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O trabalho de assistentes sociais na Hematologia

Paloma Mendes Guimarães1

Resumo

Este artigo visa abordar o trabalho de assistentes sociais na área da


hematologia. Enquanto conhecimento biomédico a hematologia estuda as
doenças que tem origem nos componentes do sangue. O tema é pouco
discutido no âmbito da categoria e a área é abrangente para atuação
profissional como, por exemplo, nos hemocentros, hospitais de média e alta
complexidade, unidades de urgência e emergência e outras. Defendemos que
a aproximação com o conhecimento desta área qualifica o trabalho dos
profissionais.

1. Introdução

O Serviço Social é uma especialização do trabalho coletivo e configura-se


como uma profissão inscrita na divisão sociotécnica do trabalho, assalariada e
portadora de um saber próprio que lhe permite intervir na realidade por meio
dos serviços sociais e políticas sociais (IAMAMOTO, 2015).

Há uma intensa discussão sobre o fato da atuação do Serviço Social ser ou


não ser uma forma de trabalho. Baseada em Marx, Iamamoto (2015) defende
que Serviço Social é trabalho, uma vez que, em sua realização, ele tem uma
utilidade na sociedade, possui um processo de trabalho e o seu produto se
dará na interferência nas condições materiais e sociais da população atendida.

1
Assistente Social graduada pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (2017), especialista
em atenção multiprofissional em Hematologia e Hemoterapia, Residência Multiprofissional em
Saúde, pela Universidade Federal de Goiás (2019), mestranda em Serviço social pela Pontifícia
Universidade Católica de Goiás.
No Brasil o Serviço Social está regulamentado pela Lei 8.662/1993 2. Os
profissionais devem observar os preceitos do Código de Ética Profissional,
onde estão expressos os valores e a direção política que devem balizar as
intervenções. Cabe ao assistente social um conhecimento profundo sobre os
fundamentos e a história da profissão e dos saberes que nos auxiliam a fazer a
leitura desta realidade como: os conhecimentos da teoria econômica, filosofia,
sociologia, antropologia, história do Brasil, ciências sociais, metodologias de
pesquisa. É imprescindível entender como esta sociedade se configura, produz
e divide os bens e as riquezas produzidas, como as desigualdades inerentes a
ela são estruturais, como rebatem na vida dos sujeitos, como Estado e
Sociedade se relacionam na disputa pela hegemonia e como o Estado escolhe
realizar políticas públicas, entre elas as políticas socais.

A profissão tem na questão social seu objeto de trabalho, entendida como a


produção coletiva e apropriação privada dos bens produzidos socialmente
(IAMAMOTO, 2015). A questão social se expressará de várias formas, como
por exemplo, na pauperização da população, no desemprego, moradia
precária, na violência. Para Iamamoto (2015, p. 67) o Serviço Social “é
socialmente necessário porque ele atua sobre questões que dizem respeito à
sobrevivência social e material dos setores majoritários da população
trabalhadora”. Deste modo, a profissão interfere na reprodução da força de
trabalho.

Essa gama de conhecimentos permite ao profissional entender as


configurações da questão social, decifrar o momento presente e intervir na
realidade, criando respostas qualificadas aos inúmeros desafios postos ao seu
trabalho. Conforme Iamamoto (2015, p. 48-49)

Possibilidades novas de trabalho se apresentam e necessitam ser


apropriadas, decifradas e desenvolvidas. (...) O desafio de decifrar
novos tempos para que deles se possa ser contemporâneo. Exige-se
um profissional qualificado, que reforce e amplie a sua competência
crítica; não só executivo, mas que pensa, analisa, pesquisa e decifra
a realidade.

