Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Com edição deste volume 4, a revista Justiça & História ingressa em seu quarto ano de
idade. O presente número 7 traz 11 artigos e uma entrevista. Mais uma vez, sentimo-nos
honrados diante da qualidade das contribuições e diante da importância acadêmica dos
articulistas aqui reunidos.
Izabel Andrade Marson, em Política, polícia e memória: a atuação do Chefe de Polícia Jerônimo
Martiniano Figueira de Melo na Revolução Praieira, retrata, por meio da atuação repressiva do Juiz
Jerônimo Martiniano, Chefe de Polícia da Província de Pernambuco, quando da eclosão da
Revolta Praieira, o conflito no qual liberais e conservadores pernambucanos se defrontaram na
disputa pelo controle dos cargos políticos, policiais e judiciais da Província. Seu estudo permite
visualizar o alcance do poder atribuído aos chefes de polícia pela Lei de Interpretação do Ato
Adicional e pela Reforma do Código de Processo, para manutenção da ordem pública, durante
o Segundo Reinado.
O artigo de Jens R. Hentschke, From “Order and Progress” to “National Security and
Economic Development” – The Origins of Brazil’s 1969 National Secuity State, retoma a tese de Philip
Schmitter e Thomas E. Skidmore que realçaram as continuidades entre o Estado Novo de
Getúlio Vargas e o autoritarismo burocrático do regime militar brasileiro, aplicando-a à
formação de um Estado de segurança nacional, e argumentando que os termos segurança
nacional e desenvolvimento econômico foram introduzidos anos antes da instalação do Estado
Novo e que substituíram o binômio positivista de “ordem e progresso”.
O artigo de Gunter Axt, Algumas reflexões sobre os critérios para a identificação e guarda dos
processos judiciais históricos, apresenta sugestões quanto ao tratamento dos chamados “processos
históricos”, buscando identificar possibilidades no sentido de construir alternativas de gestão
que garantam a preservação eficaz do patrimônio histórico ao mesmo tempo em que levem em
consideração as premências de ordem administrativa enfrentadas pelo Poder Judiciário na
contemporaneidade.
Estas duas últimas contribuições são resultado das pesquisas e reflexões abrigadas pelo
Memorial do Judiciário.
Editoria.
DA LOCAÇÃO DAS INSULAE EM ROMA*/**
OF INSULAE’S LOCATIONS AT ROME
Resumo
Este artigo propõe um estudo histórico-jurídico da locação das insulae em
Roma, que eram imóveis urbanos de vários pavimentos, maciçamente
utilizados na Urbs e destinados à locação ou locatio conductio.
Abstract
This article proposes a juridical-historic studying of insulae’s locations at
Rome wich were urban immobiles of many floors, hardly used at Urbs
and destinated to location or locatio conductio.
Palavras-chave
Direito – História – Direito Romano – Locatio Conductio Rei – Insulae
Key words
Law – History – Roman Law – Locatio Conductio Rei – Insulae
Introdução
A Roma antiga, a Cidade por excelência, a exuberante rainha orgulhosa de um mundo,
deixou um majestoso legado para as sociedades modernas, mormente na esfera jurídica. Institutos
jurídicos como a locação de imóveis, por exemplo, já eram amplamente utilizados no quotidiano
de Roma há mais de dois mil anos.
Este fenômeno teve início já no século V a.C. e intensificou-se no século III a.C., quando
a cidade começa a crescer de forma bastante acentuada. O crescimento da cidade deve-se, num
primeiro momento, ao gradual despovoamento do campo, causado, designadamente, pelo
processo de expansão e conquista.
Sabe-se que Roma cresceu de forma desmesurada principalmente depois de sua vitória
sobre Cartago. E, logo depois das grandes conquistas do Oriente e do Ocidente, ao longo do
século II a.C., Roma converteu-se não só na cidade mais importante de todo o Mediterrâneo, mas
no principal centro do mundo antigo (Bellido, 1985: 119).
3
Calcula-se que o período de maior densidade demográfica foi entre Augusto e Trajano,
podendo conjeturar-se que nos finais da República a Urbs já atingia cerca de um milhão de
habitantes (Guillen, 1977: 53); e que, em meados do século II da era cristã, a sua população
somava, provavelmente, um milhão e meio1 de almas, todas a palpitar no frenesim de uma grande
metrópole.
Pode imaginar-se o que deveria ser a Urbs durante o apogeu do Império, quando ela deixa
de ser “um povoado grande”, para transforma-se na metrópole imperial e “cabeça do orbe”
(Bellido, 1985: 125). Milhares de imigrantes, oriundos dos quatro pontos cardeais, especialmente
de todo o mundo Mediterrâneo e da península itálica, chegavam a Roma. Em tempos de festas,
consagrações nos templos ou inaugurações de monumentos, tinha-se a impressão de que o
mundo todo se deslocava até lá. Ademais, o provinciano que desejava prosperar, estudar, e que
necessitava negociar, tinha de ir a Roma, que era “o império do comércio, a academia das
ciências, a honra dos favoritismos” (Guillen, 1977: 54).
Pode-se asseverar que tais fatores determinaram a necessidade do aumento da altura das
casas de habitação, a fim de que estas pudessem abrigar o maior número possível de pessoas. O
arquiteto romano Vitruvius (Vitruvius apud Rua, 1998), contemporâneo de Augusto, em sua obra
De Architectura, refere que Roma tinha necessidade de alojar um número infinito de habitantes,
sendo que a altura dos edifícios recompensaria a falta de espaço.
Para agravar mais a situação, vigorava em Roma o princípio superficies solo cedit, segundo o
qual tudo o que estivesse ligado ao terreno, tudo o que se lhe acrescentasse ou incorporasse,
pertencia ao dominus fundi, inclusive todo o edifício construído (Santos Justo, 1997: 210). Santos
Justo (1997: 210) preleciona que “esta situação causava, obviamente, graves inconvenientes ao
desenvolvimento de uma civitas cujo solo era propriedade do populus Romanus, de algumas
1 Conforme Marchi (1995: 12): “Baseando-se sobretudo na área total da Urbs delimitada pelos Muros
Aurelianos confrontada com o número de casas habitadas (fornecido pelos Regionarii), bem como levando-se em
consideração os dados relativos aos recenseamentos, às frumentationes (distribuições gratuitas de gêneros alimentícios),
aos congiaria (distribuição de dinheiro ao povo) e ao consumo do trigo, os estudiosos da topografia antiga de Roma
costumavam calcular a população da Urbs, no auge de seu desenvolvimento, entre um mínimo de 500/600 mil
habitantes e um máximo de 1200/1500 mil habitantes”.
2 Segundo Bellido (1985: 134), as compras e expropriações por parte do Estado, com o propósito de
embelezar Roma, dotando-a de grandes foros, de enormes termas e edifícios oficias, colocaram na rua muitos
cidadãos e encareceram o espaço habitável da cidade, fomentando o aumento de valor do terreno útil para moradias.
4
3 Conforme Silva Pereira (2002: 62): “Os autores modernos, trabalhando sobre os textos, permitem discutir
se no período clássico já se admitia a divisio por planos horizontais. Certo é, contudo, que no direito post-justinianeu,
as fontes bizantinas e o Livro Siro Romano de Direito são apontados como fontes que autorizam admitir a figura da
propriedade horizontal no direito romano.” Para maiores desenvolvimentos vide Eduardo C. Silveira Marchi (1995:
15 e ss.). Para lembrar, giza-se que as épocas do direito romano são: arcaica (de 753 a 130 a.C.); clássica (de 130 a.C. a
230); pós-clássica (de 230 a 530); e justinianeia (de 530 a 565).
4 Cumpre elucidar que no Brasil atual utiliza-se exclusivamente as expressões locação e aluguel para designar,
respectivamente, o nome desse tipo de contrato (locatio conductio rei) e o preço locativo. Note-se que tal designação, no
direito brasileiro, é utilizada tanto para coisas móveis quanto para coisas imóveis. O Código Civil de 1916 utiliza,
para denominar o preço locativo, o termo aluguer; e o Código de 2002, a variante aluguel. Em Portugal, a expressão
empregada para a locação de imóvel é arrendamento; e, para a remuneração, renda. Já o termo aluguer é empregado para
denominar o contrato de locação de coisas móveis e também o preço da locação mobiliária, sendo, neste caso, o
correspondente da palavra renda. O leitor do presente texto deverá ler os vocábulos arrendamento e locação como
sinônimos, bem como, renda e aluguel, ainda que na sua essência se reportem a conceitos diferentes. Isso explica-se
pelo fato de as pesquisas para a elaboração deste trabalho terem sido procedidas em textos de autores de diversas
nacionalidades (ou em obras traduzidas para o português, quer do Brasil, quer de Portugal), cada um deles usando as
expressões aceites em seus respectivos países.
5 De acordo com a Lex XII Tabularum apud Pessôa (2001: 49), há a figura do ambitus ou espaço vazio de dois
pés e meio ao redor dos edifícios. Os autores revelam, diante disso, que a denominação “ insula” (“ilha”) deve-se ao
fato de que todas as casas estavam separadas umas das outras pelo ambitus. Assim, conforme Guillen (1977: 77-78),
“em sua origem a insula era uma moradia completamente isolada e rodeada por todas as partes de um jardim ou uma
rua. Formava, pois, o que hoje chamamos uma mansão. Este mínimo de separação de uma casa da outra, marcado
pela lei duodecimal, irá estreitando-se pela escassez do terreno (...)”.
5
A domus era a casa clássica, chamada “casa de tipo pompeiano”, tendo sido, na sua
origem, uma casa rústica, e não urbana, que evoluiu a fim de adaptar-se paulatinamente às
condições urbanas (Grimal, 1993: 224). Tratava-se de uma casa “cômoda, ampla, belíssima, aberta
ao ar e ao sol” (Guillen, 1977: 61), “ocupada por um só proprietário e sua família” (e pelos seus
escravos) e “disposta de ordinário sobre um só piso, com ambientação interior até um pátio
central, não comunicada ao exterior não mais do que com uma porta e com desenvolvimento em
sentido horizontal” (Guillen, 1977: 59). Em contrapartida, a insula, como já restou evidenciado,
era um edifício de estrutura vertical composto de vários pavimentos, formando um verdadeiro
prédio de apartamentos na acepção moderna (Marchi, 1995: 11), que era destinado ao
arrendamento por parte dos menos favorecidos pela fortuna.
Com efeito, as domus eram as residências dos homens mais importantes – as casas da elite
romana – e símbolo de prestígio (Hanoune; Scheid, 1996: 88); e as insulae, as residências de
“caráter urbano e comercial, destinadas à coabitação de várias famílias” (Guillen, 1977: 59-60)
mais modestas.7
6 Jérôme Carcopino (1964: 33) assinala: “para um latinista a domus, palavra que evoca etimològicamente a
idéia de domínio hereditário, é a residência particular, em que vive ùnicamente, sem partilhas, a família do
proprietário”.
7 Segundo Guillen (1977: 59), o termo “inquilino” não soava bem para uma domus, porquanto a
tradição determinava uma moradia própria e fixa. Na verdade o termo designava um homem aventureiro e sem
terra.
8 O ilustre historiador francês Pierre Grimal (1993: 226-227) descreve algumas características das insulae, da
seguinte forma: “A insula, pelo seu aspecto exterior, recorda muito os prédios dos bairros de Nápoles, de Gênova
ou, em França, da velha Nice. Todos os andares são divididos em apartamentos independentes, aos quais se tem
acesso por uma escada que dá directamente para a rua. A iluminação era assegurada por grandes janelas rasgadas na
fachada ou dando aos poços de luz no interior. O rés do chão era geralmente ocupado por lojas, cada uma delas
formando uma divisão independente largamente aberta para a rua e fechada, à noite, por persianas móveis. Dos
diferentes compartimentos que formavam um apartamento nenhum tinha um destino especial; não havia cozinha,
nem sala de banhos, nem latrinas. A água, como dissemos, não chegava aos andares de cima e era preciso buscá-la à
fonte da encruzilhada mais próxima.”
6
Sabe-se que já nos fins do século III a.C. havia em Roma insulae de três ou mais
pavimentos (Bellido, 1985: 119), para alojar os inquilini ou inquilinos de renda regular. A partir da
mesma época, as insulae difundem-se, aumentando cada vez mais o número de pavimentos,
estando tal fato nitidamente relacionado com o fenômeno da escassez de moradia na Urbs, que
7
gera a correspondente especulação imobiliária (Román, 1997: 68). Mas foi a partir do Império
que ela se tornou a casa de habitação mais generalizada em Roma, com um desenvolvimento
considerável nos séculos I e II. Este panorama urbanístico, caracterizado pela imensa quantidade
de insulae, é confirmado também pelas fontes jurídicas, conforme observa Maschi apud Marchi
(1995: 12).9
Sob o ponto de vista arquitetônico, as imensas insulae eram edifícios muito frágeis e mal-
construídos, que desmoronavam e incendiavam com freqüência. Os construtores, visando apenas
o lucro, “economizavam na resistência da alvenaria e na qualidade dos materiais” (Carcopino,
1964: 48). A especulação imobiliária fez com que as ruas se estreitassem; e os perigos constantes
de incêndios fizeram com que os empresários construíssem insulae de forma que, não obstante a
melhor aparência que tivessem, o preço de sua edificação fosse o menor possível. “De trás de
aparentes fachadas escondiam-se vivendas sórdidas, sem luz, sem ventilação, estreitas, mal-
cheirosas e ameaçando ruir a qualquer momento” (Guillen, 1977: 53).10
9 Conforme D. 9, 3, 5 pr., “si vero plures diviso inter se coenaculo habitent...,” (“Mas se muitos habitassem num
aposento, tendo-o entre eles dividido...”); D. 9, 3, 1, 10, “si plures in eodem coenaculo habitent...” (“Se habitaram muitos
em um mesmo aposento...”); D. 19, 2, 27 pr., “habitatores...si Paulo minus commode alinqua parte coenaculi uterentur...” (“Se
os habitantes usassem de alguma parte de um cenáculo com pouco menos comodidade...”); e D. 7, 1, 13, 8 refere a
divisão da domus em cenacula, ou seja, a transformação das mesmas em insulae.
10 Guillen (1977: 79) curiosamente assinala que “estas casas se construíam demasiado depressa e com
estruturas de madeira nas paredes, para que permitissem ser mais delgadas, as quais se chama parietes graticii. Por
sua imensa altura, pela estreiteza das ruas, os vizinhos podiam dar-se as mãos pela janela com os da casa em
frente; porque estavam privadas de água corrente, e sobre tudo, pela sua má construção, estas casas estavam
expostas a incêndios e desmoronamentos”. Destarte, os locatários de uma insula viviam constantemente com
receio que ela desmoronasse sobre suas cabeças. Jérôme Carcopino (1964: 50) diz: “Por outro lado ardiam tão
freqüentemente como as de Istambul no tempo dos sultões (...); o incêndio era moda corrente na existência dos
romanos. O rico treme pela sua morada, e na sua angústia põe tropa de escravos a vigiar o seu âmbar amarelo,
os seus bronzes, as suas colunas de mármore frígido, as suas incrustações de laca. O pobre é surpreendido no
seu sono pela invasão da chama na sua mansarda, e cuida ser assado vivo. A obsessão é para todos tão forte
que para lhe fugir Juvenal está pronto a desertar Roma. ‘Ah! Quando poderei eu viver num lugar onde não haja
fogo, onde as noites não tenham alarma!’.” Augusto chegou a criar uma espécie de corpo de bombeiros para
acudir aos sinistros, derrubamentos ou incêndios. Muitos casos previstos no Digesto, inclusive, supõem a
situação precária das insulae romanas. Cicero, em Att. 4, 9, 1, apud Guillen (1977: 79) escreve a seu amigo Atico
sobre o mau estado de uma insula de sua propriedade: “desmoronaram-me duas tabernae; nas outras, as paredes
estão todas fundidas; não só se vão os inquilinos, mas até os ratos. Juvenal 3, 225 apud Guillen (1977: 79) chega
ao ponto de dizer que “alugar um aposento” seria o mesmo que conducere tenebras. Realmente, não obstante suas
belas fachadas, que poderiam impressionar os estrangeiros e os provinciais que chegassem pela primeira vez na
Urbe, as insulae eram frágeis, altamente combustíveis, imundas e infestadas por parasitas. Segundo Carcopino
(1964: 63), nas suas dependências,“...se achatavam umas contra as outras famílias inteiras”, havendo
“...exércitos de escravos e de porteiros, às ordens de um intendente servil para manter a ordem na sua
população atrozmente misturada”, além de verdadeiros batalhões de escravos dos locadores para as
reconstruções imediatas após os sinistros.
8
corrida para as nuvens havia começado. Os ‘arranha-céus’ haviam feito sua aparição vinte séculos
antes que em Chicago e Nova York” (Bellido, 1985: 137). Os Imperadores intervieram no sentido
de limitar a altura das construções, sendo que Augusto proibiu a construção de insulae com mais
de 70 pés de altura (aproximadamente 20 metros) e Trajano reduziu este limite para 60 pés (um
pouco menos de 18 metros) (Grimal, 1993: 227). No entanto, tais medidas não eram respeitadas,
“não tanto pela avidez dos domini insulae, ou caseiros, ou dos gestores, intermediários (exactores ad
insulas) e demais especuladores, mas porque, entre o século I e o III de nossa era, haviam mudado
muito os modos de trabalho e, antes de tudo, os materiais empregados na construção”(Bellido,
1985: 140).11
Diante do exposto até aqui, pode perceber-se claramente que a locação das isulae era um
dos principais meios de renda na Roma antiga, tanto que estes edifícios ocupavam a maior parte
do tecido urbano da cidade, chegando ao número de 46 602 (96,3%) contra apenas 1 797 domus
(3,7%) no século IV da era cristã 12; e a sua locação era um negócio muito rentável, sendo que, na
época de César, se pagava um aluguel quatro vezes maior que em outras cidades da península
itálica.
Considerar-se que a locatio insularum era um importante modus vivendi na capital do Império,
ou um dos principais modos de aquisição de renda, pode soar estranho num primeiro momento,
mormente porque os “autores que se ocuparam da história social e econômica de Roma, ao
tentar determinar a procedência das rendas dos cidadãos romanos mais abastados, passaram por
alto, na maioria dos casos, pelo investimento imobiliário realizado em solo urbano” (García,
2002: 43-44). Garnsey apud García (2002: 44) preleciona que tal omissão “pode depender ou de
um simples descuido, ou também do fato de que a propriedade imobiliária não era tomada
seriamente em consideração como negócio imobiliário”.
transeuntes das ruas e vielas estreitas da cidade, porquanto os inquilinos dos edifícios mais altos aproveitavam a
escuridão da noite para lançar pelas janelas todos os tipos de sujeiras. Segundo Guillen (1977: 56), de toda a
parte choviam sujeiras, entulhos, excrementos de todos os tipos e outros objetos. No próprio Digesto, se
encontram disposições criadas no afã de evitar acidentes, tais como as de Ulpiano em D. 9, 3, 5 pr. e D. 9, 3, 1,
10. Observe-se, por exemplo, o que diz esta última passagem: “Si plures in eodem coenaculo habitent, unde deiectum est,
in quemvis haec actio dabitur”(“Se habitaram muitos num mesmo aposento, de onde se arremessou alguma coisa,
dar-se-á esta ação contra qualquer deles”). Apesar das disposições mencionadas, as pessoas continuavam
lançando coisas pelas janelas, devendo os homens prudentes sair de casa à noite “só por grande necessidade e
bem acompanhados”, nas palavras de Guillen (1977: 56).
12 Estatísticas trazidas pelos historiadores, segundo os Regionarii, que são documentos do século IV da nossa
era, nos quais consta uma lista das regiões de Roma capital, de seus monumentos, imóveis públicos e privados, vias
etc.
9
que um bom patrício se dedicava a atividades honoráveis e também rentáveis, tais como a
agricultura, o comércio em grande escala ou as profissões liberais.
Cícero apud Florenzano (1994: 79-80), na sua passagem sobre o valor das profissões (De
Officiis, I, XLII) não inclui no rol das profissões dignas a atividade do locador de prédios de
rendimento e nem chega a falar sobre ela, quando se refere às indignas. Entretanto, o mesmo
Cícero deixa claro, ao falar sobre o investimento de capital em imóveis urbanos, em várias
passagens de sua extensa obra, que o arrendamento de insulae “era uma das formas mais seguras
de obter grandes rendas” (García: 2002: 45).
Por derradeiro, passa-se agora ao estudo pormenorizado desse contrato firmado entre o
locator e o inquilinus (ou conductor), contrato este de manifesta envergadura face ao seu uso
amiudadamente repetido em Roma. O insigne romanista Arangio-Ruiz (1986: 388) já falara da
“particular importância” da locação de imóveis com fins de lucro, na qual se dá ao locatário o
nome de inquilinus, em se tratando de um edifício.
