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Documentário Estamira

Em 2000, o fotografo Marcos Prado visita o lixão Gramacho, em Duque de


Caxias no Rio de Janeiro a trabalho. Nesse ambiente Marcos avista uma senhora
chamada de Estamira, catadora de lixo e pede autorização para fotografá-la, onde
começam a conversar, Estamira diz ter a missão de “revelar a verdade e afirma que a
missão de Marcos é revelar a sua missão, a partir disso a vida de Estamira é
documentada por quatro anos.

Estamira afirma não ser comum e que seu cérebro não é igual ao dos outros seres
humanos o que faz com que o “trocadilo” se incomode com ela, diz também “Estar” em
todo lugar, fazendo um trocadilho com seu nome (Estamira, Esta-Serra, Esta-Mar...).
Como dito antes, Estamira é catadora de lixo e deixa claro que quem criou o homem
não ensinou sobre desperdício, sobre egoísmo e traição, revela a importância de
conservar as coisas.

Segundo Estamira ela é a visão de cada um e ninguém pode viver sem ela, o que
a orgulha e a entristece ao mesmo tempo, afirma que todas as coisas são abstratas,
inclusive ela. A catadora diz que seu prazer está em ajudar pessoas e bichinhos e que
também valoriza muito seu trabalho, sendo a coisa que ela mais gosta de fazer.

Estamira perdeu seu pai e após isso foi criada sozinha por sua mãe, afirmando
que sua mãe era mais perturbada que ela, já que diferente dela sua mãe não conseguia
distinguir a perturbação da forma que ela consegue por ser a Estamira, alega ser
controlada pelo trocadilo por um controle remoto.

Durante o Natal Estamira afirmou que durante algum tempo ela teve pena de
Jesus, mas que hoje não tem mais aparentemente por todas as dificuldades que passou
em sua vida. Estamira afirma ser uma pessoa ruim, mas não ser perversa. Afirma que as
doutrinas erradas ridicularizaram o homem.

Estamira demonstra muita gratidão ao seu trabalho, afirma que aquele ambiente
é a sua felicidade e que graças a ele conseguiu seu “barraco”. Os filhos de Estamira
afirmam que ela não é “louca”, mas que tem lapsos e para eles não é viável que ela viva
em uma clínica, já que isso provavelmente prejudicaria muito a qualidade de vida dela.
Estamira foi casada e sua filha afirmou que ela sofreu muito com o marido que a
traía e após diversas brigas, ela e os filhos foram colocados para fora de casa e a partir
dali começaram a passar por várias dificuldades, já que antes tinham uma vida estável.

Por uma época Estamira deixou de trabalhar no lixão a pedido dos filhos e
passou a trabalhar em outra empresa, a filha afirma que nessa época Estamira era
completamente lúcida, que possuía muita fé em Deus e que seus delírios começaram
após ser estuprada duas vezes voltando para sua casa.

Estamira afirma que os trabalhadores do lixão são escravos disfarçados de


libertos, que as pessoas devem trabalhar e não se sacrificar e que as coisas ruins que
acontecem com os seres humanos acontecem por culpa do trocadilo.

Estamira afirma que sua depressão é imensa e que não tem cura, que já foi
abusada por seu avô e levada para se prostituir em um bordel aos 12 anos, onde ficou
até os 17 anos quando encontrou o pai do seu primeiro filho, que também o traia, ali
Estamira pegou seu filho e migrou para Brasília onde conheceu o pai de Carolina, seu
segundo marido.

Estamira sempre fala sobre “Deus ao contrário”, o trocadilo, um Deus


estuprador, traidor e safado e se enfurece sempre quando falam de Deus perto dela.
Estamira afirma ser perfeita e melhor que Jesus por tudo que já passou.

A mãe de Estamira foi internada por ordens do segundo marido de Estamira em


um hospital psiquiátrico onde sofreu maus tratos. A filha de Estamira diz que até hoje a
mãe carrega a o peso de ter internado sua avó, mesmo tendo ido buscá-la assim que se
separou do marido.

Para Estamira a solução é o fogo, tudo deverá ser queimado para dar espaço ao
novo, inclusive os seres humanos. Estamira diz não concordar com a vida e que essa sua
percepção nunca irá mudar.

“Tudo que é imaginável existe, é e tem.”