2
Nesta lei estão expressas, entre outras situações, as condições da atuação, as competências
profissionais, atribuições, carga horária de trabalho, as entidades representativas da categoria
e suas competências, condições para supervisão de estágio, as infrações e penalidades.
Nas ultimas décadas as possibilidades de atuação de assistentes sociais
foram ampliados para diversas áreas, como é o caso dos movimentos sociais,
conselhos de direito, Poder Judiciário e o terceiro setor; não que não
houvessem profissionais nestes campos, mas houve uma ampliação
significativa do número de vagas.

É importante frisar ainda sobre as múltiplas possibilidades de trabalho


dentro de uma mesma política social. Na área da saúde, por exemplo, os
profissionais de serviço social podem estar inseridos em unidades básicas, de
média ou de alta complexidade; em consultórios de ruas ou em centros de
atenção psicossocial (CAPS); em distritos sanitários, ou em cargo de gestão e
planejamento da política em diversos níveis. Mais especificamente ainda, em
um hospital, por exemplo, os assistentes sociais estão em diversas frentes de
trabalho, como: pronto socorro, unidades de terapia intensiva, maternidade,
pediatria, unidade de transplantes, nas clínicas médicas, cirúrgicas, de doenças
tropicais, ortopédicas; em ambulatórios específicos como de chagas,
reprodução humana, hematologia, trassexualização.

Obviamente, nenhuma grade curricular do curso de Serviço Social em


qualquer faculdade ou universidade do país dará conta de abranger as
especificidades destes ambientes, até porque essa multiplicidade de frentes de
trabalho está também em diversas outras políticas sociais. Deste modo,
quando Iamamoto (2015) fala em novas possibilidades de trabalho e da
necessidade dos profissionais de se apropriarem delas está nos alertando que
precisamos, por meio do manejando de nossa instrumentalidade, criar
respostas de trabalho qualificadas.

Matos (2017, p. 56-57), ao trazer os resultados da pesquisa de opinião


realizada ao final do projeto “Formação profissional do Serviço Social e sua
interface com a saúde” desenvolvida pela ABEPSS, diz que foi identificando
que

(...) O ensino em saúde não ocorre em todas as unidades de ensino e


quando ocorre, na maioria das vezes, trata apenas da política de
saúde, não havendo uma discussão sobre o exercício profissional,
propriamente dito neste âmbito.
É importante saber que

Não se tem um único e idêntico processo de trabalho do assistente


social. (...) Um dos desafios maiores para decifrar o exercício
profissional está em apreender as particularidades dos processos de
trabalho que, em circunstâncias diversas, vão atribuindo feições,
limites e possibilidades do exercício da profissão (IAMAMOTO, 2015,
p. 106).

A Hematologia é uma destas áreas que precisam ser apropriadas,


decifradas e desenvolvidas por assistentes sociais, pois além do conhecimento
da atuação na política de saúde há uma saber técnico específico. Há poucos
programas de pós-graduação3 multiprofissionais na área e poucas publicações
a respeito do trabalho de assistentes sociais na Hematologia.

Baseada na experiência da autora como residente em saúde, na


especificidade da Hematologia e da Hemoterapia, este artigo discutirá o
trabalho dos assistentes social na Hematologia, com ênfase na área pública,
sendo uma discussão inicial, que pretende muito mais apresentar a atuação na
área. Cabe destacar que não se pretende esgotar o assunto neste trabalho,
mas trazer contribuições e subsídios os quais norteiam a atuação na área
citada baseados na experiência da autora.

O artigo discutirá inicialmente a Política de Saúde Pública no Brasil, pois


ela é quem dará os contornos para o tratamento das doenças hematológicas
como um direito social, a seguir se abordará a hematologia enquanto área de
conhecimento científico relacionando o trabalho do assistente social na área.

