobre São João da Cruz, confi-
1231332914.6463pdf.pdf (Nota da IHU On-
sofrimento físico. Em que isso a di- ra As obras completas de São João da Cruz.
Line) ferencia - ou a aproxima - dos gran- 7ª ed., Petrópolis: Vozes, 2002. (Nota da IHU
On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 21


passam pelas mesmas dificuldades que a compaixão pelos desgraçados é uma benfeitores. Apenas Deus pode liber-
ela com a instituição. Mas experimen- impossibilidade e, quando ela acon- tar alguém de sua desgraça presente
tam a mesma necessidade de proximi- tece verdadeiramente, é um milagre e, sobretudo, passada. E, lembrando
dade e serviço aos sofredores de toda mais surpreendente que andar sobre que o corpo glorioso do Ressuscitado
espécie. as águas, curar doentes e mesmo res- levava as marcas dolorosas da Paixão,
Comungar com o sofrimento do suscitar um morto”. Simone Weil vai dizer que a própria
outro, e não apenas fazer teorias Simone Weil cita como exemplos graça de Deus não chega a curar total-
sobre ele; participar das aflições do daqueles que experimentaram a des- mente aqui embaixo a natureza irre-
outro, e não apenas dissertar sobre graça, Jesus Cristo, quando supli- mediavelmente ferida.
elas; mergulhar profundamente na ca ser poupado do suplício e se crê Ela diz, ainda, que Deus cria por
dor do mundo até o ponto de fazê- abandonado pelo Pai; e Jó, um justo amor ou para o amor, não havendo
la sua, não ficando longe dela e tra- que grita contra Deus. Ela declara criado outra coisa senão o amor e
tando-a assepticamente: essas são que esses textos são maravilhosa- todas as suas formas. Ele criou seres
as marcas características da mística mente belos, porque absolutamente capazes de amar em todas as dis-
de Simone Weil. verdadeiros, e não há neles sombra tâncias possíveis. E acrescenta: “Ele
de mentira. A desgraça torna Deus mesmo foi porque nenhum outro po-
IHU On-Line - Por outro lado, é essa ausente por um tempo, mais ausen- deria fazê-lo, à distância máxima,
mesma experiência que vai constituir te que um morto ou que a luz numa à distância infinita. Essa distância
uma ação efetivamente engajada, masmorra. E, durante a ausência, infinita entre Deus e Deus, dilacera-
colocando-a próxima aos sofredores. não há nada a amar. O terrível é que, mento supremo, dor da qual nenhu-
Quais seriam, portanto, as lições que se durante a ausência, a alma deixa ma outra se aproxima, maravilha do
Simone Weil lega às gerações atuais? amor, é a crucifixão. Ninguém pode
Maria Clara Bingemer - Simone Weil estar mais longe de Deus do que
concebe a desgraça (malheur) como “Certamente, poucos aquele que foi feito maldição”.
um desenraizamento da vida. Tra- Por isso, os seres humanos atingi-
ta-se, para ela, de algo equivalen- tiveram um desejo tão dos pela desgraça – e entre eles, sem
te, ainda que de forma atenuada, dúvida, Simone Weil se conta a si mes-
à morte, tornado irresistivelmente ardente de comunhão ma – estão ao pé da Cruz, quase na dis-
presente à alma pelo golpe ou pela tância maior possível de Deus. E, com
apreensão imediata da dor física. com a paixão como admirável agudeza teológica, diz ela:
Esta é essencial à desgraça, pois, a “Não se deve crer que o pecado seja
dor apenas moral, entregue somente Simone Weil” uma distância maior. O pecado não é
ao pensamento, pode produzir uma uma distância. É uma má orientação
fuga do próprio pensamento. Só a dor do olhar”.
física, portanto, não permite a fuga de amar, a ausência de Deus pode Assim, distingue os que sofrem
e, quando ela acontece, se produz se tornar definitiva; mas, se ela não conscientemente, como os persegui-
um estado violento como o de um cessa de amar, Deus virá a ela e mos- dos por sua fé – os mártires – do Cris-
condenado que tem de olhar durante trar-lhe-á a beleza do mundo. to. Aqueles não eram desgraçados, ele
horas a guilhotina que o matará. Ela Ela diz ainda que a natureza humana sim. Ele não morreu como um mártir.
afirma que há seres que vivem isso e rejeita e despreza os que são feridos, Morreu como um criminoso de direito
que apenas o olhar de Cristo em nós infelizes ou desgraçados, acrescentan- comum, misturado aos ladrões, so-
permite percebê-los. do que, nestes, isso que é comum a mente um pouco mais ridículo, pois a
Por isso, para ela, a desgraça é o todo ser humano se volta contra ele desgraça é ridícula. Só a necessidade
grande enigma da vida humana, pois mesmo, penetra no centro de sua alma cega pode jogar os seres humanos ao
não é surpreendente que haja crimes, e o faz ver o Universo todo informado ponto de extrema distância, ao lado
genocídios, doenças etc. uma vez que por isso. Só o amor sobrenatural, se da Cruz, na distância abissal e intrans-
os criminosos ou a natureza mesma le- está presente na alma do desgraçado, ponível.
vem isso a cabo. Mas, “o surpreenden- pode impedir esse segundo efeito, mas O amor a Deus, o amor ao outro
te”, diz ela, “é que Deus tenha dado não o primeiro. e a obrigação de lutar pelo outro
à desgraça o poder de tomar a alma Ela aplica esse pensamento a Cris- sempre foram inseparáveis para ela.
dos inocentes e de se apossar dela en- to “feito maldição por nós”. Não é O sofrimento do pobre, do necessi-
quanto mestre soberano. No melhor somente o corpo de Cristo suspenso tado, do infeliz tinha peso e valor
dos casos, aquele que é marcado pela no madeiro que foi feito maldição; é de sacramento em sua sensibilidade
desgraça só guardará a metade de sua também toda a sua alma. Assim mes- altamente espiritual e em sua inte-
alma.” mo todo inocente na desgraça se sen- ligência privilegiada. Em seu último
“Assim”, continua, “porque é tão te maldito e acaba sendo cúmplice de livro, escrito no exílio de Londres,
dificilmente perceptível pelos outros, sua própria desgraça, odiando até seus O Enraizamento, ela vai desenvolver

22 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


a noção de “obrigação”, que será benesses da sociedade neoliberal des- sua fé, Simone Weil traz um testemu-
chave em sua reflexão. É quando te início de século, seja deste terrível nho que é realmente extraordinário.
elabora essa frase lapidar: “Onde há privilégio da cultura e dos recursos do Apesar de seu compromisso com os
necessidade, há obrigação”. Onde o saber para o bem comum e o cresci- pobres, ela não se converte em uma
outro padecia de qualquer tipo de mento de uma sociedade onde reinem “basista”, que crê inútil o estudo, a
necessidade, aí o coração de Simone a paz e a justiça. reflexão e as atividades propriamente
Weil estava, transladando-se inteiro Ela nos ensina ainda que o traba- intelectuais. Ao contrário, vive a afir-
pela compaixão até a desgraça que lho intelectual desvinculado da rea- mar que a atenção – indispensável ao
vitimava o outro. lidade e de seus problemas, confli- trabalho intelectual enquanto busca
  tos e sofrimentos, deixa de ser uma da verdade – implica uma gratuidade
IHU On-Line - Não se pode deixar de honesta e autêntica busca da ver- que não busca eficácia, resultados ou
pensar também que Simone Weil, dade, tornando-se um diletantismo sucessos imediatos. Nesse sentido, o
apesar de todo seu engajamento e irresponsável e criminoso. Trata-se pensamento de Simone Weil pode ser
de toda sua rejeição ao fausto e aos de uma pensadora ferida pela ver- profundamente inspirador para au-
privilégios acadêmicos, era uma in- dade que “... nenhuma poesia sobre têntica vocação, ao mesmo tempo em
telectual. Em carta a Gustave Thibon o povo é autêntica se a fadiga não que é chamado a servir as urgências
ela afirma que essa condição, contu- estiver presente nela, assim como a maiores que a sociedade lhe lança
do, trazia em si “responsabilidades fome e a sede nascidas da fadiga”. como desafios.
terríveis”. O que a intelectual Simo- Ela traz, aí, uma poderosa crítica As terríveis responsabilidades dos
ne Weil tem a dizer aos intelectuais a todo trabalho intelectual, literá- detentores da cultura e da vocação
de hoje, sobretudo aos intelectuais rio ou artístico que não comungue intelectual, que inquietaram Simone
cristãos? profundamente com a realidade e, Weil no primeiro quartel do século
Maria Clara Bingemer - Parecem- muito concretamente, com a cama- XX, continuam sendo as nossas, pro-
nos de extrema atualidade o teste- da mais sofrida e doída desta reali- dutores do saber e conhecimento, e
munho e o pensar de Simone Weil dade, ali, onde há pobreza, fadiga, formadores das novas gerações neste
sobre o que seja a vida intelectual opressão. início do século XXI. Aqui como lá,
e suas responsabilidades e consequ- Nesse sentido, não podemos dei- o testemunho de Simone Weil conti-
ências. Em um mundo atravessado xar de registrar que sua experiência nua de impressionante atualidade e
de injustiça e opressão, pertencer a na fábrica acontece nos anos 1930, profunda capacidade interpelativa.
um determinado meio social, ter um ou seja, mais de vinte anos antes
nível de escolaridade e de formação que na França se pusesse em marca
e cultura intelectual é, sem dúvida, o movimento dos padres operários.
um privilégio terrível. Terrível de- E, ainda, quarenta anos antes que na Leia mais...
vido à imensa responsabilidade que América Latina, a Teologia da Liber-
ele implica. tação propusesse seus três mode- >> Maria Clara Bingemer já participou
de outras edições da IHU On-Line. Acesse em
Em uma sociedade como a nossa, los de opção pelos pobres, a saber: www.ihu.unisinos.br
com a queda das utopias e o triunfo do conversão de interesses, alternância • Nem homem nem mulher: Paulo misógino? Ar-
modelo neoliberal, há duas maneiras e encarnação. Simone Weil viveu o tigo publicado nas Notícias do Dia em 27-9-2008
e disponível no link http://www.ihu.unisinos.
de ter poder: possuir recursos mate- modelo da encarnação até as últi- br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&t
riais (dinheiro, poder aquisitivo e to- mas consequências sem renunciar ask=detalhe&id=16981;
dos os seus derivados: influências etc.) ao trabalho intelectual, mas, pelo • “O documento não tem o prefetismo e o sopro
libertador que caracterizou Medellín e Puebla”.
ou ter acesso ao saber, deter algo do contrário, integrou-o ao movimento Edição número 224, de 20-6-2007, intitulada Os
domínio do pensamento, da cultura, kenótico de integrar-se na vida dos rumos da Igreja na América Latina a partir de
da palavra organizada, que permite pobres. Aparecida. Uma análise do Documento Final da V
Conferência. Disponível em http://www.ihuonli-
articular a reflexão e o discurso, lide- Finalmente, cremos que para ne.unisinos.br/index.php?option=com_tema_cap
rar sobre pessoas e grupos, influenciar aqueles que, como ela, exercem sua a&Itemid=23&task=detalhe&id=485;
e preponderar sobre as grandes massas atividade intelectual inspirados por • “Igreja que deseja ser ouvida numa cultura
pós-cristã precisa ter um testemunho forte, crí-
anônimas que têm como único recurso  Teologia da Libertação: escola importante vel e consistente que acompanhe o discurso”.
a força de seus corpos e mãos para o na teologia da Igreja Católica, desenvolvida Edição 220, de 21-5-2007, intitulada O futuro da
depois do Concílio Vaticano II. Surge na Amé- autonomia, uma sociedade de indivíduos? Aces-
trabalho. rica Latina, a partir da opção pelos pobres, e se em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
Simone Weil vai ensinar que só exis- se espalha por todo o mundo. O teólogo peru- php?option=com_destaques_semana&Itemid=24
te uma maneira de lidar eticamente ano Gustavo Gutierrez é um dos primeiros que &task=lista&idedit=10;
propõe esta teologia. A teologia da libertação • Os jesuítas e a expansão da cultura moderna.
com qualquer uma dessas vias de po- tem um impacto decisivo em muitos países do Edição número 183, de 5-6-2006, intitulada Flo-
der: é transformar o poder em serviço, mundo. Sobre o tema confira a edição 214 da resta de Araucária: uma teia ecológica complexa.
assumindo a imensa responsabilidade IHU On-Line, de 02-04-2007, intitulada Teolo- Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.
gia da libertação, disponível para download no br//uploads/edicoes/1158354193.6word.doc;
que implica ter sido dotado seja de re- link http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo-
cursos materiais que abrem acesso às ads/edicoes/1175543970.11pdf.pdf. (Nota da
IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 23


A exigência de uma nova universalidade
Na visão de Emmanuel Gabellieri, a originalidade de Simone Weil é ter tido, à luz
da Encarnação, a intuição de uma teologia das religiões capaz de refletir as condi-
ções da descida de Deus a todas as condições humanas de existência

