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O que tem a Rádio?

Um Estudo sobre fãs de Rádio

Por Letícia Pinheiro


(Aluna 0000042604)

Mestrado em Antropologia: Culturas em Cena e Turismo


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa

Seminário de opção: Cultura Pop


Professora Jorge Martins Rosa

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Resumo

Partindo de uma breve reflexão sobre Cultura com foco na cultura popular, o objetivo
deste ensaio é tentar perceber as especificidades do meio rádio para gerar fãs, um dos
fenómenos característicos da Cultura popular, num mundo onde a Ciberespaço se
assume como aliado da rádio. Orientando o foco da reflexão para o lado do recetor parto
de uma breve introdução para 5 capítulos: Estudos Culturais e Cultura pop; O
surgimento e crescimento da classe média; Rádio: do consumo ao surgimento dos fãs;
Rádio Mega Hits: um estudo de caso ;Rádio: Os fãs de rádio- conclusões e observações
finais.
Partindo dos estudos de fãs e audiências com foco num inquérito realizado a fãs da
rádio Mega Hits tentarei tirar algumas conclusões e ideias sobre o que pode ser o
fenómeno Fandom em rádio. Existirá ele e quais são as suas especificidades?

Palavras-chave: Rádio; Fãs; Ouvintes; Ciberespaço; Internet; Representação;


Identidade; Cultura Pop; Meios de Comunicação de Massas.

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O que tem a Rádio?
Um Estudo sobre Fãs de Rádio
“Se eu incitasse os meus fãs ao suicídio não teria muito público”

Bruce Springsteen

Desde a sua criação por Guglielmo Marconi que milhões de indivíduos se ligam
todos os dias à rádio para ouvirem as suas músicas e serem informados. No entanto
desde Marconi a Rádio fez um longo caminho e hoje o que liga os indivíduos à rádio é
um conjunto vasto de motivos que vai muito além da mera informação ou fruição
musical. É o entrenimento por si só, é a ligação aos conteúdos da rádio, a ligação a um
modo de vida, a ligação aos passatempos, a ligação às músicas que fazem parte dos seus
momentos de vida, as músicas dos seus ídolos, muitas vezes mostradas por pessoas que
acabam por se tornar também elas numa espécie de ídolos: Os Animadores de Rádio. É
todo um conjunto de coisas que acabam por fazer parte do dia-a-dia dos indivíduos que
ouvem rádio e que acabam por traduzir um modo de vida e uma reprodução e
representação cultural.
Os ouvintes de rádio, são hoje indivíduos que se ligam à rádio como objeto de
formulação do seu discurso identitário num todo. “A minha rádio”; “A rádio da minha
juventude”, são expressões que ilustram bem estre grau de apropriação, não só dos
muitos elementos veiculados pela rádio, mas num nível mais acima, da rádio em si
como um todo que lhes serve, os identifica, se lhes cola à pele e lhes serve de
representação veiculando por um lado e ajudando a recriar por outro um “novo” tipo de
cultura.
Os fãs de rádio, são hoje filhos e produtores desta cultura. Parece-me, por isso, fazer
sentido o estudo do fenómeno Fandom em Rádio, que mais do que se ligar à “adoração”
dos produtos veiculados por esta cultura, tem a particularidade de se ligar à “adoração”
de um dos braços que colocou esta cultura no nosso mundo: Os meios de Comunicação
de Massas, neste caso a Rádio. Os fãs de Rádio são filhos e produtores da nata desta
cultura no seu esplendor.
Bem-vindo à Cultura Pop!

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Estudos Culturais e Cultura Pop

Mas afinal que cultura é esta e a que se liga?