Por questões de clareza e comodidade para o seu estudo 13, a doutrina moderna subdividiu
o instituto da locatio conductio em três espécies distintas, conforme a natureza do objeto do
contrato. Portanto, a locatio conductio triparte-se em: locatio conductio rei – locação de coisa; locatio
conductio operarum – prestação de serviço; e locatio conductio operis – empreitada.14
Contudo deve ter-se a necessária atenção para o fato de que essa tripartição não era
admitida no mundo jurídico romano. Em se reportando à estrutura do título “Locati, conducti” do
Digesto (D. 19, 2), bem como ao título “De locatione et conductione” das Instituições (I. 3, 24), não se
encontra sinal de classificação (Brasielo, 1927: 539-540). Do mesmo modo, o escrito por Gaius
(Gaius 3, 142 e ss.) acerca da locatio conductio demonstra que os romanos não tinham em mente
uma concepção tripartida do instituto (Arangio-Ruiz, 1986: 385), conhecendo apenas um tipo de
locatio conductio, apesar de possuir três finalidades diversas (Moreira Alves, 1998: 177).
Moreira Alves (1998: 177) assinala que “das três finalidades da locatio conductio (rei, operarum
e operis), a mais antiga é a locatio conductio rei, dela derivando as outras duas”. E é o estudo da locatio
conductio rei que será procedido aqui, de vez que a insula15 é a coisa (res) objeto do contrato de
locação (locatio conductio).
14 Nesse diapasão, o Código Civil Brasileiro de 1916 disciplina o contrato de locação em três seções do
mesmo capítulo, a primeira dedicada à locação de coisas; a segunda, à locação de serviços; e a terceira; à empreitada;
reservando ainda, na primeira seção, disposições específicas sobre a locação de prédios e uma especial concernente
aos prédios urbanos. Segundo Caio Mário da Silva Pereira (1999: 169-170), este critério de classificação observado no
Código Civil de 1916 começou a ser “fundamente atingido desde que Marcel Planiol propôs distinguir os contratos
cujo objeto é uma coisa daqueles em que se visa a um trabalho ou a um direito. Atentando para a locação, sente-se
que é muito maior a aproximação entre a locação de coisa e a venda, o comodato, o depósito, por um lado; entre a
locação de serviços e o mandato, por outro de que entre a clássica locatio rerum e a locatio operarum.” Orlando Gomes
(1999: 271-272), nesse sentido, fala que “para se verificar o artificialismo da pretensa unidade, basta considerar a
chamada locação de serviços, hoje desdobrada nas figuras independentes do contrato de trabalho e do contrato da
prestação de serviços”. O Código Civil de 2002, seguindo essa linha moderna, por ser mais racional segundo alguns,
afastou-se da topografia do antigo Código ao tratar das três modalidades não mais em seções diferentes do mesmo
capítulo, mas em três capítulos distintos (Cap. V – Da Locação de Coisas; Cap. VII – Da Prestação de Serviço; Cap.
VIII – Da Empreitada). Porém, a locação propriamente dita é só a de coisas, sendo esta tratada nos arts. 565 a 578
do novo diploma, que abandonou a distinção entre locação de bens móveis e de prédios (urbanos e rústicos) e
realizou uma abordagem sucinta do instituto, na qual foram traçados apenas princípios gerais. Note-se que antes da
entrada em vigor do novo Código, já vigia a Lei n. 8.245 de 1991 – popularmente conhecida como “Lei do
Inquilinato” – , a qual contém disposições específicas sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a
eles pertinentes. Com o advento do Código de 2002, a lei especial referida continuou a reger o contrato de locação
do imóvel urbano, aplicando-se as disposições do Código às demais hipóteses ou em caso de omissão da lei especial.
Curiosamente a “Lei do Inquilinato” fora publicada no Brasil um ano após a publicação, em Portugal, do chamado
“Regime do Arrendamento Urbano”.
15 Em sentido genérico, de vez que se poderia locar cada um dos apartamentos ( cenaculum) ou as lojas,
oficinas e armazéns do rés-do-chão (tabernae), servindo estes também de moradia. De acordo com Guillen (1977: 78),
em geral, um senhor alugava toda a insula, para posteriormente alugar cada uma de suas partes, o que se chamava
cenaculariam exercere. Vide a respeito D. 9, 3, 5, 1; ib., 10, 3, 1.
11
seja, contractus bilateralis aequalis (Marki, 1995: 127). Por meio dela, o locador (locator) se obriga a
pôr à disposição do locatário (conductor), temporariamente, uma coisa móvel não fungível ou
imóvel para uso ou uso e gozo, mediante retribuição (merces) paga por este.
O conductor é mero detentor da coisa, não possuindo direito real sobre ela; mas, tão-
somente, direito de crédito exercitável contra o locator (Iglesias, 1993: 379). Sendo mero detentor,
é negada ao conductor a posse interdital (Kaser, 1999: 252), não gozando, assim, da proteção dos
interdictos possessórios (Iglesias, 1993: 379). Na visão de Max Kaser (1999: 252) isso denota a
situação social desfavorável do locatário. A título de exceção, o Digesto (D. 43, 16, 12 e 18) prevê
o interdictum de vi armata, do qual poderia dispor o locatário quando fosse expulso do imóvel
locado pelo uso de armas por parte de outrem.
A fim de proteger os direitos derivados da locatio condcutio, o locator dispõe da actio locati ; e o
conductor, da actio conducti (I. 3, 24, pr.).
Os elementos essenciais da locatio conductio rei são: a res (coisa), a merces (aluguel) e o
consensus (acordo de vontade).
A res poderia ser qualquer coisa móvel ou imóvel não consumível. Exemplifica-se:
instrumentos de trabalho, propriedades agrícolas, escravos, objetos para exposição, apartamentos
etc.
Pugliesi (1994: 605) ensina que a locação de imóvel privado foi mais recente que a de
móveis, como aquela em relação ao ager publicus. Este mesmo autor (Pugliesi, 1994: 605) aduz que
a locação de imóvel começou a desenvolver-se,
O autor ainda lembra que o conductor de fundos rústicos era chamado de colonus; e o de
casas de habitação, inquilinus (Pugliesi, 1994: 605).
da res e deve ser em dinheiro17. No commodatum não há remuneração pelo uso da coisa, mas o uso
gratuito da res com a obrigação do comodatário de restituí-la.
Outrossim, percebe-se uma propinqüidade entre a locatio conductio rei e a emptio venditio
(compra e venda) (I. 3, 24 pr.). Gaius (Gaius 3, 142 e 145) já demonstrava preocupação em
distinguir as duas espécies contratuais, ressaltando que em alguns casos era suscitada uma dúvida
sobre o tipo de contrato firmado entre as partes. Todavia, não obstante serem ambas espécies
contratuais de natureza consensual, são estruturalmente distintas, havendo, e. g., um “preço de
utilização” na locatio conductio e um “preço do valor da coisa” na emptio venditio.
O consensus fora referido por Gaius (Gaius 3, 136 e 136) quando escreveu:
A sublocação era de fato permitida no contrato de locatio conductio rei (C. 4, 65, 6).18
17 Consoante Moreira Alves (1998: 178-179): “a merces consiste, a princípio em dinheiro, e não em coisa
(essa exigência, no entanto, segundo alguns autores, só se fez em época tardia), embora sempre se tivesse admitido
uma exceção: na parceria rural (colonia partiaria ), o locatário do imóvel pode obrigar-se a entregar ao locador uma
quota dos frutos (pars quota) produzidos pelo imóvel; ademais a merces deve ser determinada desde o momento da
formação da locatio conductio rei, admitindo-se, porém, no direito justinianeu, sua fixação por terceiro, que se não o
fizesse, determinaria a ineficácia do contrato(...)”.
18 Ao passo que o Código Civil brasileiro de 1916 consagra a sublocação de prédios no seu art. 1.201, o
Código Civil de 2002 é omisso quanto a tal figura. No entanto, a “Lei do Inquilinato”, ainda em vigor, prevê a
sublocação nos seus art. 14 a 16, estando a mesma subordinada ao regime jurídico da locação, desde que se evidencie
a necessária autorização do locador.
13
As obrigações do locator são as seguintes: a) entregar a coisa alugada ao conductor, para seu
uso ou uso e fruição, e em estado de servir plenamente àquilo a que se destina, enquanto durar o
contrato;19 b) manter a coisa em bom estado e sem vícios20, propiciando o livre uso e gozo,
conforme sua própria destinação (Iglesias, 1993: 379). Se o locator, de forma culposa 21, não
cumpre tal obrigação, deve indenizar o conductor pelos prejuízos causados (Kaser, 1999: 251)22.
Kaser (1999: 251) assinala que “o mesmo acontece se garantiu expressa ou tacitamente a
idoneidade da coisa arrendada”.23 Em se tratando de caso fortuito, o locator não precisa indenizar
o conductor. Contudo, este está isento do pagamento da merces, ou, se já o efetuou, terá direito ao
ressarcimento24. Ademais, o locador não poderá fazer alterações que tornem a coisa imprópria ou
menos idônea para o uso e gozo por parte do locatário, enquanto durar o contrato (Iglesias, 1993:
380); 25 c) proceder às reparações necessárias à conservação da coisa (D. 19, 2, 25, 2), bem como
reembolsar o conductor das despesas necessárias e úteis feitas com a res (Iglesias, 1993: 380; Moreira
Alves, 1998: 179); d) suportar os encargos públicos que incidem sobre a res (Iglesias, 1993: 380;
Moreira Alves, 1998: 179).
19 O Código Civil brasileiro de 2002 estabelece tal obrigação no art. 566; e a “Lei do Inquilinato”, a seu
turno, também o faz no art. 22, I. Evidencia-se aqui, pois, mais um exemplo, dentre inúmeros outros que se poderia
trazer à evidência, de regras jurídicas do direito romano que foram consagradas pelo direito brasileiro.
20 Observe-se o ensinamento de Iglesias (1993: 379158).: “a responsabilidade do locator, na época clássica, só
se dá por motivo dos vícios ou defeitos que lhe são conhecidos; no Direito Justinianeu alcança também os que
ignora. Cf. D. 19, 2, 19, 1.(...)”.
21 Saliente-se que a culpa compreendia o dolo e simples negligência, de acordo com Iglesias (1993: 379 159).
22 Nesse sentido vide a propósito das insulae D. 19, 2, 30 pr.
23 Vide também Giovanni Nicosia (1957-1958: 403-426).
24Max Kaser (1999: 251) refere que “se o uso ou a fruição tiver sido impedido por um acontecimento de
força maior (vis cui resisti non potest), o risco (periculum) corre pelo locator, i. e., não tem direito à renda, na medida em
que o conductor não teve a fruição (e tem de devolver a renda já paga, mas não precisa de pagar qualquer
indemnização). Nos outros casos fortuitos, pelo contrário, o risco corre pelo conductor, que tem de pagar a renda,
apesar de não ter a fruição; cfr. Ulp. eod. 15, 2; Afr. eod. 33)”.
25 A propósito vide D. 19, 12, 19, 5.
26 Para maiores desenvolvimentos acerca do periculum locatoris na locatio conductio rei vide Juan Miquel (1664:
134-190).
14
Todavia, nem sempre há um termo certo para a locação, situação em que o contrato se
extingue a qualquer tempo pela vontade do locator (expellere, repellere) ou do conductor (relinquere,
deserere, discedere, migrare) e sem a necessidade de um aviso prévio (Iglesias, 1993: 381). Neste
ponto, especificamente quanto à locatio conductio das insulae, cabe o ensinamento de Filippo Gallo
(1964: 1201-1202). O autor, evocando as Intuições de Gaius (Gaius 3, 142), afirma que no caso da
locatio conductio rei o aluguel não poderia ser estabelecido sem se referir a certo período (dez ao
mês, cem ao ano).
Portanto, “ao menos no período de tempo no qual foi medido o preço (no exemplo, feito
por um mês), os contratantes tinham que respeitar a palavra dada” (Gallo, 1964, 1202).
27 Os arts. 1.190 e 567 dos Códigos Civis de 1916 e 2002, respectivamente, contêm tal regra.
28 Sobre a relocatio tacita, a “Lei do Inquilinato”, ao tratar da locação residencial de prédios urbanos, no art.
46, § 1º, dispõe: “Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias
sem oposição do locador, presumir-se-á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas
e disposições do contrato”.
15
Além dessas hipóteses, Iglesias (1993: 381), com notável clareza expositiva, enumera
outras causas que podem levar à extinção do contrato. O autor, alicerçado nas fontes jurídicas,
revela que o locador pode pôr fim ao contrato quando: a) não recebe o aluguel por mais de dois
anos; b) a coisa não está sendo usada de forma normal ou está sendo estragada; c) desejar
retomar o imóvel para sua moradia ou para reformá-lo .
A locação não se extingue, em regra, com a morte de uma das partes, a não ser que isso
tenha ficado acordado, porquanto as obrigações se transferem aos herdeiros.31-32
Outra questão importante a saber é a que se refere à venda de bem imóvel locado a
terceiro. Em sendo a relação locatícia uma relação jurídica pessoal, com o advento da relação de
natureza real estabelecida ente o locator (vendedor) e o comprador através da emptio venditio, o novo
dominus pode expulsar o conductor (colonus ou inquilinus) da propriedade, o que se expressa na regra
emptio tollit locatum (a venda rompe a locação) (Torrent, 1967: 265). O conductor, por sua vez, pode
pedir indenização do locator, sempre que tiver de deixar o imóvel antes do prazo fixado33. A fim
de evitar tal inconveniente, o vendedor deve introduzir no contrato de compra e venda uma
cláusula prevendo que, se houver a venda do bem locado, o comprador se obriga a tolerar a
locação (Torrent, 1967: 265). Se tal cláusula não for cumprida pelo comprador, resta ao vendedor
a alternativa da actio venditi (Torrent, 1967: 271).
29 Emilio Betti (1960: 241 73) cita um exemplo tangente à locação de habitação urbana, em que um vizinho
da casa locada constrói sobre o próprio edifício de modo a obscurecer a luz do apartamento do inquilino. Neste
caso, o locador deve ser responsabilizado, não obstante se tratar de uma obra de terceiro. Além disso o inquilino
pode legitimamente desistir da locação.
30 Note-se que muitas destas hipóteses estão previstas ainda hoje no ordenamento jurídico brasileiro, tais
como: o pedido do imóvel alugado para uso próprio ou para reforma; a rescisão contratual em decorrência da falta
de pagamento do aluguel ou do dano causado ao bem por abuso do locatário etc. Para se constatar todas as hipóteses
vide a Lei. n.º 8.245/91 combinada com a Lei 10.406/02.
31 Conforme I. 3, 24, 6: “Mortuo conductore intra tempora conductionis, heres eius eodem iuri in conductionem succedit”
(“Morto o arrendatário durante o tempo do arrendamento, lhe sucede nele com o mesmo título o seu herdeiro”).
32 Mais um exemplo de uma regra do direito romano abraçada pelo direito brasileiro. Os arts. 1.198 e 577,
dos Códigos Civis de 1916 e 2002, respectivamente, têm o a mesma redação nesse sentido: “Morrendo o locador ou
o locatário, transfere-se aos seus herdeiros a locação por tempo determinado.” E mais, os arts. 10 e 11, da “Lei do
Inquilinato”, também contêm esta regra, mas com a particularidade de mencionar (no art. 11, I) que, morrendo o
locatário, “ficarão sub-rogados nos seus direitos e obrigações: (...) nas locações com finalidade residencial, o cônjuge
sobrevivente ou o companheiro e, sucessivamente, os herdeiros necessários e as pessoas que viviam na dependência
econômica do ‘de cujus’, desde que residentes no imóvel”.
33 Segundo Nicola Palazzolo (1965: 28632), no caso de venda da coisa locada, o locator só é responsável
perante o conductor se este for proibido de usar e gozar da coisa, o que estaria expresso claramente em D. 12, 2,
25, 1.
16
Enfim, com a presente explanação, tem-se que restaram evidenciados alguns do principais
aspectos atinentes à locação das insulae em Roma, o que envolve, de um lado, a problemática da
sua locação como um negócio imobiliário de larga utilização face à escassez de moradia; e de
outro, a questão do regime jurídico aplicado à relação contratual existente entre o locador e o
inquilinus.
Conclusão
Para Santos Justo (2000: 24),
Sem dúvida, com o presente estudo pode-se perceber o inegável valor das palavras do
citado Mestre, na medida em que antigos institutos jurídicos romanos, tais como a locatio conductio,
erigiram a base teórica e conceitual sobre a qual se edificaram grande parte das figuras jurídicas
patentes na dinâmica social moderna.
Ainda se pode notar que a herança romana não restou adstrita tão-somente ao âmbito
jurídico. É deveras impressionante vislumbrar as influências de Roma nos mais diversos
domínios: “espaços nacionais e políticos, estética e moral, valores de todos os tipos, sistemas
jurídicos dos Estados, usos e costumes da vida quotidiana; nada do que nos rodeia seria o que é
se Roma não tivesse existido” (Grimal, 1993: 11).
Roma, a capital do mundo antigo, “a deusa dos continentes e das nações”, a “cidade
tentacular e colossal” cuja grandeza assombrava a todos (Carcopino, 1964: 25), “ilumina com
uma luz viva cerca de doze séculos da história da humanidade” (Grimal, 1993: 25), sendo o ponto
de encontro entre o mundo antigo e o novo e, por isso, pertencente a todos, universal e eterna”
(Polidori, 1997: s. n.).
Referências bibliográficas
ARANGIO-RUIZ, Vicenzo. Instituciones de Derecho Romano. Tradução espanhola da 10ª edição
italiana por José M. Caramés Ferro. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1986.
17
BELLIDO, Antonio Garcia y. Urbanistica de las grandes ciudades del Mundo Antiguo. 2ª ed. Madrid:
Consejo Superior de Investigaciones cientificas. Instituto Espanhol de Arqueologia, 1985.
BETTI, Emilio. Instituzioni di Diritto Romano II. Padova: CEDAM – Casa Editrice Dott. Antonio
Milani, 1960.
BRASIELO, Ugo L’unitarietà del concetto di locazione in diritto romano. In: Rivista Italiana per le
Scienze Giuridiche. Milano, v. IV (1927), pp.529-580.
CARCOPINO, Jérôme. A vida em Roma no apogeu do Império. 2ª ed. Tradução portuguesa de
António José Saraiva. Lisboa: Livros do Brasil, 1964.
D’ORS, Alvaro. Derecho Privado Romano 8ª ed. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra,
1991.
DOSI, A.; SCHNELL, F. Spazio e tempo, em Vita e costumi dei romani antichi 14 - Museo della
Civilità Romana. Roma: Edizioni Quasar, 1992.
FLORENZANO, Maria Beatriz B. O mundo antigo: economia e sociedade. 12ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
GALLO, Filippo. Sulla presunta estinzione del rapporto di locazione per iniziativa unilaterale. In: Synteleia
Vicenzo Arangio-Ruiz. v II. Napoli: Editore Jovene Napoli, 1964.
GARCÍA, Ana Belén Zaera. El negocio de las rentas inmobiliarias en Roma: la explotación de la insula. In:
Revista de Estudios Histórico-Jurídicos. Valparaíso. v. XXIV (2002), pp. 43-53.
GARNSEY, Peter; SALLER, Richard. El Imperio Romano: economía, sociedad y cultura. Tradução
espanhola de Jordi Beltran. Barcelona: Editorial Crítica, 1991.
GOMES, Orlando. Contratos. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
GRIMAL, Pierre. A Civilização Romana. Tradução portuguesa de Isabel St. Aubyn. Lisboa:
Edições 70, 1993.
GUILLEN, Jose. Urbs Roma: Vida y costumes de los romanos, I – La vida privada. Salamanca:
Ediciones Sígueme, 1977.
HANOUNE, Roger; SCHEID, John. Romani e l’eredità dell’impero. Tradução italiana de Carlo
Montrésor. Roma: Electa-Gallimard, 1996.
IGLESIAS, Juan. Derecho Romano (História e Instituciones). 11ª ed. Barcelona: Ariel Derecho, 1993.
KASER, Max. Direito Privado Romano. Tradução portuguesa de Samuel Rodrigues e Ferdinand
Hämmerle. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
MARCHI, Eduardo C. Silveira. A Propriedade Horizontal no Direito Romano. São Paulo: Edusp,
1995.
MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
MIQUEL, Juan. Periculum locatoris. In: Zeistschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte.
Romanistische Abteilung. Weimar. v. 81 (1964), pp. 134-190.
MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano II. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
NICOSIA, Giovanni. La responsabilità del locatore per i vizi della cosa locata nel diritto romano. In: Rivista
Italiana per le Scienze Giuridiche. Milano. v. IX (1957-1958), pp. 403-426.
18
PALAZZOLO, Nicola. Evizione della cosa locata e responsabilità del locatore. In: Bulletino dell’Instituto
di Diritto Romano. Milano. v. VII (1965), pp. 275-321.
PESSÔA, Eduardo. História do Direito Romano. São Paulo: Habeas Editora, 2001.
POLIDORI, Tulio. “Roma” (Viagem na História). Edição portuguesa em CD-ROM. Roma: T.P.E
Multimedia Editore, 1997.
