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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Departamento de Letras Orientais
Disciplina: Literatura Hebraica VII
Docente: Luis Sérgio Krausz

O embate de gerações em

Uma Certa Paz, de Amós Oz

São Paulo, maio de 2017

Mirella de Carvalho

Nº USP: 7613181

Período: noturno
O embate de gerações em “Uma Certa Paz”, de Amós Oz

Mirella de Carvalho

RESUMO: este ensaio tem como objetivo analisar o romance Uma Certa
Paz, de Amós Oz.

Defensor do socialismo praticado nos kibutz israelenses, o escritor Amós


Oz tem como principal temática de suas obras a realidade vivida nestes locais,
inserindo em sua narrativa o contexto político através do cotidiano. Fundador
do movimento israelense Shalom Achshav (Paz Agora), é uma das vozes mais
importantes que passaram a criticar políticas praticadas pelo seu Estado a
partir da década de 1970, através de romances e de estudos sociopolíticos.

Publicado em 1982, o romance Uma Certa Paz retrata a época de 1965


a 1967, antes da Guerra dos Seis Dias, em um kibutz localizado no Estado de
Israel, através da história do personagem Ionatan Lifschitz. A narrativa se
desenvolve a partir do desejo do protagonista de ir embora da comunidade
kibutziana.

Cansado de ter suas escolhas guiadas pelo bem coletivo, Ionatan


planeja mudar-se para uma metrópole capitalista qualquer e finalmente ter uma
vida mais individualista. Como é sabido, os kibutz se baseiam no socialismo
sionista e no trabalho cooperativo em prol da comunidade. Tal modelo de
sociedade incomoda Ionatan pelo fato de não haver certa privacidade.

Logo no início da narrativa, este desejo é revelado, conjuntamente com


os pensamentos dele, misturados com as palavras do narrador que, neste
caso, é onisciente. Seguindo o mesmo formato, posteriormente é dada a voz
aos diversos outros personagens, inclusive ao primeiro ministro da época, Levi
Eshkol e, assim, se revelam os seus pensamentos mais íntimos, o que confere
à obra a denominação de romance polifônico. Neste trecho abaixo, é possível
observar os pensamentos mais íntimos do protagonista, fundindo-se com a do
narrador.

“Você vai mudar sua vida de um extremo a outro. Abrir uma nova
página. Vai ser livre. Todas as coisas que deixar para trás continuarão
sozinhas, sem você. Não lhe poderão fazer nenhum mal. (...) Pessoas
próximas que sempre agiram consigo como se você pertencesse a elas
e como se você fosse apenas um instrumento nas mãos delas para
realizar um projeto entusiasta cujo objetivo não consegue entender. (...)
Chega. Até onde é possível se submeter? Você precisa, finalmente, pôr-
se disponível para você mesmo, porque você pertence a você mesmo, e
não a eles.”1

Este pensamento de Ionatan representa o embate de gerações que


ocorreu de fato no Estado de Israel, o qual foi construído através de muito
trabalho e muita dificuldade, transformando-se em uma sociedade igualitária e
cooperativa até que atingisse seu auge. Porém, os filhos dessa geração não
tiveram que lutar tanto quanto seus pais para manter o bem-estar coletivo e,
por isso, acabam por não valorizar esta coletividade, almejando uma
individualidade própria das sociedades burguesas. Tal embate se dá entre
Ionatan e seu pai Iulek, grande líder do kibutz e com ideais de coletivismo
enraizados, por ter feito parte da geração pioneira.

Evandro dos Santos Neto, em sua dissertação Coletivismo e


Individualidade: representações na Literatura Israelense, afirma que Uma Certa
Paz trata do “contraste entre os desejos pessoais e obrigações coletivas
quando estas estão calcadas em um modelo social cuja propaganda ideológica
visa à unificação.”. Além disso, analisa que tal oposição é fruto de uma
educação repressiva:

1
OZ, Amós. Uma Certa Paz, 2010. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
“Assim como os jovens de sua geração, Ionatan foi parte de um
experimento social que deu certo, no entanto, suas disposições instintivas
naturais, durante muito tempo sufocadas, vêm agora reclamar o preço da
fatura. A educação sionista relegou a natureza original de parte de sua
juventude para lugares escondidos de seu inconsciente, em forma de
repressão. Tudo o que fosse diferente do que pregava a cartilha sionista era
visto como errado ou proibido.”2

Ionatan é casado com Rimona, a qual ele não ama e tem uma relação
conflituosa. Ela, uma mulher submissa, tolera sempre a fala ríspida do marido.
Sofre por não conseguir ter filhos; apesar de ter engravidado, o bebê nasceu
morto. Quando seu marido lhe conta que deseja ir embora, ela ainda se declara
fiel a ele, dizendo que continuaria esperando-o no kibutz, para quando ele
quisesse voltar.

A primeira parte do livro, intitulada “Inverno”, conta todo o período em


que Ionatan ainda se encontra no kibutz, planejando ir embora. A referência ao
clima hostil e suas consequências, como a presença de muita chuva e muita
lama, bem como a impossibilidade de fazer a colheita de frutos, são
mencionadas o tempo todo, fazendo alusão ao estado psicológico de Ionatan.

Já na segunda parte, o narrador dá a voz a Srulik, músico que se torna o


secretário geral da comunidade. É nesta parte que Ionatan finalmente vai
embora, deixando tudo e todos para trás. Anterior a isso, chega ao kibutz
Azaria Guitlin, moço com ideais socialistas, que acaba se fixando por lá. Ele e
Ionatan se tornam grandes amigos, apesar de ideologias opostas. Quando
Ionatan vai embora, este acaba se relacionando com Rimona.

O embate de gerações se dá também entre membros da mesma


geração, como no caso de Ionatan e Azaria. Berta Waldman afirma que ambos
possuem os mesmo sonhos – apesar de acreditarem em ideologias opostas -

2
SANTOS NETO, Evandro José dos. Coletivismo e Individualidade:
representações na Literatura Israelense. São Paulo, 2015.
que é o de alcançar a paz vivendo em um local o qual contemple suas
convicções. Além disso, vemos aqui também o embate ideológico, comumente
encontrado na realidade de Israel.

Considerando que o título do livro vem da tradução do título hebraico


Menuchá Nechoná, termo vindo da prece judaica proferida em funerais, a qual
significa “descanso correto”. Podemos entender esse título como se referindo à
paz que o protagonista quer encontrar, a paz correta, que, para ele, não está
naquela comunidade agrícola em que todos trabalham para um bem comum.
Sua paz correta é onde ele possa ter sua individualidade respeitada. Ao
contrário dele, Azaria busca sua paz correta no kibutz, local condizente com
sua ideologia socialista.
BIBLIOGRAFIA

OZ, Amós. Uma Certa Paz, 2010. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SANTOS NETO, Evandro José dos. Coletivismo e Individualidade:


representações na Literatura Israelense. São Paulo, 2015.

WALDMAN, Berta. “Ética e estética em dois romances polifônicos: Uma certa


paz e A Caixa Preta, de Amos Oz”. In: XII Congresso Internacional ABRALIC.
UFPR, 2011.

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