Olhando para os estudos culturais e para a antiga divisão entre High Culture e Folk
Culture encontramos em Raymond Williams (1958) uma terceira cultura, também ela
popular, no sentido em que não faz a distinção entre potenciais recetores, como o faz a
High Culture. Por isso esta cultura é também popular, porque filha da expansão dos
Meios de Comunicação de Massas, ela é de fácil acesso.
No entanto, há que fazer aqui uma diferenciação com a cultura folk. Esta terceira cultura
já não é folk, no sentido rural, nem romântico, de algo que emerge do próprio povo, mas
ela é eminentemente urbana.
E porque herdeira dos meios de comunicação de massas ela tem o seu quê de técnico ao
mesmo tempo que passa por cima das diferenças entre High Culture e a Folk Culture.
Esta cultura chega a todos, absorve tudo, muitas vezes num processo de simplificação
que leva à perda de qualidade. Tudo lhe serve e tudo a pode alimentar do ponto de vista
da produção, incluindo a própria cultura de Elite, cujos produtos podem alimentar esta
terceira cultura, numa popularização que não raras as vezes se faz através da perda de
qualidade.
Torna-se aqui imperativo falar de Guy Debord (2006) e da sua obra “Sociedade do
Espetáculo”. Aqui Debord fala-nos de um mundo globalizado profundamente alterado
pelos Meios de Comunicação de Massas. Um mundo com uma imensa acumulação de
espetáculos a comandar as vidas dos indivíduos. Por espetáculo, aqui, Debord refere-se
a um mundo de imagens, aparência, de representação e ilusão em detrimento da
realidade como ela é em si mesma.
Com uma linha de pensamento claramente alinhada com o Marxismo, Debord atribui
este estado de sítio às condições modernas de produção, à sociedade organizada em
torno delas e a elas rendida, em suma, ao supremo fetichismo pela mercadoria. A ela
tudo e por ela tudo.
Debord coloca-nos, aqui, as questões máximas da representação da sociedade
globalizada. Dominado por esta noção de espetáculo este mundo já não é mundo, mas
apenas o espetáculo em si mesmo, que se dá a ver e deve ser visto. Temos, por isso, o
espetáculo de um lado e os indivíduos do outro, sendo que aos indivíduos cabe apenas o
papel passivo da contemplação, o olhar iludido e a falsa consciência de que têm uma

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consciência real. Na verdade para Debord, os indivíduos estão alienados e pouco ou
quase nada de consciência lhes resta. Os Mass Media têm aqui, nesta visão de Debord,
um papel importante na constante veiculação de imagens, sons e informação a uma
velocidade e quantidade vertiginosas. Tão vertiginosas que o cérebro humano é incapaz
de digerir. O mundo dá-se a ver numa imensa acumulação de espetáculos, cujo fim é o
espetáculo em si mesmo.
Apesar do discurso apocalíptico de Debord poder estar na ponta dos antagonistas a esta
cultura, num ponto Debord parece ter razão: Esta imensa acumulação de espetáculos
parece ter paralelo com a característica que esta cultura tem de se alimentar de tudo e de
todos os setores. Mas ao mesmo tempo que esta característica lhe atribui um certo
carater absolutista, não lhe atribuirá também um carater mais democrático ao não ser
preconceituosa quanto àquilo que lhe serve de alimento?
Raymond Williams (1958) defende que não é por se reutilizarem os meios e conteúdos
da elite, ou sequer pela sua origem popular que esta cultura é uma má cultura. E nem
sequer defende a dicotomia de Debord: espetáculo de um lado, indivíduos do outro.
Para Williams os meios podem ser de massas, mas os indivíduos não.

A Cultura Pop é, por isso, uma realidade, esta aí, faz parte do sistema mundo e do
mundo dos indivíduos que todos os dias dela se apropriam, dela se servem e com ela
geram conteúdos e representações culturais que a vão recriando. Se os indivíduos lhe
dão sentido, então importa percebe-la. E importa percebe-la do lado dos indivíduos e
das suas representações culturais. É por, isso que o fenómeno Fandom é importante e o
fenómeno Fandom em Rádio (sendo esta um dos próprios meios da cultura pop) ainda
mais aliciante.
É desta forma que neste ensaio me proponho a analisar os Fãs das Rádios dirigidas a um
público urbano e jovem. Para uma maior delimitação do objeto vou deter-me num
estudo de caso: Os fãs da rádio Mega Hits1.
O objetivo deste ensaio é, através deste estudo de caso, perceber como é que os fãs das
rádios jovens, entendem a rádio como um produto cultural num todo, como se
apropriam dela para a fazer sua, como se apropriam dela para se constituírem em grupos
e para se diferenciarem uns dos outros em género, gostos e características de classe, e

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Rádio fundada em 1998 pelo Grupo Renascença (atual Grupo R/Com- Renascença Comunicação
Multimédia) por forma a dar uma resposta eficaz, em termos de produto, ao público jovem urbano
dentro de um grupo de comunicação radiofónica que detinha uma rádio para 45-70 anos (Renascença) e
outra para 30-45 (RFM).