PUGLIESI, Giovanni. Locatio-conductio. In: Derecho Romano de Obligaciones, Homenaje al Profesor
José Murga Gener. Madrid: Editorial Centro de Estudos Kanón Areces, 1994.
ROMÁN, Cristóbal González. Roma y la urbanización de occidente. Madrid: Arco Libros, 1997.
RUA, Maria Helena. Os dez livros de arquitectura de Vitrúvio, corrigidos e traduzidos para o
português. Lisboa: Dept. de Engenharia Civil, Instituto Superior Técnico de Lisboa, 1998.
SANTOS JUSTO, António dos. Direito Privado Romano – III (Direitos Reais). In: Studia Iuridica 26.
Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1997.
_____. Direito Privado Romano – I (Parte Geral). em Studia Iuridica 50. Coimbra: Coimbra Editora,
2000.
SILVA PEREIRA, Caio Mário da. Instituições de Direito Civil III 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999.
_____. Condomínio e Incorporações. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
TORRENT, Armando. Excepciones pactadas a la regla “emptio tollit locatum’”. In: Temis Revista de
Ciência y Técnica Jurídicas. Zaragoza. v. 21 (1967), pp. 263-271.
Fontes jurídicas
C. – Codex Iustinianus (GARCÍA DEL CORRAL, D. Ildefonso L. Cuerpo del Derecho Civil
Romano. Barcelona: Editorial Lex Nova, 1889).
D. – Digesto (GARCÍA DEL CORRAL, D. Ildefonso L. Cuerpo del Derecho Civil Romano.
Barcelona: Editorial Lex Nova, 1889).
I. – Instituições (GARCÍA DEL CORRAL, D. Ildefonso L. Cuerpo del Derecho Civil Romano.
Barcelona: Editorial Lex Nova, 1889).
Gaius – Gai Institutionum Commentarii (VELASCO, Manuel Abellan et al. Gayo – Instituciones.
Madrid: Editorial Civitas, 1985).
A FIGURA DO HEREGE NO LIVRO V DAS ORDENAÇÕES MANUELINAS E NAS ORDENAÇÕES
FILIPINAS*
THE FIGURE OF HERETICS ON THE BOOK V OF ORDENAÇÕES MANUELINAS AND
ORDENAÇÕES FILIPINAS
Resumo
O presente artigo procura analisar a idéia de herege e heresia contida nas
leis portuguesas durante os séculos XVI-XVII, utilizando-se dos códices
legais da época – as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas -,
apontando os principais comportamentos de heresia e os grupos mais
perseguidos pelas leis. Desta forma, é possível encontrar indícios do
panorama sócio-político-religioso do Portugal Moderno.
Abstract
This article desires analyze the idea of heretic ands heresy that exists in
the Portugueses’ laws during the XVI-XVII centuries, using the legals’
codes of that time – Ordenações Manuelinas and Ordenações Filipinas –
showing the main behaviours of heresy and the most pursued groups by
laws. That way, is possible find some traces of the cultural, political and
religious landscape of Portugal in the Modern Age.
Palavras-chave
Ordenações Manuelinas - Ordenações Filipinas - leis portuguesas –
Hereges - Portugal Moderno.
Key words
Ordenações Manuelinas - Ordenações Filipinas - portugueses’ laws – heretics -
Portugal in the Modern Age.
“E essa realidade deles não pode ser destruída por nenhum documento,
pois eles a respiram, a vêem, sentem-na... e tocam-na! No máximo o
documento serviria a vocês, só a vocês, satisfazendo uma tola
curiosidade. E mesmo aí estariam condenados ao maravilhoso suplício
de ver, ao mesmo tempo, aqui o fantasma, e aqui a realidade, e não saber
distinguir um do outro!”
(Luigi Pirandello, in Assim é (se lhe parece))
Introdução
Em 1578, o jovem monarca português Dom Sebastião, moço ainda solteiro de apenas 24
anos, desapareceria nas areias do Marrocos durante a fracassada campanha militar de Alcácer
Quibir, deixando o trono português vago pela falta de herdeiros. O cardeal D. Henrique, tio de
D. Sebastião, resolveria temporariamente o problema, assumindo a Coroa que, contudo,
continuava sem herdeiros diretos. De idade avançada, combalido e celibatário (por razões
óbvias), o cardeal-rei morreria em pouco tempo, pondo fim à Dinastia dos Avis e dando início,
em 1580, a uma das páginas mais trágicas da história portuguesa.
Assim, os sessenta anos do período denominado União das Coroas Ibéricas, entre os anos
de 1580 e de 1640, marcariam a subordinação lusitana à Espanha, causando reflexos em todos os
níveis no reino e demais regiões ultramarinas portuguesas aí incluindo-se a colônia brasílica
, as quais sentiriam as mudanças organizacionais junto ao aparelho administrativo do Estado
Luso. As Ordenações Manuelinas, códice de leis que regiam a vida sócio-política do reino,
promulgadas em 1521, dariam lugar a um novo conjunto de ordenações, Filipinas, cuja
compilação iniciou-se entre os anos de 1583 e de 1585, durante o reinado de Don Filipe II de
Espanha1, somente vigorando, porém, a partir de 1603, em pleno reinado de Don Filipe III de
Espanha. As Ordenações Filipinas perdurariam em vigor em Portugal, no Brasil e nas demais
colônias lusitanas até a Restauração da Coroa Portuguesa, em 1640, tendo à frente o Duque de
Bragança, que assumiria o trono como D. João IV, de justa alcunha O Restaurador, iniciando-se a
Dinastia dos Bragança.
1 Don Filipe II, rei de Espanha, foi coroado em Portugal, durante a União Ibérica, com o nome de Don
Filipe I, assim como seu filho, Don Filipe III de Espanha, seria coroado Don Filipe II em Portugal.
3
Por ora, nosso destaque cabe ao Livro V das Ordenações, do qual serão extraídos
subsídios para entender a posição e a política de atuação dos governos dos Filipes em relação à
concepção então vigente de herege.
Igualmente, o destaque irá para o Livro V dessas ordenações, onde também encontramos
títulos específicos referentes à questão da visão e tratamento dado aos hereges, objetivo central
deste artigo para os hereges, objeto central deste artigo.
Em linhas gerais, busca-se com este debate, tentar comparar ou perceber as diferenças e
semelhanças, ou ainda, as aproximações e distanciamentos, entre as duas ordenações
supracitadas, principalmente levando-se em consideração as realidades específicas de cada época.
Foram tempos de grandes perseguições contra os descendentes da casa de Israel, comumente
denominados gente da nação hebréia, transformados, à força, em 1497 pois impedidos de
manter a antiga fé e de deixar o reino, batizados em pé e contra a vontade em cristãos:
cristãos-novos, porém, diferenciados desta forma dos outros cristãos, velhos, considerados livres
da mácula judaica que continuava a correr nas veias neoconversas independente da sinceridade ou
não de sua conversão. Cristãos-novos, herdeiros de primeira hora de todo o tipo de preconceitos
e intolerância outrora dedicados aos judeus durante os tempos de livre crença na Ibéria lusa.
Cristãos-novos, acusados de manutenção das tradições e crenças judaicas na clandestinidade,
ocultamente, de forma dissimulada, denominados por isso criptojudeus, ameaçadores da pureza
da fé católica. O surgimento da Inquisição portuguesa, em 1536, encontrava aí a justificativa
primeira para seu surgimento e o combustível principal para suas perseguições. Tornava-se assim
o cristão-novo, desde o nascedouro, causa e conseqüência para a instauração e atuação do
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal.
A concepção de heresia:
A Igreja Católica Apostólica Romana, desde sua institucionalização como religião de
Estado, no século IV, sempre sofreu questionamento de seus dogmas e métodos, ameaçando
sobremaneira a legitimidade e a extensão do seu poder, o que se tornou mais agudo no final do
século XI, vindo a assumir dimensões maiores no final do século XIII. A cristandade vivia
5
princípios de um período de transição com muitas transformações em todos os níveis, posto que,
pouco a pouco e imperceptível, desmoronavam-se as estruturas feudais, consolidando-se, desta
forma, os Estados Nacionais — posteriormente Absolutistas — e a política mercantilista,
responsável pela solidificação do poder econômico desses Estados. Concomitante a esse
complexo processo, a Igreja tinha seu poder e influência reduzidos em razão dos cismas
religiosos. Presenciava-se, deste modo, o início do fim da sua unicidade hegemônica. Foi deste
cenário que emergiam premissas teológicas dissidentes e contestatórias do catolicismo que eram
taxadas de heresias, conquanto a existência de heresias possa se dizer ser tão antigas como a
própria existência da Igreja.
O conceito de heresia seria acolhido pela Igreja Católica com o intuito de justificar e
legitimar a forte repressão contra a proliferação daqueles diferentes da fé cristã católica no mundo
conhecido, alcançando, entretanto, pouco êxito em terras européias — haja vista o progressivo
sucesso das expansões doutrinárias das Igrejas Cristãs Reformadas. Por outro lado, nas regiões
coloniais atlânticas e asiáticas, o controle dos papistas seria considerável e, alguns casos, teriam
efeitos devastadores para as populações locais, apesar da fluidez do poderio das instituições
católicas nessas regiões. Havia uma clara intenção da Igreja Católica em usar a heresia como um
instrumento aglutinador para o retorno da unicidade cristã católica medieval, já bastante
debilitada na Era Moderna, por causa da consolidação das inúmeras ramificações das doutrinas
reformadas, além do constante perigo da expansão territorial pelos infiéis.
2 A Inquisição portuguesa teve, ao todo, seis regimentos: regimento de 1552; regimento de 1570; regimento
de 1613, época de domínio filipino; regimento de 1640; regimento de 1774, e o projeto de regimento redigido
durante o governo da Rainha D. Maria I.
7
Embora editadas sob a égide da coroa castelhana, sua normatização seguia a tradição legal
portuguesa, sendo de se notar que as Ordenações Filipinas apresentavam menos concessões ao
poder eclesiástico do que o fazia o chamado “Código Sebastiânico”, o conjunto de leis, ditas
extravagantes, compiladas por Duarte Nunes de Leão e promulgadas em 1569, no reinado de D.
Sebastião. Essa ressalva é notável de certo modo visto o alinhamento tácito de Filipe II à contra-
reforma, que o levou a ser chamado pela historiadora Adriana López de “o intransigente católico
calvinista do Escorial”, em epíteto brilhante para defini-lo face às suas posições de não aceitação de
qualquer transigência contra a fé católica romana (Lopez, 1999).
Emergia das Ordenações Filipinas a figura do Rei forte, como que a querer desmentir o
vaticínio camoniano de que “um fraco rei faz fraca a forte gente” (Camões, 2002: canto III, verso 138).
A aplicação desse conceito teve importância capital durante o reinado de Filipe II, com
desdobramentos na vida civil, religiosa e administrativa do Estado. Uma figura exponencial nesse
processo foi o confessor real, o frade franciscano Bernardo de Fresneda, definido por Henar
Pizarro Llorente como “uma das figuras chave no processo de confessionalização da monarquia hispânica, pela
atividade que desenvolveu em consonância com seu ideário de radicalismo religioso” (Millán, 1994). O frade
Fresnada iniciou sua carreira eclesiástica simpático ao reformismo jesuítico, mudando, entretanto,
de campo político após sua estada nos Países-Baixos, entre os anos de 1555 e de 1559, quando,
então, tornar-se-ia patrocinador das ações do Santo Ofício.
O Inquisidor Geral emergiu como um primus inter pares em gabinete integrado por ele
próprio, Fr. Bernardo de Fresneda, Francisco de Menchaca, Doutor Velasco e pelo Secretário
Real Pedro del Hoyo. Seu papel na “confessionalização” da monarquia espanhola foi
fundamental, alcançando ampla repercussão em toda a administração. Centralizou processos e
decisões na figura do Rei e subordinou as disposições legais e administrativas à ortodoxia da fé
católica.
“Qualquer cristão que houver ajuntamento carnal com alguma moura ou,
com qualquer outra infiel, ou cristã com mouro, ou judeu, ou com
qualquer outro infiel, moura por ele; e isto quando tal ajuntamento fosse
feito por vontade, e a sabendas [sic], porque se alguma mulher de
semelhante condição fosse forçada, não deve ela morrer, nem por ela
haver pena; somente haverá a dita pena aquele que cometesse a tal força.
E isso mesmo que tal pecado fizesse por ignorância, não sabendo, nem
havendo justa razão de saber, como a outra pessoa era d’outra lei, não
merece ela pena, e somente será punida aquela pessoa, que da dita
infidelidade fosse sabedor, ou houvesse justa razão de o saber; cá em
alguma culpa fosse por o saber, ou ter justa razão de o saber, será punido
segundo a culpa em que for achada”.
Já o Título XXXIII, Dos feiticeiros, e das vigílias que se fazem nas Igrejas, dá-nos noção da
intensidade da cultura popular então vigente em Portugal, ao procurar coibir práticas
consideradas de feitiço. Percebe-se a força do imaginário religioso então existente, representado
pelo temor de práticas que, em última instância, significavam menos a prática ritual do que a
sobrevivência memorial de antigos costumes e “abusões” do Medievo e da Antigüidade europeus.
10
“não seja alguma pessoa tão ousada que, para adivinhar, lance fortes,
nem varas, para achar haver, nem veja em água, ou em cristal, ou em
espelho, ou em espada, ou em outra qualquer cousa luzente, nem em
espádua de carneiro, nem façam para adivinhar figuras, ou imagens
algumas de metal, nem de qualquer outra cousa, nem se trabalhe de
adivinhar em cabeça de homem morto, ou de qualquer animália, nem
traga consigo dente, nem baraço de enforcado, nem qualquer outro
membro de homem morto, nem faça com as ditas cousas ou cada uma
delas nem com outra alguma espécie alguma de feitiçaria”.
Práticas jejunais e de guarda de dias que não os sagrados ao catolicismo eram veementemente
condenadas:
“pessoa alguma não faça vodus, nem vigílias de dormir e comer e beber
em igrejas, nem se ajuntem a comer e beber por razão das missas que
mandam dizer, que chamam missas dos sábados, nem guardem por
devoção o sábado, ou quarta-feira, não sendo cada um dos ditos dias
mandado guardar por ordenança da Igreja ou por constituição do
Prelado”.
As penas aos culpados variavam conforme a gravidade da culpa, mas eram sempre
rigorosas:
Contudo, as punições variavam ainda de acordo com a posição social dos acusados:
“se for peão, ou daí para baixo, seja publicamente açoitado com baraço e
pregão pela vila, e mais pague dois mil réis para quem o acusar. E se for
Vassalo ou Escudeiro, ou daí para cima, ou mulher de cada um destes,
11
seja degradado para cada um dos Nossos Lugares d’Além em África por
dois anos, e mais pague quatro mil réis para quem o acusar”.
“Todo aquele que por qualquer maneira disser que arrenega, ou não crê,
ou descrê de Nosso Senhor, ou de Nossa Senhora, ou da sua fé, se for
vassalo, ou d’outra tal qualidade, que não seja peão filho de peão, ou se
for escudeiro, ou cavaleiro, que fidalgo não for, seja degredado um
ano...”
O códice manuelino cuidava ainda dos excomungados. De acordo com o Título XLVI,
Dos excomungados, e da pena que hão de pagar, o não-respeito à sua situação de excomunhão “tanto
que for denunciado por excomungado ao povo por seu Prelado ou por aquele que houver
poderio de o excomungar, se se absolver e sair da dita excomunhão” gerava pena de prisão “por
qualquer Justiça de Nossos Reinos”, além de pagamento de pena em dinheiro. Caso apelassem à
Roma, ordena o Título XLVII, Dos excomungados apelados, que “se não proceda contra ele por
Nossas Justiças, nem seja preso, nem evitado, nem lhe levem penas de excomungado”.
Determinava, também, o confisco dos bens, permitindo aos seus herdeiros apenas o
usufruto. Em caso de aforamento sobre o qual incidisse prazo imposto pela Igreja, o fisco do
Reino sucederia ao herege condenado caso este não tivesse herdeiros naturais, antes que se
apresentasse “herdeiro estranho por lei, costume ou contrato”. Na hipótese de os bens,
12
transcorrido esse prazo, deverem retornar aos herdeiros ou ser passados à posse da Igreja, o fisco
estipularia o valor das benfeitorias e melhoramentos.
“Porém, se algum cristão leigo, quer antes fosse judeu ou mouro, quer
nascesse cristão, se tornar judeu ou mouro, ou a outra seita e assim lhe
for provado, nós tomaremos conhecimento dele e lhe daremos a pena
segundo direito.
Porque a Igreja não tem aqui que conhecer se erra na fé ou não.
E se tal caso for que ele se torne à fé, aí fica aos juízes eclesiásticos
darem-lhe as penitências espirituais”.
O Título 94, que trata “dos mouros e judeus que andam sem sinal”, preceitua in verbis:
“Os mouros e judeus que em nossos reinos andarem com nossa licença,
assim livres como cativos, trarão sinal por que sejam conhecidos,
convém a saber, os judeus carapuça ou chapéu amarelo, e os mouros
uma lua de pano vermelho cosida no ombro direito, na capa e no pelote.
E o que não o trouxer ou o trouxer coberto, seja preso e pague pela
primeira vez mil réis da cadeia. E pela segunda vez dois mil réis para o
meirinho que o prender. E pela terceira, seja confiscado, ora seja cativo,
ora liberto”.
podiam levar às “terras de mouros”, que incluíam de um modo especial aqueles que pudessem ser
usados em caso de guerra contra reinos cristãos.
Essas eram as disposições que o Livro V das Ordenações Filipinas traziam a respeito dos
hereges, aí compreendidos todos os não-católicos, sendo que o Título 3 era específico contra
adivinhos, feiticeiros e sortílegos e o Título 4 era dirigido especialmente contra aqueles que
benziam animais e lugares sem a permissão eclesiástica, prática bastante comum no Nordeste
colonial, conforme se pode perceber na longa duração, com a manutenção destes costumes e
práticas benzedeiras contemporaneamente, difundidos por todo o Brasil.
Registre-se que as Ordenações Filipinas reconheciam uma situação de facto que não deveria
existir de jure, que era a presença “de mouros e judeus que em nossos reinos andarem com nossa licença”
(Lara, 1999: título 94), o que não deveria ocorrer na Espanha desde 1492 e, em Portugal desde
1497, quando mouros e judeus foram expulsos pelos Éditos de Granada (Espanha, 1492) e da
Vila do Muge (Portugal, 1496), respectivamente. Note-se que o texto não faz referência apenas a
cristãos-novos e a cristãos-mouriscos, mas a judeus e mouros, vale dizer pessoas que se sabia ser
praticantes do judaísmo e do islamismo sem qualquer verniz ou subterfúgio cristão. Esses eram
objeto de especial vigilância das autoridades, principalmente no tocante a seu contato com
mouros ou a possibilidade de que fossem “a terras de mouros”. No caso, trata-se de mouros ou
judeus de passagem pelo reino (a negócios, principalmente), e que precisavam, após
identificarem-se como tais, de autorização legal para o desembarque e entrada no reino, ficando
obrigados a realizar suas andanças sempre acompanhados de um cristão designado pelas
autoridades e proibidos de freqüentar lugares ou comunicar com pessoas além do estritamente
necessário, para evitar que difundissem outra fé no reino que não a cristã. Lembremos ainda que
14
judeus e mouros que chegassem a Portugal não estavam sob a ameaça do braço inquisitorial,
posto que o Santo Ofício somente agia sobre cristãos.
Essa observância quanto ao contato com estrangeiros inseria-se num contexto mais
amplo de preocupação com a defesa e segurança do Reino, o que se evidenciava na proibição
imposta a reinóis e residentes de levar a essas “terras de mouros” quaisquer materiais que
implicassem possibilidade de uso para guerra ou comércio, como cânhamo, pólvora, madeira para
construção naval etc. e também ouro, prata ou metais preciosos do Reino, os quais não se
podiam usar nem mesmo para resgatar mouros (Lara, 1999: título 110).
Bibliografia
AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário Histórico de Religiões, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2002.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Nova Cultural, 2002.
ELLIOTT, J. H. Imperial Spain 1469-1716. New York: Penguin Books, 2002.
KAMEN, Henry. Filipe da Espanha. São Paulo: Record, 2003.
____________ . Empire How Spain became a world power 1492-1763. New York: Harper Collins,
2003.
LARA, Silvia Hunold (org.). Ordenações Filipinas. Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
LOPEZ, A.. Guerra, açúcar e religião no Brasil dos holandeses. S. Paulo: Ed. SENAC, 1999.
MARTINEZ MILLAN, J. (org.). La Corte de Felipe II. Madri: Alianza, 1994.
Ordenações Manuelinas. Collecção da Legislação antiga e moderna do Reino de Portugal. Reprodução fac-
simile da edição de 1797. 5 vols. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.
PARKER, Geoffrey. Empire, War and Faith in Early Modern Europe. New York: Penguin Books,
2002.
SIQUEIRA, Sonia Aparecida. "Os Regimentos da Inquisição". In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1996, ano 157, número 392, p. 879.