2. A Saúde: um direito de todos e um dever de Estado

A Política de Saúde é um espaço tradicional de trabalho para os


Assistentes Sociais. Na América Latina a profissão nasce no Chile, em
contexto hospitalar, por requisição do médico Alejandro Del Río 4 que requeria
um profissional auxiliar que intervisse em questões de cunho sociofamiliar,

3
Os programas de residência multiprofissional em hematologia que encontramos foram os das
instituições: Hospital Israelita Albert Einstein, Universidade Federal de Goiás, Grupo Hospitalar
Conceição, Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Instituto Nacional de
Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA).
4
Alejandro é também o fundador da primeira escola de serviço social na América Latina em
1925 (CASTRO, 2011).
onde “o assistente social deveria ser um subtécnico incumbido de colaborar
diretamente com o médico” (DEL RÍO apud CASTRO, 2012, p. 74).
Matos (2017) diz que a inserção da profissão nos serviços de saúde no
Brasil também se deu desta forma. A época os assistentes sociais atuavam
como um elo entre a instituição e os usuários e suas famílias. Eles e os outros
profissionais não médicos, que na época receberam a denominação de
paramédicos, tinham seu trabalho gerido por eles, em uma perspectiva de
complementação, “ficando sua atuação para aquilo que o médico julgava não
ter capacidade ou não queria fazer” (MATOS, 2017, p.59).
Segundo Bravo (2007) a profissão nesta área ficou desarticulada até se
envolver com o Movimento de Reforma Sanitária (MRS) na década de 1980. É
importante resaltar que na época a profissão estava em um processo de
renovação denominado Movimento de Reconceituação do Serviço Social.
Neste momento os profissionais questionam as bases tradicionais da profissão
ligados à igreja católica, da qual se herdou o estereótipo da caridade e da
“moça boazinha”, o moralismo advindos do humanismo conservador, os
direcionamentos tomistas-neotomistas e as teorias positivistas, funcionalistas e
fenomenológicas.
O Movimento de Reforma Sanitária surge na década de 1970 na luta
pela redemocratização do país, universalidade e equidade do direito a saúde, a
participação popular na tomada de decisões e a defesa da democracia e da
cidadania. O Serviço Social militou neste, e em outros movimentos da época,
tendo participado ativamente e incorporando os princípios do movimento
(MATOS, 2017; BRAVO, 2007).
O MRS, juntamente com outros grupos organizados, conseguiu que
fosse garantido na Constituição Federal de 1988 a inserção da concepção de
Seguridade social, na qual a Saúde passou a compor o tripé da proteção
social. Deste modo, a Constituição Federal de 1988 representou um avanço no
padrão de proteção social brasileiro. Em relação à saúde houve mudanças
importantes que se distanciaram dos modelos de saúde campanhista e
previdencialista, predominantes até então. O novo sistema, agora de direito
universal e de dever do Estado concretiza, ainda que legalmente, os sonhos do
MSR e da luta pela saúde como direito de cidadania.
O Sistema Único de Saúde (SUS), regulamentado Lei 8.080/90, tem
como princípios a universalidade, equidade, integralidade, regionalização e
hierarquização, descentralização e participação popular. Para que o direito a
saúde seja materializado na vida do cidadão é necessário que o Estado
garanta o acesso a bens, insumos, saneamento básico, políticas setoriais,
unidades de atendimento e recurso humanos, bem como a criação de toda
uma estrutura para o fornecimento de ações de promoção, proteção e
recuperação de saúde.
Cabe ao Estado Brasileiro prestar serviços de saúde a população
pautada nas diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação
da comunidade (art. 198 da CF/88). A Carta Magna criou o SUS, mas sua
regulamentação se deu pelas Leis n.º 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e nº
8.142/90. A LOS estabelece as responsabilidades e competências de cada
esfera de governo, e também os princípios que regem o sistema. a Lei
8.142/90 dispõe sobre a participação da população na gestão SUS e sobre as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde.
A partir da década de 1990 o modelo neoliberal ganhará força no país e
mudará a orientação do Estado junto às políticas sociais. O neoliberalismo
surge na década de 70 após a grande inflação, sua ideia fundamental é tornar
o Estado um administrador da coisa pública, partilhando com a sociedade civil
as responsabilidades pela serviços. Deste modo o neoliberalismo propõe que o
Estado deixe de ser o principal responsável pelas políticas sociais, pois as tem
como onerosas; os investimentos estatais devem estar voltados para o
mercado, onde o sujeito deve buscar satisfaz, por meio da compra, suas
necessidades humanas. No Brasil isto significou reformas aliadas com os
interesses do mercado, com destaque principalmente para o modelo de gestão
gerencial, as privatizações, ajuste fiscal, a flexibilização (PRAZERES, 2011).
Para a área da saúde isto significou uma tensão entre a proposta de
saúde pública universal, como direito de cidadania do Movimento de Reforma
Sanitária e da Constituição Federal de 1988, versus o projeto neoliberal. A
tensão é justamente esta, o Estado promete ser máximo na saúde, ser seu
principal regulador, promotor, financiador, gestor, mas a orientação política
deste mesmo Estado o direciona para agir de forma mínima junto às políticas
sociais, entre elas a saúde.
Esta conjuntura muda os contornos da execução da saúde como um
dever do estado e de direito do cidadão, coloca os assistentes sociais em
constante tensão, uma vez que a profissão, orientada pelos princípios da
reforma sanitária, tem sua prática perpassada pelo constante subfinanciamento
econômico da política.

