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Mulheres, tráfico de drogas e sua maior vulnerabilidade: série mulher e crime

Alice Bianchini*
Pesquisadora: Marcela Giorgi Barroso**
Perfil da mulher presidiária

O perfil da mulher presidiária no Brasil é o da mulher com filho, sem estudo formal ou com pouco
estudo na escola elementar, pertencente à camada financeiramente hipossuficiente e que, na época
do crime, encontrava-se desempregada ou subempregada. Em geral, as mulheres criminosas são
negras ou pardas (20.756 delas, enquanto apenas 9.318 são brancas – MACEDO, 2010 -, num
universo em que a população negra ou parda é de 91 e a branca de 92 milhões de pessoas, no Brasil
– SEADE, 2011:1).
Fica explícita a sobreposição de excludentes sociais, gerando grupos marginalizados em decorrência
de mais de um fator.
Em razão de uma imagem estereotipada da mulher, vista como dócil e incapaz de cometer crimes,
por muito tempo associou-se a ela tão somente a prática de delitos passionais ou daqueles chamados
crimes contra a maternidade (aborto e infanticídio). Hoje, as estatísticas demonstram que,
majoritariamente, as mulheres estão sendo encarceradas pelo cometimento de crimes contra o
patrimônio e de crimes ligados ao tráfico de drogas. Conforme dados do DEPEN, 60% da
população carcerária feminina encontram-se presa em razão de tráfico nacional de drogas[1].
(DEPEN, 2010)
Analisando-se o aumento da população carcerária (tanto feminina quanto masculina), percebe-se
que as condutas que mais têm levado à prisão encontram-se associadas ao tráfico de drogas. De
acordo com pesquisa realizada por Pedro Abramovay e Carolina Haber, de 2007 a 2010, o número
de presos (de ambos os sexos) por tráfico aumentou 62%, tendo ultrapassado o crime de roubo
qualificado como o mais comum nas prisões.
Outro dado interessante do estudo e que se vincula ao presente tema: “a maior parte dos presos é
constituída de usuários ou pequenos traficantes que fazem o transporte da droga e, uma vez presos,
são rapidamente substituídos por outros.”[2] São exatamente essas as características mais marcantes
das ações praticadas por mulheres nos crimes de tráfico de drogas.[3]
Para que não fique qualquer impressão de que o recrudescimento da participação feminina seja um
fenômeno nacional, deve-se considerar que, não só no Brasil, mas também na Colômbia o
narcotráfico é o principal motivo da prisão de mulheres; no México, por exemplo, o número de
presas ligadas ao tráfico aumentou 400% desde 2008.[4]
Motivações para o crime
Considerando-se a motivação, essas mulheres tornam-se traficantes por múltiplos fatores: em razão
de relações íntimo-afetivas, para dar alguma prova de amor ao companheiro, pai, tio etc., ou, ainda,
envolvem-se com os traficantes como usuárias, com o fito de obter drogas, e acabam em um
relacionamento afetivo que as conduz ao tráfico (COSTA, 2008; SALMASSO, 2004; BARCINSK,
2009).
Também não há um único motivo determinante para o cometimento do crime do transporte de
drogas para dentro da prisão. Jôsie Jalles Diógenes observa que de um grupo de oito presas apenas
três não haviam obtido vantagem pecuniária; estas ingressaram no mundo do crime apenas por
amor, ciúme e o vício do companheiro (DIOGENES, 2007:55). Assim, não é exclusivamente a
motivação econômica que alça as mulheres a ingressarem no tráfico de drogas.
A motivação, atrelada precipuamente à necessidade financeira, mascarou a realidade e dissociou a
conduta delitiva feminina da categoria gênero, marcando-a com a imagem própria dos crimes
associados à pobreza (ESPINOZA, 2004:126/127). Contudo, como dito, as excludentes sociais
sobrepõem-se, não significando, portanto, que um fato social imbuído de subordinação por gênero
não possa ser também resultado da hipossuficiência econômica.
O reconhecimento pelos homens e o respeito adquirido em face das demais mulheres também é
motivo para levá-las ao crime, o que, por sua vez, representa uma forma de obtenção de poder e de
ascensão social. Trata-se de uma maneira de as envolvidas na traficância equipararem-se à maioria
hegemônica masculina, sobrepondo-se às demais mulheres:
Apesar de as participantes reconhecerem os obstáculos econômicos e sociais experimentados por
jovens pobres e a consequente inserção na rede do tráfico de drogas, o poder e o status
experimentados são mais frequentemente mencionados como motivadores para a entrada da
atividade. (BARCINSK, 2009)
Participação feminina na criminalidade e seu grau de vulnerabilidade
Em geral, as mulheres atuam como coadjuvante, enquanto os protagonistas continuam sendo os
homens. Dificilmente alguma delas é chefe do tráfico, mantendo sua histórica posição subalterna e
circunscrevendo-se quase sempre às funções de vapor, que é o encarregado do preparo e
embalagem, produto para consumo; mula, indivíduos que geralmente não possuem passagens pela
polícia e que se aventuram a realizar o transporte da droga; e olheiro, como são chamadas as
pessoas que se posicionam em locais estratégicos para vigiar as vias de acesso (BASTOS, 2011).