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como podem desfazer a dicotomia separatista de Debord “Espetáculo/Recetores”,
nomeadamente num mundo onde aparece um novo meio de comunicação de massas
(com características também elas arrasadoras da teoria separatista de Debord) – A
Internet.
Mas antes de conhecermos estes apropriadores da Cultura Pop, impõe-se uma viagem
no tempo.

O surgimento e crescimento da Classe Média

Não podemos, no entanto, falar de rádio como um produto promotor do discurso


identitário e diferenciador dos estilos de vida, sem olharmos para trás e percorrermos
uns quilómetros até meados do Séc. XVIII.
Na obra “Consumer Culture” Celia Lury traça-nos um retrato de uma Inglaterra com
uma sociedade que estava a ficar menos hierarquizada e que cujos elementos
começaram a desenvolver aspirações de “status”. A sociedade de consumo, é
normalmente tida como decorrente da Revolução Industrial, mas nesta obra, Celia Lury
não sublinha a cem por cento esta tese. Citando McKendrick, Brewer e Plum (1982), a
propósito do nascimento da indústria da moda, a autora apresenta-nos uma outra
revolução: A Revolução do Consumo paralela à Revolução Industrial e não dela
decorrente, embora não exclua a importância que os modos de produção do capitalismo
para ela tiveram.
Citando os três autores apresentados, Celia Lury, diz-nos “(…) But, importantly, they
also propose that the spread of fashion was dependente upon a new consumer
sensibility, a kind of progressive emulation among the lower middle class and a new
fondness for novelty (…)” (1996: 81)
Assim, não poderíamos falar desta revolução do consumo sem este crescimento da
classe média, que se deu, não só em Inglaterra, mas em vários lugares, através das
trocas entre países e das relações dinâmicas da economia transnacional. Crescimento
este, que começou a dar os primeiros passos com as trocas coloniais, uma vez que para
além de bens de primeira necessidade, das colónias chegavam, também, bens de luxo.
As mudanças na produção introduzidas pelo Fordismo, com as devidas interações entre
produção e consumo, acompanham a ascensão da classe média baixa, que passa agora a
desempenhar trabalhos burocratizados num ambiente de escritório, que tem algum

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tempo para o lazer e interage com o ambiente2, criando novas necessidades de produção.
A classe média ganha voz, em setores particulares como a moda, o design e os média. E
ao ganhar uma identidade própria, através de um consumo partilhado, a classe média
estimula, deste modo, a produção em massa.
Há um novo estilo de vida comum ditado pelas vozes sonantes da classe média, ao
mesmo tempo que se assiste a uma libertação dos indivíduos das regras do pensamento
religioso (principalmente as veiculadas pelo protestantismo que valorizava o trabalho
como algo nobre e via o consumo e o lazer como algo indigno e superficial), que são
criadas as conceções de beleza, e nascem novas relações entre os géneros criando estas,
também, novas necessidades de produção. – lazer liberto do protestantismo
Toda esta viagem no tempo feita por Celia Lury e por outras obras dos anos 90 3, é
importante para percebermos como é que se chega ao consumo da Rádio como
definição de estilo de vida e narrativa identitária, que por sua vez é importante para
percebermos o fenómeno fandom em Rádio. São as classes médias, portadoras de uma
formação longa e com alguma folga económica que investem na diferenciação através
consumo. É a classe média que cria esta necessidade e é ela, que ao mesmo tempo, a
tem. Mas como é que se passa da Rádio como meio de comunicação com o objetivo de
veicular informações e entreter musicalmente para a rádio como objeto e motivo de
consumo?

Rádio: Do consumo ao surgimento dos Fãs.

Os anos 70 do século XX estão na génese da antropologia do consumo. Um


desenvolvimento tardio que se prende entre outras razóes mais ligadas à estrutura da
disciplina, com “(…) os constrangimentos ideológicos que se faziam sentir graças à
forte influência do modelo marxista, cujos efeitos se desdobram quer no centrar da
atenção sobre a produção e o trabalho em detrimento (….) quer no conceber como um
mal a mercadorização da sociedade (…)” (Duarte, Alice, 2010: 368)
Ultrapassados estes constrangimentos e a ideia vinda do protestantismo de que o
trabalho é o único local de auto-realização humana e instalado o binómio da classe
média “trabalho/lazer” estão abertas as portas para o crescimento de industrias como o

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Estes trabalhos burocratizados permitiram a criação de espaços distintos, espaços de partilha de estilos
de vida que criaram necessidades de produção pela sensibilidade destes novos consumidores ávidos de
corresponder a este novo ambiente de estilo comum.
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Quando já é óbvia a criação de estilos de vida através das novas classes médias.