Por Gilda Carvalho e Graziela Wolfart | Tradução Benno Dischinger

“S
imone Weil pode ajudar a avançar na compreensão das ‘vias e meios de salvação
que só Deus conhece’, indicadas pela tradição cristã desde os padres até a Gau-
dium et Spes. Seu gênio sadio parece ter procurado (...) definir mais profundamen-
te o espaço de mediação entre o humano e o divino, exigindo de uma parte que
sejam analisadas a um nível espiritual todas as dimensões da existência humana e,
de outra parte, que seja tomado em conta, pela filosofia e pela teologia, o conjunto das culturas e
das religiões universais”. A declaração é do professor Emmanuel Gabellieri, em entrevista concedida,
por e-mail, para a IHU On-Line. Ao refletir sobre a obra de Simone Weil O enraizamento, ele explica
que o que ela chama “enraizamento” implica, portanto, um triplo enraizamento: “a) no mundo sen-
sível; b) na aspiração a um bem transcendente; c) numa comunidade cujo papel é o de articular as
duas primeiras dimensões, a saber, as necessidades da alma e as necessidades do corpo. Eis porque ‘o
enraizamento’ é um conceito-chave do diálogo intercultural. Cada sociedade, cada cultura, estando
fundada sobre esta articulação, cada uma pode e deve, com efeito, ser julgada por sua capacidade
de realizá-la em função da exigência de dignidade e de reconhecimento presente no coração de
cada ser humano”. E continua: “é porque cada homem é constituído por uma ligação íntima entre o
desejo do bem e a sensibilidade, elo que define o que há no homem de ‘sagrado’, que as sociedades
devem estar fundadas, não sobre uma declaração abstrata e individualista dos ‘direitos’ do homem,
mas sobre uma declaração das ‘obrigações com o ser humano’. Nascem por aí as obrigações com a
coletividade como tal, que conduzem a opor o amor de uma ‘cidade’ (mediadora do universal) e a
submissão ao ‘grande animal social’, cuja pretensão exclusiva à existência é fonte da idolatria tota-
litária e do desenraizamento”.
Emmanuel Gabellieri é professor da Universidade Católica de Lyon, na França, e um dos maiores
especialistas na obra de Simone Weil. Entre suas publicações, citamos: Simone Weil: uma filosofia
da Mediação e do Dom, in Simone Weil, Ação e contemplação (G. P. di Nicola - M. C. Bingemer org.),
São Paulo: Edusc, 2005; Vie publique et vita activa chez S.Weil et H.Arendt, Cadernos Simone Weil,
1999, p.135-52 e Etre et Don. S.Weil et la philosophie, Bibliothèque philosophique de Louvain n°57,
Peeters, Louvain-Paris, Dudley, 2003. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Em sua obra O enrai- pode, de saída, suscitar perplexidade. o maior número de necessidades da
zamento, Simone Weil propõe 14 ne- As 14 “necessidades da alma”, expos- alma em cinco pares de opostos: 1) Li-
cessidades da alma. Quais são elas? tas na primeira parte da obra, definem berdade e Obediência; 2) Igualdade e
Elas obedecem a uma estrutura lógi- com evidência os modos de relação, e Hierarquia; 3) Honra e Punição; 4) Se-
ca? então de “enraizamento”, julgados es- gurança e Risco; 5) Propriedade priva-
Emmanuel Gabellieri - As necessida- senciais entre o indivíduo, a sociedade da e propriedade coletiva. Ficam fora
des da alma de que fala Simone Weil e o mundo. Mas, segundo que lógica? desta organização a Ordem, a Liber-
em O enraizamento são pensamentos Não é certo que Simone Weil as tenha dade de opinião e a Verdade. Tendo a
situados numa estrutura espaço-tem- elaborado perfeitamente, mas pode-se Liberdade já sido citada precedente-
poral que primeiramente é cósmica, tentar misturar aqui observações e hi- mente, parece que “Liberdade de opi-
mas sempre se encontra mediada pela póteses. Um princípio de organização nião” e “Verdade”, embora separadas
dimensão social da existência. A lista parece claramente o seguinte, pitagó- na sucessão tal como elas são dadas,
que é estabelecida em O enraizamento rico, da união dos contrários, ligando poderiam constituir um sexto par de
24 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313
contrários. Restam então a Ordem (a de Jacques Maritain em 1927, por oca-
primeira das necessidades expressas)
“Simone Weil se apoia sião da condenação da Action Française,
e a Responsabilidade (em quarta po- que recusava a atitude dos católicos dis-
sição) que, com a Verdade (fechando
em sua experiência cípulos de Maurras querendo identificar
a lista) parecem apresentar-se como pura e simplesmente o cristianismo e a
metacategorias, ligando entre si as
espiritual e num herança da cultura greco-latina. A mes-
precedentes. O que as observações ma intuição de dever, sob este ponto de
feitas fazem realçar é uma psicosso-
universalismo místico vista, “desocidentalizar” o cristianismo
ciologia na qual a alma se define pela para poder realizar sua dimensão univer-
rede de relações que a nutrem e a fa-
enraizado no próprio sal (a qual oferece, sem dúvida, além de
zem viver no seio de uma comunidade. seus desacordos, um dos paralelos mais
A estrutura espaço-temporal do enrai-
Deus” significativos entre Maritain e Simone
zamento se desenvolve, assim, num Weil, como o mostra sua comum aber-
sistema de relações recíprocas que cuja pretensão exclusiva à existência tura à Índia) se encontra em Fides et ra-
permitem o reconhecimento mútuo. é fonte da idolatria totalitária e do de- tio. Mas, paralelamente, Fides et ratio
Sistema de necessidades que define, senraizamento. recusa igualmente uma vontade de “de-
também, simultaneamente, o sistema selenizar” o cristianismo, o que signifi-
das “obrigações com o ser humano”. IHU On-Line - Como este mesmo con- caria recusar o valor de universalidade
ceito pode ser aplicado ao diálogo da cultura e da filosofia gregas e do que
IHU On-Line - Como o enraizamento inter-religioso? elas trouxeram ao cristianismo: como in-
concebido por Simone Weil pode ser Emmanuel Gabellieri - Pode-se tentar siste nisso, por exemplo, o § 72: “A Igre-
um conceito-chave no diálogo inter- resumir a perspectiva de Simone Weil ja não pode deixar para trás o que ela
cultural? dizendo que, para ela, cada cultura e adquiriu por sua inculturação na cultura
Emmanuel Gabellieri – O que Simone cada religião contêm em si “sementes greco-latina. Recusar tal herança seria ir
Weil chama “enraizamento” implica, do Verbo”. Ao mesmo tempo, o Cristo contra o desígnio providencial de Deus”.
portanto, um triplo enraizamento: a) transcende todas as culturas e o próprio Esse privilégio concedido à Grécia fica
no mundo sensível; b) na aspiração a cristianismo histórico. Esta perspectiva claro quando nos atemos ao plano filo-
um bem transcendente; c) numa co- cruza os cacifes mais recentes da refle- sófico, pelo fato de que, quaisquer que
munidade cujo papel é o de articular xão católica, dos textos do Magistério aos sejam os debates entre as duas maiores
as duas primeiras dimensões, a saber, teólogos de diversos horizontes. Pode- tradições da linha aristotélico-tomista
as necessidades da alma e as neces- se fazer referência à encíclica Fides et e do platonismo cristão, estas têm em
sidades do corpo. Eis porque “o en- ratio de João Paulo II como primeiro comum que não crêem numa oposição
raizamento” é um conceito-chave do exemplo. Neste texto, com efeito, a En-  Jacques Maritain (1882-1973): filósofo fran-
diálogo intercultural. Cada sociedade, carnação do Verbo transcende as cultu- cês. O pensamento tomista de Maritain serviu-
cada cultura, estando fundada sobre ras, pois “a encarnação realiza a síntese lhe de parâmetro para a abordagem e julga-
esta articulação, cada uma pode e mento de situações concretas como a política,
que o espírito humano não teria podido a educação, a arte e a religião vigentes. Mas
deve, com efeito, ser julgada por sua imaginar: o Eterno entra no tempo, o tratou também da base da gnosiologia, deci-
capacidade de realizá-la em função da Todo se oculta no fragmento (...) a ver- dindo-se pelo realismo imediato e intuição do
exigência de dignidade e de reconhe- ser, tal como no aristotelismo e na escolástica
dade não está mais fechada num quadro originária. Diferenciou a filosofia e a ciência
cimento presente no coração de cada cultural restrito, mas se abre a todo ho- experimental, bem como as diversas ciências
ser humano. É porque cada homem é mem“ (§ 12). De modo que o Cristo im- filosóficas. Advertiu para a diferença entre o
constituído por uma ligação íntima en- tema da lógica e o da gnosiologia. Foi um dos
pede que uma cultura possa tornar-se “o principais expoentes do tomismo no século XX.
tre o desejo do bem e a sensibilidade, critério último da verdade, no referente Uma de suas obras principais é Por um huma-
elo que define o que há no homem de à revelação de Deus” (§ 71). Mostramos nismo cristão (São Paulo: Paulus, 1999). Sobre
“sagrado” (EL 11-44), que as socieda- Maritain, confira o recém-lançado Maritain à
em outra ocasião que esta acentuação contre-temps: Pour une démocratie vivante
des devem estar fundadas, não sobre retomava tipicamente a argumentação (Paris: Desclée de Brouwer, 2007), do filósofo
uma declaração abstrata e individu- jesuíta Paul Valadier. (Nota da IHU On-Line)
alista dos “direitos” do homem, mas  Charles Maurras: (1862-1952) nacionalista,
 Fides et Ratio: décima segunda Encíclica anti-semita e anti-republicano, o escritor e
sobre uma declaração das “obrigações do Papa João Paulo II, de 14 de setembro de teórico político francês exerceu grande influ-
com o ser humano” (EL 74-84). Nas- 1998. Ela fala sobre as relações entre a fé e ência intelectual na Europa do início do século
cem por aí as obrigações com a coleti- a razão (fides et ratio), que constituem como XX. Seu nacionalismo de direita antecipou al-
que as duas asas pelas quais o espírito humano gumas idéias do fascismo. (Nota da IHU On-
vidade como tal (E 15), que conduzem se eleva para a contemplação da verdade. A Line).
a opor o amor de uma “cidade” (me- encíclica recorda que a fé a razão foram o ob-  “Seria um erro mortal confundir a causa uni-
diadora do universal) e a submissão ao jeto de estudos exaustivos por parte de Santo versal da Igreja e a causa particular de uma
Tomás de Aquino no século X, nomeadamente civilização, de confundir, por exemplo, latinis-
“grande animal social” (OC VI 2 419), na sua Suma Teológica. Recorda o trabalho de mo e catolicismo”, pois “a Igreja é universal”
 Não esquecer que o título original de O En- apropriação pelo Ocidente, dos séculos XII e e “(...) todas as nações nela se encontram
raizamento é “Prelúdio a uma declaração dos XIII, da filosofia de Aristóteles, um dos maiores em casa”. J. Maritain, Primado do espiritual,
deveres com o ser humano”. (Nota do entre- filósofos da Grécia Antiga. (Nota da IHU On- Plon, 1927, p. 143 ss. [na ed. Francesa]. (Nota
vistado) Line) do entrevistado)

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irredutível entre helenismo (ou paganis- mundo. Pode-se também considerar
mo) e cristianismo. Assim, a recusa de “Ela acreditava na que as religiões não-cristãs participam,
opor razão e fé, a convicção que o logos segundo certos graus, da perfeita me-
filosófico e o logos da revelação podem verdade dos diação revelada no Cristo. É em todo o
se encontrar e se abrir um ao outro criou caso nesta perspectiva, a partir do exa-
a tradição que, dos padres da Igreja à sacramentos, e esses são me dos ritos e preceitos morais de cada
Fides et ratio, constitui a norma regula- religião, que poderiam ser definidos o
dora das relações entre fé e culturas. os ‘três contatos’ com o que no seguimento de Maritain diversos
teólogos atuais chamam de “elementos
As culturas e religiões não-cristãs catolicismo que a de eclesialidade” presentes no seio das
Mas então, como fica a situação das religiões não-cristãs. A originalidade
culturas e religiões não-cristãs e que conduziram à de Simone Weil é ter tido, à luz da En-
não participam diretamente da he- carnação, a intuição de uma teologia
rança da Grécia? É precisamente aqui experiência mística das religiões capaz de refletir as condi-
que Fides et ratio parece a mais ino- ções da descida de Deus a todas as con-
vadora em todo o caso na história do que teve após Solesmes dições humanas de existência. De onde
Magistério contemporâneo, pois após a exigência de uma “nova santidade”
haver enunciado esta herança, o texto e Assis” no mundo, capaz de “prolongar a En-
afirma, com efeito, que o diálogo que, carnação” nas condições históricas da
no limiar da história humana, não faz modernidade, o que foi a razão primei-
senão iniciar entre o cristianismo e a mesmo tempo uma transcendência do ra que a impeliu a escrever O enraiza-
Índia, apresenta problemas análogos cristianismo sobre as outras religiões e mento, que é um texto circunstancial
àqueles dos primeiros séculos, dos julga o cristianismo “incompleto” sem enquanto encerra, ao mesmo tempo,
quais deverá resultar um “enriqueci- que isso possa e deva lhe trazer o diá- valor universal.
mento do pensamento cristão”, o que logo com as outras religiões. E ele de-
vale também, acrescenta o texto, para veria ajudar a definir uma via capaz de IHU On-Line - Qual é a relação entre
as “grandes culturas da China e do Ja- evitar tanto um “exclusivismo”, pelo Simone Weil e a Igreja Católica? Que
pão e dos outros países da Ásia (...) e as qual não haveria nenhuma abertura ao contribuições específicas seus escri-
culturas tradicionais da África”. O que Verbo nas religiões não-cristãs, como tos podem oferecer à Igreja?
é notável nesta passagem não é somen- um “pluralismo” relativista, que não Emmanuel Gabellieri - O que acaba
te o paralelo já extremamente auda- veria no cristianismo mais do que uma de ser dito precedentemente permite
cioso estabelecido entre o diálogo dos via entre outras. Uma perspectiva pela pensar que Simone Weil pode ajudar
“primeiros séculos” e o dos séculos fu- qual não haveria nenhuma contradição a avançar na compreensão das “vias e
turos, o que já implica uma perspectiva entre a localização espaço-temporal da meios de salvação que só Deus conhe-
profética. Mas, é considerar que, sem Encarnação e sua verdade universal, ce”, indicadas pela tradição cristã des-
precisar negar a universalidade trazida pois, em todos os casos, a salvação se de os padres até a Gaudium et Spes.
pela razão grega, o diálogo vindouro opera pelo vínculo, explícito ou implí- Seu gênio sadio parece ter procurado,
entre o cristianismo e as grandes cul- cito, com a humanidade do Cristo, uni- como Blondel ou Maritain, definir mais
turas da Índia, da China, do Japão ou da a toda carne. É por isso que Simone profundamente o espaço de mediação
da África trará ao pensamento cristão Weil definia como critério universal da entre o humano e o divino, exigindo, de
um “enriquecimento” análogo àquele salvação, de um lado, a adesão implí- uma parte, que sejam analisadas a um
dos séculos passados. Ora, era esta a cita ao sobrenatural (o desejo de um nível espiritual todas as dimensões da
convicção e o profetismo expressos de Bem que o homem não pode dar-se a si existência humana e, de outra parte,
maneira solitária por Simone Weil há mesmo), e, de outro, a adesão implíci- que seja tomado em conta, pela filoso-
mais de 60 anos, fundados na certeza ta ao Cristo em toda compaixão autên- fia e pela teologia, o conjunto das cul-
de uma presença do Verbo nas culturas tica, pois, pelo bem que se faz a outra turas e das religiões universais.
e religiões não-cristãs. pessoa humana, nos unimos Àquele que  Cf. notadamente as contribuições de M. Ca-
gin, F. Daguet, B. de la Soujeole, nas Atas do
se uniu a toda carne para salvá-la. colóquio “Santo Tomás e a teologia das religi-
Uma transcendência do cristianismo Esta dimensão de salvação, Simone Weil ões, Revue Thomiste. (Nota do entrevistado)
sobre as outras religiões tende a atribuí-la diretamente à cons-  Maurice Blondel (1861-1949): filósofo fran-
cês. Mestre de conferências na Universidade
ciência de todo homem que vem a este de Lille, 1895-1896. Professor em 1897 na Uni-
O cacife dessas pesquisas é conside-  Crer que a Igreja tem “a plenitude dos meios versidade de Aix-en-Provence, permanecendo
rável. Ele deveria esclarecer a manei- de salvação” segundo a fórmula clássica, de no posto até sua enfermidade em 1927. Co-
um lado não garante que seus fiéis vivam ple- nhecido por sua filosofia da ação, que partia
ra com a qual Simone Weil pensa ao namente, e de outro, não impede que os não- de um intuicionismo inicial, irrompendo para
 Para efetuar outra confrontação, cf. nosso cristãos deem por vezes melhor testemunho do um espiritualismo metafísico antipositivista,
estudo: “Deus pessoal, Deus impessoal, Deus que os cristãos de valores evangélicos, como com aparência neoplatônica e tomista, eclé-
trinitário: Índia e cristianismo em S. Weil e J. Maritain e S. Weil o pensaram, por exemplo, tica e misticista, com algumas moderações, e
Monchanin”, Théophilyon III-2, junho de 1998, diante do exemplo de ação não violenta de que o aproximam ao existencialismo cristão.
p. 449-478. (Nota do entrevistado) Gandhi. (Nota do entrevistado) (Nota da IHU On-Line)

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Há, então, os que temem que a Igre- do”, este termo de encarnação sendo definir? Inicialmente ela pode ser si-
ja e a mediação eclesial desapareçam sempre, em Simone Weil, sinônimo tuada em função das críticas que Weil
totalmente em tal perspectiva. Mas, a de universalidade, já que ele garante formula, malgrado sua proximidade,
posição de Simone Weil é complexa a precisamente a possibilidade de uma em relação ao Pe. Perrin depois de
esse respeito e não seria correto fixá- relação concreta e singular entre cada J. Maritain. Ao Pe. Perrin, ela censu-
la numa simples rejeição, ela que di- ente humano e o Deus vindo a este ra ao mesmo tempo não reconhecer
zia em Londres a propósito da Igreja mundo. suficientemente a existência de uma
que ela tinha a impressão de mentir Em sua realmente última carta ao Pa- “fé implícita”, fora da Igreja visível, e
a si mesma estando “fora” ou estando dre Perrin, escrita de Casablanca (Car- de um vínculo, por mais sutil que ele
“dentro”. O que Simone Weil rejeita- ta VI de 26 de maio de 1942), que é, seja, com a Igreja como “pátria huma-
va era o fechamento espiritual de uma portanto, um testemunho privilegiado na” 12. “Os filhos de Deus não devem
teologia que ela encontrou, e que ela da “passagem” do período de Marse- ter nenhuma outra pátria aqui embai-
via, com ou sem razão (e eu penso que lha ao de Londres, Simone Weil, de- xo, senão o próprio universo em sua
havia as duas possibilidades na épo- pois de ter escrito que “nós vivemos totalidade (...). Em vista das coisas
ca), afirmar de maneira literal “fora uma época sem precedente”, na qual daqui de baixo, nosso amor deve ter
da Igreja <visível> não há salvação”. a universalidade do cristianismo deve (...) a mesma igualdade como o sol”
E temia, aliás, tanto uma estreiteza daqui por diante ser “explícita”, de- 13
. É aqui que aparece a ideia de “nova
dogmática negadora dos “mistérios” clara: “hoje em dia nada vale senão santidade”: “em direção da nascen-
da fé, como o fenômeno de poder e de ser um santo; é necessária a santidade te”, se assim se pode dizer, Simone
potência social no cristianismo. Mas, que o momento exige, uma santidade Weil se apoia em sua experiência es-
paralelamente, com frequência se es- nova, também sem precedente”. E piritual e num universalismo místico
quece isso, ela acreditava na verdade ela acrescenta: “Maritain o disse, mas enraizado no próprio Deus: “O amor
dos sacramentos, e esses são os “três ele somente enumerou os aspectos da que preenche assim todo o universo
contatos” com o catolicismo que a santidade de outrora, que hoje em dia torna-se o pinto que rompe o ovo do
conduziram à experiência mística que são, pelo menos por um tempo, supe- mundo. Tal amor ama o universo não a
teve após Solesmes e Assis. Ela pas- rados. Ele não sentiu quanto a santi- partir de dentro, mas de fora, do lugar
sava horas de adoração do santo sa- dade de hoje deve encerrar realmen- puro onde se encontra a sabedoria de
cramento na capela dos dominicanos te novidade miraculosa.”10 Como eu Deus, nosso irmão primogênito” 14. E
em Marselha, e não deixou de ter uma mostrei, analisando a gênese e os di- “em aval”, surge a exigência, que dá
eucaristia e um batismo de “desejo”. ferentes rascunhos desta carta ao Pe. lugar às páginas finais da carta de 26
Dito de outra forma, não cessou de ser Perrin, a sequência do texto mostra de maio: “tornai-vos católico... outro-
nutrida pela mediação eclesial, como que temos aqui a matriz intelectual e ra se podia sê-lo implicitamente (...)
jamais evitou aqueles que dela partici- espiritual da ideia de “novidade” que atualmente é preciso que isso seja ex-
pam diretamente, como seus amigos, estará no princípio de O enraizamen- plícito. Santidade nova, original”.
o padre Perrin ou Gustave Thibon. to alguns meses mais tarde, onde ela
escreverá: “O problema de um méto-
Um fechamento à dimensão do para insuflar uma inspiração a um
Leia mais...
social da Igreja povo é totalmente novo” 11.
Qual é a “novidade” que Simone Weil >> Emmanuel Gabellieri já concedeu ou-
tra entrevista à IHU On-Line:
O que concluir? Seria preciso desen- quer aqui indicar e que O enraiza- * Três mulheres em busca da verdade e da
volver e matizar bem mais do que é mento, escrito em Londres, procura justiça. Publicada na IHU On-Line número
168, de 12-12-2005, disponível no link http://
possível aqui. De um ponto de vista 10 AD 81. Sublinhamos a insistência sobre uma www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/
espiritual e humano ao mesmo tempo, novidade que Simone Weil reexprime imedia- 1158350658.23word.doc
tamente: “Um tipo novo de santidade, que é
pode-se pensar que seu temor de toda um jorrar, uma invenção (...) quase o análogo
empatia coletiva a fechou à dimensão de uma revelação nova do universo e do desti-
social da Igreja, e, por isso, a partir no humano (...). É necessária mais genialidade 12 Cf. AD 75-79. (Nota do entrevistado)
do que foi necessária a Arquimedes para in- 13 Carta de 14 de maio de 1942, ms. 243-2,
deste ponto de vista, a uma dimensão ventar a mecânica...” (AD 82). O que confirma verso. (Nota do entrevistado)
da encarnação da fé, pois como os sa- nossa interpretação que ali está o ponto de 14 Acrescentado a lápis, em baixo à direi-
cramentos poderiam operar sem me- partida de “O Enraizamento e do conjunto dos ta, ms. 243-2, verso: são as fórmulas que se
textos de Londres, e é o que segue imediata- encontra mais desenvolvidas em AD 79-80. A
diação institucional e social? Mas, de mente: “O mundo necessita de santos que te- referência à sabedoria de Deus “irmão primo-
outro lado, é demasiado claro que é a nham genialidade (...). Onde há necessidade, gênito” é seguramente a referência à metafí-
exigência de uma universalidade nova há obrigação (ibid.). A relação é evidente com sica cristã do Verbo (e do Logos grego), mas o
a Primeira parte de O Enraizamento, intitula- “pinto que rompe o ovo do mundo” remete ao
que Simone Weil quer afirmar com da “As necessidades da alma”, mas também “ovo do mundo” da Bahvrichâ Upanischad e à
força, clareando a censura feita sem com o verdadeiro título do conjunto “Prelúdio “alma do mundo” da Chandogya Upanischad.
cessar por Simone Weil ao cristianismo a uma declaração dos deveres com o ser huma- Tem-se, pois, aí uma condensação notável da
no”, como com o “Estudo para uma declaração mística de um amor universal que, extraído da
histórico, particularmente moderno, das obrigações com o ser humano” (EL 74-84). tríplice raiz cristã, grega e indiana, é agora o
de não ser suficientemente “encarna- (Nota do entrevistado) nó inspirador de todo o pensamento weiliano.
11 E 237. (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado)