Os homens é quem manda nesse negócio de droga [sic], as mulheres só faz os bicos, quem ganha
dinheiro mesmo [sic], são eles. Tá certo que eu ganhava mais do que quando tinha emprego, mas
esse negócio é muito perigoso, eles podiam pagar mais caro, pois quando a policia pega, acaba com
a vida da gente, como agora, eu aqui presa, e sem ter nem dinheiro para pagar o advogado
(CRAVO-BRANCO apud MOURA, 2005:59)
Selma deixa claro que o poder no tráfico de drogas é uma propriedade masculina. Às mulheres na
atividade é reservado somente um “certo poder” (BARCINSK, 2009)
Em pesquisa realizada no ano de 2007 Jose Diógenes entrevistou um grupo de oito mulheres presas
pela hipótese tipificada no já revogado art. 18, IV da Lei n. 6.368/76[5] (antiga Lei de Drogas), no
Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa, em Fortaleza, Ceará, e apurou que,
dentre as mulheres entrevistadas, apenas uma concluíra o ensino médio e uma o fundamental, cinco
possuíam formação escolar elementar incompleta e uma nunca havia estudado e, então, frequentava
a 1ª série. Além disso, metade delas não possuía recursos para bancar a própria subsistência, não
trabalhava, apenas uma tinha carteira assinada, uma ajudava a própria mãe em trabalhos de costura,
uma era doméstica com salário de R$100,00 e uma era manicure e maquiadora. (DIOGENES,
2007:68)
Tais mulheres, exatamente por estarem diretamente ligadas ao objeto final do crime, ou seja, na
frente mais arriscada do negócio, são as primeiras a serem presas, enquanto muitos homens passam
infensos à prisão e impunes. A ocupação de posições mais baixas e mais expostas e o recebimento
de menos dinheiro, tal qual ocorre no mercado formal de trabalho (MOURA, 2005:59), deixa-as
mais vulneráveis à prisionização.
Esse aumento de mulheres presas por causa do tráfico teria por causa a maioria das mulheres
desempenhar funções subalternas na escala hierárquica, sendo, assim, mais facilmente presas, em
ordem decrescente de frequência e importância da função feminina associada ao tráfico: “bucha”
(pessoa que é presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões), consumidoras,
“mula” ou negocia pequenas quantidades no varejo, “cúmplice” ou “assistente/fogueteira”. Além do
evidente aumento da violência por causa do tráfico de drogas em ambos os sexos, haveria uma
baixa condescendência por parte do sistema de justiça em relação à condenação das mulheres.
(SOUZA Apud SOARES e ILGENFRITZ, 2009)
Observa-se, assim, que o crime organizado (configuração presente em grande parte dos crimes de
tráfico de drogas) replica os marcadores de gênero da sociedade em geral. Embora a subordinação
feminina tenha diminuído, ela permanece existindo também na criminalidade. Grupos encabeçados
por homens se valem de mulheres para “pôr a mão na massa”. Exemplo disso é a crescente
participação delas no transporte de drogas, conforme mencionado acima.[6]
Além disso, o maior cerco ao tráfico de drogas por parte dos agentes do Estado pode ter levado a
que mais mulheres fossem envolvidas no crime, já que, como dito anteriormente, a participação
feminina levanta menos suspeitas, exatamente por serem elas, no imaginário popular, menos
sujeitas ao cometimento de ilícitos.
Muitas vezes o criminoso não chega a ser detido, como demonstram os alarmantes dados
apresentados por Luiz Flávio Gomes (GOMES, 2011). Já que as razões da impunidade passam,
geralmente, pelas relações de poder, sem detê-lo, as mulheres serão presas mais facilmente que os
homens. Essa privação de poder, então, resulta, também, em dificuldades para se defender em
processos penais, bem como para sair da prisão (seja por que os homens possuem mais recursos
para fuga, seja por terem maiores condições de defesa pelas vias próprias do sistema jurídico-
penal). Percebe-se, assim, que a exclusão social da mulher reproduz-se no universo da
criminalidade, tornando-a mais vulnerável à prisionização.
Bibliografia
BARCINSK, Mariana. Centralidade de gênero no processo de construção da identidade de
mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2009, vol.14,
n.5, pp. 1843-1853. ISSN 1413-8123.
BASTOS, Paulo Roberto da Silva. Criminalidade feminina: Estudo do perfil da população
carcerária feminina da Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires – Juiz de Fora
(MG)/2009. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 81, 01/10/2010 [Internet].
Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?
n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=8444. Acesso em 14/11/2011.