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turismo de massas e a evolução das industrias culturais, em que a rádio se insere já não
olhada como mero meio de informação, mas como um meio capaz de servir e também
gerar uma nova cultura ligada ao entretenimento, sendo que é ao entretenimento que os
indivíduos devem muitas vezes os espaços de sociabilização e relação indispensável à
auto realização dos indivíduos.
E é a propósito desta socialização que nos aparecem os primeiros estudos Fandom4 .
Ser fã é organizar a sua vida diária de tal forma que (…) cultivar a relação com certos
produtos ou géneros mediáticos se torna uma preocupação central do eu e serve para
orientar uma parte significativa da atividade do indivíduo e a sua interação com outros»
(Thompson 1999: 222)
Já Sandvoss (2005) nos diz que ser fã é “(…) o consumo regular, emocionalmente
comprometido de uma determinada narrativa ou texto popular”(…).
De acordo com Jonathan Gray em “Fandom: Identities and Communities in medieted
world” há uma primeira vaga de estudos com inspiração nos trabalhos de Certeau
(1984) que entendem o consumo dos meios de comunicação de massas como um lugar
de lutas pelo poder e aqui o Fandom seria o estilo das taticas de guerrilha daqueles que
tinham menos recursos para vencer esta batalha. Os estudos sobre Fãs começaram assim
por ser entendidos como uma causa representativa daqueles que tinham menos
vantagens na sociedade. John Fiske sublinha que os fãs eram associados aos gostos
culturais de subordinados e setores da sociedade sem poder.
Assim para Fiske (1989) o “Fandom” era automaticamente mais do que o mero ato de
ser fã de alguma coisa: era uma estratégia coletiva, um esforço comum para formar
comunidades interpretativas que na sua coesão sub cultural invadiam os significados e
preferências da classe dominante.
Há, no entanto, um estereótipo do fã como consumidor acrítico, obcecado, isolado,
facilmente manipulado nas representações dos meios de comunicação de massas, um
consumidor de emoções descontroladas, sexualmente atraído (mais no caso feminino) e
que procura nos produtos da cultura Pop uma compensação ao vazio da sua vida. Esta é
uma definição que faz ênfase na parte psicológica dos indivíduos, pondo a tónica nos
distúrbios, obsessões e assédios. Adorno (2003) fala-nos, por exemplo de uma
infantilização geral. Como se a simplificação feita pelos Mass Media de toda a cultura,

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Palavra Inglesa com origem em Fan Kingdom e que se refere ao conjunto de fãs de um determinado
programa, pessoa, banda ou fenômeno em particular.

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da High à Folk se refletisse depois no resultado do consumo dos produtos por eles
veiculados.
No entanto, mais recentemente na década de 90 surgem os primeiros trabalhos
académicos a contestar estas ideias pelas mãos de Jenkins (1992) Jensen [sic] 1992)
procuraram interrogar as representações na cultura popular das audiências/Fãs, na
defesa que que estes eram muitas vezes estereotipados e patologizados como “outros”
culturais, ou seja, como sujeitos obsessivos, bizarros, histéricos, infantis e socialmente
regressivos (Hills 2007: 459-460)
É, pois nesta altura que o fenómeno fandom surge como importante e integrado nos
estudos das audiências e nos estudos culturais. Estes estudos não põem o foco na
suposta manipulação dos média, nem tão pouco na sua fabricação de produtos, mas sim
na importância que eles acabam por ter para os quotidianos e para as culturas.
Assim sendo, o facto dos Meios de Comunicação de Massas veicularem muitas vezes
produtos fabricados com vista ao maior lucro através do engrossamento de audiências,
não constitui um mau facto ou um dado passível de ser ignorado. Pelo contrário, a partir
do momento que estes produtos têm importância para os indivíduos passam a ter
importância e significado cultural.
Recuperando as primeiras ideias dos estudos iniciais sobre fãs e as ideias de Fiske
baseadas nos primeiros estudos de Certeau (1984), entende-se agora que os fãs são mais
ativos do que o seu estereótipo faz crer. São indivíduos capazes de superar a sua
exclusão através da receção ativa da cultura popular. Os fãs são hoje entendidos como
audiências ativas e particularmente produtivas, passando de consumidores a produtores.
Muitas vezes são até ativistas, influenciando a própria produção, numa clara
confirmação das ideias de Certeau sobre as táticas dos consumidores contra as
estratégias de produção.
Com o surgimento da Internet, todas estas dinâmicas acabam por se adensar, quando
temos à nossa frente um meio de comunicação que já não é de um para muitos, mas de
muitos para um ou de muitos para muitos num fluxo comunicacional em varias direções
que se entrecruzam
Desta forma, por tudo o que ficou descrito, porque inseridos numa cultura popular, de
acesso fácil à informação de todo o tipo, da High, à folk culture, passando pelos nichos
culturais, o estudo dos fãs pode constituir-se como uma chave de entendimento da vida
moderna num mundo cada vez mais mediatizado e globalizado.