15
STELLA, Roseli Santaella. O domínio espanhol no Brasil durante a monarquia dos Felipes (1580-1640).
São Paulo: Unibero, 2000.
VACA DE OSMA, José Antonio. Los Reyes Católicos. Madrid: Espasa, 2001.
SESMARIAS E O MITO DA PRIMEIRA OCUPAÇÃO*/**
SESMARIAS AND THE MYTH OF THE FIRST OCCUPATION
Resumo
Em muitos dos conflitos agrários ocorridos nos oitocentos (e ainda hoje) a
carta de sesmaria foi e tem sido utilizada para construir um ponto zero da
ocupação territorial na área em disputa. O presente artigo analisa a
historicidade dos conflitos agrários no país e procura refletir sobre os
significados da concessão de sesmaria e a legislação subseqüente que buscou
definir os procedimentos para sua regularização. Para tanto, a autora analisa
os litígios de terra ocorridos na Fazenda São Bento, Maricá, Rio de Janeiro.
Ao longo do século XIX, os beneditinos buscaram imprimir sua versão dos
fatos com base em uma carta de sesmaria em contraponto a um grande
fazendeiro que também buscou reconstruir sua história de ocupação,
apoiando-se no mesmo tipo de documento. A utilização da carta revela a
dimensão simbólica do poder dos terratenentes, a despeito das múltiplas
interpretações sobre a história da ocupação do lugar. A vitória de uma das
partes eleva a carta como expressão da “verdade” da ocupação, seu mito
fundante.
Para a autora, os problemas decorrentes da limitação de terras nos dias de
hoje impõem a presença dos historiadores, capazes de desnudar as fontes,
deslegitimando uma única versão, relativizando a utilização de um
documento antigo como “fonte da verdade” ao trazer a nu a história dos
conflitos agrários no país.
Abstract
In many of the agrarian conflicts happened in the eighteenth century (and
still today) the sesmaria letter was and it has been used to build a start point
of the territorial occupation in the area in dispute. The present article
analyzes the historicity of the agrarian conflicts in the Brasil and it tries to
contemplate about the meanings of the sesmaria concession and the
45, em 2003, com o título: Sesmarias no Brasil: história e conflito nos oitocentos. Naquele artigo, expliquei ao leitor
português o que eram as sesmarias, pois as concessões de terra pelo sistema de sesmarias foram aplicadas ao Brasil ao
longo da colonização, mas esteve ausente em Portugal na época moderna.
***Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Núcleo de Referência Agrária da Universidade Federal Fluminense.
2
Palavras-chave
Sesmarias - Ocupação – Conflito de Terra – Direito Agrário – Transmissão
de Patrimônio
Keywords
Sesmarias – Transference of Property – Occupation – Agrarian Conflicts –
Agrarian Rights
Ao longo dos últimos anos, tenho procurado analisar litígios de terra e transmissão de
patrimônio em várias regiões do Rio de Janeiro no século XIX. O levantamento e análise de
numerosa documentação revelaram-me um aspecto instigante que deu origem ao presente artigo. Em
muitos dos conflitos fundiários ocorridos nos oitocentos (e ainda hoje), a carta de sesmaria foi e tem
sido utilizada para construir um ponto zero na história da ocupação territorial na área da disputa. Ao
lançar mão de um documento tão antigo, uma das partes (ou as duas) chama à história como
testemunha e consagra - ao menos aos olhos da lei – a legalidade de sua ocupação. O que parece
simples encobre o embate de preceitos jurídicos e disputas sobre o direito à terra que podem ser
enfocados a partir de ao menos três pontos.
3
Em primeiro lugar, sabe-se que a maioria das concessões de sesmarias não foi acompanhada
dos procedimentos para sua regularização. Neste sentido, ao longo dos oitocentos era fato que as
sesmarias estavam majoritariamente em comisso, pois os sesmeiros não haviam cumprido a
determinação legal de medir e demarcar sua terra. Logo, em processos de embargo e despejo (abertos
para expulsar um pretenso invasor) o litigante-sesmeiro usava o documento como marco zero de sua
ocupação, ciente de que ele não cumprira a determinação régia. Em vários processos de medição de
terras, abertos para definir os limites territoriais de uma determinada área, os documentos de
sesmaria eram recorrentemente apresentados como se eles expressassem – sem discussão – a verdade
absoluta da área ocupada.
Em segundo lugar, o aceite da carta como ponto zero e a definição final a favor do sesmeiro,
revelam-nos que não era importante o cumprimento dos procedimentos legais para regularizar a
ocupação, posto que a carta por si só traduzia simbolicamente a expressão do poder do sesmeiro.
Entende-se assim como e porque os fazendeiros continuaram a utilizar o documento de sesmarias
após o fim de sua concessão em 1822, e mesmo após a Lei de Terras de 1850 e seu regulamento, em
1854. Em muitos casos, os fazendeiros utilizaram-se das cartas de sesmarias, ignorando inclusive a
obrigatoriedade do Registro Paroquial de 1854/56, este último documento criado pelo citado
regulamento. A utilização reiterada da carta como prova documental da “verdadeira” história -
expressão de uma ocupação imemorial – é por si só emblemática.
Por último, quando ambos os litigantes constroem o marco zero de sua cadeia sucessória
tendo como base cartas de sesmarias, o jogo de poder entre ambos é também o embate entre
interpretações diversas sobre a ocupação originária de seus ascendentes. Nos dois lados dos
conflitos, é necessária a reconstrução (no tempo) da ocupação territorial empreendida por aqueles
identificados como os primeiros ocupantes, sesmeiros originais da terra em litígio. Nestes casos, é
possível identificar a maneira pela qual são produzidas “verdades” para fundamentar histórias de
ocupação de um lugar, palco territorial de atores sociais diversos. O jogo se instaura pela presença de
não apenas uma carta, mas sim pelo emprego de duas cartas, expressando “verdades” opostas e
revelando disputas para além dos limites territoriais dos litigantes.
Detenhamo-nos no terceiro aspecto acima mencionado. Para que se fundamente a defesa dos
litigantes, é necessária a reconstrução – por cada um – de uma cadeia sucessória que fundamente a
transmissão de patrimônio. Para tanto, é preciso reconstruir todo o processo de ocupação territorial
até o momento do litígio. O recuo no tempo, uma vez que as cartas de sesmarias são entendidas
4
como o ponto zero da ocupação, é entrelaçado com a minuciosa descrição espacial da área ocupada,
exatamente para provar que o outro é o verdadeiro invasor. E por último, a utilização da carta de
sesmaria como ponto inaugural da ocupação territorial reatualiza – em cada litígio – a legitimidade
dessa concessão régia.
Assim, a construção de uma data inaugural fundamentada na carta de sesmaria encobre todo
um emaranhado de disputas relativas à definição espacial da área concedida. No levantamento e
cruzamento de fontes que realizei, analisei os documentos de sesmarias presentes no Inventário dos
documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo da Marinha e Ultramar, entre 1756 e 1757 e
organizados por Eduardo de Castro Almeida (Almeida, s/d). Esta documentação – pequeno
fragmento de um universo documental de consideráveis proporções - ajudou-me a entender todo o
procedimento adotado para a concessão das sesmarias e os embates que vem à luz na definição da
área concedida. Apesar das fontes recolhidas por Eduardo Castro de Almeida se referirem ao
período anterior, elas nos mostram que o processo de concessão de sesmarias está baseado em
procedimentos jurídicos construídos desde o surgimento do instituto de sesmarias em fins do século
XIV.
deve explorá-lo - diretamente, ou por prepostos - arrendá-lo, se não o puder cultivar, e, em caso
contrário, tê-lo confiscado, para distribuição com quem o queira aproveitar”. A própria definição de
sesmaria revelava a intenção do cultivo: “são propriamente as datas de terras, casais ou pardieiros que
foram ou são de alguns senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o
não são”. (Porto, s/d: 30).
A história da implantação do instituto jurídico das sesmarias na colônia portuguesa foi objeto
de estudos de importantes advogados, como Ruy Cirne Lima e Costa Porto (Idem e Lima: 1988). No
esforço de compreender as características peculiares do sistema no Brasil, os pesquisadores
ressaltaram que, aqui, a Coroa Portuguesa precisou estabelecer um sistema jurídico capaz de
assegurar a própria colonização. O sistema de sesmarias em terras brasileiras teria se estabelecido não
para resolver a questão do acesso a terra e de seu cultivo, mas para regularizar a própria colonização.
Para tanto, o pedido de sesmaria era feito ao representante do poder central - capitão mor, capitão
geral ou governador da província- identificando o nome do solicitante, o local e área desejada:
1795 preocupava-se com a necessidade de não doar terras nas áreas já ocupadas por colonos,
desejando com isso que se evitasse conflitos de terras. Segundo o mesmo, as irregularidades e
desordens na doação de sesmarias no Brasil provocaram a necessidade de elaborar um regimento
próprio, capaz de obrigar a regularização e demarcação das sesmarias. O Alvará não deixava de
salientar os abusos e desordens resultantes da ausência de um regimento a ser aplicado em “todo o
Estado do Brasil”. Em 1809, mais um Alvará é promulgado pelo príncipe regente para retornar a
condução da política de terras (Motta, 1998)
Em Nas Fronteiras do Poder argumentei que havia de fato ao menos três problemas a serem
enfrentados pela Coroa:
As disputas entre a Coroa e os sesmeiros se expressavam no fato de que ela não podia
ignorar que esses últimos se apossavam de terras limítrofes as suas sesmarias e de que a posse
tornava-se prática recorrente, mas tarde reconhecida pela Lei da Boa Razão de 1769.
Segundo Cirne Lima, o costume da posse preenchia alguns requisitos da Lei da Boa Razão,
como a racionalidade - o cultivo - e a antigüidade. Além disso, o costume da posse encontrava
precedentes na própria legislação portuguesa - o chamado direito de fogo morto - e na tradição
romana. Todavia, ele feria o espírito das leis de Portugal, pois estas dispunham que as terras
deveriam ser adquiridas unicamente por concessões de sesmarias. Para Cirne Lima, no entanto, “a
7
aquisição de terras devolutas pela posse com cultura efetiva se tornou verdadeiro costume jurídico”.
(Lima, 1988: 76) Com isso o costume da posse passou a ter aceitação jurídica, consolidando a
tendência de reconhecer, no texto da lei, a existência daquele que ocupava a terra, já que os vários
decretos, resoluções e alvarás sobre as sesmarias não deixavam, de uma forma ou de outra, de
salvaguardar o interesse daquele que efetivamente cultivava a terra.
Em 1821, a Coroa atendeu aos pedidos feitos por vários posseiros de Pernambuco que
solicitavam serem conservados em suas terras, pois haviam sido de lá expulsos em razão das
sesmarias ali concedidas posteriormente. Para tanto, a Decisão referia-se a Ordens anteriormente
promulgadas pela Coroa Portuguesa acerca do mesmo problema. Um ano depois, uma nova
solicitação, desta vez de posseiros da Vila São João do Príncipe, levou a uma nova Decisão, de 14 de
março de 1822, reafirmando o direito dos posseiros mais antigos sobre as terras que fossem dadas
posteriormente por sesmaria. Finalmente, em 17 de julho de 1822, durante a regência de D. Pedro e
em meio a uma conjuntura extremamente complexa, suspendeu-se à concessão de sesmarias.
O problema ainda se complica quando nos deparamos com litígios onde há de fato duas
cadeias sucessórias “inauguradas” com cartas de sesmaria. Os desdobramentos disso são por si só
reveladores da dificuldade de se definir quem é de fato o verdadeiro dono daquelas terras, o que em
outras palavras significa dar um grau de veracidade a um documento em detrimento de outrem.
1 Um caso emblemático é o que envolveu o fazendeiro Francisco Antonio da Costa Barradas. Em 1839, ele
abriu um processo de medição de terras. e litigou com vários pequenos posseiros e lavradores discordantes dos limites
territoriais alegados pelo fazendeiro Em 1844, a Corte de Apelação confirmou os limites territoriais pelos quais ele lutou,
com base em sua interpretação da carta de sesmaria. Para tanto, vide: Motta, Márcia. Op. cit, cap.III.
9
Os beneditinos têm uma outra história de ocupação a defender. Para se contrapor a José
Gomes da Cunha Vieira, eles alegam que a concessão que o Mosteiro obteve em 1635 compreende
as terras alegadas por Viera e de que esta sesmaria foi concedida mais de meio século antes da que foi
concedida a Drumond3.
Para os beneditinos, suas terras em Maricá são originárias de duas sesmarias, a primeira
conhecida pelo nome de Sesmaria de Frei Romano, “cujas terras se estendem até entrevar-se na
extrema do município confinante de Niterói no corredor da costa do mar” Ainda segundo o
mosteiro, o Monge Beneditino foi o primeiro concessionário, sendo então Prelado aos 29 de
setembro de 1635 pelo governador e capitão da capitania Dom Rodrigo Miranda Henriques” 4
2- Motta, Márcia - Heranças e Disputas (um estudo sobre a transmissão de patrimônio em situação de conflito de terra Maricá,
1859/1917). Bolsa de produtividade em pesquisa. CNPq, 2001-2003. Neste trabalho tenho levantado todos os processos
relativos à Fazenda São Bento e seu principal litigante: José Gomes da Cunha Vieira.
- Os documentos utilizados para a reconstrução da cadeia sucessória de ambos os litigantes são: Arquivo
3
Nacional. Relação do Rio de Janeiro.Auto de Libelo, 1822. Autor: José Gomes da Cunha Vieira; Réu: Mosteiro de São
Bento. Arquivo Nacional. Supremo Tribunal de Justiça. Translado dos autos de execução que promove o Dom Abade do
Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da Cunha Vieira e dona Ana Joaquina Cândida CÓDIGO DO
FUNDO: BU. SEÇÃO DA GUARDA: SDJ.CX 277, N 45, ANO 1866. Arquivo Nacional. Translado dos autos de
execução que promove o Dom Abade do Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da Cunha Vieira e dona
Ana Joaquina Cândida, 1866.
4Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Registro Paroquial de Terras. Município de Maricá. Fazenda de
escritura pública de 06 de agosto de 1675 e foi confirmada esta aquisição, entre outros pelo alvará de
16 de setembro de 1817”5
As disputas que envolveram José Gomes da Cunha Viera e os beneditinos tornaram-se mais
interessantes na medida em que o primeiro procurou ao longo dos oitocentos transmitir o seu
patrimônio para sua filha Feliciana Custódia de Castro. Segundo informações que recolhi em vários
processos envolvendo o pai de Feliciana, podemos reconstruir a ocupação territorial da fazenda
denominada Posse, que, segundo José, era originária de uma sesmaria, mas que para os beneditinos
era parte de seu patrimônio, ilegalmente ocupada por José Gomes e sua família. De qualquer forma,
de acordo com as informações fornecidas pelo advogado de José, a fazenda se formou entre o final
do século XVIII a 1814. Pelos dados recolhidos nos processos do Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro, podemos assegurar que em 1822, há uma disputa sobre aquela área envolvendo Jose Gomes
da Cunha Vieira e os beneditinos. Essa luta é reinaugurada em 45, quando o marido de Feliciana é
falecido e, em 1851, quando o Mosteiro promove um Auto de Despejo contra José Gomes. Em
1866, o embate dá origem a um novo processo, quando o Mosteiro tenta mais uma vez expulsar José
Gomes daquelas terras.
Esse arrolamento de datas não nos autoriza pensar apenas na formação da estrutura fundiária
da fazenda, mas sim em toda a complexidade da ocupação territorial do país, enquanto um processo
marcado por conflitos bastante antigos, reatualizados em cada momento em que é necessária a
definição mais precisa do limite territorial ocupado. Em todos estes embates, a carta de sesmaria dos
beneditinos é apresentada para confirmar a legalidade de sua ocupação. Como ponto inaugural da
ocupação, ela tem a força de um mito, a “verdade” da ocupação expressa em um documento já
bastante antigo. O que se modifica é o entendimento acerca da extensão territorial, ora reconhecendo
um determinado limite, ora imprimindo uma nova versão espacial.
Importante também são os embates reatualizados pelos esforços de José Gomes da Cunha
Vieira em transmitir o seu patrimônio numa área de conflito. Em 1822, o pai de Feliciana luta num
processo contra o Mosteiro, em 29 José Gomes realiza uma partilha amigável para legar a sua filha e
ao seu genro, a Fazenda da Posse. Em 1845, quando do falecimento de seu marido, Feliciana herda a
fazenda da Posse e mais uma vez precisa provar ser dona daquelas terras. Em 1851, quando o seu pai
perde na Corte de Apelação e será realizado seu despejo, Feliciana precisa mais uma vez provar que
parte das terras havia se tornado suas, por lhe ter sido legada em vida, pela partilha amigável que seu
5 Idem.
11
pai fizera a mais de vinte anos. Em todos os momentos, José Gomes fundamenta sua história tendo
por base o marco inaugural de ocupação daquelas terras: a carta de sesmaria concedida ao
Drummond. Assim, ao menos em tese, tanto ele quanto os beneditinos possuem um mesmo corpus
documental que legitima a sua ocupação.
De qualquer forma, são os beneditinos os vitoriosos na longa luta que travaram contra José
Gomes da Cunha Vieira, rico fazendeiro da região de Maricá, juiz de paz e vereador e em algumas
legislaturas e conhecido com um dos maiores proprietários da região ao longo dos oitocentos. José
Gomes perde a demanda, ainda que consiga transmitir – ao menos por um período – parte do seu
patrimônio para sua filha Feliciana. Mas para o que aqui importa foi a carta de sesmaria dos
beneditinos que conseguiu impor-se como a “verdade”, em detrimento de todos os esforços de José
Gomes de mostrar que ele também era herdeiro de uma concessão régia. E como “verdade”, a carta
chegou aos nossos dias e é sempre lembrada quando se reconstrói a história da ocupação do
município de Maricá.
As disputas entre os beneditinos não são apenas importantes para entendermos os embates
pela posse da terra nos oitocentos. Elas também são importantes por nos revelar a construção do
mito da carta de sesmaria, como fundamento da primazia da primeira ocupação.
Em segundo, para que tal pressuposto tenha alguma consistência é preciso entender a
estrutura fundiária brasileira, não como o resultado de um processo linear e a-histórico de ocupação
territorial. E ainda, apreender e refletir sobre os significados das leis que procuraram limitar o poder
dos terratenentes e assegurar o direito à posse, no esforço de uma definição sobre o direito a terra.
12
Ao mesmo tempo, em que se faz necessário se ter em conta que todo o emaranhado de leis, decretos
e alvarás vinham à luz num país que não havia promulgado o seu Código, a despeito dos esforços de
sua consecução pelo principal jurisconsulto do século XIX: Teixeira de Freitas.
6 - O termo “produção de verdades” é utilizado pelo Antropólogo Kant de Lima em seus estudos sobre o
Direito Criminal no país. Tomo de empresto o termo, pois penso que ele nos ajuda a refletir acerca da multiplicidade de
interpretações sobre um conflito.
13
dizer o direito (...) de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpos de textos
que consagram a visão legítima, justa, do mundo social” (Bourdieu, 1989) Neste sentido, é bastante
significativo que em terras brasileiras, a carta de sesmaria tenha se tornado a inscrição de uma
“verdade”, trazendo para os nossos dias a mesma expressão de poder que simbolizava à época que
foi instituído e consolidado o sistema jurídico das sesmarias.
À Guisa de conclusão
As discussões sobre o direito a terra no Brasil estão cada vez mais presentes nos embates
entre concepções diversas acerca da propriedade em suas múltiplas dimensões. Juristas e advogados
têm se debruçado em refletir sobre a legislação brasileira, com vista a preencher uma das principais
lacunas do país: a democratização do acesso a terra. Como afirma, Sérculo da Cunha: “É sabido
como a desigualdade real das partes reflete-se na decisão final do processo. Mas em nenhum tipo de
processo essa influência é tão flagrante quanto nas ações possessórias” (Cunha, 1993: 128).
Os importantes trabalhos oriundos da sociologia rural têm contribuído para análise dos
problemas relativos à questão agrária no Brasil. As obras de José de Souza Martins e Leonilde
Sérvolo de Medeiros, por exemplo, têm revelado aspectos fundamentais para a análise da
concentração fundiária no Brasil e seus complexos desdobramentos7. No entanto, ainda são raros os
7 - Entre as obras de Martins, podemos citar: Martins, José de Souza.- O Cativeiro da Terra. São Paulo, Ciências
Humanas, 1986; A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1984; Os camponeses e a política no Brasil.
Petrópolis, Vozes, 1983; Caminhada no chão da noite. São Paulo, Hucitec, 1989. Dos trabalhos de Leonilde Medeiros,
podemos citar: Medeiros, Leonilde Sérvolo. História dos Movimentos Sociais no campo. Rio de Janeiro, FASE, 1989. Medeiros
e outros. Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo, Editora da UNESP, 1994.
14
estudos que enfocam os conflitos de terra nos oitocentos e procuram refletir acerca de concepções
de justiça e leis em períodos anteriores ao século XX8.