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Metaxu: a união de planos diferentes de realidade
Na opinião do filósofo Fernando Rey Puente, a noção de metaxu, ou seja, de inter-
mediário, é fundamental no pensamento de Simone Weil, pois possibilita estabele-
cer contato com o Bem, transcendente e inacessível

Por Gilda Carvalho e Patricia Fachin

“U
ma hermenêutica das culturas pensada de modo original e singular”, a obra de
Simone Weil deve “ser entendida como uma ampla reflexão sobre as culturas”,
sugere Fernando Rey Puente, professor de Filosofia da Universidade Federal de
Minas Gerais – UFMG, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Para
ele, a estratégia teórica que está por trás das interpretações da escritora e filó-
sofa francesa “reside em uma dupla operação exegética que ela empreende”. Por um lado, menciona,
ela mostra que o mundo grego está inserido no contexto mundial e também recebeu a revelação divi-
na. Por outro, enfatiza, “ela tenta mostrar que o cristianismo é essencialmente filosófico e científico,
e que nada foi mais danoso para o mesmo do que a separação que começou a haver entre a ciência e
a religião cristã a partir do Renascimento”.
Desde o princípio da vida, a matemática e a mística tiveram um significado especial para Simone
Weil, e, na percepção da escritora, revestidas de mística, as ciências poderiam nos levar a Deus. “Ela
queria repensar uma nova ciência que pudesse ser ‘lida’ também num plano místico. Uma ciência
que estivesse à altura de nossa civilização do trabalho, algo que nem mesmo os gregos, que ela tanto
estimava, chegaram a compreender”, acentua.
Fernando Rey Puente é mestre em Filosofia pela Freie Universität Berlin, na Alemanha, e doutor
na mesma área pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É também autor de livros sobre
Schelling, Aristóteles e Simone Weil. Destacamos Simone Weil et la Grèce (Paris: L’Harmattan, 2007)
e As Concepções Antropológicas de Schelling (São Paulo: Loyola, 1997). Recentemente, organizou, em
parceria com o Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, o Congresso Internacional Simone
Weil e a Filosofia, em comemoração ao centenário da filósofa. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a função dos me- exemplo, é um desses intermediários desde a mais tenra idade um ver-
taxu na composição do pensamento para ela, um intermediário de extre- dadeiro gênio, razão pela qual ela
weileano? ma importância. comparava a infância dele à de Pas-
Fernando Rey Puente - A noção de cal. Devido a essa imensa superiori-
metaxu, ou seja, de intermediário, IHU On-Line - Como a matemática se dade intelectual que ela acreditava
tem um papel fundamental no pensa- insere na vida de Simone Weil e como existir entre ela e seu irmão, Simone
mento de Simone Weil, na medida em ela influencia seu pensamento? chegou mesmo a sentir-se alijada do
que é por meio desses intermediários Fernando Rey Puente - A matemá- reino do espírito, até que, um dia,
que é possível estabelecer um conta- tica está presente desde os primór- ela teve uma espécie de revelação
to com o Bem, que é transcendente e dios da vida de Simone Weil, pois ela de acordo com a qual compreendeu
inacessível para nós. Como ela postula cresceu e foi educada ao lado de seu que ninguém está impossibilitado
existir diferentes planos de realida- irmão, André Weil, um dos matemá- de adentrar nesse território caso
de e que acredita na possibilidade de ticos mais importantes do século XX. se empenhe verdadeiramente a en-
eles poderem ser “lidos” um detrás Ela dizia que seu irmão havia sido trar nele com dedicação e atenção.
do outro, os intermediários são es-  André Weil (1906-1998): matemático fran- Desse modo, ela sentiu-se consolada
cês, irmão de Simone Weil. É reconhecido por
senciais no seu pensamento, pois são sua obra seminal em teoria dos números e
para continuar seus estudos.
eles que permitem a passagem de um geometria algébrica. Foi membro-fundador e Ela entende a matemática prin-
plano para o outro. A matemática, por de fato o líder mais velho do Grupo Bourbaki. cipalmente em relação à civilização
(Nota da IHU On-Line)

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grega, em particular em relação a Pla- IHU On-Line - Seria possível afirmar como uma ampla reflexão sobre as cul-
tão e aos pitagóricos. Na sua inter- que Simone Weil possuía uma com- turas. Trata-se de uma hermenêutica
pretação dessa civilização que tanto preensão mística das ciências, em das culturas pensada de modo original
amava, ela não considerava a mate- especial da Matemática? e singular.
mática apenas como uma mera disci- Fernando Rey Puente - Sem dúvida, A estratégia teórica que está por
plina formal e abstrata, mas também, ela pensava que a matemática e as ci- trás de sua interpretação reside em
e, sobretudo, como a verdadeira ciên- ências em geral deveriam ser revesti- uma dupla operação exegética que
cia da natureza e como uma mística. das de uma dimensão mística, ou seja, ela empreende: por um lado mostrar
Em outras palavras, a matemática era elas deveriam nos levar a Deus. Para que o mundo grego se insere em um
um metaxu que permitia unir planos Weil, a ciência grega nada mais era contexto mundial no qual todos ou
diferentes de realidade. Esse duplo do que uma ponte para nos conectar quase todos (à exceção os romanos)
aspecto da matemática é, portanto, a Deus. Mas, cabe ressaltar, ela, de os povos da Terra receberam uma re-
essencial para que se compreenda a modo algum, tinha um projeto nostál- velação divina, inclusive os gregos.
importância que suas reflexões sobre a gico de retorno ao mundo grego. O que Ou seja: contrariamente à ideia tão
matemática terá no desenvolvimento queria mesmo era repensar uma nova propalada que na Grécia teria ocor-
de sua obra e de sua relação e aprecia- ciência que pudesse ser “lida” também rido algo único – o triunfo da razão
ção de diversos pensadores, tais como num plano místico. Uma ciência que autônoma e soberana - que se en-
Platão e Descartes, dois dos mais im- tende como o nascimento da razão
portantes filósofos que influenciaram a “Ela tenta mostrar que e o abandono do mito, ela pensa que
sua filosofia. a própria ciência grega nada mais é
 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. o cristianismo é do que a revelação particular que
Criador de sistemas filosóficos influentes até essa civilização recebeu para mediar
hoje, como a Teoria das Ideias e a Dialética.
Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de
essencialmente filosófico a distância por eles sentida entre
Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A
a transcendência do Bem (exposta
República e o Fédon. Sobre Platão, confira e e científico, e que nada em Platão) e a miséria dos homens
entrevista As implicações éticas da cosmolo- (apresentada em suas tragédias).
gia de Platão, concedida pelo filósofo Prof.
Dr. Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU foi mais danoso para o Por outro lado, ela tenta mostrar
On-Line, de 04-09-2006, disponível em http:// que o cristianismo é essencialmente
www.ihuonline.unisinos.br/uploads/edicoes/
1158342983.13pdf.pdf. Leia, também, a edição
mesmo do que a filosófico e científico, e que nada foi
294 da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009,
mais danoso para o mesmo do que
disponível em http://www.ihuonline.unisinos. separação que começou a separação que começou a haver
br/uploads/edicoes/1243280653.711pdf.pdf. entre a ciência e a religião cristã a
(Nota da IHU On-Line)
 Pitagóricos: membros da Escola Pitagórica, a haver entre a ciência e partir do Renascimento. Ora, a iden-
que recebeu o nome do fundador, o grego Pi- tidade entre os conceitos de logos e
tágoras. Outros pensadores importantes foram
Filolau, Arquitas, Alcmeón e a matemática e
a religião cristã a partir arithmos permite a ela reler a tra-
física Theano. A escola teve como ponto de
dição grega e a tradição cristã em
partida a cidade de Crotona, sul da Itália, e do Renascimento” nova chave hermenêutica. Assim, o
difundiu-se vastamente. Trata-se da escola fi- logos do início do Evangelho de João
losófica grega mais influenciada exteriormente
pelas religiões orientais, e que por isso mais
é lido não como “verbo”, mas sim
se aproximou das filosofias dogmáticas regidas estivesse à altura de nossa civilização como “mediação” no sentido mate-
pela ideia de autoridade. O pitagorismo in- do trabalho, algo que nem mesmo os mático. Igualmente, ela pode “ler”
fluenciou o futuro platonismo, o cristianismo
e ainda foi invocado por sociedades secretas
gregos, que ela tanto estimava, chega- no reencontro de Orestes e Antígo-
que atravessaram o tempo até alcançarem os ram a compreender. Por isso, enfatiza na o reencontro da alma humana
dias de hoje. O símbolo da Escola Pitagórica o trabalho como a especificidade de com Cristo. Em suma, ela elabora
era o Pentagrama, uma estrela de cinco pon-
tas. (Nota da IHU On-Line)
nossa civilização, e, necessariamente, um complexo método de “leitura”
 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico deveria ser em torno a essa noção de (um conceito central para ela) que
e matemático francês. Notabilizou-se, sobre- trabalho que uma nova espiritualidade a capacita a “ler” diversas analogias
tudo pelo seu trabalho revolucionário da Filo-
sofia, tendo também sido famoso por ser o in-
deveria se erguer. entre fatos e culturas aparentemen-
ventor do sistema de coordenadas cartesiano, te diversos e desconexos com imensa
que influenciou o desenvolvimento do cálculo IHU On-Line - Simone Weil tinha duas facilidade e originalidade.
moderno. Descartes, por vezes chamado o fun-
dador da filosofia e matemática modernas, ins-
grandes paixões: o Cristianismo e a  Orestes: na mitologia grega, Orestes era fi-
pirou os seus contemporâneos e gerações de cultura ou a tradição grega. Como ela lho do rei Agamemnon de Micenas e da rainha
filósofos. Na opinião de alguns comentadores, aproxima essas duas forças tão pre- Clitemnestra, e irmão mais novo de Ifigênia.
ele iniciou a formação daquilo a que hoje se (Nota da IHU On-Line)
chama de racionalismo continental (suposta-
sentes em sua vida?  Antígona: figura da mitologia grega, filha
mente em oposição à escola que predominava Fernando Rey Puente - De fato, essa de Édipo e Jocasta. A versão clássica do mito
nas ilhas britânicas, o empirismo), posição filo- aproximação me parece constituir a sobre a Antígona é descrita na obra Antígona,
sófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota do dramaturgo grego Sófocles, um dos mais
da IHU On-Line)
verdadeira chave para a compreensão importantes escritores de tragédia. (Nota da
de sua obra, que deve ser entendida IHU On-Line)

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Entrevistas da Semana
Missões jesuíticas em terras não cristãs
Especialista nas missões realizadas pela Companhia de Jesus no mundo, Ana Luisa
Janeira considera que o desafio mais importante para os jesuítas hoje é manter a
preocupação pela educação de qualidade

Por Graziela Wolfart

“O
s jesuítas desenvolveram um típico relacionamento baseado na música e na
expressão plástica, especialmente a escultura, o que é visível ainda hoje no
espólio das reduções jesuíticas, quer na Argentina, no Paraguai, no Uruguai ou
aqui no Brasil”. Quem já teve a oportunidade de visitar alguma região das mis-
sões sabe do que a professora Ana Luisa Janeira está falando. Janeira pesquisa
as missões jesuíticas há muitos anos e conhece muito bem as características da Companhia de Jesus
pelo mundo. Para ela, na entrevista que nos concedeu pessoalmente, na Unisinos, “os jesuítas, inde-
pendente de nós concordarmos ou não, sempre têm estendido uma educação de qualidade. E é impor-
tante que isso continue. E é igualmente importante que eles sejam capazes de perceber os sinais dos
tempos do ponto de vista da produção científica, artística e cultural. E devem saber manter, dentro
da tradição que lhes é própria, uma capacidade de reflexão e crítica que não vá no sentido do con-
sumismo e do capitalismo, mas atinja o âmago das questões essenciais”. Janeira também fala, nesta
entrevista, sobre Simone Weil, a quem considera um caso muito especial do pensamento místico no
século XX. “Ela é uma figura ímpar, com uma força muito grande na denúncia de certos conformismos
políticos, religiosos, acadêmicos. E, por conseguinte, ela pode ser inspiradora”.
Ana Luisa Janeira é professora na Universidade de Lisboa, Portugal, doutora em Filosofia Contem-
porânea pela Université de Paris I, e autora de A Energética no Pensamento de Teilhard de Chardin
(Livraria Cruz-Faculdade de Filosofia, 1978). Janeira esteve na Unisinos no último mês de setembro,
participando do IX Simpósio internacional IHU: Ecos de Darwin, onde proferiu a conferência intitulada
“A energética teilhardiana: missão evolutiva em terras cristãs”. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a sua relação na origem, eu vim para as missões e um lado, uma estratégia bem definida
com a pesquisa sobre as missões? misiones, na parte espanhola, funda- emanada de Roma e, simultaneamen-
Ana Luisa Janeira – O importante na mentalmente para tentar perceber se te, uma capacidade de adaptação aos
questão da missão é entender como, haveria alguma transposição do mode- povos locais.
a partir de um determinado pensa- lo arquitetônico que os jesuítas geral-
mento, na Europa, e a partir de Santo mente seguem na construção dos seus IHU On-Line - Como o conceito de
Inácio de Loyola, se dá a proclamação noviciados e colégios e algumas casas missão está ligado à configuração da
universal em terras onde dominavam da Europa, na projeção de um mode- Companhia de Jesus?
outras culturas, outras tradições. Meu lo urbano para as missões. Constatei Ana Luisa Janeira – A Companhia de
interesse é ver como a Companhia de que a própria memória dos habitantes Jesus surge num momento especial da
Jesus definiu uma estratégia de difusão atuais das zonas de missão onde pes- Europa que se chama genericamente de
das suas ideias que, simultaneamente, quisei mostra que eles são conscientes “a contrarreforma”, ou seja, o processo
serviu – ou não – à identidade dos povos de que os jesuítas atuaram dentro de que se dá depois dos desenvolvimentos
que foram sujeitos dessa missão. En- certas áreas científicas e artísticas em da reforma luterana, calvinista e da par-
tão, nesse sentido, me parece impor- função das características dos povos te anglicana, do questionamento de um
tante fazer esse estudo. Mas, de fato, que encontraram, o que revela, por “aburguesamento” da Igreja e dum des-
32 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313
virtuar do pensamento cristão. E, como
consequência, houve uma movimentação
“O importante na nha uma perspectiva para um mundo
diferente.
que se chamou a contrarreforma. E essa
contrarreforma, de certa maneira, foi
questão da missão é IHU On-Line - O que caracteriza o va-
muito servida por um desenvolvimento
da Companhia de Jesus, que rapidamen-
entender como, a zio no pensamento de Weil?
Ana Luisa Janeira – Essa ideia é muito
te aliciou muita gente. Houve um desen-
volvimento exponencial, inacreditável,
partir de um complexa. Simone Weil diz que o va-
zio exterior corresponde a uma tensão
da Companhia. As constituições de Santo
Inácio e os exercícios espirituais defini-
determinado interior. É provavelmente algo que
tem uma inspiração no pensamento
ram uma disciplina e uma estrutura de
tipo militar. E essa estrutura natural-
pensamento, na oriental. É preciso lembrar que seu
irmão, Andre Weil, tinha uma forte li-
mente evidencia que todo militar tem
sempre a ideia de conquista, de “ganhar
Europa, e a partir de gação com o pensamento de mulheres
orientais. Simone tem e viveu até as
terreno”. Isso acaba por ser, depois, já
numa perspectiva espiritual, muito divi-
Santo Inácio de Loyola, entranhas essa capacidade de descen-
trar dela mesma. Ela foi uma aluna
dido pela ideia de que é necessário pro-
pagar a boa nova junto dos povos que
se dá a proclamação brilhante de um curso em que tinha
como colegas Sartre e Simone de Be-
também acabavam por ser descobertos
e conquistados pelos europeus.
universal em terras auvoir, e conseguiu ter as melhores
classificações. No entanto, vai traba-