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Partindo desta ideia de construção e produção por pare dos recetores da cultura popular
veiculada pelos meios de comunicação, por via a influenciar e contornar as suas
estratégias, parece-me particularmente interessante e desafiante o estudo do fenómeno
Fandom quando o seu objeto de “adoração” é o próprio meio de comunicação em si. E
aqui, parece-me que a Rádio, em si, como meio, tem uma capacidade distinta de ser
objeto deste fenómeno que mais nenhum outro meio de comunicação tem. Aliada às
novas potencialidades que a internet está a oferecer e sabendo a elas se ligar como
ferramentas úteis e não como inimigas a Rádio está pronta para ser objeto de adoração
como produto desta cultura popular.
É o que vamos descobrir a partir deste ponto.

Rádio Mega Hits: Um estudo de Caso

A Mega Hits é uma Rádio dirigida a um público jovem ( neste momento com core
target fixado nos 15-28 anos), com emissores em Lisboa, Porto, Coimbra, Aveiro,
Braga e Sintra. A Mega Hits é uma rádio temática, ou seja, uma rádio sem programas de
autor e que se baseia em passar uma playlist de música pré-definida. Uma rádio com
sede em Lisboa, no Chiado, profundamente urbana, dirigida a um público urbano e que
desde o início fez uma opção por captar uma fatia da audiência ligada às classes A e B,
por forma a cativar a atenção das marcas por via do poder de compra do seu público
alvo. Esta é uma opção estratégica que não se encontra escrita, mas que se encontra
claramente definida internamente dentro do seu grupo “mãe” - R/Com Renascença
Comunicação Multimédia – e amplamente divulgada pelo departamento comercial junto
das marcas e clientes.
Através de observação participante ao longo de anos tenho percebido que há uma larga
fatia de ouvintes da Mega Hits que correspondem à estratégia da rádio, mas no que toca
aqueles que se dizem fãs da rádio nem sempre é assim.
De modo a perceber estas dinâmicas e como podemos falar da passagem do mero
ouvinte ao fã da rádio foi realizado um inquérito a ouvintes da Mega Hits, através de um
questionário online5, usando a base de dados de ouvintes da rádio6.

5
Qualtrics. Dizponível em <http://www.qualtrics.com/>. O questionário e os seus resultados encontram-
se no capítulo dos Anexos.
6
Base de dados que não me foi autorizada a divulgar para este trabalho.