A psicose em cena
O artigo é responsável por relacionar a biografia de Daniel Paul Schreber e os
estudos lacanianos acerca de Aimée e James Joyce e o documentário Estamira.
Schreber também possuía verdades a ser reveladas, assim como Estamira, no
entanto, os dois apresentavam grandes diferenças. Schreber ocupava uma posição social
de destaque na Alemanha, era doutor, Juiz-Presidente da Corte de Apelação de Dresden,
amante das artes e descendente de uma linhagem de intelectuais. Schreber foi internado
e impedido pela sua família de publicar sua autobiografia, no entanto, advogou a favor
de si mesmo e consegue a liberação para a publicação de seu livro e a alta hospitalar.

Diferente de Schreber, Estamira possuía certa liberdade, no entanto, ela mesmo


afirmava ser visível e invisível, Estamira era invisível perante a sociedade, excluída de
forma sútil e perversa. Estamira não teria como publicar um livro para expor toda sua
verdade, mas teve a oportunidade de fazer isso com o documentário dirigido por Marcos
Prado.

Freud contribui para o caso de Schreber ressignificando o delírio, que antes era
visto apenas como um sintoma patológico a ser eliminado passa a ser através da
concepção de Freud uma tentativa de reestabelecimento, um processo de reconstrução.

Enquanto para Schreber Deus o amava e o elegera para ser uma mulher, que
fecundaria e geraria uma nova raça de seres humanas superiores, nascidos de seu
próprio ventre, para Estamira o vínculo com Deus é estabelecido pelo ódio, notamos
pela fala de Estamira que para ela Deus é o próprio trocadilo, uma encarnação do mal,
que a manipula com um “controle remoto”

A tentativa de diminuir os delírios de Estamira através dos medicamentos


mostrou-se catastrófica, tendo em vista que na última cena do documentário podemos
notar Estamira completamente sedada e esvaziada afetivamente, afirmando estar
desgovernada e nervosa por tentar falar e não conseguir, os remédios não trouxeram
alivio e Estamira afirma que sua cabeça parece um copo cheio de Sonrisal, efeito do
remanejamento trazido pela medicação, tornando segundo Briole a “persona selvagem”
em uma “persona de tratamento”.

Lacan acreditava na estabilização da psicose através da passagem das produções


dos psicóticos ao público, como no caso de Aimée, que teve seu momento de paranoia
estabilizado e seus delírios cessados após a publicação dos seus romances por
intermédio de Lacan.
James Joyce seria um exemplo de “psicose sinthomatizada”, tendo em vista que
conseguiu tornar seu nome público, alvo de comentários e assunto de debates de todos,
compensando assim a carência paterna. Isso teria sido um fator determinante para o não-
desencadeamento de sua suporta psicose, tendo o ego de Joyce feito a função de
“sinthoma”, mantendo enodados as três dimensões psíquicas o real, o simbólico e o
imaginário.

Diferente de Joyce, para Schreber o livro publicado vincula-se ao trabalho


delirante numa psicose já desencadeada, tendo em vista que após lutar pela publicação
do livro e pela sua alta hospitalar Schreber consegue reaver seu casamento, retomar sua
atividade de jurista e adotar uma filha até a sua terceira crise psicótica desencadeada
pelo adoecimento de sua esposa.

A falta de dados quanto ao caso de Estamira não permite dizer se houve alguma
estabilização após o lançamento do documentário, como nos casos citados
anteriormente.

É possível notar no caso Estamira uma proximidade entre neurose e psicose.


Estamira apresenta uma série de discursos politicamente corretos, como em seu discurso
ecológico acerca do desperdício, em seu discurso relacionado ao dinheiro e as
instituições escolares.

Estamira critica também a o tratamento psiquiátrico ambulatorial e os


diagnósticos hiper-especializados que possuem a mesma droga como padrão de
conduta, não tratando o paciente de forma subjetiva e observando suas reais
necessidades e outras intervenções para o tratamento.

Estamira deixa claro a importância de uma sociedade mais justa e igualitária,


mas afirma que a incivilidade tornou o homem pior que os quadrupedes, sendo a
solução dessa incivilidade atear fogo. No entanto, é necessário que seja contruída outra
solução junto aos pacientes psicóticos.

Estamira deixa claro a sua solidão, segundo Rilke, a solidão é o ponto de partida
da condição humana, partir da inevitável solidão e construir uma obra com base nela,
podemos notar que é isso que Estamira faz.

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