IHU On-Line - O que caracteriza, de


onde dominavam outras lhar como professora em zonas onde
há muitas minas, e onde ela tem muita
forma geral, as missões jesuíticas?
Ana Luisa Janeira - As missões jesuíticas
culturas, outras preocupação com os mineiros. Depois,
desenvolve uma preocupação imensa
são, em primeiro lugar, comunidades. E
é preciso lembrar a desproporção imensa
tradições” com as questões laborais, quando vai
trabalhar nas fábricas, ou quando vai
que há entre dois ou três jesuítas e uma para a guerra da Espanha. Ela é uma
comunidade indígena, que pode ter até mais importante que eles assumam é figura incontornável da cultura france-
três mil pessoas. Por conseguinte, essa manter uma preocupação pela educa- sa, europeia e mundial do século XX. E
desproporção gerou a necessidade dos ção de qualidade. Os jesuítas, inde- morreu com apenas 34 anos.
padres jesuítas centralizarem o poder pendente de nós concordarmos ou não,
junto dos caciques, no caso aqui da Amé- sempre têm estendido uma educação
rica do Sul. E aconteceu que, no fundo, de qualidade. E é importante que isso
eram os caciques que intervinham jun- continue. E é igualmente importante Leia mais...
to às populações. Essa intervenção, por que eles sejam capazes de perceber
>> Ana Luisa Janeira já concedeu outra
um lado, revelava uma capacidade de os sinais dos tempos do ponto de vista
entrevista à IHU On-Line:
adaptação dos jesuítas, que delegavam da produção científica, artística e cul- * Perfil – Ana Luisa Janeira. Publicada na IHU On-
poder a figuras da comunidade, mas, tural. E devem saber manter, dentro Line número 311, de 19-10-2009, disponível no
link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
simultaneamente, também era uma for- da tradição que lhes é própria, uma
php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
ma de eles conseguirem se dividir dada capacidade de reflexão e crítica que etalhe&id=1863&id_edicao=339.
a desproporção do número entre eles e não vá no sentido do consumismo e do
a comunidade. A atuação se deu funda- capitalismo, mas atinja o âmago das
mentalmente no sentido de tornar povos questões essenciais.  Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo exis-
nômades em sedentários, o que é muito tencialista francês. Escreveu obras teóricas,
romances, peças teatrais e contos. Seu primei-
complicado. Além disso, eles desenvol- IHU On-Line – Mudando um pouco de ro romance foi A náusea (1938), e seu princi-
veram a capacidade artística e musical assunto. A senhora também estudou pal trabalho filosófico é O ser e o nada (1943).
dos povos indígenas. Os jesuítas desen- Simone Weil. Em que sentido ela Sartre define o existencialismo em seu ensaio
O existencialismo é um humanismo, como a
volveram um típico relacionamento ba- pode ser inspiração para mulheres e doutrina na qual, para o homem, “a existên-
seado na música e na expressão plástica, homens contemporâneos? cia precede a essência”. Na Crítica da razão
especialmente a escultura, o que é visí- Ana Luisa Janeira – Simone Weil é um dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias
políticas e sociológicas. Aplicou suas teorias
vel ainda hoje no espólio das reduções caso muito especial do pensamento psicanalíticas nas biografias Baudelaire (1947)
jesuíticas, quer na Argentina, no Para- místico no século XX. Ela é uma figura e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a
guai, no Uruguai ou aqui no Brasil. ímpar, com uma força muito grande na primeira parte de sua autobiografia. Em 1964,
foi escolhido para o prêmio Nobel de literatu-
denúncia de certos conformismos po- ra, que recusou. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line - Quais os maiores desafios líticos, religiosos, acadêmicos. E, por  Simone de Beauvoir (1908-1986): escritora,
para os jesuítas na sociedade atual? conseguinte, ela pode ser inspiradora. filósofa existencialista e feminista francesa.
Ligou-se pessoal e intelectualmente ao filó-
Ana Luisa Janeira – O desafio que é Não acho que seja uma questão de de- (Nota da IHU
sofo francês Jean-Paul Sartre. ���������
bate homem X mulher. Mas ela propu- On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 33


Walter Benjamin e o império do instante
Progresso como ideologia institui o império do instante, destruindo a experiência
em função da fugacidade e da velocidade sempre mais acelerada na modernidade
capitalista. Nesse cenário, não há espaço para a memória, critica o filósofo José
Antonio Zamora

Por Márcia Junges | Tradução Moisés Sbardelotto

A
s estruturas temporais da modernidade capitalista estão marcadas pela velocidade, por
uma aceleração permanente. Ao mesmo tempo, parece que nada de novo, em seu senti-
do radical e autêntico, é produzido. “Novidades” proliferam em ritmo frenético, e essa
avalanche de bens de consumo nos conduz ao império do instante, do fugaz, do descar-
tável. Ao nos inscrevermos nessa lógica, acontece “uma anulação e uma destruição da
experiência, porque a relação que o sujeito estabelece com a realidade por meio do consumo está
marcada por essa fugacidade, por essa transitoriedade”. A análise é do filósofo espanhol José Antonio
Zamora na entrevista exclusiva que concedeu, pessoalmente, à IHU On-Line. Há uma “empatização
com a mercadoria”, assegura Zamora, referindo-se ao pensamento de Walter Benjamin. Não se trata
mais de um consumo material em si, e o valor de uso do produto fica de lado. Entra em cena a aura
alucinatória das mercadorias, que são convertidas em objeto de desejo pelas qualidades subjetivas
que conferem ao seu possuidor. Daí à conversão dos sujeitos em mercadoria é um passo. “Benjamin
rastreia uma forma de conversão dos sujeitos em mercadoria que tem a ver com o fetichismo da
mercadoria, com a aura alucinatória, com a experiência estética, cultural com a mercadoria, não
material”. Zamora critica esse devir cronológico, que tem na elaboração ideológica do progresso sua
mais rematada concretização. A figura do redemoinho seria mais adequada para compreendermos a
realidade social, quando tudo é movido, mas nada muda.
Zamora foi conferencista do evento O tempo messiânico contra o furacão destrutivo do capita-
lismo, de 28 de setembro a 1º de outubro de 2009, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Unisinos. Docente no Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Investigações Cientí-
ficas (CSIC) da Espanha, é autor de, entre outros, Th. W. Adorno: pensar contra la barbarie (Madrid:
Trotta, 2004) e Ciudadania, multiculturalidad e inmigración (Navarra: Verbo Divino, 2003). Estudou
Filosofia, Psicologia e Teologia na Universidade Pontifícia de Comillas, em Madri. Doutorou-se na
Universidade de Münster, na Alemanha, com uma tese sobre Theodor Adorno, orientada por Johann
Baptitst Metz. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a relação que Normalmente, consideramos o tempo antigo, frente à Idade Média, frente
o senhor estabelece entre Walter como uma realidade imutável, como ao antigo regime. Entretanto, a pro-
Benjamin e o tempo e consumo no se o tempo houvesse sido sempre igual liferação de novidades e a acelera-
capitalismo? em todas as épocas históricas, mas, ção na proliferação destas produz um
José Antonio Zamora - Walter Ben- na realidade, o tempo também é uma certo “instantaneísmo”, o domínio do
jamin é um pensador que pretende construção social. Nesse sentido, a instante, do fugaz. E isso, ao mesmo
desentranhar as chaves da moderni- modernidade capitalista estabelece tempo, faz com que se produza uma
dade capitalista. Uma dessas chaves estruturas temporais. Estas estão mar- desqualificação do instante pela falta
fundamentais é a questão do tempo. cadas por uma aceleração permanen- de duração. Ao não ter duração, não
 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo ale- te, a velocidade. E, ao mesmo tempo, se inscreve experiencialmente no su-
mão crítico das técnicas de reprodução em há uma sensação de que nada novo, jeito, e então isso produz uma sensa-
massa da obra de arte. Foi refugiado judeu
alemão e diante da perspectiva de ser cap- em um sentido radical, se produz. A ção de vazio nisso que, hoje em dia,
turado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um modernidade está relacionada com o recebeu o nome de pós-modernidade.
dos principais pensadores da Escola de Frank- novo. Este é o tempo novo frente ao Há uma sensação de que as utopias, o
furt. (Nota da IHU On-Line)

34 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


sujeito, a razão, morrem. Vivemos em às mercadorias. Então, para seguir
um mundo “pós”: pós-humano, pós-
“Tanto a ideia burguesa, mantendo a acumulação, é necessário
político, pós-histórico, pós-moderno. produzir mais, isto é, a produtividade
É uma consequência última desse pro-
marxista ou social- não tem como consequência um ganho
cesso de aceleração. Então, digamos, de tempo, de tempo não produtivo, de
isso que faz parte das estruturas, para
democrata de progresso, tempo de descanso, de tempo fora do
mim, é uma chave para desentranhar âmbito da produção e do consumo. O
o que a modernidade capitalista pro-
de avanço a uma meta, crescimento da produtividade tem que
duz na sociedade e na experiência que ser compensado com um crescimento
os sujeitos têm nessas sociedades. Isso
concepção teleológica tremendo do consumo. Estamos conti-
por um lado. nuamente compelidos a consumir, se-
da história, e esta não seria impossível que a maquinaria
O tempo devorado seguisse funcionando.
outra, do eterno
O problema é a mediação entre Aura alucinatória das mercadorias
o que poderíamos chamar de tempo
retorno, são duas
concreto, o tempo em seu caráter ex-
periencial, e depois um marco, que,
formas de falsa O capitalismo também é uma forma
de cultura, não só uma forma de pro-
no capitalismo, é o marco do valor
abstrato, que é o tempo enquanto cri-
consciência daquilo duzir. Então, tem que estar continua-
mente alimentado o desejo, gerando,
tério de quantificação do valor do ca-
pital, do dinheiro. Trata-se de buscar
que realmente ocorre. portanto, uma apetência permanente
de mercadorias. E Benjamin conse-
e de entender essa mediação, porque
a modernidade produz uma grande
Porque só se entende o gue rastrear um fenômeno específico
– e eu acredito que foi a pessoa que
quantidade de inovação tecnológica,
de mudança social, de mudança de
que realmente ocorre a melhor o entendeu –, que ele chamou
de “empatização com a mercadoria”.
mentalidades. É uma revolução per-
manente de costumes, de ideias, de
partir da mediação É uma aproximação e uma identifica-
ção empática com a mercadoria, que
afetos, de técnicas, de todo tipo. E,
ao mesmo tempo, apesar de tudo es-
desses dois esquemas não é seu consumo material, não tem
a ver com o valor de uso, mas sim com
tar em revolução, no entanto, o marco
abstrato do valor e o tempo abstrato
interpretativos. a aura alucinatória que as mercado-
rias adquirem no capitalismo para se
do valor de troca, ou do dinheiro, do
capital, é um marco fixo, estático.
Teríamos que recorrer, converter em objeto de desejo. Aí há
um processo de assimilação, de “em-
Parece como se esse marco estático
devorasse o tempo concreto, engolis-
talvez, a uma imagem patização”, diz ele, com o anorgânico.
Isso transforma os sujeitos em sujeitos
se, se apoderasse do tempo concreto
e anulasse sua capacidade de produzir
do redemoinho” auráticos mercantilizados.
É muito curioso, por exemplo,
verdadeira novidade, algo verdadeira- quando Benjamin se fixa em tipos hu-
mente novo. Evidentemente, isso tem aceleração do tempo? Ela está, en- manos que povoam o que hoje chama-
a ver com o consumo, na medida em tão, submetida ao imperativo do ríamos de shopping, mas que naquela
que o capitalismo também produziu consumo? época eram as passagens parisienses.
uma infinidade enorme de mercado- José Antonio Zamora - Sim, porque, Então, o filósofo fala da relação que
rias, de produtos, uma multiplicação. de um lado, o capitalismo, por meio os sujeitos têm quando estão na mas-
Mas essa multiplicação de produtos da inovação tecnológica, organizativa sa, quando estão nessas concentra-
está a serviço da multiplicação do be- e logística, tem uma capacidade enor- ções humanas. E ele se dá conta de
nefício, então os sujeitos são impulsio- me de produzir cada vez mais com que os passeantes se exibem diante
nados a consumir vorazmente. Porém, menos. É a lógica de racionalização, dos outros, se vendem diante dos ou-
nesse consumo, produz-se realmente de efetividade, de eficácia, a compe- tros, adquirem eles mesmos o caráter
uma anulação e uma destruição da ex- titividade. Os saltos de produtividade de mercadoria que se oferece ao ou-
periência, porque a relação que o su- têm sido enormes. Então, isso faz com tros. O que Marx havia analisado, que
jeito estabelece com a realidade por que possamos produzir muito mais o homem vende a sua força de traba-
meio do consumo está marcada por com menos, mas a criação de riqueza lho e se converte em mercadoria no
essa fugacidade, por essa transitorie- material não é o mesmo que a criação mercado de trabalho, pela venda de
dade. de benefício. A criação de benefício sua força de trabalho, é insuficiente
não depende da criação de riqueza, para entender o capitalismo na época
IHU On-Line - A que se atribui essa mas sim do valor de troca associado posterior e atual. E Benjamin rastreia

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 35


uma forma de conversão dos sujeitos “O novo, em sentido desses dois esquemas interpretativos.
em mercadoria que tem a ver com o Teríamos que recorrer, talvez, a uma
fetichismo da mercadoria, com a aura enfático, profundo, imagem do redemoinho. Quando você
alucinatória, com a experiência esté- vê um fluxo de água, forma-se um re-
tica, cultural com a mercadoria, não tem que ser demoinho, que começa a mover tudo,
material. Pensemos que ele está es- mas fica fixo, está fixo, não muda, não
crevendo nos anos 1920-1930 do sécu- qualitativamente novo, se move. Essa imagem pode nos aju-
lo passado, então se supõe um adian- dar a entender o que Walter Benjamin
tamento, uma lucidez. é uma determinação persegue em sua análise. Porque essa
Hoje, basta entrar em um shopping aceleração tremenda, esse processo
para entender Benjamin. É uma coisa qualitativa, e não de inovação tecnológica, de transfor-
que Theodor Adorno também anali- mação permanente faz com que, na
sa. Porque o valor de troca em Marx meramente realidade do sistema social, tudo mude
era simplesmente o preço, tinha a ver para que nada mude: está imóvel.
com o sistema de dinheiro para trocar cronológica. Então, no
mercadorias que são qualitativamente O novo qualitativo
diferentes. Mas aqui estamos falando império da cronologia, e o novo cronológico
de outra coisa, estamos falando dessa
aura alucinatória, o brilho, o esplen- do devir cronológico, em A análise de Benjamin persegue
dor que as mercadorias adquirem, que essa questão tão própria do sistema
lhe permitem ter vivências, experi- um continuum de produtor de mercadorias de, por um
ências subjetivas da relação que não lado, criar uma pluralidade, uma di-
tem a ver com o substrato material da instantes que se versidade, um ato de inovação per-
mercadoria. Por que um carro de luxo manente, de multiplicação, de diver-
faz com que o possuidor tenha “sex sucedem no tempo, o sificação. Pensemos, por exemplo,
appeal”? É a relação da materialida- como era a vida dos sujeitos antes da
de da mercadoria e os atributos que que se produz revolução econômica que é o sistema
se projetam alucinatoriamente sobre capitalista. Seu mundo de objetos,
ele. Então, isso permite rastrear uma realmente é uma de vivência, era relativamente pobre
coisa que, por exemplo, Adorno cha- comparado ao que nós hoje vivemos
mava de “o consumo do valor de tro- sabotagem da produção em todas as ordens. No entanto, nessa
ca”, que, na forma habitual de pensar produção contínua da novidade, real-
as teorias marxistas, tradicionais, não do radical e do mente está se escamoteando o novo, o
teria sentido, só se pode consumir o radicalmente novo.
valor de uso de uma mercadoria. verdadeiramente novo” Benjamin analisa o fenômeno da
moda e diz que as mercadorias preci-
IHU On-Line - Voltando à questão da sam utilizar a propaganda da novidade.
aceleração do tempo, que conexões conceito de aceleração, há como que Mas a novidade, pela pura novidade, é
há entre ela e o fim da história, da um esquema tecnológico de fundo. No um critério abstrato, é simplesmente
razão, do sujeito, da política e das entanto, o fim da história parece pro- aquilo que no tempo acontece em últi-
ideologias? Não se cria aí uma apatia por que o que se produz é uma “es- mo lugar, não tem outra qualificação a
do sujeito contemporâneo em fun- tática”, uma parada, uma detenção, não ser aquilo que ocorreu por último.
ção desse cenário? algo que não se move, que está deti- Então é isso que se busca: quando se
José Antonio Zamora - A questão da do. Benjamin, claro, não se refere a oferece as mercadorias, prometem-
aceleração e do fim da história apare- esse teorema do fim da história, que é nos que teremos o último, pois aquilo
ce como duas interpretações opostas. um teorema hegeliano, que depois foi que já temos está atrasado. Contudo,
A categoria da aceleração parece ser percorrido por Francis Fukuyama. Mas não se analisa o que há realmente de
um impulso para frente, à velocidade, Benjamin tinha diante de si o teorema novo no novo. Porque o novo, em sen-
ao rápido, a uma meta. Parece que, no nietzschiano do eterno retorno. Então, tido enfático, profundo, tem que ser
diz ele, tanto a ideia burguesa, mar- qualitativamente novo, é uma deter-
 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969):
sociólogo, filósofo, musicólogo e compositor, xista ou social-democrata de progres- minação qualitativa, e não meramen-
definiu o perfil do pensamento alemão das so, de avanço a uma meta, concepção te cronológica. Então, no império da
últimas décadas. Adorno ficou conhecido no teleológica da história, e esta outra,
mundo intelectual, em todos os países, em cronologia, do devir cronológico, em
especial pelo seu clássico Dialética do Ilumi- do eterno retorno, são duas formas de um continuum de instantes que se
nismo, escrito junto com Max Horkheimer, pri- falsa consciência daquilo que realmen- sucedem no tempo, o que se produz
meiro diretor do Instituto de Pesquisa Social, te ocorre. Porque só se entende o que
que deu origem ao movimento de ideias em fi- realmente é uma sabotagem da pro-
losofia e sociologia que conhecemos hoje como realmente ocorre a partir da mediação dução do radical e do verdadeiramen-
Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line)