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Com um público maioritariamente feminino (com resultados provados através das
audiências da marktest7 ) a rádio cumpre o seu objetivo estratégico de ter maior
audiência feminina do que masculina, por se ter a perceção de que as mulheres
consomem mais produtos do que os homens e desta forma poder captar a atenção das
marcas que são garante económico fundamental da Rádio Privada em Portugal.
A maioria das respostas presentes neste inquérito parece, também, responder a esta ideia
com resultado que podem ser consultados no Anexo 2 (quadro1). A consonância de
respostas a este inquérito encontra-se também na média de idades das pessoas que
responderam.
Quando surge a pergunta: Com tantas rádios, porque escolheste a Mega Hits? Surgem
respostas interessantes que nos permitem começar a desenhar o caminho no sentido do
fenómeno Fandom. Expressões como “porque é aquela com que me identifico”;
“identifico-me com o estilo de música, com as pessoas, com o seu humor e estados de
espírito”; “Porque causa da proximidade que me familiariza com cada uma das vozes”;
“por causa dos animadores”; “pelo espirito católico”. (Anexo 2 quadro 2)
Destaco aqui as expressões ligadas à representação da Identidade, à ideia de intimidade
criada pelos meios de comunicação e pela tecnologia, bem como as inúmeras respostas
que destacaram os animadores da rádio como motivação e fator de diferenciação, e por
fim o espirito católico (ligado ao facto da Mega Hits ser uma rádio pertencente ao
patriarcado de Lisboa – Grupo R/Com Renascença), o que nos dá uma dimensão de fé e
por isso de culto, que muitas vezes associamos aos fenómenos Fandom. (Anexo 2
quadro 3)
Os resultados do que os prende àquela Radio traduzem-se maioritariamente nos
Animadores e na Música, sendo este ponto interessante também para a questão da
identidade. Uma vez que a música é praticamente a mesma a passar nas rádios do
mesmo formato (através de uma formatação de metodologia que faz com que as rádios
privadas não arrisquem em coisas diferentes, por via a não afastarem os ouvintes e
terem lucro garantido junto das marcas) o facto destes ouvintes destacarem a música
como elemento diferenciador é de relevância para a forma como os indivíduos se
apropriam dos produtos culturais e os tornam seus. Já o que os prende menos são as
publicações que a rádio coloca nas redes sociais fazendo aqui cair um pouco o
argumento de que a agencialidade destes fãs face à rádio poderia estar muito ligada às
7
Empresa de market research e medição de audiências de media (excepto Tv) do Grupo Marktest. A
Marktest desenvolve estudos de mercado regulares. É através dos seus estudos que se medem as audiências de
rádio e que as rádios privadas em Portugal se organizam em termos de captação de publicidade.

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redes sociais, como vamos ver mais à frente. Mas voltando à questão, de musicalmente
as rádios privadas estarem todas bastante iguais (sendo que a música é o produto
maioritário deste formato de rádio, ocupando cerca de 90% dos seus conteúdos diários,
no que à Mega Hits diz respeito), não deixa de ser interessante que no quadro 94% dos
ouvintes tenham respondido que a Mega Hits é diferente das outras rádios, o que volta a
dar força á apropriação que os indivíduos e especialmente os fãs fazem dos produtos.
Como características de diferenciação os ouvintes destacaram neste questionário
particularmente os animadores da rádio, o que está bem patente na expressão referida
por um ouvinte “ser-se amigo mesmo de quem não se vê”.
92 por cento dos ouvintes referiram que a Mega Hits é para eles uma companhia.
(Quadro…. ) E quando questionados sobre o que a rádio já lhes deu obtive respostas tão
fortes para a identificação do fenómeno fandom em Rádio como “Felicidade; Palavras
amigas; alegrias; companhias; memórias; alegria de viver.” (Quadro …..) Esta última
particularmente identificável com o estereótipo do fã que procura nos produtos da
cultura popular uma espécie de preenchimento para uma vida potencialmente vazia.

No que à interação dos ouvintes com a rádio diz respeito 67% dos ouvintes deste
inquérito dizem já ter contactado a rádio através das redes sociais. (quadro….) As
razões de mais peso prendem-se como se pode observar no quadro…… com a
admiração pelos animadores de rádio, para os conhecer melhor e estar mais perto deles,
mas pelas expressões aqui usadas sente-se não o tom de exaltação que identificamos
com os fãs, mas mais um tom de cordialidade e simpatia.
76% dos ouvintes referiu falar da rádio, e das coisas que lá acontecem, em casa ou com
amigos. 59% diz que a rádio já os ajudou em momentos difíceis e 65% diz que não
guarda qualquer objeto da rádio em casa.
Vemos, por isso, aqui características fortes que associamos ao comportamento dos fãs,
como o facto de se ligarem à rádio e de assumirem que a rádio já os ajudou em
momentos difíceis da vida, como se fosse a força que retiram de um ídolo musical, por
exemplo, mas por outro lado seria de esperar que estes ouvintes guardassem algum
objeto representativo da rádio em casa e no entanto a maioria não o faz, ou não sente
essa necessidade.
Olhando para o novo espaço que a rádio tem encontrado ao longo dos últimos anos no
Ciberespaço, principalmente através das redes sociais vemos no quadro…… que o
facebook da radio e restantes redes sociais se constitui para estes ouvintes

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essencialmente como uma forma de contacto com os animadores da rádio e com a rádio
em geral e menos uma forma de eles se mostrarem.