Bibliografia
ALMEIDA, Eduardo de Castro. Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo da
Marinha e Ultramar de Lisboa. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, volumes: 39, 46,50 e 71.
ALVARENGA, Octávio. Teoria e Prática do Direito Agrário. Coleção Jurídico-Fiscal. Rio de Janeiro,
AGGs, Esplanada, Consagra, 1979.
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Registro Paroquial de Terras.
Município de Maricá. Fazenda de São Bento. Livro 51, Folhas 42/.43
ARQUIVO NACIONAL . Relação do Rio de Janeiro. Auto de Libelo, 1822. Autor: José Gomes da
Cunha Vieira; Réu: Mosteiro de São Bento. Supremo Tribunal de Justiça. Translado dos autos de
execução que promove o Dom Abade do Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da
Cunha Vieira e dona Ana Joaquina Cândida CÓDIGO DO FUNDO: BU. SEÇÃO DA GUARDA:
8 - Para uma reflexão sobre o tema, vide: Motta, Márcia. “Movimentos rurais nos oitocentos: uma história em
(re)construção” in: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, UFRRJ/ CPDA, número 16, abril de 2001. Um
importante estudo sobre concentração fundiária e crises de subsistência nos séculos XVII/XVIII é a tese de Silva,
Francisco Carlos Teixeira de. A Morfologia da Escassez Crises de subsistência e política econômica no Brasil Colônia. Salvador e Rio de
Janeiro, 1680-1790 Niterói, UFF, Tese de Doutorado em História, 1990.
9- Para tanto, vide Arruti, José Mauricio . “Por uma história à contraluz” as sombras historiográficas, as
paisagens etnográficas e o mocambo” in; Palmares em Revista, Brasília, Fundação Palmares, 1996, pp. 71-96.
10 - O trabalho de discriminação das terras indígenas tem sido feito preferencialmente através dos estudos dos
antropólogos. Um bom exemplo deste estudo é Maldi, Denise (org) . Direitos Indígenas e Antropologia: Laudos Periciais em
Mato Grosso. Cuiabá, Editora Universitária da UFMT, 1994
- Sobre a historicidade do fenômeno da grilagem, vide: Motta, Márcia “A grilagem como loegado”in: Motta,
11
Márcia & Pineiro, Theo Lobarinhas (org.) Voluntariado e Universo Rural. Rio de Janeiro, Vicio de Leitura, 2001,pp.75-99.
15
SDJ.CX 277, N 45, ANO 1866. Translado dos autos de execução que promove o Dom Abade do
Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da Cunha Vieira e dona Ana Joaquina Cândida,
1866.
ARRUTI, José Mauricio . “Por uma história à contraluz: as sombras historiográficas, as paisagens
etnográficas e o mocambo” in: Palmares em Revista, Brasília, Fundação Palmares, 1996.
BIBLIOTECA NACIONAL. Colleção das Leis do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro, Tipographia
Nacional, anos de 1859/1888.
BOUCHARD, Gérard – La reproduction familiale dans la différence: comment définir et mesurer
l’exclusion? Réflexion à partir de donnés du Saguenay (Quebec). Table Ronde: “La transmission de la
terre em Europe et em Amérique (XVIIe-Xxe siècle): effets sociaus d’um processus économique. XIIe Congrès de
l’Association International d’Histoire Économique – Seville, agosto de 1998.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1989.
CAMPANHOLE, A. Constituições no Brasil (8a ed.) São Paulo, Atlas, 1985.
CAMPOS, M de Siqueira. Falhas do direito de propriedade no Brasil. São Paulo, Typ. Brazil, 1935.
CUNHA, Sérgio Sérvolo da “A nova proteção possessória” in: Reforma Agrária. Revista da Associação
Brasileira de Reforma Agrária.São Paulo, número, 3 volume 23, 1993, pp.128!140.
FREITAS, Teixeira de. Código Civil. Esboço. Brasília, Ministério da Justiça/ Fundação Universidade de
Brasília, 1983, 2 vols.
GOY, Joseph et Wallot, Jean-Pierre (direction) – Évolution et Éclatement du Monde Rural. France,
Éditions, de lÉcole des Hautes Études em sciences sociales; Montréal, Presses de l’Université de
Montreal, 1986.
HESPANHA, António Manuel. “Lei e Justiça: História e Prospectiva de um paradigma” in: Justiça e
Litigiosidade. História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 7/58
HESPANHA, António Manuel. “Justiça e Administração entre a Antigo Regime e a Revolução"in:
Justiça e Litigiosidade. História e Prospectiva Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993,pp. 381/468.
HOBSBAWM, Eric . “Engajamento”. In Sobre a História. São Paulo, Companhia das Leitras, 1999,
pp. 138-154.
HOLSTON, James. “Legalizando o Ilegal: propriedade e usurpação no Brasil”. Revista Brasileira de
Ciências Sociais. 21, fevereiro de 1993, p.69.
JUNQUEIRA, Messias. O Instituto Brasileiro das Terras Devolutas. São Paulo, Lael, 1976.
LACERDA, Manoel Linhares. Tratado das Terras do Brasil. Rio de Janeiro, 1960.
LARANJEIRA, Raimundo. Propedêutica do Direito Agrário. 2a edição, São Paulo, Ltr, 1981.
LIMA, Ruy Cirne. Terras Devolutas (história, doutrina , legislação). Porto Alegre, Globo, 1935.
LINHARES, Maria Yedda & Silva, Francisco Carlos Teixeira da. História da Agricultura Brasileira. São
Paulo, Brasiliense, 1981.
16
MALDI, Denise (org) . Direitos Indígenas e Antropologia: Laudos Periciais em Mato Grosso. Cuiabá, Editora
Universitária da UFMT, 1994
MARTINS, José de Souza A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1984.
MARTINS, José de Souza.- O Cativeiro da Terra. São Paulo, Ciências Humanas, 1986.
MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de . História dos Movimentos Sociais no campo. Rio de Janeiro, FASE,
1989.
MENDES, Cândido de Almeida. Auxiliar Jurídico. Apêndice às Ordenações Filipinas Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, s/d, 2 vols.
MELLO, Marco Antonio da Silva Praia de Zacarias. Contribuição à Etnografia e História Ambiental do
Litoral Fluminense – Maricá/RJ. São Paulo, USP, Tese de Doutorado em Antropologia, 1995, 2 vols.
MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa, Editorial Estampa, 1989.
MIRANDA, Pontes de. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro. 2a edição, Rio de Janeiro, Ed.
Forense, 1981.
MISCALI, Monica – “LA trasnmission des biens dans une communauté de la Sardaigne” . Table
Ronde: La transmission de la terre em Europe et em Amérique (XVIIe-Xxe siècle): effets sociaus d’um processus
économique. XIIe Congrès de l’Association International d’Histoire Économique – Seville, agosto de 1998.
MOTTA, Márcia - Nas Fronteiras do Poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro,
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998.
MOTTA, Márcia. “Movimentos rurais nos oitocentos: uma história em (re)construção” in: Estudos
Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, UFRRJ/ CPDA, número 16, abril de 2001
MOTTA, Márcia. Heranças e Disputas (um estudo sobre a transmissão de patrimônio em situação de conflito de
terra Maricá, 1859/1917). Bolsa de produtividade em pesquisa, CNPq, 2001-2003.
MOTTA, Márcia “A grilagem como legado”in: Motta, Márcia & Pineiro, Theo Lobarinhas (org.)
Voluntariado e Universo Rural. Rio de Janeiro, Vicio de Leitura, 2001,pp.75-99.
Ordenações Filipinas Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, s/d, Livros II, III e IV.
PORTO, Costa. O Sistema Sesmarial no Brasil Brasília, Universidade de Brasília, s/d, p. 30.
ROSA, F.ª Miranda (org.). Direito e Conflito Social. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
SALDANHA, Antônio Vasconcelos de - As Capitanias. O Regime Senhoria na Expansão Ultramarina
Portuguesa. Coimbra. Centro de Estudos de História do Atlântico, 1991.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da - Camponeses e Criadores na Formação Social da Miséria (1820-1920).
Niterói, UFF, Dissertação de Mestrado, 1981.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira de. A Morfologia da Escassez Crises de subsistência e política econômica no
Brasil Colônia. Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790 Niterói, UFF, Tese de Doutorado em História, 1990.
SILVA, Genny da Costa. Terra e Trabalho: Política de Regulamentação, 1843-1850. Rio de Janeiro, UFRJ,
Dissertação de Mestrado em História, 1979.
17
SILVA, Ligia – Terras Devolutas e Latifúndio. Efeitos da lei de 1850. Campinas, Editora da UNICAMP,
1996.
SIQUEIRA, Aluízio. Direito e Legislação Agrária. São Paulo, Saraiva, 1980.
SIQUEIRA, Campos. Falhas do Direito de Propriedade no Brasil São Paulo, Secretaria de Agricultura,
Industria e Commercio do Estado de São Paulo, 1935.
STARR, June et alii. History and Power in the Study of Law. USA, Cornell University, 1989.
STEFANINI, Luis. A propriedade no direito agrário. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1978.
TELLES, Corrêa. Digesto Português ou Tratado dos Direitos e Obrigações Civis, accomodado as Leis e Costumes
da Nação Portuguesa para servir de subsidio ao Novo Codigo Civil (1 ed. 1835) 4 ed. Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1853, Tomo I.
TELLES, Corrêa. Doutrina das Ações. Accomodada ao Fôro do Brazil até o ano de 1877 por Augusto Teixeira
de Freitas) Rio de Janeiro, B. L. Garnier, 1880 (1 ed. 1819).
THOMPSON, E. Costumbres en Común. Barcelona, Crítica, 1995.
THOMPSON, Eduard. Senhores e Caçadores. A origem da Lei Negra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987
HERANÇAS LUSITANAS: DIREITO E ESCRAVIDÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA*
INHERITANCES LUSITANAS: LAW AND SLAVERY IN PORTUGUESE AMERICA
Resumo
Neste artigo, apresentamos a tradição jurídica de legislar sobre
escravos na América portuguesa. Parte-se do pressuposto de que
houve diferenças fundamentais entre o tratamento legal dado aos
escravos nas Américas de acordo com a potência colonizadora de cada
parte. A análise relaciona a formação histórica do Estado lusitano à
constituição do Direito sobre escravidão. A trajetória ibérica na
modernidade européia é apontada como o principal elemento
constitutivo da tradição jurisdicionalista que guiou os portugueses na
formatação do edifício jurídico de manutenção dos laços servis em sua
colônia americana.
Abstract
In this paper we present the juridical tradition of legislating on slaves
in Portuguese America. It is assumed the existence of fundamental
differences between the legal treatment given to slaves in the Americas
according to the prevailing colonial power in each region. Our analysis
relates the constitution of the Portuguese Law on slavery to the
historical foundation of the Lusitanian State. The course of Iberia
during the European Modernity is singled out as the main force
behind the growth of the juridical tradition that guided the Portuguese
in their designing of the legal apparatus that regulated servitude in
their American colony.
Palavras-chave
Direito – escravidão – Portugal - colônia americana.
Keywords
Law – slavery – Portugal - american colony
I. Introdução
Seguindo a recomendação de Richard Morse (2000: 21), iniciaremos nosso trajeto com
uma rápida passagem pela História intelectual da Ibéria, em especial a de Portugal. A temática
proposta encontra alguma luz na clássica diferenciação entre a escravidão desenvolvida nos
Estados Unidos da América e aquela praticada em solo nacional. Joaquim Nabuco (1999a:
173), ainda no século XIX, definia a especificidade da escravidão brasileira nos seguintes
termos:
Notou ele, também, o sentido fáustico da liberdade de um ex-escravo que, apesar de seu
passado, poderia até mesmo “comprar escravos, talvez, quem sabe? – algum filho do seu
antigo senhor” (1999a: 173). Nas regiões escravistas dos Estados Unidos, essa hipótese seria
considerada uma aberração, pois a distinção entre homens livres e escravos estava firmemente
ancorada no preconceito racial. Um estudioso da escravidão dos Estados Unidos, Finkelman
(1997: 7), informa que a Alta Corte da Carolina do Sul, em 1832, chegou mesmo a estipular
que, “por lei, todo negro é presumido de ser um escravo”. Nesse sentido, Fredrickson (1988:
24), outro historiador norte-americano, sustenta que preconceito racial não foi apenas um
aspecto incidental da escravidão nos Estados do sul, senão que, verdadeiramente, um elemento
fundamental. Na Carolina do Sul, por exemplo, combinou-se uma concepção racial do negro
como um ser naturalmente vocacionado para a escravidão com uma teoria de sociedade na
qual a presença de um largo número de negros escravos resultaria em algo positivo.
se uma grande “senzala” de onde o cativo não podia escapar, nem mesmo o quilombola.
Paradoxalmente, a “senzala” brasileira não produziu nenhuma teoria explicitamente racista a
respeito da população negra. Nos Estados Unidos, entretanto, com diversas unidades
federadas livres da escravidão enquanto outras nela se sustentavam, os debates sobre o tema
fizeram necessária uma justificativa teórica do cativeiro, tendo-se produzido formulações tão
estranhas como a de um certo George Fitzhugh, obrigado a defender a instituição como a
“relação própria de todo trabalho com o capital” (Genovese, 1979: 104).
se também que, entre 1810 e 1850, uns cem mil escravos foram contrabandeados para o Norte através da
Underground Railroad “ (Carvalho, 1998: p. 70).
2 Conferir ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado: empenhado, sustentado, corrigido, instruído e
libertado. Discurso teológico-jurídico sobre a libertação dos escravos no Brasil de 1758. Petrópolis: Vozes, 1992,
CARVALHO (1998: p. 47): “Assim, o cristianismo em sua versão luso-brasileira, vale dizer, na versão do
catolicismo ibérico, não foi capaz de gerar oposição clara à escravidão como na versão reformada. Ou os autores
não encontravam claras evidências na Bíblia e na teologia para justificar a escravidão, caso especial de D. José
[Joaquim Azeredo Coutinho], ou as indicações sobre a liberdade civil que deduziam não eram suficientemente
fortes para levá-los a uma postura evangélica ou profética contra a escravidão. Acabam apenas por aconselhar aos
senhores o tratamento ‘cristão’ dos escravos, sancionando na prática o escravismo”.
4
administrar suas colônias a partir do transplante direto de suas instituições para as possessões
de além-mar, inclusive no tocante à escravidão. Enquanto isso, a tradição anglo-saxônica
precisou adaptar-se para dar conta das especificidades das novas colônias americanas.4
3 Conferir em Andrada e Silva (1988), p. , Carvalho (1998: p. 35-64) e SANTOS (1999: p. 288-295).
4 Conferir em Watson (1989: p. 62-82), Morris, (1996: p 37-57) e Feherenbacher, (1981: p.7-40).
5 “Essa necessidade de querer ver a cristandade ocidental como algo compacto e perfeitamente
delimitado já de per si reduz o horizonte de nossa visão da ciência e cultura medievais e impede-nos de ver a
Europa medieval como algo mais complexo e diversificado. No marco de uma visão franco-germânica da cultura
medieval, a área geográfica do Mediterrâneo ocidental desempenha um papel secundário. Nessa visão centro-
européia que pretende ver a cristandade como um todo harmônico, a periferia mediterrânea seria algo que não
atinge o miolo e a essência daquela pretensa unidade de religião e destino” (Reboiras, 1998).
5
posteriores ao propósito de reconquista que animou as realezas ibéricas. Antes disso, porém, a
península teve a chance de experimentar uma convivência religiosa muito diferente da de
intolerância prevalecente nos tempos inquisitoriais. Como se sabe, a partir de 638, os árabes
avançaram sobre a Pérsia, a Palestina e a Síria. Em 642, dominaram o Egito e, antes de 732,
apoderaram-se de parte da Ásia Central, da África Setentrional e da Península Ibérica. Somente
os montes das Astúrias, a Vascônia e alguns vales dos Pirineus, na região sul-européia, não se
deixaram conquistar pelos guerreiros muçulmanos. Esses avanços territoriais, contudo,
resultaram numa ameaça à centralização do poder no Islã. A partir de 750, as forças centrífugas
intensificam-se e os omíadas fundaram, na Ibéria, o emirado de Córdoba, transformando-o
numa das três capitais da grande nação muçulmana.
Para o que nos interessa aqui, importa salientar a especificidade cultural da sociedade
ibérica, cuja formação transcorreu ao longo da Baixa Idade Média. Evidentemente, durante o
domínio islâmico, os muçulmanos e sua camada dirigente exerceram papel decisivo na
evolução cultural da península. Com a Reconquista, a cristandade entraria em contato com a
rica tradição muçulmana, que havia conservado em parte as culturas dos povos absorvidos por
seu Império.7 Toda a herança helenística, assim como as contribuições da Pérsia, do Egito e da
Índia, traduzidas e enriquecidas pelos árabes, puderam ser estudadas pelos cristãos do
Ocidente graças à sua convivência com judeus e moçárabes. Como descreve Haskins (apud
Nunes, 2001), o século doze testemunharia
6 “Esta tolerância não comportou mistura ou assimilação das religiões. Os hierarcas das três religiões
lutaram decidia e eficazmente pela manutenção das diferenças. A Igreja nem se preocupou em fundamentar
teoricamente a situação de fato: por um lado tirava todas as vantagens que aquela circunstância singular lhe
oferecia e por outro tratava de criar as condições para sua eliminação. Na formulação de Américo Castro a
tolerante estrutura social medieval na Espanha foi o ‘resultado de um modo de viver e não de uma teologia’. A
Igreja e os representantes dos outros grupos religiosos eram teoricamente contra aquela ordem e não faziam nada
para conservá-la. A Igreja oficial, em simbiose com o poder civil, aceitava esta situação sem canonizá-la”
(Reboiras: 1998).
7 “Aquilo que os Árabes trouxeram aos sábios cristãos foi, principalmente, a bem dizer, a ciência grega,
entesourada nas bibliotecas orientais e reposta em circulação pelos sábios muçulmanos, que a levaram aos confins
do Islão ocidental, a Espanha, onde os clérigos cristãos foram aspirá-la com avidez à medida que se processava a
Reconquista” (Le Goff, 1983: p. 185).
8 “Diante do alto nível cultural dos judeus, constata-se com clareza um alto déficit cultural nas massas
cristãs. A cristandade espanhola era uma sociedade de fronteira, uma sociedade que tinha encontrado sua
identidade na luta contra o infiel. A ideologia da classe dirigente estava ditada pelas armas e não pelas letras. O rol
de virtudes do cristão espanhol correspondia a uma mentalidade militar e a um ideário castrense sem concessões
para manifestações de caráter cultural ou humanístico. Ao final da primeira grande expansão dos reinos cristãos
no fim do século XIII, a cristandade espanhola fez enormes esforços para recuperar a tradição cultural
muçulmana e afirmar sua hegemonia política no campo das letras. Com o apoio de intelectuais judeus procedeu-
se, principalmente sob Alfonso X, o Sábio, a uma tradução e assimilação do acervo cultural árabe. Esta ação não
só proporcionou um enorme impulso para as estruturas jurídicas dos reinos hispânicos, mas também para a
literatura e as artes plásticas. A atividade cultural dos cristãos espanhóis, sobretudo na tradução da ciência árabe,
influiu em toda a Europa e foi, sem dúvida alguma, a maior contribuição da Espanha para a cultura européia”
(Reboiras: 1998).
7
9 As universidades eram corporações com forte apoio clerical. Desde o princípio, os clérigos das
universidades se colocam contra o controle episcopal. Entre 1229-1231 a Universidade de Paris foi tirada da
jurisdição do Bispo. Em Oxford, o chanceler, antes indicado pelo bispo, será absorvido pela corporação e eleito
por ela, tornando-se seu membro. Bolonha, um pouco mais tardiamente, em 1219, o arcebispo designado como
chanceler passou a exercer funções mais simbólicas, como presidir formaturas e absolver as ofensas feitas a seus
membros (Le Goff, 1988: p. 60).
10 “A famosa fundação de um colégio para estudantes espanhóis em Bolonha, promovida pelo influente
cardeal Gil de Albornoz, tinha como finalidade primária a formação de juristas segundo o espírito do direito
romano cristão tal como era concebido e praticado nos meios intelectuais da hierarquia eclesiástica. O que se
pretendia era deter o caminho especial e as estruturas originais da sociedade hispana cujo direito estava
influenciado pelas concepções do direito judeu e islâmico, que imperavam ainda em numerosas estruturas vitais da
sociedade hispana. Também as compilações de Raimundo de Peñafort, que tanto êxito tiveram na formação do
Direito eclesiástico, contribuíram para estabelecer as bases jurídicas da sociedade cristã e para criar um corpo
jurídico único e válido para toda a cristandade sob a clara e decidida superioridade do bispo de Roma” (Reborais:
1998).