36 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


te novo. Acrescenta-se a isso que essa que é o Fragmento Teológico-Político,
concepção que chamamos teleológica
“Entendemos o tempo em que ele fala da relação entre a or-
do tempo, que é expressada de um dem do profano e a ordem do messiâ-
modo muito preciso na ideia moder-
como progresso. nico. Normalmente, o messiânico está
na de progresso, é a forma como nós, relacionado à teologia, à religião. En-
modernos, entendemos o tempo. En-
Então, diz Benjamin, tão, ele fala dessas duas ordens como
tendemos o tempo como progresso. duas ordens diferentes, separadas e
Então, diz Benjamin, essa forma de
essa forma de com uma certa tensão: enquanto que
interpretar o processo histórico é uma a ordem do profano é voltada à busca
forma de interpretar que reflete essa
interpretar o processo da felicidade dos sujeitos, a ordem do
aceleração constante do tempo, esse messiânico é interpretada por Benja-
processo inovador constante, que, no
histórico é uma forma min como interrupção. Ele não pensa
entanto, como mero reflexo, é uma o Reino de Deus, podemos dizer, como
elaboração ideológica, porque não
de interpretar que o fruto maduro de um processo histó-
permite ver o que, nesse processo, rico, que é como muitas vezes o inter-
há de regressão, destruição, aniquila-
reflete essa aceleração pretamos: pensamos que a história vai
mento, vítimas. caminhando rumo a uma plenitude, e
constante do tempo, essa plenitude é o Reino do Deus, o
Lógica sacrificial epílogo da história. Isso converteria
esse processo o Reino de Deus no prêmio dos ven-
cedores. Então, pensando o esquema
Nesse processo histórico, interpre- inovador constante, apocalíptico, ele diz: o Reino de Deus
tado como progresso, tudo é submeti-
não é a meta da história, mas sim seu
do à consecução da meta. O resultado que, no entanto, como final, seu final como interrupção. Na
aparece como capaz de justificar to-
visão apocalíptica, o Messias chega
dos os preços pagos para a sua con- mero reflexo, é uma como aquele que derrota o AntiCristo,
secução. Na realidade, essa ideia de
é aquele que enfrenta uma situação
progresso responde a uma lógica sa- elaboração ideológica, de dominação destrutiva dos seres hu-
crificial. E, de fato, um dos autores
manos. O Messias não é o herdeiro do
em que essa ideia tem, na filosofia da porque não permite ver trono histórico. Então, isso é impor-
história, uma interpretação mais aca-
tante no sentido de que o messiânico
bada, Hegel, fala precisamente do al- o que, nesse processo, é entendido como a irrupção do radi-
tar da história, onde são sacrificadas
calmente novo, que tem como condi-
gerações, homens, para a consecução há de regressão, ção de possibilidade a interrupção da
de uma meta futura, que é a plenitu-
prolongação da catástrofe que foi a
de da história. Nesse sentido, o fim da destruição, história.
história é também o juízo final. Não
é preciso esperar nenhum juízo ulte- aniquilamento, IHU On-Line – Então, a partir dessa
rior que revogue o acontecer fático
ideia, poderíamos repensar o concei-
da história, mas a própria história é vítimas” to de política?
seu juízo. A história vai realizando seu
juízo no próprio devir. Então, tudo é José Antonio Zamora - Isso é o que
justificado como preço do resultado. vítimas, de destruição, de ruínas acu- pretende Walter Benjamin. Aqui-
Então, se pensarmos que Walter Ben- muladas, estamos alimentando a pró- lo que conhecemos como o teorema
jamin encontra diante de seus olhos, pria lógica sacrificial que se sustenta da secularização vinha dizer que a
no momento histórico em que vive, como esquema de dominação histórico modernidade europeia é uma tradu-
a Primeira e a Segunda Guerras Mun- que não foi rebaixado. Então, a no- ção, translação das contribuições do
diais, a emergência dos fascismos na vidade viria só do fato de sermos ca- cristianismo levados a conceitos se-
Europa, o triunfo do nacional-socialis- pazes de interromper esse processo. culares. Benjamin tem um conceito
mo na Alemanha, a perseguição dos ju- Benjamin tem um conceito messiânico diferente da relação entre a ordem
deus, ele não pode entender que esse do tempo. política e a ordem religiosa. Ele não
presente possa ser, digamos, o epílogo busca uma tradução, uma translação.
de um processo histórico anterior. Algo IHU On-Line – A partir disso, como po- Ele fala de uma relação como um pa-
falhou nessa interpretação da história, demos compreender a junção mes- pel secante com a tinta, mesmo que a
que nos cegou para compreender re- sianismo e política nesse pensador? tinta nunca possa ser absorvida total-
almente os custos desse processo. E, José Antonio Zamora - Não é simples mente. Ele tenta introduzir a teologia
quando não somos capazes de ver os a interpretação que Benjamin faz do dentro da política, de uma maneira
custos desse processo em termos de messiânico. Ele tem um fragmento, que tanto a teologia quanto a política

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 37


fiquem “translocadas”, “transtoca-
das” em sua dinâmica. Então, para
“Segundo Benjamin, ria ter ocorrido com aqueles que são
chamados a transformar a história do
que isso possa ficar entendível, ele
diz: Karl Marx secularizou a ideia de
acreditar que que pensar que a história, por sua
própria dinâmica, conduz à emanci-
Reino messiânico e a ideia de socieda-
de sem classes. Imediatamente, diz:
cavalgamos na crista pação, à superação da dominação.

é imprescindível devolver à revolução da onda e que somos o IHU On-Line - Em que sentido se pode
seu rosto messiânico, se não quere- falar de uma destruição da experiên-
mos que a classe trabalhadora seja motor da história – cia a partir do pensamento desse fi-
arrasada pelo processo que ele via lósofo? O que isso significa?
nesse momento de dissolução. Então, assim eram José Antonio Zamora - O que Ben-
o que quer dizer devolver um rosto jamin descreve como destruição da
messiânico? Até agora, Marx pensou
as revoluções como locomotoras da
interpretadas, dentro experiência tem a ver com esses pro-
cessos que analisamos no começo, de
história, como aquilo que faz avançar
para frente, que impulsiona a história
da tradição marxista, aceleração do tempo. Já a própria
industrialização supõe uma mudança
para sua meta. Mas, diz Benjamin, é
preciso entender as revoluções como
as organizações dos estrutural de grandes dimensões na
relação dos sujeitos, dos indivíduos
um “agarrar” o freio de emergência
do trem da história. Então, devolver
trabalhadores no com o mundo, com as coisas, com os
acontecimentos. Ele tem um artigo
um rosto messiânico quer dizer inter-
romper uma marcha. Benjamin pen-
começo do século – em que fala sobre a pobreza da ex-
periência, referindo-se, precisamen-
sa a revolução não como um salto à
meta, mas sim como interrupção de
é uma espécie de te, às pessoas que voltavam do front
da Primeira Guerra Mundial. E ele
um processo que, até agora, tem sido
um processo catastrófico. Poderíamos
obnubilação, de diz que, diferentemente de outras
guerras, em que as pessoas voltavam
dizer a Walter Benjamin: “Você exa-
gera um pouco o negativo desse pro-
autoengano” contando o que havia acontecido,
as pessoas que voltavam do front da
cesso. Realmente houve progressos”. Primeira Guerra Mundial vinham atô-
Suponho que ele não negasse esse nitas, sem palavras. Como se sabe,
progresso. mais do que pelos que carecem de es- a Primeira Guerra Mundial foi uma
O que acontece é que, evidente- perança. Então, não é a esperança da- guerra tremendamente cruel, em que
mente, seu horizonte e sua perspec- queles que têm perspectiva de êxito, se enviavam as tropas às trincheiras,
tiva não é a perspectiva dos vence- que querem dar o último salto para o que eram bombardeadas com os ca-
dores, mas sim a perspectiva dos paraíso, porque essa é a perspectiva nhões e tanques. Era uma guerra de
vencidos. Por isso, na tese 8 da Filo- dos vencedores da história. Por isso, seres humanos convertidos em car-
sofia da história, ele diz: para os opri- a sua crítica tão forte à social-demo- ne de canhão. Esse choque, essa co-
midos, o estado de exceção é a regra. cracia e, em parte também, mesmo moção, é intragável ao sujeito, que
Isto é, essa história, vista a partir dos que nunca o nomeie, ao comunismo. não é capaz de inscrever o que lhe
que foram esmagados, dos que foram As classes trabalhadoras fizeram com acontece em uma sequência biográfi-
anulados, é uma história catastrófica. que as vítimas se vejam com a ideo- ca. Se transladarmos esse exemplo à
E, desde muito cedo, ele quis pensar logia daqueles que os oprimem, com experiência cotidiana, da aceleração,
messianicamente a história, que é a ideologia burguesa. Segundo Ben- Benjamin diz que essa multiplicação
pensar a partir dos deserdados, dos jamin, acreditar que cavalgamos na de sensações é inassimilável. Então,
últimos, dos esmagados, dos oprimi- crista da onda e que somos o motor não podem ser traduzidas em expe-
dos. Pensar a história messianicamen- da história – assim eram interpreta- riências.
te é pensá-la a partir desse horizonte. das, dentro da tradição marxista, as
E isso já está no escrito sobre Goethe organizações dos trabalhadores no Máquina de esquecimento
e as afinidades eletivas, em que ele começo do século – é uma espécie
diz: não nos foi dada outra esperança de obnubilação, de autoengano. Por- Nós vemos televisão e estamos
 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832): que a história aparecia aos seus olhos sendo continuamente impactados
escritor alemão, cientista e filósofo. Como es- como dotada de uma espécie de au- por imagens a uma grande velocida-
critor, Goethe foi uma das mais importantes de. Por assim dizer, os videoclipes
figuras da literatura alemã e do Romantismo tomatismo de emancipação, que, de
europeu, nos finais do século XVIII e inícios do um modo ou outro, bastava esperar, são a vanguarda do meio televisivo.
século XIX. Juntamente com Schiller foi um porque a história caminhava inexora- E se o impacto televisivo não é su-
dos líderes do movimento literário romântico ficientemente acelerado, ajudamos
alemão Sutrm und Drang. De suas obras, me- velmente para o paraíso comunista. O
recem destaque Fausto e Os sofrimentos do filósofo completa que nada pior pode- com o controle remoto e ficamos
jovem Werther. (Nota da IHU On-Line)

38 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


trocando de canal continuamente. É
uma metáfora do que está ocorren-
do conosco. Esse desassossego é a
experiência do choque, do impacto.
E, sem duração, os acontecimentos,
os fenômenos, as coisas não podem
Teologia Pública
se inscrever, não podem ser apropria-
dos pelo sujeito. O sujeito está como
que “resvalando” sobre as coisas. Na
realidade, a experiência do consumo
é algo assim. Essa é a diferença que
havia entre uma viagem no século XIX A humanidade como
e uma viagem no século XX. Podemos
ir de um lugar para o outro, porque a
velocidade é imensa. A palavra expe-
o centro da revelação
riência, em alemão, vem da palavra
viajar. “Erfahrung”, experiência em Físico e teólogo jesuíta analisa presença de Deus no cosmos
alemão, e “fahren”, viajar. E ter ex-
e na humanidade, apoiado nas ideias de Teilhard de Chardin.
periência era isso, era aventurar-se
pelo novo, por aquilo que não era co- Com o desafio da ecologia, precisamos considerar que a vida
nhecido, pelo estranho, era descobrir cristã está encarnada no cosmos, na humanidade, acentua
o mundo. Experimentar é descobrir o
mundo. É abandonar-se, entregar-se
ao que não é próprio, entregar-se ao Por Márcia Junges | Tradução Lucas Schlupp e Walter Schlupp
outro. E essa capacidade para entre-

“D
gar-se, para abandonar-se ao outro
é anulada pela vertiginosidade do eus não está presente no cosmos diretamente, mas
impacto, da sensação. Nessa forma através da humanidade. A humanidade tem uma res-
transformada de relação com o mun- ponsabilidade, e isso é mais evidente na Terra e menos
do, não tem cabimento a recordação, evidente no cosmos em geral, mas a humanidade como
a memória. Então, esse cúmulo de princípio é realmente o centro da revelação”. A afirma-
impactos, de sensações, na realida- ção é do físico e teólogo jesuíta François Euvé, na entrevista exclusiva que
de, é uma máquina poderosíssima de concedeu, pessoalmente, à IHU On-Line, por ocasião de sua vinda à Unisi-
esquecimento. nos como conferencista do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa
Quando falamos das gerações jo- sociedade pós-metafísica. Possibilidades e impossibilidades. Ele continua:
vens, dizemos que elas vivem num
“Agora, especialmente por causa do desafio da ecologia, temos que levar em
instante eterno, que é o último que
consideração que a vida cristã está encarnada no cosmos. Então um teólogo
viveram. Produz-se uma destruição da
memória. A memória precisa inscrever cristão não pode ignorar o que acontece no campo da ciência”. Esse é um
o acontecer na sequência biográfica e, dos motivos que faz crescer o interesse pela ciência entre os teólogos. Por
para isso, precisa da duração. Romper outro lado, os cientistas são cada vez mais questionados, e há um movimen-
a capacidade rememorativa incapaci- to contrário, da ciência indo em direção à teologia, explica. Interessado na
ta os sujeitos para isso que Benjamin teologia da criação, em teologia fundamental e na relação entre as ciências
realmente busca, que está muito as- naturais e a teologia, Euvé revela entusiasmo pela ideia de Cristo cósmico,
sociado à crítica do progresso. Isto é, desenvolvida por Teilhard de Chardin. Não se trata “de Cristo como redentor
nós não podemos romper o curso e a da humanidade, mas como redentor do cosmos em si”.
sequência linear do tempo, se não es- François Euvé é doutor em Teologia pelo Centro de Sèvres, onde leciona
tabelecermos uma relação diferente teologia dogmática e fundamental desde 1997, e é decano da Faculdade de
com o passado. E essa nova forma de
Teologia dessa instituição. É diretor da Cátedra Teilhard de Chardin. Gradu-
relação, que são as sensações, é uma
ado em Física de Plasma pela Universidade Paris XI, entrou, logo após a con-
destruição da memória. Poderíamos
dizer que, em Benjamin, destruição clusão do curso, para a Companhia de Jesus, em 1983. Foi ordenado sacer-
da experiência, destruição da memó- dote em 1989. De 1992 a 1995, ensinou Teologia no Instituto Saint-Thomas,
ria e, portanto, a anulação da capa- em Moscou, na antiga União Soviética. De suas publicações, citamos Pensar
cidade de subtrair-se a esse processo a criação como jogo (São Paulo: Paulinas, 2006), Science, foi, sagesse. Faut-
destrutivo do progresso vão de mãos il parler de convergence? (Paris: L’Atelier, 2004 ) e Christianisme et nature
dadas, estão unidas. (Paris: Vie chrétienne, 2004). Confira a entrevista.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 39


IHU On-Line - Onde você nasceu? meu interesse em teologia era mais Fiquei lá por três anos. Depois de dois
Quais são suas origens? na área de psicologia, ou sociologia, anos, refleti e achei que não era mi-
François Euvé - Nasci na França, em ou Bíblia, questionamentos típicos, e nha verdadeira vocação ficar em Mos-
uma pequena cidade ao Sul de Paris. nem tanto sobre a criação em si. Mui- cou. Foi uma boa experiência. Ensinei
A origem da minha família é Paris. En- tos anos depois, quando terminei o em um pequeno instituto teológico,
tão, tenho muitas conexões com esta doutorado em teologia, é que voltei a que, na época, pertencia à diocese, e
cidade. Nasci em berço católico e tive, esses questionamentos entre ciência, a Companhia de Jesus depois assumiu.
o tempo todo, um bom relacionamen- religião e criação. Ensinei teologia, eclesiologia e ecu-
to com a Igreja. Fui muito feliz em menismo.
estudar numa escola jesuíta, ao final IHU On-Line - Como foi sua experi- Outro aspecto importante foi que,
da minha primeira formação. Essa foi ência em Moscou, ensinando teolo- quase por acaso, tive a possibilidade
a primeira oportunidade que tive de gia? Quando aconteceu? E quais são de ter contato com cientistas. Não
ter contato com a Companhia de Je- as suas principais memórias daquele eram pessoas que eu conhecesse an-
sus. Durante a formação universitária tempo? tes. Através do Observatório do Vatica-
e meu trabalho com pesquisa, mantive François Euvé – Esse é outro aspecto no, tive contato com alguns cientistas
contato com os jesuítas, especialmen- interessante da minha vida. À parte astrônomos em Moscou. Eles me de-
te através das Comunidades de Vida minhas pesquisas em ciência e teolo- ram o endereço e fui visitá-los. Nova-
Cristã (Christian Life Communities – gia, por muito tempo estive interes- mente, a criação, origem, a ciência, e
CLC). Eu era um de seus membros. Esta sado na cultura russa. Quando estu- assim por diante, voltaram para mim.
foi a razão pela qual eu decidi entrar dante, comecei a aprender russo. Nos Pensei que seria importante voltar a
na Companhia. Minha formação é em anos 1960, era questionável na França esse campo, e hesitei se ficaria na Rús-
Física, e fiz meu doutorado em Física aprender esse idioma na escola. Ainda sia e participaria na missão geral da
de plasma. Atualmente trabalho nesta Companhia na Rússia, ou se eu volta-
área. Entrei na Companhia de Jesus ria a fazer mais pesquisa acadêmica.
após alguns anos fazendo pesquisa em “Não tive problemas em Então, esse contato com os cientistas
Física. Minha formação na Companhia lá me ajudou a decidir a voltar à pes-
é de Filosofia e Teologia. Assim, decidi ser cientista e cristão. quisa teórica nesse campo da criação
mudar da pesquisa em Física para Te- e ciência. Voltei para Paris e comecei
ologia. Meus principais interesses ago- Só queria lançar luz meu doutorado em Teologia. Quanto à
ra são a teologia da criação, teologia Rússia, continuo em contato com al-
fundamental (sistemático-dogmática) sobre algumas gumas pessoas de lá, mas apenas em
e a relação entre as ciências naturais termos de amizade, não em relação a
e a teologia. questões, e, naquela interesses profissionais.