3. A Hematologia enquanto saber e enquanto área de atuação profissional

A palavra Hematologia etimologicamente vem do grego e significa


estudo (logos) do sangue (haimia > hemato). Enquanto ramo da biologia
estuda o sangue, sobretudo seus principais componentes/linhagens: as
hemácias, também chamados de glóbulos vermelhos, tem a função de
transportar oxigênio para os órgãos e tecidos; os leucócitos, ou glóbulos
brancos, combatem as infecções e protegem o corpo de agentes externos; as
plaquetas realizam a coagulação do sangue e impedem hemorragias.
Enquanto um saber clínico a hematologia estuda as doenças que tem
origem em um ou mais componentes no sangue. As patologias hematológicas
estão divididas em grupos, sendo eles: anemias, hemoglobinopatias,
coagulopatias e doenças clonais.
As doenças apresentam maior ou menor impacto na vida dos sujeitos,
algumas são totalmente curáveis, outras não; algumas são adquiridas, outras
são genéticas ou hereditárias e outras sequer se conhece a causa. O grupo de
doenças é extenso, vamos nos limitar a falar brevemente sobre eles, focando
nas doenças mais comuns, relacionando-as com algumas possibilidades de
atuação do assistente social na área.

3.1 Doenças clonais

As doenças clonais também são conhecidas como Doenças


Mieloproliferativas Crônicas (DMC), termos usados para definir o grupo de
doenças resultantes da proliferação desordenada de um ou mais linhagem do
sangue (hemácia, leucócitos, plaquetas). O aumento da produção destes
componentes desencadeia doenças que geralmente são progressivas, bem
como outros problemas de saúde, como, por exemplo, a sobrecarga das
funções baço (esplenomegalia) e do fígado (hepatomegalia). São doenças
clonais os linfomas, leucemias, mielomas, hemoglobinúria paroxística noturna,
síndromes mielodisplásicas, policitemia vera, trombocitemia essencial e outras
(HEMORIO, 2010).
No Brasil as leucemias são o 9º câncer mais comum entre os homens e
o 11º entre as mulheres, considerando a população adulta. É uma doença que
atinge os glóbulos brancos, tornando o corpo mais suscetível a doenças, seja
pela perca de função ou pela reprodução descontrolada. São divididas em
grupos, quando baseadas nas células que atingem podem ser linfoides ou
mieloides e quando baseada na progressão podem ser crônicas (progressão
lenta) ou agudas (progressão rápida). As leucemias são doenças adquiridas,
mas a ciências ainda não descobriu suas causas (ABRALE, 2016).
O mieloma é o câncer mais comum em pessoas com mais de 50 anos e
se caracteriza pela produção de plasmócitos anormais, os normais são
responsáveis pela produção dos linfócitos. O tumor ou aglomerado de
plasmocitos anormais podem crescer dentro dos ossos (intramedular), o que
dificulta a produção das linhagens do sangue e a estrutura óssea, ou fora
(extramedular) (ABRALE, 2016).
Os linfomas atingem os linfócitos (um dos tipos de glóbulos brancos) e
se caracterizam pela inversão da função deles. Em vez de combater os vírus,
bactérias, fungos que circulam pelo sangue (pelo sistema linfático) sua
produção desordenada impede que isso aconteça. São divididos em linfoma de
Hodgkin (LH) e linfoma não-Hodgkin (LNH), a principal diferença é que no LNH
as células são apenas de câncer, o que torna a doença mais agressiva, e a LH