No que toca à capacidade destes ouvintes se organizarem em comunidades de fãs


(quadros… … e …), 51% diz já se ter encontrado com outros ouvintes da rádio, 41%
destes em eventos da rádio, e 35% através de amigos que ouviam essa rádio.
Quanto ao que fizeram depois desse primeiro encontro, 35% diz terem ficado amigos e
18% diz organizar-se para comentar no facebook coisas de que não gostam na rádio ou
que acham que podiam melhorar.
Vemos aqui ténue capacidade destes ouvintes se organizarem em comunidades de fãs,
ainda com alguma relevância para a função social destes encontros que contraria o
isolamento do estereótipo do fã isolado. Quanto á capacidade das redes sociais
constituírem um espaço de intervenção dos ouvintes nos conteúdos da rádio ela parece
ainda ser ténue. É no entanto de salientar, que fora das redes sociais a rádio parece ter a
capacidade organizativa destas comunidades de fãs, uma vez que 41% destes encontros
se deram em eventos da rádio.

Por último quando foram confrontados com a pergunta “O que eras capaz de fazer pela
tua rádio” estes ouvintes não se mostraram muito arrojados nas atitudes e motivações,
pelo menos não tanto quanto seria de esperar do comportamento de um fã.

Rádio: Os Fãs de Rádio – Conclusões e observações finais

Olhando de perto para estes resultados vemos acima de tudo uma capacidade da rádio
contribuir para um discurso identitário através da apropriação da sua “marca”.
É neste ponto que importa falar de Daniel Miller, mas também sucintamente de outros
autores que com ele fizeram a história dos estudos do consumo. É o caso de Pierre
Bourdieu que pensa os indivíduos como capazes de atribuir simbolismo aos bens e às
coisas atribuindo-lhes um papel ativo enquanto consumidores. No entanto, é a Miller
que devemos a grande tomada de posição da cultura de massas. Em “Material Culture
and the Mass Consumption”, desdobrando as ideias dos pós-modernistas que rejeitam as
ideias de consumo ligadas à mera necessidade e utilidade, Miller desenvolve a teoria da
apropriação cultural dos objetos. Na obra “Consumption and Everyday Life” é
interessante o caso das cozinhas em apartamentos londrinos estudado por Miller. Neste

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caso vemos como mesmo em apartamentos alugados os indivíduos sentiram necessidade
de fazer alterações às cozinhas, mais ou menos profundas, de acordo com o seu grau de
sociabilidade, o que prova que a apropriação é relacional e contextual. Com Miller
percebemos que nos tornamos naquilo que compramos ou adquirimos. Ele atribui,
finalmente, um papel ativo e criativo ao consumidor, fazendo com que o consumo
apareça sempre ligado à produção.
E é neste ponto que a rádio se torna muito mais do que um meio difusor da cultura
popular, mas um meio objeto de representação e apropriação identitária dos indivíduos
que a ela se ligam, num movimento constante de recriação da cultura pop.

Nos últimos anos a rádio tem sabido aliar-se à Internet e dela tirar o melhor partido. No
entanto para os ouvintes a internet parece ainda não constituir um lugar organizativo
característico dos fenómenos fandom. As Redes Sociais parecem não incrementar a
capacidade ou motivação ainda diminuta deste tipo de fãs se organizar para alterar os
conteúdos da rádio.
Do lado da rádio os fãs da Mega Hits parecem alterar as práticas, mas não os seus
conteúdos. Através da minha observação participante de anos neste meio, notei que os
posts que têm a ver com conteúdos da rádio são pouco comentados8, mas os posts que
têm outro tipo de conteúdos que nada têm que ver com a rádio, mas muitas vezes com o
mundo privado dos seus animadores ( os seus animais de estimação, os seus hobbys,
frases inspiradoras em que acreditam) têm uma participação muito maior.
Mas aqui surge a dúvida: Esta participação maior deve-se ao interesse pelos rostos da
rádio ou por serem conteúdos que chamam à participação outro tipo de audiência que
não apenas os fãs da rádio. A página de facebook da Mega Hits tem 380.742 fãs à data
da escrita deste ensaio, mas serão fãs ou trata-se apenas de uma audiência?
De qualquer forma, nos últimos tempos a rádio tem feito um esforço por aumentar este
tipo de posts na sua página de facebook, por forma a ter mais visualizações e passar a
sua marca em maior número.