11 “No seguir ao ano Mil, duas figuras parecem conduzir a Cristandade: o papa e o imperador. O seu
conflito vai ocupar o palco de ilusões atrás do qual vão passar-se as coisas mais importantes” (Le Goff, v 1, 1983:
p. 131). Um dos episódios mais marcantes dessa luta foi a reforma gregoriana, que representou o enorme esforço
da Igreja por sua autonomia e de seus sacerdotes. Esse longo e desgastante conflito encontrou seu zênite com a
Questão das Investiduras, que dizia respeito à autoridade responsável pelo poder de nomeação dos Bispos. Além
disso, a Igreja foi atingida pelo duro golpe desferido pelo fortalecimento do poder das monarquias medievais e o
Papado enfraqueceu ao ponto de ver sua unidade cindida entre Roma e Avignon, cada um com seu próprio
pontífice. As monarquias buscaram potencializar esse enfraquecimento em seus reinos, atuando com mais
determinação sobre a nomeação dos bispos e “nacionalizando” as igrejas em seus territórios. O clero regular,
todavia, respondia diretamente a Roma. Desde o século X, com a fundação do mosteiro de Cluny, a intenção
expressa era manter os monges longe da influência laica. Respondendo diretamente à Santa Sé, os monges
ficavam isentos da jurisdição episcopal sob a influência dos reis (Franco Júnior, 1986: p. 107-124).
8
A retomada radical dos valores cristãos perante os infiéis acabaria por desviar ainda
mais os povos ibéricos do destino político-cultural do restante da Europa, pois, enquanto a
Ibéria se identificava como parte da comunidade cristã universal, os demais povos cristãos do
continente fechavam-se em torno de seus problemas particulares, adotando programas
estritamente nacionais. No alvorecer da Idade Moderna, os Estados Ibéricos permaneciam
apegados à defesa de valores cristãos já superados nos demais Estados nacionais da Europa
Central. Assim, mais uma vez a Ibéria percorria um trajeto distinto em relação ao
desenvolvimento geral do Ocidente.
12 Conferir em Bloch (1993: p. 293-4) os primórdios da unção régia e da sagração no reino visigótico da
Espanha.
9
estudos, identificou ele uma tipologia “cristológica” abrangendo dois aspectos fundamentais:
“um ontológico, e o outro, funcional”. O primeiro referia-se à identificação do Rei com o
Cristo, fosse como “Imagem”, fosse como mediador entre Deus e os homens. O segundo
aspecto ligava-se às funções jurídicas e administrativas da realeza, referindo-se àquilo que
Kantarowicz denominou de “Fazer”. Nessa etapa, portanto, a figura do Rei tinha associados a
si os domínios sacro e jurídico.
O poder real que emerge desse período com um novo perfil passou de uma noção mais
“cristológica” e litúrgica para uma situação fundada num conceito marcadamente teocrático-
jurídico. O argumento de autoridade dos reis não era mais extraído da sagração eclesiástica,
estando apoiado doravante nas noções de Direito e de Justiça. Entretanto, para isso, a ciência
jurídica precisou vencer sua condição de quase inexistência na Alta Idade Média, durante a qual
a legislação escrita possuía uma posição bastante secundária. Em seu novo estágio, mais
sofisticado, encontrou sua base no Direito que prosperara na Antigüidade. Esse
desenvolvimento esteve vinculado ao movimento intelectual de mergulho na cultura antiga,
associado ao Renascimento comercial e urbano do século XII. O acesso ao universo clássico
realizou-se por meio do resgate de documentos como, o Organon aristotélico ou o Digesto, livro
jurídico justiniano. O vivo interesse pelos textos antigos relacionava-se à idéia de Roma como
Império universal: “a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e
intemporal da sua própria vida” (Wieacker, 1967: p. 42). Seguindo essa visão na interpretação
dos escritos da Antiguidade, o Corpus Iuris Civilis14 foi analisado como um instrumento de
revelação dos desígnios de Deus no plano do Direito. A convicção da universalidade do
Império romano emprestava inteligibilidade à dedução do “corpus” como um documento não
somente dos romanos, mas também de toda a comunidade jurídica humana.
14 Justiniano (527-565 d.C.) fez empreender, por uma missão de dez membros (nomeadamente,
Triboniano e Teófilo), uma vasta compilação de todas as fontes antigas de Direito Romano, harmonizando-as
com o Direito do seu tempo. O conjunto dos documentos recolhidos por Justiniano, ao qual mais tarde, na Idade
Média, se deu o título Corpus Iuris Civilis, compreende quatro partes: o código (as leis imperiais), o Digesto (obras
de jurisconsultos), as instituições (manual de ensino de direito) e as novelas (constituições de Justiniano).
11
católicos puderam ampliar seus poderes, sem provocar grandes alterações nas estruturas
vigentes, graças aos grandes empreendimentos náuticos. Em vista desse avanço que lhes era
exclusivo, os Estados ibéricos não devem ser incluídos na fase inicial da formação do “Estado
Nacional”. Alguns estudiosos15 defendem o processo de centralização de poder e a formação
dos Estados na Ibéria como o desenvolvimento de um percurso particular da política na
Europa. Morse (1988: p. 128) adverte que, “mesmo compartilhando antecedentes gregos,
romanos, cristãos e medievais com o resto do Ocidente, [a Ibéria] tomou caminho que impede
um desenlace do tipo nietzscheano, weberiano ou kafkiano”.16
Ora, se por um lado não é correto supor a Ibéria como o lugar da “pré-História” dos
Estados modernos, por outro, é legítimo falar da precocidade dos Estados ibéricos. Ainda
durante o período medieval, a íntima relação entre a política e a religião abriu uma perspectiva
de legitimação dos poderes centrais nos reinos ibéricos inteiramente desconhecida no restante
da Europa. As guerras de expansão do cristianismo desempenharam um papel relevante nesse
processo. Os ibéricos adquiriram a certeza de serem a comunidade escolhida por Deus,
cabendo aos seus reis estar à frente da guerra contra os infiéis. Os monarcas puderam, desse
modo, assumir um papel central na política, operando, habilmente, a associação do sagrado em
favor da legitimidade e independência de seus reinos diante da Igreja - única força
centralizadora da Europa - com suas ambições imperiais.
A ampliação territorial dos reinos ibéricos, trazida com a Reconquista e, após, com os
descobrimentos, não só se revestiu de um profundo simbolismo, ao animar a chama religiosa
da população, como também proporcionou, aos seus reis, a oportunidade de exercitarem seu
poder distributivo. As riquezas extraídas dos novos espaços eram repartidas entre os que
participavam das conquistas, selando uma espécie de contrato entre o rei e a sociedade,
sancionando a expansão como um negócio coletivo. Portanto, a originalidade da realização
ibérica foi a conquista da centralização política sem alteração substantiva de sua estrutura
social. Barbosa Filho (2000: p. 247), ao descrever os eventos da época, explica que, “desse
modo, Espanha e Portugal buscam o movimento e a expansão para se manterem idênticos,
recusando, inibindo e extirpando possíveis elementos de mudança e alteração do quadro geral
da sociedade”. Os territórios ultramarinos transformaram-se em instrumento para a aquisição
de riquezas destinadas à sustentação patrimonial das Coroas. Assim, a rede administrativa
erigida no além-mar fundamentava-se na perspectiva hierárquica e tradicional, estreitando os
laços de compromisso da nobreza e da fidalguia com o rei.
social, pois lhe faltavam os meios institucionais adequados para isso. Estava ele voltado, na
verdade, para a afirmação do poder supremo do rei como um árbitro pronto para efetivar a
justiça ou distribuir a graça, atributos reais que lhe permitiam agir contra o próprio Direito
(Hespanha, 2001: p. 176).
Por meio de vasto levantamento das sentenças aplicadas em Portugal entre os séculos
XVII e XVIII, Hespanha (1994: p. 499) aponta dois aspectos relevantes dessas sentenças, que
merecem ser aqui mencionados. O primeiro refere-se à numerosa previsão da pena de morte
na legislação portuguesa, cuja pertinência estendia-se desde os casos de adultério até os de lesa-
majestade. O segundo relaciona-se ao fato de, apesar de sua extensa previsão legal, ter sido a
pena de morte, na realidade, muito pouco executada. Como a situação das outras penas era
análoga, conclui-se que a Justiça Real, no Antigo Regime português, constituía-se num
instrumento de atenuação das penas, ou ainda, do rigor da lei. Além disso, a clemência real
transformou-se num dos fundamentos de legitimação do Rei, pois os súditos deveriam amá-lo,
e não temê-lo. Os poderes infra-estatais – a família, a Igreja e a comunidade local – tinham sob
sua alçada as tarefas mais quotidianas de punição, estando responsáveis, por conseguinte, pela
disciplina social.20
morte. Além disso, houve uma efetiva preocupação com a reforma da Justiça, visando tornar
mais efetiva a execução das penas. Acima de tudo, incomodava à Coroa a tradição do ius
comune, que determinava a precedência da doutrina sobre a lei. Assim, em 1769, criou-se a Lei
da Boa Razão, para consagrar a lei como a principal fonte de Direito, relegando a doutrina, o
costume e o Direito Romano a uma posição secundária. O conjunto de redefinições
provocado pelo despotismo do século XVIII redundou em uma nova definição de delito,
distinguindo-o do pecado e do vício, bem como de todos os atos que, mesmo censuráveis, não
chegavam a perturbar a ordem social. Desde então, o Direito Penal converteu-se num
elemento de coerção social, embora outros fatores concorressem para tanto, como a
propaganda, a educação, entre outros. Esse quadro geral de mudanças no campo do Direito
integrava-se no movimento simultâneo de estruturação do Estado centralizado e de
desmantelamento dos poderes periféricos. O Leviatã, finalmente, conseguia sustentar-se em
pé.
Mais especificamente, no Brasil, os poderes locais tiveram seu raio de ação ampliado
quando a Coroa optou por colocar cargos públicos à venda.21 Na maioria das vezes, os colonos
solicitavam postos menores, como o de escrivão em uma Vila. Noutras ocasiões, entretanto,
buscavam cargos mais importantes, como os de Secretário de Estado ou de Provedor da
Fazenda. Procedendo dessa maneira, os brasileiros participavam do governo por intermédio do
Senado da Câmara, como dirigentes locais, pois passavam a ocupar funções ligadas diretamente
ao governo central. Russell-Wood (1998) chamou essa participação dos brasileiros nas
estruturas da administração real de “criolização” do governo, ressaltando as mudanças na relação
entre a metrópole (centro) e a colônia (periferia) como provocadas por esse evento. As
dificuldades de estruturação da administração real nas colônias, conjugadas com a busca de
cargos públicos por parte dos brasileiros, viriam permitir o exercício de uma negociação mais
intensa entre os colonos e as autoridades metropolitanas com a finalidade de evitar, modificar
ou retardar a implementação das políticas provenientes dos altos escalões portugueses.
Quando as negociações não se mostravam suficientes para barrar as medidas contrárias aos
interesses coloniais, eclodiam então formas mais extremadas de pressão, tais como as rebeliões
ou, inclusive, a confrontação física. É mister, portanto, reconhecer a utilidade do conceito de
autoridade negociada na compreensão da relação entre metrópole e colônia, conferindo-se o
papel devido ao elevado potencial de pressão dos colonos sobre as determinações
metropolitanas.22
oficiais. No século XVIII, um decreto real estabeleceu que os novos ofícios seriam oferecidos a quem fizesse um
donativo à Fazenda.
22 Cf. Russell-Wood, 2001: p. 11-19.
23 Cf Hespanha,1994: p. 488.
17
ascendência africana, mas também ao seu passado de cativeiro. Mesmo após a passagem de
algumas gerações, reforçava-se assim, na memória dessas pessoas, as restrições civis advindas
de sua posição na hierarquia social. Embora a cor e os aspectos étnicos marcassem o lugar
reservado aos cativos na sociedade, essas características não serviram como justificativa
suficiente para a existência de uma legislação específica para escravos, tal qual um Code Noir.
Houve negros que, em retribuição aos serviços prestados à Coroa, receberam cargos
honoríficos, contrariando a regra de pureza de sangue.24 A concepção jurisdicionalista aplicava-
se também ao lugar social reservado aos africanos e afro-descendentes no Brasil, normatizada e
legislada segundo as leis do Reino ou dos costumes locais. Assim, a larga e diversificada escala
social desenvolvida no Brasil comportava os escravos, as escravas, os escravos de eito, os
escravos de ganho, os africanos livres, os pardos, os pretos, entre outros.
Silvia H. Lara (2000: p. 11-47) informa que as leis escravistas na América portuguesa
eram essencialmente práticas, voltadas, principalmente, para a regulamentação do tráfico,
deixando pouco espaço para a legitimação da escravidão. Em que pese essa orientação,
algumas vozes, no período, manifestaram-se sobre o assunto, como a de Manoel Ribeiro
Rocha. Em 1759, o sacerdote português, com formação jurídica, tomou a si a tarefa pouco
usual de redigir um tratado teológico e jurídico acerca da escravidão, oferecendo uma
interessante exposição de motivos sobre a legitimidade do cativeiro como instrumento de
“resgate” do africano de seu paganismo. Na opinião de Rocha (1992, p. 73), existiria, inclusive,
uma base jurídica para tal procedimento, porquanto “o Direito não proíbe, nem resiste aos
atos, e contratos de redenção de cativos, antes permite este comércio, e favorece a sua
continuação”. Impunha-se, no entanto, que a escravidão dos africanos se realizasse de modo
”justo”:
24 Hebe de Mattos (2000: p. 149) cita o caso do negro Henrique Dias que, comandando um exército de
escravos e forros, participou de forma decisiva nas lutas contra os holandeses, contribuindo para a vitória
portuguesa em 1654.
19
parte desta posse, uso, e retenção interina, até ser pago da importância
e gastos do resgate (Rocha: 1992, p. 72).
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1985.
ANDRADA e SILVA, José Bonifácio. Escritos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
ANDRÉS-GALLEGO, José. Derecho y justicia en la historia de Iberoamérica: propuesta
metodológica y temática y presentación de los primeros resultados. _______ (Org). Proyetos
históricos Tavera (I): nuevas aportaciones a la historia jurídica de Iberoamerica. Madrid,
Fundación Histórica Tavera/Digibis, 2000. 1CD-ROM.
BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
20
BLOCH, Marc Leopold Benjamim. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio,
França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CAENEGEM, Raoul Van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos sobre história e política. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1998.
______. Introdução. In: ______. Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Ed. 34, 1999. p. 9-
34.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DELUMEAU, Jean. A civilização do renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1984.
FINKELMAN, Paul. The centrality of slavery in american legal development. In: ______
(Org). Slavery & the law. Madison: Madison House, 1997. p. 3-26.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A idade média: o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense,
1986.
FREDRICKSON, George. The arrogance of race: historical perspectives on slavery. Middletown:
Wesleyan University Press, 1988.
FERENBACHER, Don E. Slavery, law and politics: the Dred Scott case in historical perspective.
Oxford: Oxford University Press, 1981.
GENOVESE, Eugene Dominick. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
______. O mundo dos senhores de escravos: dois ensaios de interpretação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
HESPANHA, Antônio Manuel. O Direito. In: ______ (Coord.). História de Portugal: o Antigo
Regime. Lisboa: Editorial Espanha, 1993.v. 4 (O antigo regime).
______. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal – séc. XVII. Coimbra:
Livraria Almedina, 1994.
______. A constituição do Império português: revisão de alguns enviesamentos correntes. In:
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo regime
nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVII). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001. p. 163-188.
KANTOROWICZ, Ernst Hatwig. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política
medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LARA, Sílvia H. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
21
Resumo
A Lei de Interpretação do Ato Adicional e a Reforma do Código do
Processo foram medidas essenciais na repressão às revoltas ocorridas
no Império Brasileiro entre 1841 e 1850. Este artigo demonstra uma
circunstância em que podemos visualizar o alcance do poder por elas
atribuído aos Chefes de Polícia na manutenção da ordem pública
durante o Segundo Reinado. Ele acompanha a atuação do juiz
Jerônimo Martiniano Figueira de Mello como Chefe de Polícia da
Província de Pernambuco - no período de 1849-1850 – momento em
que comandou a repressão à Revolta Praieira, conflito no qual liberais
e conservadores pernambucanos se defrontaram na disputa pelo
controle dos cargos políticos, policiais e judiciais da província.
Abstract
The Law of interpretation of the Additional Act and the Reform of
the Code of Process were essential for the repression of the revolts in
the Brazilian Empire between 1841 and 1850. This article
demonstrates the circumstance in which it is possible to visualize the
range of the power given to the Police Chiefs for the maintenance of
the public order during the Second Reign. It concerns the monitoring
of the role of the Judge Jerônimo Martiniano Figueira de Mello as
Police Chief of the Pernambuco Province – in the period of 1849-
1850 – when he commanded the repression of the Praieira
Revolution, conflict in which liberals and conservatives of
Pernambuco faced each other in the dispute for the control of
political, police and judicial posts of the province.
Palavras-chave
Key words
Revolution – memory – empire – politics - liberals revolts
“Pelos fatos, que até aqui temos realmente narrado, achamo-nos sem
dúvida habilitados para emitir franca e conscienciosamente o nosso
juízo sobre a revolta praieira (...).A razão demonstra-nos que sem
darem-se motivos tão poderosos, não se pode consentir nunca que se
desrespeitem as Autoridades e as Leis, que se derrame o sangue dos
cidadãos, e que entre eles se proclame uma revolução, ou se ateie a
guerra civil, que é uma e a mesma cousa” (Figueira de Melo, 1979:
247)1
A importância política das reformas realizadas nos últimos meses de 1841 pelo
Parlamento do Império nos textos do Ato Adicional de 1834 (a Lei de Interpretação) e no
Código do Processo, é sobejamente conhecida e já foi demonstrada tanto pelos escritores
contemporâneos àqueles eventos – a exemplo de Justiniano José da Rocha, Francisco Sales
Torres Homem e Teófilo Otoni – quanto por vários estudiosos que no século XX retomaram
a história política do Império Brasileiro, e reiteraram depoimentos de políticos envolvidos
naqueles acontecimentos2. Exemplificando a opinião destes historiadores, Paulo Pereira de
Castro afirma que “em torno dessas reformas é que se definiu a divisão partidária no final do período
regencial”, mais precisamente os adeptos do partido conservador se colocaram a favor delas e os
do liberal as condenaram. Para este autor, as alterações promovidas pela Lei de Interpretação
resultaram numa transferência de atribuições políticas locais para a Corte, pois retiravam “às
Assembléias Provinciais o poder de definir atribuições aos agentes policiais e subordinava a política judiciária ao
governo geral. O efeito dessas alterações foi fundamentalmente transferir para o governo central todo o sistema
judicial e policial” (Castro, 1967: 57).
Por outro lado, ainda segundo Castro, ao deslocar as competências das autoridades
locais (do juiz de paz e do júri popular) para a magistratura (para o chefe de polícia, os juízes
4 Guabirus e Praieiros foram designações jocosas que os membros dos partidos conservador e liberal,
respectivamente, receberam na disputa político-partidária em Pernambuco. Segundo elas, os conservadores se
assemelhavam a grandes ratos que roubavam sorrateiramente os cidadãos honestos da província; e os liberais são
confundidos com comerciantes inescrupulosos nos negócios e na política, proprietários de fortunas recentemente
amealhadas e de casas comerciais situadas na Rua da Praia, tradicional centro do comércio a retalho do Recife e
endereço da tipografia que imprimia o jornal do partido, o Diário Novo.
5 Em eleições para o Senado realizadas em 1846 e 1847 os praieiros tentaram, por duas vezes, assentar
seus representantes – Ernesto Ferreira França e Antonio Pinto Chichorro da Gama - naquela casa vitalícia.
6
Porém, em ambas as ocasiões e apesar do apoio imperial, as escolhas foram anuladas no Senado por ágil manobra
dos conservadores então chefiados por Araújo Lima, então visconde de Olinda.
6 A expressão foi utilizada por Teóphilo Ottoni no texto Circular dedicada aos senhores eleitores de senadores
pela província de Minas Gerais, publicado em 1860, momento em que rememorou os acontecimentos políticos
vividos entre 1831 e 1848.
7
A saída de Herculano Ferreira Pena era indício de que o governo conservador não
estava inclinado a ceder ou negociar; muito ao contrário, permanecia o objetivo de submeter
completamente o adversário e assumir irrestritamente o poder, para o que se empenhava em
vencer aquela guerra a qualquer preço. As medidas que vieram em seguida não deixaram a
menor dúvida a esse respeito. Pena foi substituído por um dos mais destacados inimigos da
bancada praieira na Corte, o deputado conservador Manoel Vieira Tosta, posteriormente
recompensado com o título de Barão de Muritiba, que determinou a prisão dos deputados -
única maneira de cortar as ligações entre as lideranças políticas do Recife e os resistentes do
interior; e a demissão de todas as autoridades policiais que tivessem alguma ligação ou simpatia
com os praieiros, evitando-se atraso na ação do governo, pois muitas vezes aquelas
autoridades, alegando falta de recursos, demoravam a cumprir as ordens recebidas.