há células normais misturadas às cancerígenas (ABRALE, 2016).
O trabalho do assistente social começa desde o momento em que o
diagnóstico é fechado, ou até antes dele. No cotidiano profissional vemos
usuários que aguardam há muito tempo os exames necessário para conclusão
do diagnóstico, como o mielograma, sendo comum os relatos de que as
famílias se organizam para arrecadar dinheiro. Sem generalizações e
reconhecimento da fundamentalidade do SUS, sobretudo para a população
pauperizada, consideramos necessário aprimorá-lo para que ele consiga
atender as necessidades de saúde com maior urgência.
Sobre o impacto do diagnóstico de câncer ponderam Baratto et al (2011,
p. 1278)

[...] O tumor maligno, em geral, está associado à ideia de morte e


destruição, exacerbando todas as emoções. Apesar do sentido de
letalidade, o significado da doença é singular para cada sujeito,
dependendo de como se orientam o paciente e a família a respeito
disso. A relação câncer-morte dá-se, principalmente, pelos números
mostrados de curas reais e remissões significativas que são, ainda,
bem menores do numero de falecimentos pela doença.

O momento requer a necessidade de adaptação à nova rotina


demandada pelo tratamento que quase sempre inclui quimioterapia,
radioterapia, internações recorrentes, limitação da liberdade, cuidados
diferentes com a alimentação, higiene pessoal e do ambiente, a limitações de
alguns tipos de trabalho e tarefas, a necessidade de um acompanhante e em
alguns casos transplante de células tronco hematopoiéticas.
O diagnóstico também impacta do núcleo familiar, pois há necessidades
de readaptação. Consideramos o trabalho das(os) psicólogas(os) essencial
neste momento. Caso a instituição não tenha equipe de psicologia o assistente
social deve esclarecer para o usuário como este acompanhamento é
fundamental e fazer contato com a rede de saúde visando o encaminhamento.
Com o decorrer do tratamento as dificuldades se intercalam. Os usuários
costumam procurar o serviço social para obter informações sobre acesso a
medicamentos e exames pelo SUS, para ser orientado quantos aos seus
direitos, solicitando mediação em conflitos familiares, demandando auxílios
socioeconômicos, para fazer queixas sobre a equipe de saúde, sobretudo a
equipe de médica, uma vez que somos vistos como profissionais mais
acessíveis e que lutam pelos direitos dos usuários. Cada atendimento deve ser
visto como uma oportunidade de aproximação profissional, de aproximação
com a realidade do usuário e de acompanhamento sobre o andamento do
tratamento e a reorganização da família.
Quando o usuário começa a fazer quimioterapia novos desafios se
instalam, as longas horas no hospital, o incomodo físico gerado pelos
medicamentos (como náuseas e vômitos) e o acirramento as restrições
alimentares e de cuidados. Sobre o assunto diz um usuário
Mas tu não sabe o que é não poder tomar banho sozinho... e nem ir
no banheiro sozinho! Coisa mais horrível... num dia tomo banho
sozinho, no outro me lavam com esponja na cama mesmo... num dia
vou no banheiro e faço tudo minhas necessidades, no outro tenho
que fazer tudo na comadre e no papagaio. Ainda se fosse por
vontade própria... (João, 67 anos, com diagnóstico de leucemia)
(BARATTO et al, 2011, p. 1279)