Por outro lado, não é de descartar a importância que os animadores da rádio têm para os
ouvinte. Eles são os rostos da rádio, o elemento que maior diferenciação imprime a uma

8
São normalmente menos os que comentam este tipo de posts, mas são mais fiéis. Parecem ser sempre
os mesmos, aqueles que estão sempre a ouvir a rádio, os chamados P1’s, que poderemos ligar os
verdadeiros fãs da rádio.

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emissão eminentemente igual a outra rádios. O rosto que liga os ouvinte á emoção, ao
humano. O rosto que melhor pode fazer a ligação identitária à rádio.
Nota-se uma grande admiração destes ouvintes pelos animadores, com algumas
características de transposição fã/ídolo para estes profissionais, ainda que com
características muito menos estremadas que no caso do fenómeno Fandom dirigido a
bandas de música, por exemplo.

Voltando à ideia das Redes Sociais não se mostrarem com grande capacidade de
incrementação da motivação para estes fãs se organizarem para alterar os conteúdos da
rádio, há que ter em conta que isto não quer dizer que estes fãs tenham menor
agencialidade ou menos capacidade de atuação que os fãs de outro tipo de produtos
culturais, ou que sejam mais alienados do que eles, por serem fãs de um meio de
comunicação e por isso por ele poderem ser manipulados.
Pelo contrário. Estes fãs têm hoje uma grande consciência de como a rádio é feita e
quais as motivações por detrás dos processos. Veja-se o caso dos ouvintes que muitas
vezes são entrevistados9 e a quem os animadores/repórteres pedem para falar. Ouvintes
que muitas vezes não são ouvintes diários da rádio, que a ouvem, mas não de forma tão
itensa, mas que gritam como um fã extremado ao microfone. Muitos perguntam mesmo
“Queres que eu seja um fã histérico da rádio. Eu sou”. Dotados de consciência eles
performatizam, encenam-se numa fachada, tão cara a Ervin Goffman, e mostram-se
conscientes dos processos. No entanto os verdadeiros fãs, aqueles que se sentem mais
emocionalmente ligados à rádio parecem não ter tanto esta capacidade de encenação,
embora se mostrem igualmente conscientes dos processos.

São estes ouvintes que estão nos eventos da rádio. Não em um (pelas características do
evento), mas em todos. São eles que conhecem outros ouvintes nestes eventos e que
depois se organizam e criam laços e espaços de sociabilidade próprios, em linha de
ligação com o fenómeno Fandom, dotando a rádio em si mesma e não o seu lugar na
internet desta poder organizativo com os seus eventos, conteúdos e animadores e marcas
a que se associa.
Tomando com o pressuposto a tipologia de audiências WASKO 2001 que organiza os
fãs numa escala de fanáticos a antagonistas, poderíamos talvez encontrar os fãs de rádio
algures no meio desta escala.
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Posso atestar isto através da minha experiencia profissional.

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Mas o que aqui é se ressalvar, é a capacidade que a rádio enquanto meio que está no
ceio no nascimento da cultura popular e é ao mesmo tempo meio da sua divulgação, tem
para ser ela mesma um objeto de adoração ou contemplação, ainda que mais moderada
dentro desta cultura popular num movimento que a recria através dos seus fãs.
Os fãs de rádio ouvem-na, ligam-se a ela todos os dias, sentem que as músicas que lá
ouvem são diferentes das outras rádios, conhecem os nomes dos animadores, são mais
fãs de uns do que de outros, sentem que falam para si, que os entendem. Estes fãs
interessam-se pelo discurso veiculado pelos animadores que normalizados pelos grandes
grupos de comunicação tendem a veicular o discurso da própria rádio. É a este discurso
em última análise que estes fãs se ligam. A Rádio como um todo e não apenas como
música ou como os animadores ou como os conteúdos que vincula, é apropriada pelos
ouvintes e já não é a mesma. Deixa de ser um produto dirigido às grandes massas de
ouvintes e passa a ser um produto dirigido a cada ouvinte em específico que a entende e
dela se apropria à sua maneira.
Como nenhum outro meio de comunicação de massas ( não parece haver quem veja
apenas uma canal de televisão e o sinta como seu em detrimento de outros ou seja fã
apenas de um site na internet) é capaz de poder por a sua marca no peito do ouvintes
que a mostram com orgulho, formulando discursos identitários ligados a memórias e
emoções, porque dela fazem parte e porque a rádio já não é mais a rádio. É a sua rádio.
Como em nenhum outro meio de comunicação de massas é em rádio que podemos falar
de fãs de rádio entendendo-a como um meio de recriação única da cultura POP.

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