IHU On-Line - Como descreve a co- época, nos anos 1970, IHU On-Line - O que a cultura ociden-
munhão entre fé e ciência nos seus tal pode aprender com países como
interesses pessoais? não havia grandes a Rússia, por exemplo? Além disso,
François Euvé – No princípio, eu via como está a situação do diálogo en-
estes como apenas dois campos dife- debates entre ciência tre os católicos romanos e os orto-
rentes. Estava feliz com meu trabalho, doxos?
gostava de fazer pesquisa em Física. e religião na França” François Euvé – É uma situação com-
Vejo a pesquisa como um trabalho plicada. Na verdade, a igreja russa,
muito interessante e emocionante. ortodoxa, está agora num proces-
Eu diria que é uma espécie de voca- nessa época, tive a oportunidade de so de reconstrução. O interesse dela
ção. Ao mesmo tempo, era um cristão viajar para a então União Soviética. está muito concentrado nos seus pró-
praticante. Na verdade, tinha alguns Quando entrei na Companhia, disse a prios problemas e questões. O mesmo,
questionamentos na interface entre meu superior que tinha esse interesse mais ou menos, vale para os católicos
ciência e fé cristã. Por essa razão, pela cultura russa e tentava manter a na Rússia. Estão mais interessados na
durante a universidade, decidi estu- prática nos idiomas. No final dos anos vida paroquial e litúrgica, no serviço
dar teologia para conseguir responder 1980, houve a queda do Muro de Berlim social, do que com questões teológicas
alguns questionamentos que eu tinha e o fim da União Soviética. Em 1992, a e ecumênicas. Há alguns lugares para
sobre a criação, a atuação de Deus e Companhia de Jesus aventou se seria diálogo. Tive bons contatos com alguns
assim por diante. Não tive problemas interessante eu ir para lá. Como era padres teólogos, em Moscou, onde par-
em ser cientista e cristão. Só queria um dos vários jesuítas no país que já ticipei de congressos ou simpósios. Foi
lançar luz sobre algumas questões, sabia russo, fui convidado a fazer essa uma experiência interessante. Mas, na
e, naquela época, nos anos 1970, não viagem. Aceitei. Isso foi no final da mi- verdade, no meu campo de pesquisa
havia grandes debates entre ciência e nha formação na Companhia. Não es- atual, não há tantos trabalhos feitos
religião na França. Então, na verdade, tava ocupado com pesquisa ou ensino. por teólogos ortodoxos russos. Não tive

40 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


oportunidade real para trabalhar com “Teilhard tinha essa com o cosmos como tal, numa espécie
eles. Naquela época, os encontros eram de panteísmo. A sua ideia não é bem
sobre a vida na Igreja e questões mais intuição de que o que esta. Mesmo que Theilhard não tenha
gerais. E nessas questões não tenho detalhado isto, penso que é através da
mais interesse. É possível ter um bom aconteceu, o que tem humanidade que Cristo está presente, e
relacionamento com teólogos e círculos Deus está presente no cosmos. Deus não
acadêmicos ortodoxos. Toda a vida pa- a ver com a revelação está presente no cosmos diretamente,
roquial é diferente, é meio complicada, mas através da humanidade. A humani-
pois depende principalmente do lugar. cristã, tem a ver dade tem uma responsabilidade, e isso é
Em Moscou, a situação é muito mais di- mais evidente na Terra e menos evidente
fícil do que no interior. Algumas comu- também com o que no cosmos em geral, mas a humanidade
nidades católicas têm relações muito como princípio, a humanidade como tal,
boas com os ortodoxos. Mas depende acontece no universo. é realmente o centro da revelação. A
do lugar. Além disso, alguns católicos pessoa humana não é apenas a alma, ou
tinham uma atitude com os ortodoxos Então, esse conceito de espírito, ela é corpo. E através do corpo
que não era muito conveniente. Devo ela está presente, está dentro do univer-
dizer, ainda, que não estou mais muito Cristo cósmico não quer so. Esta é a forma como eu posso, mais
envolvido com a questão ecumênica. ou menos, explicar essa ideia de Cristo
dizer que Cristo em si cósmico.
IHU On-Line – Como diretor da Cáte-
dra Teilhard de Chardin, qual é seu seja identificado com o IHU On-Line - Chardin tentou unificar
ponto de vista a respeito do conceito fé e ciência em seus livros. Como você
de Cristo cósmico? cosmos como tal, numa vê esse diálogo hoje? Acredita que hoje
François Euvé – Primeiramente, gosta- em dia esse diálogo melhorou?
ria de mencionar alguns aspectos sobre espécie de panteísmo” François Euvé – Mais ou menos. É um
a Cátedra Teilhard de Chardin que fun- tipo de paradoxo. Na verdade, como dis-
ciona no Centre Sèvres, em Paris. Antes se antes, digamos há uns 30 ou 40 anos
de mais nada, interesso-me por Teilhard pensador foi um dos que mais se envol- atrás, não havia tanto interesse para o
de Chardin por causa da minha pesqui- veram nesse diálogo. Evidentemente, diálogo entre ciência e fé. Porque são
sa no diálogo entre ciência e religião. como jesuíta, precisamos nos interessar dois campos diferentes, separados. Os
Na França e na cultura francesa, esse por ele. Trabalhei sobre suas ideias e, cientistas se concentravam em fazer
 Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955): há cinco anos, decidimos começar com toda a pesquisa e desenvolver todas as
paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta, que o que chamamos de Cátedra Teilhard de teorias, e assim por diante. E, por outro
rompeu fronteiras entre a ciência e a fé com Chardin, primeiramente para encorajar
sua teoria evolucionista. O cinquentenário lado, a fé cristã preocupava-se apenas
de sua morte foi lembrado no Simpósio In- todos os trabalhos sobre esse jesuíta e com o que acontecia com a humanida-
ternacional Terra Habitável: um desafio para para desenvolver e pesquisar sobre ques- de, Igreja. Agora, especialmente por
a humanidade, promovido pelo Instituto Hu- tões de ciência e religião. Então, esse é
manitas Unisinos de 16 a 19-05-2005. Sobre causa do desafio da ecologia, temos que
Chardin, confira o artigo de Carlos Heitor o contexto. Quanto às ideias desse pen- levar em consideração que a vida cristã
Cony, publicado nas Notícias Diárias do site sador, diria que estou muito interessado está encarnada no cosmos. Então, um
do IHU, www.unisinos.br/ihu, de 16-06-2006, na concepção de estender a abordagem
Teilhard: o fenômeno humano. O jesuíta foi teólogo cristão não pode ignorar o que
precursor do que foi chamado de evolucionis- teológica de Cristo para a escala do Uni- acontece no campo da ciência. Esse é
mo cristão. A edição 140 da IHU On-Line, de verso. Não apenas Cristo como redentor um ponto: entre os teólogos aumenta o
09-05-2005, dedicou-lhe o tema de capa sob o da humanidade, mas como redentor do
título Teilhard de Chardin: cientista e místico, interesse pela ciência. E, por outro lado,
disponível em http://www.unisinos.br/ihuon- cosmos em si. Claro que não é uma ideia entre os cientistas modernos está haven-
line/uploads/edicoes/1158268345.05pdf. fácil, porque o principal interesse da Bí- do um questionamento cada vez maior e
pdf. A edição 304 da IHU On-Line, de 17- blia é pela humanidade e sua criação,
08-2009, intitula-se O futuro que advém. A bem considerável. Pois a ciência, agora,
evolução e a fé cristã segundo Teilhard de como um lugar especial para as ideias está sendo questionada por muitas pes-
Chardin. Confira, ainda, as entrevistas Char- de Deus, se é que posso dizer assim. O soas. Para quê? Onde e por que fazer ci-
din revela a cumplicidade entre o espírito e cosmos como tal não é o centro da re-
a matéria, http://www.unisinos.br/ihuonli- ência? Qual é o futuro da humanidade?
ne/uploads/edicoes/1158267341.59pdf.pdf, velação cristã. Mas agora ficamos mais Qual é o futuro do universo? E assim por
publicada na edição 135, de 05-05-2005 e conscientes da importância da matéria, diante. São questões formidáveis. Vários
Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry, publica- do corpo, do universo nas nossas vidas.
da na edição 142, de 23-05-2005, em http:// cientistas se perguntam isto. Como eu
www.unisinos.br/ihuonline/uploads/edicoes/ Teilhard tinha essa intuição de que disse, aumenta o interesse mútuo entre
1158266847.13pdf.pdf, ambas com Waldecy o que aconteceu, o que tem a ver com as duas áreas. Por outro lado, existe um
Tenório. Na edição 143, de 30-05-2005, Geor- a revelação cristã, tem a ver também
ge Coyne concedeu a entrevista Teilhard e a desenvolvimento de tendências funda-
teoria da evolução, disponível para download com o que acontece no universo. Então, mentalistas, como é o caso do cientista
em http://www.unisinos.br/ihuonline/uploa- esse conceito de Cristo cósmico não quer britânico Richard Dawkins.
ds/edicoes/1158266098.47pdf.pdf. (Nota da dizer que Cristo em si seja identificado
IHU On-Line) 0 Clinton Richard Dawkins (1941): zoólogo,

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 41


IHU On-Line – Um fundamentalismo
baseado na razão...

Acesse outras
François Euvé – Sim, isso mesmo! Um
tipo bem estreito de razão.

IHU On-Line - Sobre a teologia, especi-


ficamente, qual é a situação dessa ci-
ência na Europa? Quais são seus prin-
cipais desafios diante da sociedade
pós-moderna?
François Euvé – Eu poderia dizer que so-
edições da
mos confrontados com novos problemas.

IHU On-Line.
Acredito que um bom ponto de partida po-
deriam ser os problemas ecológicos. Além
de estarmos ficando cientes do futuro da
Terra, estamos mais conectados num esta-
do de espírito histórico, numa forma his-
tórica de pensar. Nós não podemos pensar
mais em ciência como uma forma razoável
permanente de ver o mundo, como se este
fosse ordenado em categorias fixas. En-
contramo-nos mais em uma forma evolu-
cionista de pensar, de ver o mundo. Nisso
eu entrelaço os conceitos “evolucionista”
e “histórico”.

IHU On-Line - O que o senhor está len-


do agora? Algum livro específico?
François Euvé – Estou lendo alguns livros
que preciso ler para minhas pesquisas. Aos
poucos, descubro a literatura brasileira
e interesso-me por ela. A Bahia de todos
os santos, de Jorge Amado, é a obra que
leio no momento. Infelizmente, tenho em
mãos uma tradução francesa, e não o ori-
ginal, em português.

etólogo, evolucionista e escritor britânico, nas-


cido no Quênia. Catedrático da Universidade de
Oxford, é conhecido principalmente pela sua vi-
são evolucionista centrada no gene, exposta em
seu livro O gene egoísta, publicado em 1976. O li-
vro também introduz o termo “meme”, o que aju-
dou na criação da memética. Em 1982, realizou
uma grande contribuição à ciência da evolução
com a teoria, apresentada em seu livro O fenóti-
po estendido. Desde então escreveu outros livros
sobre evolução e apareceu em vários programas
de televisão e rádio para falar de temas como
biologia evolutiva, criacionismo, religião. Por sua

Elas estão disponíveis na


intransigente defesa à teoria de Darwin, recebeu
o apelido de “rottweiler de Darwin”, em alusão
ao apelido de Thomas H. Huxley, que era chama-
do de “buldogue de Darwin (Darwin’s bulldog).
Recentemente está envolto em grande polêmica
por conta das ideias contidas em sua obra Deus,
um delírio (São Paulo: Cia das Letras, 2007), pu- página eletrônica
blicada em 2006 sob o título The God delusion.

www.ihu.unisinos.br
Confira o debate sobre diversas de suas ideias na
edição 245 da IHU On-Line, de 26-11-2007, inti-
tulada O novo ateísmo em discussão, disponível
para download em http://www.ihuonline.unisi-
nos.br/uploads/edicoes/1197028900.5pdf.pdf.
(Nota da IHU On-Line)

42 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


Olha o passarinho!
Microblogging como o twitter
configura-se como um novo
canal de poder e comunicação
Este texto discute o papel dos novos canais de comunicação
como o Twitter no processo de digitalização midiática que im-
plica em um processo complexo de convergência tanto de ma-
nutenção do status quo como também do rompimento de merca-
dos aparentemente estáveis, apresentando um novo paradigma
técnico que, embora indique uma maior participação popular em
um processo de democratização da mídia, na verdade, promove
o aumento da concentração multimídia.

Por Jacqueline Lima Dourado*

Novos verbos como “tuitar”, “fo- mesmo tempo em que as atualizações


loiar” foram inseridos no dia-a-dia dos são mostradas no perfil do usuário
internautas que aderiram ao processo em tempo real e também enviadas a
de digitalização da comunicação e da outros usuários que tenham assinado
convergência tecnológica nos novos para recebê-las. Os usuários podem
padrões de produção característicos receber atualizações de um perfil
da Internet. No presente momento, a através do site oficial ou por RSS, SMS
mais nova rede social e servidor para ou programa especializado.
microblogging é o Twitter, fundado Apesar de funcionar desde 2006, a
desde o início de 2006 pela Obvious grande febre se deu neste ano de 2009
Corp. em São Francisco. com “tuiteiros” famosos como Ashton
Por meio do twitter, o usuário da Kutcher (ator), Obama (presidente
Internet pode enviar e receber tex- dos E.U.A), Mano Menezes (técnico
tos de até 140 caracteres via SMS, de futebol), Fantástico (programa de
mensageiro instantâneo, e-mail, site televisão), Luciano Huck (apresenta-
oficial ou programa especializado, ao dor-Globo), Capricho (revista) entre

* Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS e
professora da Universidade Federal do Piauí - UFPI.

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 43


milhões de outros. um excelente mercado interativo mi- não totalmente explorada.
Em maio deste ano, foi divulgada diático. Não é à toa que os conglo- Sob o ângulo da Economia Polí-
a pesquisa da Bullet com 3.268 brasi- merados hegemônicos midiáticos já tica da Comunicação, observa-se que os
leiros, usuários da rede de microblog- aderiram também à plataforma, tais atuais cenários político, econômico, so-
ging Twitter com o escopo de mapear como a Globo, CNN, jornais como o Le cial e cultural, determinados pela ordem
o perfil dos internautas, seu compor- Monde, Leparisien, capitalista contemporânea, nos quais os
tamento e a maneira como se relacio- O Twitter tem sido utilizado por agentes do mercado se deparam com
nam na ferramenta. A pesquisa definiu grandes conglomerados comerciais novos concorrentes nesta Fase da Multi-
o padrão do usuário no Brasil: a maio- para a exposição, divulgação e venda plicidade da Oferta, cada vez mais essa
ria são homens, jovens-adultos de 21 de produtos de suas marcas. É neste conexão é garantida pelo jornal, site,
a 30 anos, solteiros, do Estado de São portal, blog, microblogging, rádio, web-
Paulo e Rio de Janeiro. Pessoas qualifi- TV na plataforma Internet.
cadas, estudantes do ensino superior e “Mesmo que queiram Antes de se pensar em processos de
pessoas já graduadas na universidade. democratização desses meios, o que
São heavy users de Internet e costu- alguns, a internet ainda se percebe é um processo contínuo
mam passar quase 50 horas semanais de consolidação do capitalismo mo-
conectados. Conhecem e utilizam as não é um espaço público nopolista na sociedade onde os bens
principais ferramentas 2.0. A maioria simbólicos passaram a ser analisados
utiliza o Orkut, Youtube, blog, Face- plural, pelo qual os enquanto mercadoria e adotaram o
book. papel de promotores do desenvolvi-
Outros dados relevantes: a gran- cidadãos possam mento econômico.
de maioria conheceu o twitter pelos Essa prática neoliberal, que se tor-
amigos (44,13%), destaque para quem participar do debate nou um elemento comum dos novos
utilizou a plataforma logo após criar tempos, colaborou para o tratamento
o perfil (47,28%), 79,87% usa o Twitter sobre as questões sociais da cultura em termos mercantis, pre-
para o compartilhamento de informa- cipitando ainda mais os processos de
ção. Porém, o que interessa ao mer- relacionadas à mídia. concentração e formatação dos oligo-
cado é saber que 80% já seguiu dicas e pólios de comunicação. Estes passa-
indicações dadas por alguém no Twit- Urge que sejam criadas ram a contar com novos instrumentos,
ter e somente 10% não gosta de publi- proporcionados pela inovação tecno-
cidade na plataforma. políticas públicas que lógica e colaboradores na busca pela
Festejado por muitos, há também maximização dos lucros.
aqueles que, apesar de usar a Internet, garantam a inclusão Mesmo que alguns queiram, a Inter-
fazem críticas ao Twitter. O Globo on net ainda não é um espaço público plural
line publicou, em julho último, que o digital, a pluralidade pelo qual os cidadãos possam participar
escritor português José Saramago, prê- do debate sobre as questões sociais rela-
mio Nobel de Literatura (1998), apesar da informação e a cionadas à mídia. Urge que sejam criadas
de ter um blog (caderno. josesarama- políticas públicas que garantam a inclu-
go.org), e considerar a Internet uma diversidade cultural” são digital, a pluralidade da informação
fonte de informação rápida e eficaz, e a diversidade cultural.
considera que o Twitter foi categórico Contudo, é salutar a discussão sob
uma “tendência ao monossílabo”: “... ambiente virtual que um seguidor vai o ponto de vista da EPC com o intuito
de degrau em degrau, vamos descendo se agregando a outro e assim, ad in- de encontrar caminhos e apontar al-
até o grunhido”. finitum, outros seguidores vão sendo ternativas para a democratização da
O aparentemente ingênuo passa- adicionados e atualizados pelo envio informação, da comunicação e da cul-
rinho, na verdade, configura-se como de mensagens desta ferramenta ainda tura no século XXI.