A presença da família ou de cuidadores é fundamental nestes


momentos, entretanto o que nos deparamos em muitos casos são famílias com
vínculos rompidos ou fragilizados, famílias onde o possível cuidador é
trabalhador e se encarrega do sustento da casa. Cabe o olhar atento do
profissional a essas necessidades, consideramos essencial que a entrevista
social seja realizada e que as perguntas contemplem também a dinâmica da
família, pois o tratamento exige uma reorganização que nem sempre é
possível.
Como em geral o tratamento é longo muitos usuários são encaminhados
para previdência social para requisitar auxílio-doença, aqueles que não estão
assegurados, mas estão nas condicionalidades de Benefício de Prestação
Continuada (BPC)5, podem ser encaminhados, visto que apesar do câncer não
ser considerado uma deficiência, o que confere o direito ao BPC é a
incapacidade permanente ou temporária para manter a própria sobrevivência
ou de tê-la satisfeita pela família.
Há alguns direitos específicos para pacientes com câncer que os
profissionais podem socializar com os usuários, e encaminhá-los. Alguns são: o
saque do Fundo de Garantia (FGTS) e/ou do PIS/PASEP, isenção no imposto
de renda, compra de veículos adaptado caso tenha sequelas, isenção de IPTU
(em algumas cidades), passe livre interestadual, prioridade nos processos
judiciais, prisão domiciliar, quitação do financiamento bancário (deve ser
previsto no contrato), plano de previdência privada (caso seja filiado), auxílio
doença, aposentadoria por invalidez (ONCOGUIA, s/a).

5
Benefício da Assistência Social no valor de um salário mínimo direcionado ao idoso acima de
65 anos ou a pessoa com deficiência que comprove não ter meios de prover a própria
substância (BRASIL, 1988).
3.2. Anemias

As anemias ocorrem quando há uma redução no número de glóbulos


vermelhos (hemácias) ou por uma baixa na hemoglobina no sangue.
Caracterizam-se por ser uma síndrome clinica e um quadro laboratorial. Entre
as funções das hemácias estão o transporte de oxigênio para os órgãos, por
isso o paciente com anemia pode apresentar como manifestações cínicas a
palidez, indisposição, cansaço. Pode ter como origem a perda rápida se
sangue, como em um acidente, por exemplo, ou a redução da produção das
hemácias que pode ser por conta de uma patologia, como na anemia de
fanconi, ou ainda ter origem em uma deficiência carencial, como na anemia
ferropriva, onde o usuário não ingere a quantidade de ferro suficiente (carência
de ferro) (ZAGO, 2013).
É importante nestes casos que o profissional de Serviço Social entenda
o que causa anemia, caso seja uma deficiência causada pela não ingestão de
alimentos cabe investigar se a família está em segurança alimentar, orientar
sobre a retirada de medicamentos na rede pública, sobre a possibilidade de
orientação nutricional, além do encaminhamento para as políticas sociais.