No início de janeiro 1849, o grosso das tropas praieiras se aglutinou no sul da Província
-- embora preservasse alguns grupos em outras regiões para despistar as forças do governo --
onde poderia buscar refúgio mais seguro nas matas da região, e se organizar como um exército
sob um único comando. No final do mês de dezembro de 1848, foi escolhido um Diretório
Liberal, que reuniu membros de tendência moderada, o deputado Peixoto de Brito e Antonio
Afonso Ferreira e os republicanos, Manoel Pereira de Moraes e Antonio Borges da Fonseca. A
junção dos combatentes praieiros não passou desapercebida ao governo, que embora
desconhecesse as proporções exatas destas forças, decidiu deslocar seus contingentes para
aquela área na esperança de cercar e vencer definitivamente o inimigo. Ao mesmo tempo, na
capital, a Chefia de Polícia desenvolvia acurado controle sobre a população para cortar
prováveis remessas de munições e suprimentos.
7 Os Autos do Processo da Rebelião Praieira foram publicados em 1979 pelo Senado Federal.
9
frustrou o plano de ocupação da cidade. Sem recursos para preservar sua posição, uma vez que
não recebeu maior respaldo da população e não conseguiu vencer as forças que defendiam a
capital, o partido praieiro não pode enfrentar o exército do governo sob a chefia do General
Coelho que, rapidamente, retornara ao Recife. Diante deste quadro, só restou a retirada.
8 O capitão Pedro Ivo Veloso da Silveira foi atraído por uma promessa de anistia que, todavia, nunca foi
concedida. Preso no Rio de Janeiro, acabou recebendo o direito de exilar-se, medida que relutou muito em aceitar.
Faleceu a caminho da Europa. Os episódios aqui referidos foram pesquisados nos Autos do Inquérito da Revolução
Praieira. Brasília, Senado Federal, 1979; “Relatórios do Comando de Armas, 1849”. Revista do Arquivo Público.
Recife, Imprensa Oficial, 3(5): 307-700, 1º e 2º sem de 1948. MELO, J.M. Figueira de – Crônica da Rebelião Praieira
10
guerra civil pernambucana. Tratava-se de uma sedição, um movimento, uma insurreição, uma revolta,
uma rebelião, ou uma revolução? Nesta outra guerra de textos e conceitos o chefe de polícia que
dirigiu a repressão e instruiu o processo exemplar continuaria a ter um importante
desempenho: tornar-se-ia também historiador e criaria a versão que imperou sobre a memória
dos acontecimentos.
(1848-1849).2ª ed. Brasília Senado Federal, 1978. MARSON. I. A .- O Império do Progresso. A Revolução Praieira em
11
adversário político público e notório dos réus; e realizado no Recife, cidade que fora palco da
guerra. Por sua vez, a condenação à pena máxima (a prisão perpétua com trabalhos forçados)
só foi possível mediante a adaptação de inúmeros procedimentos jurídicos relativos a esse tipo
de processo, e a interpretações inusitadas dos termos da lei que normatizava os julgamentos de
sedições e conceituava rebelião. Ao decidir pelo crime de rebelião, o julgamento pretendeu ajuizar
não apenas os acontecimentos de 1848-49, mas a conduta do partido praieiro em toda sua
história.
9 A denúncia sobre o encaminhamento sigiloso foi feita pelo deputado Urbano Sabino Pessoa de Melo
no livro– Apreciação da Revolta Praieira em Pernambuco. R. de Janeiro, Typographia do Correio Mercantil, 1849.
10 A 2ª ed. foi publicada pelo Senado Federal em 1978.
13
Porém, o texto de Sabino não vinha responder apenas à acusação formulada pelos
conservadores. Sua versão dos fatos, insistindo na tese da revolta espontânea em legítima defesa,
11
problematizou outra leitura liberal, a interpretação que os luzias divulgaram na Corte, ainda
em 1849, num panfleto de grande repercussão, O Libelo do Povo, de autoria do deputado Torres
Homem.12 Com argumentos diferentes dos de Sabino, Timandro justificou a Revolução Praieira,
instrumentalizando-a na campanha do Partido Liberal (liderado pelos luzias) contra o ato de
dissolução da Câmara ocorrido a 19 de fevereiro. Inscrevendo-a num longo processo de luta da
nação (iniciado em 1822) contra a tirania, no sentido de consolidar sua independência, o
movimento se tornou parte do percurso de um genérico Partido Liberal, símbolo de ideal
plenamente associado a anseios populares e democráticos, e legitimado por ser um sucedâneo das
revoluções liberais contra o absolutismo na Europa. Timandro exacerbou a crítica à monarquia
absoluta européia, com seu direito divino dos reis e suas cortes artificiais, reconstituindo
particularmente a história (em tom de farsa) da Casa de Bragança, para demonstrar que o
período regencial, especialmente o governo Feijó, fora o ápice da liberdade e democracia.
Nesse fundo histórico, a resistência da Praia seria, então, uma revolução liberal latu sensu,
própria das aspirações do tempo, uma resposta ao abuso do poder imperial e da Corte
manietados pelos defensores do absolutismo. Ainda, uma tentativa de desmascaramento da
monarquia constitucional praticada no Império, pois ela se constituía ora, numa “comédia de mau
gosto”, quando o poder moderador intervinha nos ministérios e no desempenho da Câmara; ora
num “drama sanguinolento”, quando os cidadãos, reagindo às interferências inconstitucionais dos
Príncipes, recorriam às armas e eram violentamente reprimidos. Com esse objetivo, o
movimento da Praia, ao tornar-se um dos episódios do embate entre a prerrogativa real e a
soberania popular que vinha se desenrolando desde a independência (ocorrera em 1822, 1824,
1831, 1837, 1842), se mesclou a todas as lutas liberais do passado, suas reivindicações se
confundiram com os ítens do programa liberal e sua estratégia de luta armada se igualou à
rebelião de S. Paulo e Minas Gerais ocorrida em 1842, entendimentos que Urbano Sabino
procurava, justamente, neutralizar.
Num recado prévio ao leitor, o ex-Chefe de Polícia explica os motivos que o levaram a
escrever a Crônica: rebater e destruir as acusações de usurpação atiradas por Urbano Sabino
contra ele e seu partido. Para fundamentar a legitimidade de sua narrativa, valer-se-ia de
procedimentos “científicos”, destacadamente a “recuperação da história” (através da cronologia e
dos documentos) e o “bom senso dos leitores” na interpretação das provas oferecidas. Ambos
seriam capazes de projetar um relato “imparcial e fiel” dos acontecimentos, posto que isento de
compromissos partidários. Desse relato, a rebelião deveria sair “desmascarada” em seus
propósitos anárquicos e revolucionários, derrubando todos os argumentos de Sabino e as
alegações dos rebeldes. Método e política foram imbricados, para isentar o autor e construir
uma obra ao mesmo tempo acusadora e relato “fiel e imparcial dos fatos”:
ocorreriam com a ascensão dos conservadores ao poder em setembro de 1848, e uma ação
política montada para impedi-los de exercerem este poder legitimamente conquistado e a que
tinham direito, pelo movimento “natural da alternância de partidos”. O empenho de remontar o
nascimento do Partido da Praia, destacou o compromisso deste com essas classes identificadas
com um conceito da revolução que remetia à “anarquia e desintegração do Império”. Assim, recursos
formais e a projeção de uma origem idealizada para a Praia, executaram a destruição da obra de
Sabino:
Por ser parcial, e inverídico, sob argumentos falsos e explicações que mascaravam o
projeto de seu partido, o texto de Sabino não merecia respeito. O êxito da crítica de Figueira
de Melo pegou o ponto falho da outra interpretação, a falta de fundamentação de uma tese que
não convencia porque eivada de erros cronológicos e juízos explícitos. Daí a oportunidade de
ensinar um exemplo de como construir um texto político sem demonstrá-lo, pela obediência à
cronologia ordenadora dos acontecimentos, porém, uma cronologia inventada, na medida em
que, longe de recuperar o movimento ágil e contraditório dos acontecimentos, alinhou
formalmente, num primeiro momento, todos os episódios comprovadores da agressão do
opositor e, em seguida, os procedimentos de defesa do escritor; pela comprovação em
documentos escolhidos a dedo, e a inserção de poucos, porém estratégicos, comentários.
Alicerçada em tais recursos, a acusação passada no relato ganhava uma autenticidade e
capacidade de convencimento cujo trunfo decisivo era a prova, a documentação de que
Urbano não dispunha em abundância. Efetivamente, a propalada objetividade do historiador
era a transposição de normas e procedimentos do Chefe de Polícia na armação do processo-
crime, dois papéis desempenhados bem à vontade.
opúsculo Ação, Reação, Transação, duas palavras acerca da atualidade política do Brasil, obra que
sistematiza a história do Império desde a Independência até o gabinete da “conciliação”
presidido pelo marquês de Paraná (1853-56), escrita pelo jornalista e deputado conservador
Justiniano José da Rocha. Para esclarecer os leitores em geral e os políticos em particular sobre
o conteúdo, o significado, a conveniência e a possibilidade da “verdadeira transação” como
estratégia política, ou em outros termos da “verdadeira política de conciliação”, Rocha, inspirando-se
e respondendo ao texto de Timandro, faz uma reconstituição da história política Império até
aquele momento enquanto “um estudo refletido da história,[fundamentado] na ciência do político
demonstrada”. Nesse sentido, disciplinou e periodizou os acontecimentos submetendo-os a duas
leis – uma de “ação-reação”, que tornava esta história resultado de um processo cíclico e
inevitável de luta “instintiva e eterna” entre os princípios da “ação democrática e da reação monárquica,
ou entre a autoridade e a liberdade”; e outra do “progresso” que imprimiria a este ritmo a
possibilidade de algum avanço, quando a luta ação-reação fosse substituída pela “moderação e
racionalidade” da transação.
Tal processo já havia concretizado, entre 1822 e 1855, três períodos: um de “luta e
triunfo da ação democrática” (1822-1836), ou do predomínio da “revolução/anarquia – do qual
haviam resultado a independência, a Constituinte, a revolta de Pernambuco de 1824, a
revolução de 7 de abril e as rebeliões regenciais. Outro, de hegemonia da “reação monárquica” e
debelamento da “revolução/anarquia”(1837-1851) quando se desconstruiu a obra da democracia
consubstanciada nos termos do Ato Adicional de 1834. Participaram dessa desconstrução: a
Maioridade, a lei de interpretação do Ato Adicional; a reconstituição do Conselho de Estado; a
reativação do poder Moderador; a reforma do Código do Processo, da Guarda Nacional e a
compressão das revoluções liberais de 1842 e 1848. E um terceiro no qual abria-se a
possibilidade de transação (1852-1856), sinal de maturidade, ou de superação do predomínio
das paixões na política e do círculo vicioso da luta ação/reação.
ignoraram a negociação, a razão pública e os recursos da Constituição “que não fora feita para ser
eterna” e estava preparada para acolher a lição da experiência e a lei do progresso. Preferiram
recorrer às armas para atingir seus objetivos:
“(...) O partido liberal não teve fé em si, nem confiou no futuro; quis
tudo apressar, e tudo comprometeu; quis evocar as paixões da revolta,
e teve de exagerar suas pretensões, a fim de dar arras a essas paixões
(...)” (Rocha, 1956:205).
14 A 1ª edição foi publicada entre 1897 e 1899; a 5 ª e última é de 1997. A leitura feita por Nabuco seria
retomada em outras interpretações nas quais o embate sobre o significado da revolução teve continuidade, a
exemplo de: PRADO JÚNIOR, Caio – Evolução Política do Brasil e outros Estudos. S. Paulo, Brasiliense, 1933;
QUINTAS, Amaro – O Sentido Social da Revolução Praieira. R. de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967; CHACON,
Vamireh – História das Idéias Socialistas no Brasil. R. de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964; CARNEIRO, E. – A
insurreição Praieira. (1848-1849). Rio de Janeiro, Conquista, 1960.
20
foram as razões mais evidentes do livro. Dessa forma, Nabuco retomou o passado para
destacar a contribuição do regime monárquico parlamentar inscrito da Constituição de 1824 na
construção, sobrevivência e progresso da nação; no exercício do verdadeiro liberalismo, aquele
que permitia a prática da política civilizada; além de comprovar sua adequação as condições
históricas e físicas do país. Para ele, a república de inspiração girondina ou jacobina, sinônimo
de revoluções, anarquia, despotismo e risco à integridade do Império, constituía a negação da
obra monárquica e já tivera, sem sucesso, sua chance histórica na regência, período que
considera o momento da experiência republicana no Brasil. Nesse sentido, a narrativa, projetou
“a Praieira” como episódio exemplar das revoluções de inspiração republicana e jacobina
vivenciadas no período de afirmação do regime monárquico (1822-1848), e testemunho
cristalino da inadequação do regime republicano ao Brasil.
como sinônimas: revolta praieira, revolução de 1848, revolução de Pernambuco, revolução pernambucana e
revolução praieira”.
16Particularmente ARAUJO, José T. Nabuco de – Artigos d ‘O Lidador. Recife, Typographia de M.
Figueiroa de Faria, 1845-1848. As eleições para senadores em Pernambuco; e Justa apreciação do partido praieiro ou história da
dominação da Praia. Recife, Typ. União, 1847.
21
seus chefes não dominavam seus correligionários, tanto que os deputados tiveram que
“promover uma guerra que não desejavam e não controlavam”; por outro, devido à “moderação” com que
o gabinete Olinda administrou, de início, a revolta. Errara o ministério de 29 de setembro que,
“por medo e finura” não enviara para a Província, logo no início do rompimento, um homem
forte e de “prestígio nacional” (como Honório Hermeto ou Caxias) e só dissolvera a Câmara dos
Deputados em fevereiro de 1849, quando poderia tê-lo feito em setembro de 1848. Ou seja,
nesta avaliação, Nabuco incorpora as críticas e sugestões do grupo político conservador
liderado na província de Pernambuco em 1848, por Nabuco de Araújo, Figueira de Melo, Paes
Barreto e Maciel Monteiro defensores, conforme vimos, de uma atuação mais drástica contra
os rebeldes praieiros.
senhores tradicionais com quem tinham uma relação antiga e justa. Ainda, embora fizessem
proclamações monarquistas, aliaram-se a conhecidos políticos republicanos (Borges da
Fonseca, por exemplo) e adotaram um programa impraticável, que conciliava “o preconceito vulgar
e retrógrado da nacionalização do comércio a retalho, com a republicana e socialista reivindicação do trabalho
como garantia de vida para os cidadãos brasileiros”.
O fracasso da revolução deveria ser creditado também a três outras razões: a atuação
enérgica e oportuna de três administradores da Província – o presidente Tosta, o chefe de
polícia Figueira de Melo e o juiz Nabuco de Araújo; à experiência adquirida pelo partido liberal
para “resignar-se à vez do adversário”, e ao fato de o tempo das revoluções ter se esgotado, pois “o
organismo precisava de repouso”. Os argumentos se complementam: a atuação providencial dos
estadistas revela a ciência dos meios adequados para lograr a reeducação dos políticos
inexperientes e à percepção do percurso natural da história. Nesse sentido, eles foram também
responsáveis pela superação dos obstáculos que impediam o pleno exercício do sistema
parlamentar e, portanto, pelo ingresso do país em sua “grande era”, aquela das “lutas pacíficas”, e
do “verdadeiro liberalismo”. Esclarecem-se outros objetivos de Nabuco em privilegiar a análise da
“revolução praieira”. Além de torná-la um episódio sob medida para a crítica das revoluções de
caráter republicano jacobino, justificou a participação de Nabuco de Araújo no episódio,
particularmente sua cerrada oposição à Praia e a rigorosa sentença que aplicou aos rebeldes.
Tratava-se de uma grande causa. Seria uma punição exemplar e necessária, com o intuito de
por fim às revoluções, corrigindo a atuação dos liberais no jogo parlamentar, dispositivo que o
experiente e arguto juiz sabia ter duração limitada:
Bibliografia Citada
ARAUJO, José Tomás Nabuco de - As eleições para senadores em Pernambuco; Recife,
Typographia União, 1847.
ARAUJO, José Tomás Nabuco de - Justa apreciação do partido praieiro ou história da dominação da
Praia. Recife, Typ. União, 1847.
BEIGUELMAN, Paula – Pequenos estudos de ciência política, São Paulo, Pioneira, 2a., 1973.
CARNEIRO, Edison - A Insurreição Praieira (1848-1849). Rio de Janeiro, Conquista, 1960.
CARVALHO, José Murilo de - A Construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro,
Campus, 1980.
CARVALHO, José Murilo de – Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro,
Vértice/IUPERJ, 1988.
CASTRO, Paulo Pereira. A “experiência republicana”, 1831-1840. In: HOLANDA, Sérgio
Buarque de (dir.) - História geral da civilização brasileira. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, 1967.
CHACON, Vamireh – História das Idéias Socialistas no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1964.
HOMEM, Francisco Sales Torres – “O Libelo do Povo” IN: MAGALHÃES JÚNIOR, R.-
Três Panfletários do Segundo Reinado. São Paulo, Ed. Nacional, 1956.p. 45-126.
MARSON, Izabel Andrade - O Império do Progresso. A Revolução Praieira em Pernambuco (1842-
1855). São Paulo, Brasiliense, 1987
24
Resumo
O início da república no Brasil é um momento privilegiado para se
estudar a atuação do Judiciário enquanto uma forma de efetivação de
projetos de transformação social. Este artigo é uma adaptação de parte
da dissertação de mestrado, defendida na Unesp, campus Franca, sob o
título “A lei e a (des)ordem: criminalidade e práticas da justiça na
Comarca de Uberaba, 1890-1920”. Aqui, são apresentados os resultados
da pesquisa realizada no Arquivo Público de Uberaba, no que diz
respeito à quantificação dos processos criminais lá encontrados.
Constatou-se uma predominância dos crimes contra a pessoa em todo o
período estudado e pôde-se, ainda, inferir aspectos acerca do
funcionamento da justiça na comarca uberabense, a qual, contrariando
visões do senso comum – segundo as quais este poder seria deficitário
em sua atuação repressora – mostrou haver uma preocupação em auferir
legitimidade da sociedade local através de uma atuação cotidiana que
parecesse a mais idônea possível. Por outro lado, enfrentava-se
problemas como o da grande extensão territorial da comarca, o que fazia
com que os crimes apreciados pelo Judiciário nos locais mais afastados
da cidade de Uberaba fossem aqueles cuja repressão era considerada
mais premente. Por fim, pôde-se traçar o perfil do criminoso que era
julgado na comarca, entendendo, dessa forma, um pouco mais da
dinâmica social local e suas relações com o cenário nacional.
Abstract
The onset of republic in Brazil is a privileged moment to study the action
of Judiciary like a mean to perform projects for social transformations.
This article is an adaptation from the master dissertation, defended in
UNESP/Franca, under the title “The Law and the (dis)order: criminality
and justice practices in the Judicial District of Uberaba-MG 1890-1920”.
Here, are presented the research conclusions from the executed work in
the Public Archive of Uberaba, concerning the quantification of the
criminal lawsuits there found. We confirmed a predominance of the
crimes against person in the studied period as a whole, and we could
deduce aspects concerning the justice functioning in the Judicial District
of Uberaba which, counteracting common sense visions – that this
Palavras-chave
Criminalidade – História - Uberaba/MG – Judiciário - República
Key words
Criminality – History - Uberaba-MG/Brazil – Judiciary - Republic
O trecho acima pode não despertar a atenção do leitor, principalmente, devido à sua
aparente obviedade: bem sabemos que o índice de criminalidade está ligado diretamente ao
aumento populacional e ao crescimento urbano em geral (Fausto, 1984). Contudo, quando estes
argumentos são tomados em seu contexto histórico original – a cidade de Uberaba, em 1904,
dentro dos momentos iniciais da república – revela-se um cenário no qual a preocupação com o
aumento da prática criminosa é significativamente relevante; isto vem ao encontro daquilo que os
historiadores desenharam para este período, ou seja, a busca por mecanismos que garantissem a
ordem pública e, dessa forma, adequassem ou, em outra palavra, disciplinassem a gama de novos
personagens sociais – ex-escravizados, imigrantes – que, então, buscavam inserção. Desde o
início da república brasileira, os conflitos e as condutas anti-sociais eram considerados como
casos de polícia, logo, eram “espaço próprio onde a lógica da repressão se articulava às outras
3
1 Este período foi escolhido com base em, principalmente, dois pontos: em primeiro lugar, está o início da
vigência do Código Penal da República, em 1890, já que, com este código, iniciou-se a estruturação das dinâmicas
sociais que se pretendia instalar no país. Em segundo, temos o fato de que neste período, a região correspondente à
comarca de Uberaba, passava pelas transformações características do final do Império e início da República, comuns
aos locais nos quais a historiografia, genericamente, passou considerar inseridos em um processo de efetivação do
sistema capitalista. Em outras palavras, a linha da ferrovia foi ali inaugurada (1889), chegaram expressivos
contingentes de imigrantes, começou a se delinear um centro urbano mais desenvolvido, ocorreu o início do
desenvolvimento da pecuária como principal atividade econômica, enfim, houve relevantes mudanças na dinâmica
política, econômica e social, as quais levaram à uma conseqüente transformação de todo os sistema de convivialidade
local. O final do período de estudo, 1920, é justamente o momento em que há a acomodação de todos esses fatores.