44 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- Há 30 anos era assassinado Santo Dias da Silva
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisi- Entrevista com Anízio Batista, sindicalista
nos.br) de 27-10-2009 a 31-10-2009. Confira nas Notícias do Dia de 30-10-2009
Anízio Batista fez parte da Oposição Sindical Metalúrgica
Congresso da Virada: 30 anos de transformações de São Paulo, onde foi companheiro de Santo Dias da
para o serviço social brasileiro Silva, operário que militava com os trabalhadores desde
Entrevista com Luíza Erundina, deputada federal a década de 1960. Em outubro de 1979, os metalúrgicos
Confira nas Notícias do Dia de 27-10-2009 iniciaram uma campanha salarial. Como os patrões não
Há 30 anos, o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, aceitaram o reajuste solicitado, uma assembleia foi feita
que se organizou a partir do patrocínio e apoio do regime e, então, uma nova greve começou. A Polícia Militar in-
militar, foi tomado por um grupo de assistentes sociais ar- vadiu diversas subsedes de sindicatos. Ao tentar negociar
ticulados na organização e na reativação das entidades sin- com trabalhadores e policiais em frente a uma fábrica,
dicais. Então, aquele momento “demarcou um salto político um PM atira pelas costas de Santo, que morreu a caminho
da categoria dos assistentes sociais”, contou-nos a deputada do hospital.
federal Luíza Erundina (PSB-SP), que participou do levante.
“É necessário uma aldeia toda para educar uma criança”
“Belo Monte pode ser muito danosa’’ Entrevista Leonor Franco de Araújo, historiadora
Entrevista com Hermes Fonseca de Medeiros, biólogo Confira nas Notícias do Dia de 31-10-2009
Confira nas Notícias do Dia de 28-10-2009 “Os negros brasileiros não conseguiram se colocar na cena
O biólogo Hermes Fonseca de Medeiros é veemente quando pública”, aponta Leonor Franco de Araújo. A realidade é
opina que o projeto de Belo Monte não deve ser realizado, ainda mais dura, pois nossa sociedade invisibilizou os ne-
assim como nenhum barramento ao longo do rio Xingu. No gros. “É como se, depois da abolição, todos tivessem de-
entanto, pondera: “Se o projeto for feito de qualquer for- saparecido. No Brasil, os negros foram empurrados para
ma, existem estudos que embasariam medidas mitigatórias os piores cantos, tiveram que assumir os piores trabalhos
que poderiam resultar em menos impactos negativos”. Ele porque saíram da escravidão sem qualquer qualificação ou
analisa os resultados do Painel de Especialistas, fala sobre as política pública”. A pesquisadora defende o Plano Nacional
características da bacia do rio Xingu e explica as consequên- para a implementação da lei 10.639 que estabelece o en-
cias que o ecossistema desse lugar poderia ser alterado. sino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos
sistemas de ensino.
“Temos uma crise profunda de compreensão das favelas’’
Entrevista com Jailson de Souza e Silva, geógrafo As Notícias do Dia de 29-10-2009, traduziram e public-
Confira nas Notícias do Dia de 29-10-2009 aram o artigo de Hans Küng, O Papa que pesca na mar-
Uma cidade maravilhosa, mas em guerra. A situação se tor- gem da direita. O artigo, que foi enviado ao Instituto
nou “extrema a partir do momento em que as Forças Arma- Humanitas Unisinos – IHU, em alemão, pela Fundação
das do Rio de Janeiro e outras partes do Brasil tiveram como Ética Mundial, cujo presidente é Hans Küng, foi publi-
princípio da ação policial o enfrentamento de determinado cado nos jornais La Repubblica, The Guardian, Le Monde
tipo de crime, ou seja, o tráfico varejista de drogas nas fave- e El País. A sua publicação suscitou uma resposta do jornal
las”, explica Jailson de Souza e Silva, coordenador geral do L’Osservatore Romano. Confira o material em (http://www.
Observatório de Favelas. Ele analisa o cotidiano que o Rio de ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=1
Janeiro vive hoje, e o que o morador da favela precisa enfren- 8&task=detalhe&id=27030) e 30-10-2009 (http://www.
tar todos os dias como a tensão provocada pela ausência do ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid
Estado no plano da segurança pública. =18&task=detalhe&id=27053).

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SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 47
Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica


www.ihu.unisinos.br

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Agenda da Semana
Confira os eventos dessa semana realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU
(www.ihu.unisinos.br).

Dia 04-11-2009
IHU em movimento – Direito em debate
Tema: A philia como critério de inteligibilidade da mediação comunitária
Conferencista: Profa. Dra. Rosa Maria Zaia Borges Abrão - PUCRS
Dia 05-11-2009
IHU Ideias
Tema: A linguagem e a singularidade na atividade de trabalho
Conferencista: Profa. Dra. Terezinha Marlene Lopes Teixeira
e metrando Éderson de Oliveira Cabral - Unisinos

Participe dos eventos do IHU

A programação completa está


disponível no endereço eletrônico

www.ihu.unisinos.br

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 49


A mediação comunitária como
prática jurídica popular inovadora
Fiadora da justiça, bem político supremo, a amizade é o vínculo social por excelên-
cia, já que ela faz do viver em comum uma escolha, e não uma necessidade, afirma
Rosa Maria Zaia Borges Abrão

Por Graziela Wolfart

A
manhã, dia 4 de novembro, acontece mais uma edição do evento IHU em Movimento - Direi-
to em Debate. Na ocasião, a Profa. Dra. Rosa Maria Zaia Borges Abrão, da PUCRS, abordará
o tema “A philia como critério de inteligibilidade da mediação comunitária”. A convite da
IHU On-Line, a professora concedeu a entrevista que segue, por e-mail, adiantando aspec-
tos do debate que ela levantará nesta quarta-feira, no Auditório Maurício Berni, localizado
na Unidade de Ciências Jurídicas da Unisinos. “Entende-se a mediação comunitária como um instru-
mento eco-pedagógico-comunicacional de autocomposição de conflitos que visa à democratização do
acesso à justiça e a emancipação social sob os fundamentos de uma ética da alteridade”, explica Rosa
Abrão. Em outras palavras, “mediação comunitária, ou justiça comunitária, ou justiça popular, só se
legitima como tal se for produzida pelos próprios sujeitos que se identificam como membros de uma
determinada comunidade; caso contrário, tem-se aí mera extensão do Estado”.
Rosa Maria Zaia Borges Abrão possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia
- UFU, mestrado em Direito pela Unisinos, e doutorado em Filosofia do Direito pela USP. Atualmente, é
professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. É membro da Associação Bra-
sileira do Ensino do Direito - ABEDI. Tem experiência na área de Direito Internacional Público, como ênfase
em Direito Internacional Humanitário, área na qual é coordenadora de grupo de estudos na PUCRS desde
2005. Possui atividades vinculadas à área de mediação, como professora da disciplina e como coordenadora
de atividades de extensão e, ainda, na área de filosofia do direito. Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir de que concei- de afeição entre as pessoas, profundas é uma atividade comum ou, ao menos,
to de philía a senhora abre a discus- ou estreitas, banais ou frias, como a fi- a pressupõe. Sendo correto dizer que
são sobre o tema a ser apresentado lantropia, ou pessoais e íntimas, como a amizade pertence ao domínio da fi-
no evento? Pode explicar esse con- a amizade propriamente dita, era para losofia moral, não se pode deixar de
ceito? eles amizade. A democracia da pólis admitir que ela também assuma um
Rosa Maria Zaia Borges Abrão - O con- clássica também conhece a amizade papel não periférico na filosofia políti-
ceito de philía a partir do qual se pro- sob o ponto de vista político: uma ami- ca e na antropologia filosófica. Desta-
põe a discussão é aquele vinculado à zade que está determinada mais por ca-se que o tema da amizade é um dos
teoria aristotélica e traduz-se por ami- razões ideais de solidariedade que por fundamentais na obra de Aristóteles e,
zade. A própria etimologia da palavra questões de relações pessoais. Assim, com certeza, melhor que qualquer ou-
amizade, para os antigos, já explica, considerada a amizade como uma vir- tro, ele mostra claramente a unidade
em grande parte, seu significado nas tude (difícil quando não problemática) da ética e da política sob o comando
teorias de seus diversos filósofos. A representativa de uma benevolência arquitetônico desta última. Fiadora da
amizade é enaltecida pela sabedoria recíproca, conforme alguns teóricos, justiça, bem político supremo, a ami-
antiga por uma palavra que a distingue da qual cada um é consciente; uma zade é o vínculo social por excelência,
de éros (amor): essa palavra é philía. virtude cuja perfeição requer que seja já que ela faz do viver em comum uma
Os antigos deram à palavra “amizade” levado a seu ponto máximo o reconhe- escolha, e não uma necessidade.
a extensão que nós damos à palavra cimento das qualidades essenciais de
“amor”. Assim, amizade paternal, fa- cada um pelo outro; não se pode dizer IHU On-Line - Quais os maiores de-
miliar, amizade amorosa; todos os tipos que ela se limita a um sentimento. Ela safios e avanços atuais em relação à

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questão da mediação em nossa socie- instrumento eco-pedagógico-comunica- autonomia e emancipação pró-societá-
dade? cional de autocomposição de conflitos ria), é atender ao conceito de cidadania
Rosa Maria Zaia Borges Abrão - Os de- que visa a democratização do acesso à que permeava a teoria política aristo-
safios são maiores que os avanços, devo justiça e a emancipação social sob os télica: cidadão é aquele que delibera e
admitir. Ainda há muita resistência às fundamentos de uma ética da alteri- decide. É também por este motivo que
práticas de mediação de conflitos, em dade. Pode-se encontrar na doutrina a mediação comunitária pode ser toma-
especial por parte dos profissionais do denominações distintas de “mediação da como uma prática jurídica popular
direito. Assim, considerando-se a cultu- comunitária”, tais como “resolução de inovadora. Primeiro porque trabalha
ra jurídica moderna de matriz liberal- disputas de vizinhança”, “justiça infor- com um conceito de liberdade que se
individualista-positivista-racionalista, mal” etc. Estas várias instâncias podem contrapõe àquele desenhado pela mo-
pode-se apontar como desafios à media- ser colocadas sob a rubrica da “media- dernidade – nela o homem é livre da
ção de conflitos, entre outros: a ruptura ção comunitária”, não porque tenham comunidade. A concepção de integração
com o paradigma moderno do monopó- uma singular e homogênea identidade, social que é pressuposto para a prática
lio da distribuição do direito pelo Esta- mas para desvelar uma racionalidade da mediação nos moldes aqui defendi-
do, que impõe que a justiça encontra-se política contingente. A grande questão dos, prescreve a condição humana de
apenas nos tribunais; a reaproximação que precisa ser ressaltada aqui, quan- liberdade na comunidade; não se pode
entre afeto e razão no mundo jurídico do se fala em mediação comunitária, pensar o significado de ser e estar no
e a consequente contraposição à cultu- e que é pressuposto para que se possa mundo a par da pertença ao local pelo
ra jurídica do litígio, ou seja, a de que defender a potencialidade que o me- qual se identifica no mundo. O homem
a composição dos conflitos se dá contra canismo teria em se constituir como age, interage, troca, constitui-se a par-
o outro, e não com o outro; a reflexão instrumento de resgate da afetividade tir da sua identificação com valores,
em torno do ensino jurídico tradicional e e solidariedade perdidas na modernida- princípios, convicções que não se pos-
da formação acadêmica dos profissionais de, para que se possa conferir-lhe o pa- tulam no isolamento, mas, ao contrário,
do direito, já que, salvo raras exceções, pel de propulsora de identidades, au- na comunhão. E conviver constitui-se
não se privilegia espaço nos currículos tonomias, emancipações, construídas em algo complexo, que pode vir a ge-
dos cursos de direito para disciplinas no conviver humano, é a de que uma rar conflitos. Se estes são solucionados
que apresentem e aprofundem teórica e justiça comunitária demanda, necessa- levando em conta o contexto no qual
praticamente os métodos consensuais de riamente, sua realização por membros se produzem, de forma não universa-
composição de conflitos, o que resulta da própria comunidade. Dito de outra lista, de maneira consensual, de modo
na formação de novos profissionais que forma: todos os elementos distintivos a valorizar e buscar preservar os laços
irão atuar a partir de “velhos” métodos, da mediação não seriam qualifica- afetivos que cimentam as relações hu-
não compatíveis com a complexidade e dos de comunitários se realizados por manas tem-se uma grande probabilida-
exigências da sociedade contemporâ- agentes externos à comunidade – sem de destes conflitos gerarem transforma-
nea. A despeito dos enormes desafios, querer parecer redundante, nestes ter- ções sociais positivas. Considerando que
alguns avanços já podem ser apontados: mos. Enfim, o que se quer dizer aqui é a modernidade deixou para a amizade
já se encontram instituições de ensino que mediação comunitária, ou justiça um espaço exclusivamente adstrito ao
superior que incluíram em seus currícu- comunitária, ou justiça popular, só se privado, justifica-se sustentar que a
los e em seus espaços de prática jurídica legitima como tal se for produzida pe- mediação comunitária, por adotar como
os mecanismos alternativos de compo- los próprios sujeitos que se identificam critério de inteligibilidade a amizade,
sição de conflitos; há programas do go- como membros de uma determinada recupera o caráter ético da vida em
verno federal de fomento à formação comunidade; caso contrário, tem-se aí sociedade, admitindo que os vínculos
de mediadores comunitários e à criação mera extensão do Estado. sociais se justifiquem por fundamentos
de programas universitários de teoria e jurídicos, sociais, mas também afetivos,
prática da mediação (justiça comuni- IHU On-Line - De que forma a philía e que qualquer abalo nestes vínculos di-
tária e Pacificar, respectivamente, am- pode ser considerada um critério de zem respeito, diretamente, ao público,
bos projetos financiados pelo Programa inteligibilidade da mediação comuni- na medida em que são produtos do con-
Nacional de Segurança com Cidadania tária? viver, e não só do viver, em comunidade.
- PRONASCI, do Ministério da Justiça); Rosa Maria Zaia Borges Abrão - Tomar a Ou seja, quando se está diante de um
a utilização, por alguns núcleos de as- mediação como instrumento eco-peda- conflito e se permite encará-lo como
sessorias jurídicas populares espalhados gógico-comunicacional de autocomposi- algo compartilhado, e não rivalizado,
pelo Brasil, da mediação como uma das ção de conflitos é tornar possível uma por aqueles que o vivenciam, quando se
premissas de atuação com as comunida- concepção de direito e de justiça muito potencializa a restauração das animosi-
des carentes. mais próximos da realidade. Legitimar dades tendo como foco a perpetuação
as práticas de mediação comunitária é de relacionamentos, permite-se invo-
IHU On-Line - O que podemos enten- legitimar uma justiça próxima dos cida- car, no plano público, a importância dos
der por mediação comunitária? dãos porque é por eles manufaturada laços afetivos como condição de possi-
Rosa Maria Zaia Borges Abrão - Enten- (não no sentido próprio de um “estado bilidade dos atores se enxergarem como
de-se a mediação comunitária como um de natureza”, mas numa perspectiva de partícipes da comunidade.
SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 51
Sala de Leitura

>> PIRSIG, Robert M. Zen e a arte da >> THEOBALD, Christoph. Transmitir um


manutenção de motocicletas (Lisboa: Evangelho de liberdade (São Paulo: Ed.
Editorial Presença, 2007) Loyola, 2009)

“Este é um livro no qual o autor retrata uma “Nesta obra o teólogo jesuíta busca,
viagem de motocicleta com o seu filho pelas como bem sugere o título de seu livro,
planícies dos Estados Unidos. Embora o título estabelecer um diálogo entre a proposta
sugira uma aventura, o livro está mais para um livro de do Evangelho e a cultura atual. Ciente
filosofia. Durante esta viagem, narrada em primeira pessoa, da dificuldade de comunicação por ficar presos a
diversas questões filosóficas são abordadas pelo autor, linguagens próprias de outros tempos, Theobald ousa
sempre utilizando metáforas com a manutenção de sua propor algumas condições para a transmissão do
antiga motocicleta. Durante a narrativa, o autor explora Evangelho hoje. Ele considera que a proposta de Jesus
os conceitos e o significado de ‘qualidade’ buscando um é uma escola de humanidade, por isso busca resgatar as
equilíbrio entre o pensamento oriental (como sugerido no dimensões antropológicas cristãs das narrativas bíblicas.
título) e o pensamento ocidental”. Segundo o autor nossos gemidos cotidianos, nossas
alegrias, nosso anseio de liberdade estão presentes no
Gustavo Lermen, professor do curso de Evangelho que propõe um itinerário de ‘humanização’,
Ciência da Computação válido para todas as épocas”.