3.3 Hemoglobinopatias

As hemoglobinopatias são um grupo de doenças que tem como origem


uma alteração na produção de hemoglobina, proteína responsável pelo
transporte de oxigênio. No caso das hemoglobinopatias o problema é uma
mutação no gene que decodifica a hemoglobina. Conforme a consequência da
mutação podem ser de produção, quando há redução na fabricação de
hemoglobina como, por exemplo, nas anemias, ou estruturais, que ocorrem
quando a hemoglobina produzida não funciona de forma adequada, como no
caso das doenças falciformes (DF) e das talassemias (ZAGO, 2013).
Cabe destacar as anemias falciformes (AF) devido a grande incidência
dela na população brasileira. Enquanto uma mutação genética estrutural é
transmitida de forma hereditária e chegou ao Brasil, sobretudo, com a migração
dos povos africanos tornados escravos que portavam o gene da AF. A
Organização Mundial da Saúde estima que todos os anos nascem em média
270.000 crianças com anemias falciforme ou traço falciforme 6 e 60.000 com
talassemia (ZAGO, 2013).
A hemoglobina é o principal componente das hemácias e é o que lhe dá
forma esférica. Nas AF, como a hemoglobina não é produzida de forma
adequada, as hemácias passam a ter forma de meia-lua ou foice, processo
chamado de falcização, daí a nomenclatura Doença Falciforme. Ao percorrer a
corrente sanguínea as hemácias falcizadas tem mais dificuldade de circulação
podendo inclusive obstruí-los. Algumas manifestações clínicas decorrente
deste processo são crises de dor intensa com duração de 4 a 6 dias, infecções
recorrentes, anemia crônica, inflamação nas articulações, ulceras,
osteonecrose, acidente vascular cerebral entre muitas outras 7 (ZAGO, 2013).
O Estado Brasileiro ao reconhecer a grande incidência das DF na
população brasileira, as consequências clínicas, o baixo conhecimento dos
profissionais sobre o assunto e pouca atenção que ele mesmo dava a ela,
passa a deliberar respostas mais contundentes. Algumas iniciativas foram à
criação de manuais sobre o tema, o estabelecimento de uma linha de cuidado
no SUS, estruturação de redes de atenção à saúde, promoção de cursos de
capacitação e a obrigatoriedade do exame que detecta a doença no teste do
pezinho. Os usuários com doença falciforme transitam por todos os níveis de
atenção do SUS, tem direito a medicamentos e exames específicos,
acompanhamento ambulatorial e hospitalar.
Os assistentes sociais que atuam na hematologia junto a estes usuários
tem muitos desafios no âmbito social: a evasão escolar que é comum no grupo,
as adaptações necessárias para o trabalho, as dificuldades de transitar pelo
sistema de saúde, o acesso a tratamento adequado 8, desenvolver junto a
família o planejamento familiar, cuidados na gravidez que é sempre de risco,
sendo importante desde o inicio o cuidado multiprofissinal.
Os autores Scheneide e Martini (2011) corroboram deste entendimento
ao considerarem que além das hospitalizações repetidas e da necessidade de
6
A Doença falciforme é caracterizada pela homozigose (Hb SS), já o traço falciforme é quando
o usuário tem apenas um gene da doença, sendo assim heterozigose (Hb AS). O traço tem
manifestações clínicas mais brandas (ZAGO, 2013).
7
Sugerimos para ampliar o conhecimento inicial sobre o tema o curso “Doença Falciforme -
Conhecer para cuidar” o TELELAB.
8
Sugerimos a tese “Crianças e adolescentes portadores de anemia falciforme: os significados
das relações estabelecidas com os profissionais no âmbito dos serviços de saúde” da
assistente social Eulange de Sousa para aprofundamento no tema.
tratamento, os próprios sinais e sintomas da doença alteram o desempenho do
adolescente, prejudicando seu aprendizado e levando ao atraso escolar. Além
dos fatores do cotidiano pela ausência na sala de aula, os fatores físicos e
clínicos da doença também interferem no desempenho dessas crianças e
adolescentes.