COSTA, Elaine Cristina Pimentel. Amor bandido: as teias afetivas que envolvem a mulher ao
tráfico de drogas. Maceió, EDUFAL: 2008
DEPEN. Formulário Categoria e Indicadores Preenchidos. BRASIL, Dez 2010. Disponível em:
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509
CPTBRNN.htm Acesso em 13.11.11
DIÓGENES, Jôsie Jalles. Tráfico ilícito de drogas praticado por mulheres no momento do
ingresso em Estabelecimentos prisionais: uma análise das reclusas do Instituto Penal
Feminino Desembargadora Auri Moura Costa – ipfdamc. Brasília: Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária/MJ de 2007
GOMES, Luiz Flávio. A impunidade generalizada no Brasil. Disponível em:
http://www.ipclfg.com.br/artigos-do-prof-lfg/a-impunidade-generalizada-no-brasil/ Acesso em:
30/10/11
MACEDO, NATALHA. População Carcerária Feminina X Masculina (2000-2010) Disponível
em: http://www.ipcluizflaviogomes.com.br/dados/5_Evolucao_crescimento_carcerario_feminino
Acesso em 30.10.11
MOURA, Maria Juruena de. Porta Fechada, Vida Dilacerada: [AB1] Mulher ,Tráfico de Drogas
e Prisão: Estudo Realizado no Presídio Feminino do Ceará. Dissertação de mestrado
apresentada no Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade da Universidade Estadual do Ceará
SALMASSO, Rita de Cássia. Criminalidade e Condição Feminina: estudo de caso das mulheres
criminosas e presidiárias de Marília – SP. Revista de Iniciação Científica da FFC, Vol. 4, No 3
(2004)
SEADE. Maior População Negra do País. Disponível em:
http://www.seade.gov.br/produtos/idr/download/populacao.pdf. Acesso em 01/11/11
SOUZA, Kátia Ovídia José de. A pouca visibilidade da mulher brasileira no tráfico de drogas.
Psicol. estud., Maringá, v. 14, n. 4, Dec. 2009 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S1413-73722009000400005&lng=en&nrm=iso>. access on 01 Nov. 2011.
http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722009000400005.
*Doutora em Direito Penal pela PUC/SP. Presidente do Instituto Panamericano de Política
Criminal-IPAN. Coordenadora do Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais da
Universidade Anhanguera-Uniderp, em convênio com a Rede LFG.
**Mestre pela USP.

[1] Em dezembro de 2010 o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) apurou que, do total de
22.626 presas no sistema carcerário brasileiro, 14.057 estavam cumprindo pena por tráfico de
drogas.
[2] Uma lei que pegou demais. Revista Época. 2 mai. 11, p. 112-114.
[3] Perfil dos presos por tráfico, em 2009, no Rio de Janeiro e em Brasília: “55% eram réus
primários; 94% estavam desarmados; 60% estavam sozinhos; das pessoas que estavam
acompanhadas no momento da prisão, menos de 10% formavam um grupo de quatro pessoas, o que
caracterizaria formação de quadrilha; Em Brasília (DF), 69% dos presos por porte de maconha
carregavam até 100 gramas da droga. Dos presos por porte de cocaína, 23% tinham até 10 gramas;
No Rio de Janeiro (RJ), 50% dos presos por porte de maconha tinham até 100 gramas da droga. Dos
presos por porte de cocaína, 35% tinham até 10 gramas.” Infopen, UFRJ e UnB. Uma lei que pegou
demais. Revista Época. 2 mai. 11, p. 114.
[4] Modelos e “mulas”. Revista Veja. 16 nov. 11, v. 2243, p. 129.
[5] Art. 18. As penas dos crimes definidos nesta Lei serão aumentadas de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois
terços):
I – no caso de tráfico com o exterior ou de extra-territorialidade da lei penal;
II – quando o agente tiver praticado o crime prevalecendo-se de função pública relacionada com a
repressão à criminalidade ou quando, muito embora não titular de função pública, tenha missão de
guarda e vigilância;
III – se qualquer deles decorrer de associação ou visar a menores de 21 (vinte e um) anos ou a quem
tenha, por qualquer causa, diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de
autodeterminação;
III – se qualquer deles decorrer de associação ou visar a menores de 21 (vinte e um) anos ou a
pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos ou a quem tenha, por qualquer causa,
diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação: (Redação dada
pela Lei nº 10.741, de 2003)
IV – se qualquer dos atos de preparação, execução ou consumação ocorrer nas imediações ou no
interior de estabelecimento de ensino ou hospitalar, de sedes de entidades estudantis, sociais,
culturais, recreativas, esportivas ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de estabelecimentos
penais, ou de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, sem prejuízo
da interdição do estabelecimento ou do local.
[6] “A nova tendência – e não estamos falando de moda – nos países da rota latino-americana do
narcotráfico é o uso de belas jovens para transportar drogas.” Modelos e “mulas”. Revista Veja. 16
nov. 11, v. 2243, p. 128.

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