Maria Cristina Giani, Coordenadora do Atendimento


>> HOTTOIS, Gilbert. Technoscience et sagesse Espiritual do Instituto Humanitas Unisinos - IHU
(Nantes: Éditions Pleins Feux, 2002)

“Acabo de ler Technoscience et sagesse?, de


Gilbert Hottois, que aborda as relações entre
a tecnociência e a sabedoria. Nele o autor
procura encontrar os motivos que separaram
estas duas dimensões do conhecimento humano
que, nos inícios da filosofia, estavam ainda unidas. >> O que você está lendo?
Na antiguidade dos “sete sábios”, o conhecimento
Compartilhe uma dica de leitura
prático e teórico eram inseparáveis. Tales e Solon, por
com a IHU On-Line.
exemplo, eram ao mesmo tempo sábios e técnicos.
Foi a partir do idealismo platônico que a divisão teria Professores e funcionários
sido estabelecida. Assim, a pergunta fundamental da universidadade podem
do livro é se é possível manter esta divisão e se ela escrever para
é ainda pertinente. Em todo caso, para Hottois, a mjunges@unisinos.br
resposta parece apontar para a articulação destes dois
campos, através da construção de uma nova sabedoria
tecnocientífica”.

Celso Candido de Azambuja, professor do Curso


e do PPG em Filosofia da Unisinos

52 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


IHU Repórter
Mirian Dazzi
Por Patricia Fachin | Fotos Arquivo Pessoal

E
la completou 60 anos na última terça-feira, 27-10-2009, e esbanja se-
renidade, sabedoria e jovialidade. A fala tranquila e o jeito acolhedor
mostram que Mirian Dolores Baldo Dazzi é uma professora apaixonada
pela profissão que escolheu e receptiva a novos desafios. Há mais de 20
anos na Unisinos, mas trabalhando com os jesuítas desde 1971 no colé-
gio Anchieta, ela divide as 40 horas de trabalho em quatro atividades principais,
entre elas, é responsável pela formação docente de novos professores, os acom-
panhando no processo de ensino e da capacitação docente dos diversos cursos da
Unisinos. Também coordena o novo curso de Gestão Cultural, o curso de especia-
lização de Educação Especial e leciona na graduação de Educação, na Graduação
em Pedagogia. Nos momentos de folga, gosta de aproveitar intensamente a vida
em família, aperfeiçoada por encontros gastronômicos nos finais de semana. Con-
fira mais essa história de vida.

Origens – Sou descendente de ita- blicas. Fiz magistério e sou bióloga de me interessando pela área de educa-
lianos e venho de uma região próxima formação básica. Antes de me formar, ção começando, por orientação das
a Guaporé, numa cidade muito peque- já atuava como professora no Colégio supervisoras do Anchieta, Cecília Car-
na que se chama Vespasiano Corrêa. Anchieta, em Porto Alegre. Trabalhei doso Alves, Margot Ottis e Cecília Oso-
Havia basicamente duas famílias na muito tempo na instituição e, nesse wski, e do padre João Roque - este foi
cidade: a da minha mãe (Zandavalli e período, tive relações muito impor- meu diretor após a direção do padre
Roman) e do meu pai (Zillio e Baldo). tantes com jesuítas que considero Paulo a quem chamávamos carinhosa-
Como ambas tinham o mesmo negócio: referências na minha vida e na minha mente de Paulão devido a sua altura -,
erva mate – até hoje existe a erva mate formação. Entre eles, o padre Paulo a me dirigir para essa temática.
Baldo, a qual é exportada -, a relação Englert, que realizou meu casamento Fiz uma especialização em Super-
entre elas não era nada tranquila. - tive o privilégio de ter o coral An- visão Escolar e outra em Metodologia
Tenho mais três irmãos: uma mu- chieta cantando na cerimônia do meu de Ensino. Nesse período, nasceram
lher e dois homens. Eu vim morar em casamento. Comecei a trabalhar em minhas filhas. Continuei trabalhando
Porto Alegre com um ano de idade e agosto de 1969. Fui professora na rede e surgiu a oportunidade de fazer um
estou na cidade até hoje. pública estadual e municipal de Porto concurso para trabalhar na Unisinos.
Alegre. Numa trabalhando com o curso
Casamento – Casei com o Diter há de magistério, na outra, com crianças Trajetória na Unisinos – Ingressei
37 anos. O conheci quando fui para a e adolescentes na área da biologia. na Unisinos como professora de Me-
estação de águas termais com meus Creio que devido a existir um acom- todologia do Ensino de Ciências, no
pais, em Irai. Tivemos duas filhas: a panhamento pedagógico muito sério e curso de Pedagogia, e permaneci tra-
Paula, que terá bebê em janeiro e nos consistente no Colégio ANCHIETA, fui balhando no curso a maior parte da
dará a primeira neta; ela é médica minha vida. Sempre me envolvi muito
dermatologista. E a Betina, que é ad-  Paulo Englert, padre jesuíta, foi professor e com as práticas de ensino e me vincu-
diretor do Colégio Anchieta de Porto Alegre.
vogada e irá casar no próximo mês de Foi superior provincial dos jesuítas do sul do lei a um serviço que a universidade ti-
dezembro. Brasil. Morreu aos 56 anos de idade, em São nha na época e que se chamava SIAPEA
Paulo, onde foi o primeiro presidente, no Bra- para atender crianças e adolescentes
sil, da Fundação Fé e Alegria. (Nota da IHU
Formação – Estudei em escolas pú- On-Line) em condição de não aprendizado. Esse

SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313 53


trabalho se originou de um convite docente, participo do processo de se- Mestrado - Fiz mestrado em Edu-
feito por suas coordenadoras na épo- leção dos professores, do acompanha- cação na Universidade Federal do Rio
ca, a Professora Maura Corcini Lopes e mento dos professores ingressantes e, Grande do Sul – UFRGS. Quando ter-
Eli Fabris. Mais tarde, coordenei esse depois, permaneço em contato com minei o mestrado – já fui mestranda
serviço, que hoje se chama EDUCAS e eles fazendo formação docente junto tardia -, tive o desafio do doutorado.
funciona na antiga sede, vinculado à com a algumas colegas como a Pro- Não segui meus estudos por dois moti-
Ação Social. fessora Janira Silva, com a professora vos: tinha um vínculo muito forte com
Depois, trabalhei com disciplinas Fernanda Wanderer e a professora Ana a docência; e porque sempre trabalhei
compartilhadas, com programa de Paula Ross. Essa é uma oportunidade de 40 a 60 horas e já tinha mais de 40
aprendizado sobre cultura, diferença única de poder ter esse contato direto anos. Conversei com minha família e
e educação. Nesse período, recebi um com os professores da universidade. tomei a decisão com muita segurança.
convite da universidade, através do Está sendo um motivo de muita satis- O Doutorado deixou de ser uma priori-
padre José Ivo Follmann, para formu- fação e alegria ver como os professores dade. Achei, junto com minha família,
lar um curso de museologia. Então, as novos se referem a Unisinos como uma que precisávamos de um tempo maior
professoras Paula Caleffi, Eloíza Capo- universidade que tem a preocupação para nossa relação familiar. Por ser
villa da Luz Ramos e eu fizemos uma de acompanhá-los e de estar junto a professora de Prática de Ensino, tenho
proposta, a qual não foi aprovada. Mas eles pensando o planejamento e me- a possibilidade de ter contato com
essa ideia sempre ficou latente. lhores estratégias para desenvolver aproximadamente 30 alunas em cada
Tive a oportunidade de viajar mui- determinadas competências. Então, semestre e através dos seus relatos
tas vezes, apresentando trabalhos da além de receber um retorno na área relacionados à educação especial me
universidade e, durante um período, do conhecimento, pois conversamos mobilizam a estudar e a discutir com
participei, na Universidade Ibero- com eles sobre os conceitos que serão as colegas que integram o PPG de Edu-
Americana, no México, de um curso trabalhados em sala de aula, o retorno cação. Claro que sinto falta das novas
sobre Museologia oferecido pelo Con- na área das relações afetivas é muito oportunidades que ele me traria, mas
selho Britânico de Cultura. Isso foi um importante. Nós chamamos essa nossa não deixei de estudar e pesquisar. Em
privilégio. Nesse meio tempo, também ação de acolhimento e dela participam 1994, me aposentei pelo Estado e, no
comecei a me envolver com as ques- vários colegas de outros serviços. En- ano passado, pelo município. Agora,
tões da Educação Especial e ainda co- fim, é um programa de aprendizagem tenho quatro atividades: a coorde-
ordeno, junto com a professora Maria bastante interessante. Também temos nação do curso de Gestão Cultural, a
Claudia Dal Igna, um curso de especia- a oportunidade de trabalhar com as coordenação da equipe da Formação
lização chamado Educação especial: o coordenações dos cursos e contribuir Docente, a coordenação, junto com a
desafio da escola inclusiva. Como já com a capacitação do corpo docente. Maria Cláudia, do curso de Especiali-
disse o curso de bacharelado em mu- zação de Educação Especial e a sala
seologia não se concretizou, mas al- Curso de Gestão Cultural - O cur- de aula.
gum tempo depois fui convidada pela so de gestão cultural, que ocupa parte Até o ano passado, trabalhava em
professora Paula Caleffi (diretaora da das minhas 40 horas na universidade, alguns programas de aprendizagem
Unidade de Graduação na época) para é realmente a flor do meu coração. É compartilhados, dos quais precisei
fazer junto com outras colegas (Shirlei a possibilidade de dar uma contribui- abri mão com muito pesar, porque a
Gedoz, Eloísa Capovilla da Luz Ramos ção para uma área nova na Unisinos. equipe era excelente. Desenvolvemos
e Silvia Foschiera) uma nova proposta, É uma área que está em pleno desen- um trabalho nos últimos seis anos ten-
a qual originou o Curso que coordeno volvimento e com muita visibilidade. tando viver a transdisciplinariedade, o
hoje: o curso Superior de Tecnologia Acredito que este tempo que estou na ensino e a avaliação por competência
em Gestão Cultural. universidade, passei a conhecer os je- e comprometidas com as questões da
suítas, a instituição, foi possível per- cultura tais como gênero, sexualidade,
Aprendizado e novos desafios na ceber o quanto nós temos de riquezas raça/etnia e classe social por exemplo
universidade - Meu tempo na Unisinos e bens culturais, e como eles podem e suas implicações com o currículo.
foi um período de muitas oportunida- ser colocados à disposição do público.
des e desafios. Nos últimos três anos, Então, a formação do gestor cultural Unisinos – A Unisinos é a institui-
fui convidada a compor a equipe de passa a ser um desafio; é uma inova- ção que eu escolhi para trabalhar e
formação docente, vinculada ao setor ção. Não tínhamos, na Unisinos, for- que continua acreditando no meu tra-
de Desenvolvimento de Pessoal e a di- mação de gestores na área da cultura, balho, é a minha segunda casa. Tive
retoria de Recursos Humanos. Também e hoje é um curso que está iniciando; a oportunidade de ver e, ainda quero
tive a oportunidade de me aproximar estamos no quarto semestre de oferta. ter a oportunidade de acompanhar, o
de outras pessoas e, principalmente, Os desafios vão sendo apresentados e seu constante esse crescimento. O que
de conhecer quase toda a universida- junto aos colegas que compõem as me chama atenção na universidade é
de, pois nesse período também integrei equipes em que trabalho nós os acei- a seriedade e o compromisso com os
a Câmara de Graduação e o Conselho tamos. quais desenvolvemos o trabalho de
Universitário (CONSUN). Na formação educação. Nós somos, sim, uma em-

54 SÃO LEOPOLDO, 03 DE NOVEMBRO DE 2009 | EDIÇÃO 313


>> Mirian Dazzi com o esposo e as filhas

presa, mas antes de mais nada so- se organiza é impressionante. Sei familiar.
mos uma instituição de ensino. Esse que o próximo simpósio irá tratar Somos quatro irmãos e tenho
marcador está presente em todas as de biopoder. Eu fiz meus estudos muitos sobrinhos, costumamos nos
ações da universidade, e na garantia na esteira dos estudos pós-moder- encontrar com bastante frequên-
de que ela tem excelentes profes- nos, na perspectiva dos Estudos cia. Gosto muito de viajar e de ir a
sores, mas também no compromisso Culturais e vejo que temos res- Punta Del Leste, assistir um show,
que estes têm de contribuírem com sonância desses entendimentos participar de atividades sociais com
que essa excelência se estenda aos em espaços tão importantes da amigos. Temos muitos amigos – as
seus alunos e a sua produção cientí- universidade. O IHU é outra parte amizades minhas e do meu esposo
fica. É uma universidade que aceita da casa Unisinos, um espaço que são amizades de família, porque a
desafios, e isso se revela, por exem- oferece oportunidade para os pro- grande maioria dessas amizades ou
plo, na decisão de implantar novos fessores fazerem a sua formação. são do nosso tempo de adolescência
cursos alguns pioneiros no mercado. Vejo o IHU como o movimento que ou foram construídas a partir das
Isso me encanta. É a universidade faz a oxigenação na universidade. nossas filhas, ou seja, pais dos ami-
aceitando caminhar por outros ca- gos das nossas filhas.
minhos mas sabendo aonde quer Lazer - Gosto muito de ver fil- Também tenho facilidade de
chegar. A Unisinos ainda terá mui- mes em casa. Recentemente assisti criar aproximação com as pesso-
to a contribuir, marcadamente, na O menino do pijama listrado. Gos- as e pelos professores do curso de
área da Cultura, não só em função tei muito porque trata de temas Gestão Cultural sou vista como
do curso de Gestão Cultural, mas que trabalho em sala de aula. alguém que gosta muito de comi-
por esse movimento da retomada Vivo intensamente a vida em da. Então, quando nos reunimos,
de ações na área da cultura. A or- família nos finais de semana. Esta- preparo algo para eles, quer seja
questra será revitalizada, há o me- mos permanentemente com nossas um chá especial ou mesmo alguns
morial jesuíta e a possibilidade de filhas e genros. Também gosto de chocolates. Enfim, festejamos e
ter, na universidade, essas referên- caminhar. Temos um cachorro que trabalhamos ao mesmo tempo.
cias. Ainda fico na expectativa de quase podemos dizer que também
retomarmos o sonho de um curso de “faz parte da família”, um bulldog Religião – Sou católica e vejo
museologia. inglês, o Buda, então, meu marido e com muita simpatia essas ações que
Acervo e professores compe- eu saímos muito, caminhamos com a própria universidade faz em rela-
tentes nós temos. Tenho muito or- ele. Gosto de cozinhar. Nos finais de ção à inter-religiosidade. Acredito
gulho e satisfação de ser profes- semana faço doces, bolos. Isso é ca- em Deus acima de todas as coisas.
sora da universidade. Esse orgulho racterístico da cultura italiana: jun-
foi construído junto com o orgulho tar família, comida e afeto. Sempre Sonho – Sonho realmente que o
da Unisinos de dizer “nós somos que visitava minha mãe – agora ela mundo tenha mais justiça social.
Unisinos”, como o padre Marcelo já é falecida –, saía da casa dela Respeito às diferenças e espero
Fernandes de Aquino nos diz. com uma rosquinha de nata, com que sejamos menos preconceitu-
uma massa caseira, um bolo de osos e que essa justiça seja uma
IHU – Tenho orgulho em poder maçã. Isso minhas filhas também construção coletiva. O meu gran-
acompanhar os desafios que o IHU encontram lá em casa. Nós nos reu- de sonho é ser feliz e ajudar as
nos aponta. A forma como o IHU nimos e fazemos uma gastronomia pessoas a serem felizes.
Destaques
As nanotecnologias no ensino
As nanotecnologias no ensino é o tema dos Cadernos IHU Ideias nº 125, que
acaba de ser lançado. A autora, Solange Binotto Fagan, é professora do
Centro Universitário Franciscano/UNIFRA, de Santa Maria-RS, onde atua nos
programas de Mestrado em Nanociências e Ensino de Física e Matemática.
A versão eletrônica estará disponível no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.
br) a partir do dia 20-11-2009. A edição impressa da publicação pode ser
adquirida na Livraria Cultural e/ou pelo endereço livrariaculturalsle@terra.
com.br

Estudos de Kierkegaard
Nos dias 12 e 13 de novembro acontece na Unisinos a parte brasileira da Jor-
nada Argentino-Brasileira de Estudos de Kierkegaard. Entre os nomes que es-
tarão presentes no evento citamos Bento Itamar Borges (UFU); Myriam Moreira
Protasio (UERJ/IFEN); Deyve Redyson dos Santos (UFPB); Marília Murta (UFMG);
Patrícia Carina Dip (UNGS, AR); Antonio Vieira da Silva Filho (USP/FAPESP); José
Alejandro González Contreras (MEX); João J. Vila-Chã (Pontificia Università
Gregoriana - PUG, de Roma), e Ernildo Stein (PUC-RS). A próxima edição da IHU
On-Line, inspirada no evento, terá como tema Søren Aabye Kierkegaard.

As redes e a construção de espaços sociais


Na próxima quinta-feira, dia 12 de novembro, o evento semanal IHU Ideias
terá como tema “As redes e a construção de espaços sociais na digitalização”.
A responsável pelo debate com o público será a mestranda Ana Maria Oliveira
Rosa, da Unisinos e membro do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia
Política e Sociedade (CEPOS). O IHU Ideias acontece todas as quintas-feiras, das
17h30min às 19h, na sala 1G119 do IHU.

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