3.4 Coagulopatias

As coagulopatias são um grupo de doenças caracterizadas por serem


distúrbios de coagulação sanguínea. Segundo dados do Ministério da Saúde
do ano de 2016 o país possuía 24.228 pessoas com coagulunopatias, dessas
50% tem Hemofilia (A e B) e 32,24% tem Doença de Von Willebrand. Ambas
são doenças hemorrágicas, majoritariamente hereditárias, sendo a primeira
mais comum em homens, cerca de 98%, e a segunda em mulheres, em média
66% (BRASIL, 2016)
As hemofilias são causadas pela deficiência nos fatores de coagulação
VIII (hemofilia A) ou IX (hemofilia B). Quando ocorre um corte ou um impacto
que gera o rompimento na corrente sanguínea as plaquetas são ativadas e
desencadeiam os fatores da coagulação para formarem um tampão. No caso
das hemofilias esta barreira demora muito mais tempo para se formar, o que
provoca sérios riscos à saúde, inclusive a possibilidade de morte por
hemorragia.
Atualmente o tratamento de homofilia e de Doença de von Willebrand
são fornecido exclusivamente pelos SUS nos hemocentros (coordenadores ou
regionais). O acompanhamento clínico é multiprofissional e os usuários devem
passar por consultas constantemente. Os medicamentos essenciais são os
fatores de coagulação e o sistema cobre integralmente. Há muitos desafios
para o assistente social, um deles é tentar garantir o acesso ao atendimento
multiprofissional do paciente, a possibilidade de uma alimentação adequada,
prática de exercícios físicos, fisioterapia, cuidados de enfermagem, o
acompanhamento quanto à utilização adequada dos medicamentos.
4. Considerações finais

Alguns assistentes sociais se mostram resistentes a discussão do


trabalho do assistente social em área específicas da saúde, como é caso da
hematologia, referem que o trabalho do assistente social independe das
especificidades das patologias, alguns dizem que basta se limitar a
compreensão das particularidades na atuação na área da saúde. É diante disso
que a princípio apresentamos a importância de dar atenção a novas áreas de
atuação e dizer que os processos de trabalho, apesar de terem os mesmos
objetivos expressos nos princípios dos nossos códigos de ética, são distintos e
atravessados pelas especificidades que rebaterão de forma diferente na vida
dos usuários.
Falar sobre a saúde enquanto um direito de todos e dever do Estado é
outro ponto que foi essencial em nossa discussão, visto que é sobre esse
alicerce que o profissional de serviço social constrói parte significativa das suas
intervenções. Encaminha porque a saúde é um direito, faz contatos, socializa
informações, busca desburocratizar alguns processo justamente porque a
saúde é um direito,e direito fundamental da seguridade social.
Como dito anteriormente há poucas publicações sobre o trabalho de
assistentes sociais na hematologia, por isso o que nos propomos fazer uma
introdução sobre o tema, apresentando, brevemente, os quatro grandes grupos
de doenças hematológicas as anemias, as hemoglobinopatias, as
coagulopatias e as doenças clonais, focando nas doenças que são mais
comuns.
Entendemos que os(as) assistentes sociais não irão se apropriar do
saber biomédico, não é nosso objetivo e nem tão pouco nossa formação
abrange tais conhecimentos, mas entender minimamente como estas
patologias incidem na vida dos sujeitos e se manifestam, como o tratamento
altera a rotina da família, as condições para trabalhar, quais são os
determinantes e condicionantes de saúde, o conhecimento de como se
organiza da rede de saúde pela qual eles terão que transitar e como podemos
facilitar o acesso à informação a estes grupos, colabora com a qualificação do
trabalho de assistentes sociais.
De forma alguma isso se caracteriza como a defesa do serviço social
clínico. Pelo contrário, a compreensão de como essas doenças sobrevêm na
vida e na família desses sujeitos é a expressão clara do exercício da totalidade
que permite partir de um universo singular para compreender as expressões da
questão social como um todo, e a partir delas, traçar estratégias e
possibilidades de atuação profissional propositivas, criativas e competentes as
quais imprimem respostas as demandas apresentadas e desveladas pelo
serviço social no âmbito da hematologia.

5. Referências

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em: <http://abrale.org.br/doencas/leucemia>. Acesso em: 25 de jul. 2019.

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