4
que os administradores achassem necessários para a melhor adequação das políticas públicas. No
caso da criminalidade, os resultados numéricos teriam por fim planejar as estratégias de atuação
da polícia e da justiça. Pretendemos, aqui, entender um pouco como era tratada esta questão na
visão, principalmente, dos presidentes do Estado de Minas Gerais e de um dos jurisconsultos de
Uberaba – o qual citamos no início do artigo – Felício Buarque.
Os relatórios dos presidentes trazem muitas informações sobre o ano anterior à sua
redação: o responsável pela administração estadual dissertava acerca da produção e do
desenvolvimento econômico, passando pelo funcionamento das repartições públicas,
descrevendo as circunstâncias da saúde pública à época e também trazia algumas considerações a
respeito do funcionamento da justiça e da polícia. Os relatórios eram, pois, divididos em tópicos,
sendo que nos interessam, para este capítulo, aqueles que tratam do “gabinete de identificação e
estatística criminal”.
Uberaba não era uma dessas cidades, segundo Felício Buarque, autor do artigo “A
criminalidade em Uberaba: ensaio de criminologia local”. Este texto é muito importante para este
trabalho, pois traz informações valiosíssimas quanto à organização da justiça em Uberaba. Seu
autor era promotor da cidade, cargo que deixava quando escreveu o artigo. Formado na escola do
Recife, ele realizou diversos trabalhos antes de aportar na cidade em 1900. Suas principais
preocupações repousavam no bom funcionamento da justiça, o que, na sua visão, aconteceria
quando houvesse a quebra da interferência política sobre a ação dos juízes e promotores. No
artigo estudado para este trabalho, Buarque trata da questão criminal local, revelando o cenário
em que vinha funcionando a justiça. As principais notas que faz são quanto à inadequação do
5
sistema judiciário à conjuntura criminal de Uberaba – cidade importante da região que, segundo
este autor, vinha experimentando crescentes índices de criminalidade. Ele alega que somente por
meio das estatísticas se podia estudar e comparar os fatos políticos, econômicos, sociais e naturais
através do tempo e do espaço. Na sua visão, o serviço de estatísticas no Brasil era imperfeito e
deficiente, pois não estaria presente nas manifestações da vida ativa, isto é, não era utilizado
adequadamente para a implementação de políticas públicas. A situação deste serviço, no que se
refere aos números criminais em Minas Gerais, também é criticada por Buarque que diz ser sua
organização precária e simples, agravada pela relutância dos responsáveis pelo policiamento local
em remeter ao chefe de polícia estadual os mapas de dados, o que estaria acarretando uma série
de embaraços à administração policial do Estado.
Ainda segundo aquele autor, os servidores públicos seriam, em geral, muito mal
remunerados e, no caso específico da administração da justiça, isso teria conseqüências nefastas.
Os funcionários do Judiciário, sem salários expressivos, estariam presos à “partidarismos”,
atendendo aos desígnios das elites locais em troca de favores financeiros. Essa constatação era
fruto, talvez, da experiência de Buarque, o qual já havia sido promotor em outras cidades e
sofrera com as tentativas de manipulação por parte dos “comandantes” locais. No relatório 1906,
o presidente estadual Francisco Antônio de Salles chega a admitir a necessidade de remuneração e
militarização da força policial, mas alega total falta de recursos para isso.
Thompson, 1987). No caso do Judiciário é a mesma coisa: para obter o respeito e a confiança de
todos, a dinâmica deste poder deveria ser (ou parecer) a mais reta possível.
Continuando suas críticas, Felício Buarque procede a uma pesquisa junto aos autos – já
que o Estado não realizava o serviço adequadamente na sua visão – para “conhecer a
administração da justiça, a ordem e a segurança pública, o número, a qualidade e o julgamento
dos crimes” (Buarque, 1904: 139). Ele faz uma distinção entre a estatística policial e a criminal,
sendo esta última relativa aos julgamentos e condenações; estas duas se completariam, segundo
suas palavras,
[...] por seus objetivos e fins [...]: enquanto uma relata ocorrências,
deliberações e diligências mais importantes da polícia a bem da ordem e
da segurança pública, a outra faz conhecer a qualidade e número dos
crimes, seu julgamento em lugar e tempo determinados, a administração
da justiça, a forma do desempenho de seus deveres e as condições
morais e intelectuais dos réus. (Buarque, 1904: 116)
Buarque fez este levantamento na Comarca elaborando uma tabela sobre a movimentação
do fórum local desde 1901 até setembro de 1904. Seu trabalho consistiu em analisar cada auto
processual, tarefa que declarou haver sido penosa, admitindo, também, o fato de que seus dados,
provavelmente, estariam “incompletos em relação ao número de processos apresentados a
julgamento” (Buarque, 1904: 166)
Ainda é oportuno lembrar que, entre os motivos que levaram Felício Buarque a escrever
este artigo, além da clara preocupação com o bom funcionamento da justiça, está a defesa de sua
classe – funcionário público – e, ainda, tantas outras motivações que não podemos identificar
com precisão. Ainda assim, tanto os dados levantados por este promotor quanto as análises por
ele empreendidas, mesmo ao tratarem de poucos anos em relação aos que pesquisamos aqui,
fornecem bases para uma melhor compreensão das estatísticas criminais aqui apresentadas, bem
como para o conhecimento da dinâmica cotidiana do trabalho do Judiciário na Comarca de
Uberaba.
Os crimes que passaram pela justiça na Comarca de Uberaba são, em sua maioria, contra
a pessoa. Os homicídios, tentativas de homicídios e agressões figuram com 74,2%,
aproximadamente, do total de crimes. A tabela 1 mostra a distribuição percentual deste e de
outros dos tipos delitos julgados.
TABELA 1
TIPOS DE CRIMES JULGADOS NA COMARCA DE UBERABA/MG 1890-1920
Tipo de Crime Quantidade %
Crimes contra a pessoa 915 74,2
Crimes contra a propriedade 181 14,6
Crimes contra a honra e honestidade das famílias e ultraje ao pudor 36 3,0
Crimes contra a boa ordem e administração pública 30 2,4
Contravenções 28 2,3
Crimes contra a honra e a boa fama 17 1,4
Crimes contra a segurança interna da república 11 0,9
Crimes contra a Fé Pública 7 0,6
Crimes contra a tranqüilidade pública 6 0,5
Crimes contra a segurança do estado civil 2 0,1
Total 1233 100
Fonte: APU
8
A separação dos tipos de crime e contravenções foi feita com base no Código Penal de
1890. Para fins de quantificação foram arrolados todos os crimes separadamente e,
posteriormente, agrupados de acordo com o que dispõe aquele código de leis com relação aos
crimes e contravenções. Porém, para efeitos de melhor visualização e análise, foi feita uma
alteração nesta divisão. Nos casos de crimes contra a propriedade, estão juntos dois tipos de
crimes que o código classifica separadamente, quais sejam, os furtos e os roubos. O primeiro é
classificado como “crime contra a propriedade pública e particular” e figura neste título junto
com outros crimes como o dano material, a falência, o estelionato e as fraudes. Aí estão os crimes
que não envolvem ameaça nem qualquer tipo de contato com a vítima. Já os roubos estão em
outro título devido, justamente, a essa questão da ameaça de ofensa à vítima para a obtenção de
qualquer de seus bens por parte do criminoso. No título “crimes contra a pessoa e a propriedade”
está, além do roubo, o crime de extorsão. Esta junção se deu pelo fato de que, dessa forma, pode-
se realizar melhor análise, já que estes crimes, em essência, são criminalizadas pelo mesmo
motivo, qual seja, a defesa da propriedade privada.
Para os demais crimes foi mantida a classificação feita pelo Código Penal de 1890.
Vamos, então, a partir de agora, analisar estes dados em seus aspectos mais relevantes e de
acordo com o grau de incidência ou, melhor dizendo, a eficiência da justiça no julgamento de
delitos, em busca de entender quais seriam os delitos cuja criminalização mais interessava à
justiça, porquê e algumas das implicações disso na sociedade local.
Os dados nos levam a crer, pois, que a ação da justiça era mesmo diferente, o que não
quer dizer que a polícia não se preocupava com os delitos contra a pessoa, sendo, na verdade, o
contrário. A repressão às contravenções penais – efetuada pela polícia por meio de prisões as
quais nem sempre eram acompanhadas de um processo – tinha o caráter de evitar que qualquer
9
ofensa às pessoas pudesse tomar lugar. O conceito de contravenção trata de um tipo de delito
com grau de importância menor que simbolizaria “um passo para o crime”, tendo em vista os
locais onde se praticariam tais delitos, como as casas de prostituição, de tavolagem (jogos), bares,
etc., e, ainda, pela falta de ocupação dos delinqüentes, no caso da repressão à vadiagem e
capoeiragem (Cf. Salvadori, 1990: 47). Quando se faz a análise da criminalidade com base nos
dados da polícia, principalmente o número de prisões, notamos uma maior relevância das
contravenções, então, devido a esta sua característica.
Como dissemos acima, a repressão às contravenções era um meio de fazer com que os
indivíduos com tendências criminais e os locais “devassáveis” deixassem de representar perigo de
aumento da criminalidade. No que se refere, porém, à criminalização por parte da justiça, ela
podia apresentar-se em menor escala devido à ineficácia de aplicação prática destas leis. Por
exemplo, Felício Buarque afirma que as leis contra a vadiagem não tinham como concorrerem
para a diminuição da criminalidade, posto que eram pouco eficientes no combate à vadiagem e ao
ócio, delitos os quais, segundo ele, eram as causas do aumento da criminalidade na comarca
uberabense.
aqueles cuja disciplinarização era premente para a nova lógica sócio-econômica do trabalho que
ora se implantava.
O grande número de crimes contra a pessoa traz para Uberaba uma característica comum
às cidades do interior, marcadas pelo que Maria Sylvia de Carvalho Franco chamou de “código do
sertão”. Em situações de desavenças pequenas, ela constatou que grande número dos casos
mostrava uma regularidade no traço do desfecho violento. Por motivos quase banais aos nossos
olhos, homens se matavam e, ainda assim, dificilmente gozavam de desprestígio junto à
comunidade, a qual encarava essa atitude como um modo de defesa da honra.
A discussão a respeito das causas das rixas e brigas na resolução de conflitos cotidianos é
bastante interessante e as cidades mais fortemente ligadas ao ambiente rural pouco foram
estudadas pela historiografia. Sidney Chalhoub faz uso de processos criminais para resgatar o
cotidiano das classes trabalhadoras no Brasil do início do século XX, no Rio de Janeiro.
(Chalhoub, 2001) Ele mostra que havia uma preocupação grande com a imposição de uma
disciplina do trabalho e os crimes explicitariam a resistência das classes trabalhadoras em se
adequarem ao novo modelo econômico social, cujo processo de instalação veio junto com a
República. Para ele, a rixa era um processo no tempo que vinha moldando a já existente
indisposição entre dois indivíduos – preenchendo-a de motivações de ambas as partes envolvidas
– e que culminava no momento do desafio, cujo desfecho era o conflito violento; ou seja, no
estudo de seus casos, Chalhoub constatou que a rixa era fruto da dinâmica “de funcionamento e
ajuste das tensões dentro do microgrupo sociocultural estudado”. (Chalhoub, 2001: 310) Ele
considera, pois, que o uso da violência não seria gerado por motivos frívolos e, ao contrário, seria
“o resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros de uma cultura ou
sociedade”. (Chalhoub, 2001: 310) O uso da violência seria, então, socialmente aceito como meio
de resolução de conflitos, mas um meio normatizado, visto ser parte de um processo cognoscível
pelos indivíduos envolvidos, onde cada papel teria um desempenho previsível. Não cabe aqui
uma busca por respostas quanto a questão das causas deste tipo de criminalidade, até porque,
dessa maneira, estar-se-ia enveredando pelos caminhos complexos da interdisciplinaridade com a
antropologia e a psicologia. Contudo, vale a pena deixar registrado que este grande número
11
crimes, ou pelo menos a sensação de uma crescente criminalidade, estava presente nas
preocupações dos contemporâneos.
A característica segundo a qual a violência seria, até certo ponto, socialmente aceita,
também é levantada por Felício Buarque quando este argumenta sobre a falta de comoção
pública para com os crimes em Uberaba. Ele explica que o grande número de brutalidades contra
as pessoas seria fruto do pouco prestígio das instituições garantidoras da ordem social. Felício
Buarque acreditava, ainda, que a alta criminalidade seria uma conseqüência de múltiplas causas de
ordem moral, social e política. Aliada à falta de civismo por parte da população e de altruísmo
para com os interesses públicos por parte dos funcionários da justiça, a ação contra os crimes não
tinha oposição. (Cf. Buarque, 1904) Ele escreveu:
O aumento dos índices de criminalidade, durante o período estudado, era explicado pelos
contemporâneos em função do argumento do crescimento das cidades. Uberaba, principalmente
depois da chegada da ferrovia, em 1889, tornara-se um importante centro regional, atraindo um
contingente populacional expressivo, inclusive de imigrantes estrangeiros, apesar de esta não ser
uma região preferencial na introdução destas pessoas devido a escolhas feitas pelo governo
estadual.(Cf. Silva, 1998) A população, em meados do período estudado, segundo o
recenseamento de 1909, era de 35 mil pessoas (recenseamento encontrado no Almanack
Uberabense, realizado nos dias 13, 14 e 15 de julho de 1909. Biblioteca do Arquivo Público de
Uberaba, caixa 17). Este era o contingente de pessoas que concorreu, segundo contemporâneos,
como Felício Buarque, para um aumento da ineficiência da justiça.
Apesar da população não ser muito expressiva quando comparada aos grandes centros,
principalmente em relação às capitais, cabe ressaltar que Uberaba era uma dentre as principais
cidades de Minas, figurando juntamente – em importância política e econômica – com Juiz de
Fora e Ouro Preto, por exemplo.2 Outrossim, Uberaba era a sede de uma comarca de proporções
2 Segundo as análises feitas nos relatórios dos presidentes do estado mineiro, os quais apresentavam a região
como preferencial para a instalação de prédios com repartições públicas estaduais. Esta aparente relevância dava-se,
eminentemente, também devido à necessidade de integração do Triângulo ao resto de Minas Gerais, tendo em vista o
12
geográficas bastantes expressivas; pensando nisso, Felício Buarque alerta para o fato de que para
uma boa administração da justiça seria necessária uma adequação da estrutura de funcionamento
judicial ao tamanho da área por ela abrangida. A comarca de Uberaba, segundo ele, era muito
grande e incorporava, além de seus distritos – Conceição das Alagoas, Dores do Campo Formoso
(atualmente chamada de Campo Florido), Veríssimo, Água Comprida e Ponte Alta – também
outras cidades circunvizinhas do Triângulo Mineiro.3 A tabela 2 traz a distribuição dos
julgamentos dos crimes segundo os distritos em que foram praticados.
TABELA 2
NÚMERO DE PROCESSOS EM CADA DISTRITO E CIDADES QUE COMPUNHAM A COMARCA DE
UBERABA - 1890-1920
Distrito Quantidade %
Uberaba 1025 83,2
Conceição das Alagoas 82 6,6
Veríssimo 68 5,5
Dores do Campo Formoso 25 2,0
Ponte Alta 15 1,2
Uberabinha 5 0,4
Água Comprida 4 0,3
Frutal 2 0,2
Sacramento 2 0,2
Araguari 2 0,2
Bagagem 1 0,1
Delta 1 0,1
Conquista 1 0,1
Total 1233 100,0
Fonte: APU
Como se pode notar, a maioria dos crimes ocorriam em Uberaba e, por se tratar de uma
estatística elaborada com base em processos, não se deve esquecer de mencionar o fato de que
talvez o mais óbvio a se concluir pode não ser o mais correto. O mais óbvio seria de que
Uberaba, por ser a maior cidade, centro comercial, teria um contingente maior de incidência
criminal ou mesmo de criminosos em meio à sua população. Mas, por outro lado, o próprio
Felício Buarque já alertava que as distâncias impediam o funcionamento correto da justiça,
fazendo com que os crimes de menor gravidade quase nunca chegassem ao conhecimento do
Judiciário.
fato de esta região estar muito mais ligada, econômica, social e culturalmente ao estado de São Paulo. (Cf. SILVA,
1998, passim).
3 Estas cidades são: Uberabinha (atual Uberlândia), Frutal, Sacramento, Conquista e Araguari.
13
Nos distritos do interior fica impune grande parte dos crimes por
condescendências pessoais ou partidárias. E, algumas vezes, acontece
que as autoridades, julgando-se fracas para o desempenho de seus
deveres, não procedem às diligências preparatórias para a instauração de
processo, não chegando, assim, o fato criminoso ao conhecimento dos
poderes competentes. (Buarque, 1904: 68)
Isto, refletido em números, tem o seguinte aspecto: por exemplo, dos 82 processos que
constam como crimes ocorridos em Conceição das Alagoas, 29 são por homicídio e 25 por
tentativa de homicídio; isto significa que, 54 processos, ou 65%, aproximadamente, dos casos
analisados pela justiça são de crimes de maior gravidade dentro dos valores e da compreensão
moral vigente até os dias de hoje. Em outras palavras, a quantidade inexpressiva de casos de
julgamentos de outros tipos de crimes se deve não à inexistência destes nos distritos da cidade e,
sim, pelo fato de que problemas como a distância – que dificultava a comunicação dos agentes
policiais locais e judiciais da comarca – praticamente tornavam inviável uma ação penal contra
outros alvos tradicionais da repressão do início da república, como a vadiagem, o jogo, a
prostituição, entre outros. Isto também pode nos levar a crer que a justiça nestes locais talvez
fosse menos presente, prevalecendo as resoluções tomadas pelos líderes da comunidade –
representados pela figura do delegado ou do padre, por exemplo. Este argumento poderia se
tornar inválido à medida que se observa o fato de, em Uberaba, os processos de homicídios e
tentativas de homicídio representam mais de 70% dos casos. Contudo, os casos de crimes com
menor contingência no total e as contravenções, como aquelas citadas acima, estão presentes,
quase que exclusivamente, em Uberaba. Isto indica, possivelmente, uma dinâmica na qual
somente os crimes de maior impacto seriam resolvidos na instância da Justiça Penal. Em outras
palavras, caso ocorressem faltas delituosas menos graves, na visão dos contemporâneos, estas
eram, provavelmente, resolvidas pelas autoridades locais sem a recorrência ao sistema judicial.
Reforça-se, assim, a idéia de que a distância tinha peso para o bom funcionamento da justiça. 4
4 Sendo este “bom” entendido, aqui, como passível de ser acionada em qualquer situação de transgressão da
lei.
14
GRÁFICO 1
DISTRIBUIÇÃO DAS OCORRÊNCIAS NO PERÍODO DE 1890-1920, COMARCA DE UBERABA/MG.
70
60
50
40
Número de Casos
30
20
10
1890 1894 1898 1902 1906 1910 1914 1918
1892 1896 1900 1904 1908 1912 1916 1920
Anos
Fonte: APU
TABELA 3
NÚMERO DE CASOS JULGADOS EM PERÍODOS DE CINCO ANOS – COMARCA DE UBERABA, 1890-
1920
Períodos Número de casos %
1890-1895 120 9,8
1996-1900 192 15,6
1901-1905 216 17,5
1906-1910 238 19,3
1911-1915 237 19,2
1916-1920 230 18,6
Total 1233 100
Fonte: APU
15
Como foi dito, há um movimento de ascensão, quando o número de casos aumenta cerca
de 60% (entre 1890 e 1900), e depois de estabilização, quando a variação média é de algo em
torno de 4%. Esse aumento tem, certamente, causas repousadas no incremento da população
com a introdução do imigrante, mas podem também refletir uma acomodação da instituição
judiciária a uma dinâmica de trabalho mais intensa, já que (não devemos esquecer), antes de um
trato da criminalidade, estes números revelam a eficiência do serviço judicial. Isto nos leva a
pensar, pois, em uma dinamização das atividades judiciais em virtude de um possível
desenvolvimento dos aparelhos de funcionamento da justiça em Uberaba. Uma outra observação
a se fazer é a respeito da brusca queda ocorrida nos julgamentos, no ano de 1920: ela se deu,
provavelmente, devido ao problema do sub-registro, visto ser pouco provável que a justiça
diminuísse tão bruscamente sua eficiência e na proporção como a demonstrada no gráfico.5 No
início de 1890, também há um número muito pequeno de crimes julgados – coincidentemente o
mesmo número encontrado para o ano de 1920 – porém temos motivos para acreditar que estes
dados tenham explicações diferentes, principalmente porque tratam de períodos distintos. No
início da República a adaptação ao novo regime decididamente teve alguma influência na pouca
atuação judicial. No entanto, há bem menos motivos para se acreditar que essa situação pudesse
ser semelhante em 1920, até porque é este período muito peculiar na história uberabense, pois a
cidade começa a experimentar os frutos do desenvolvimento da economia pecuária – que
mudaria a face da região a partir de então – e, por isso, a criminalidade “real”, assim como o
movimento judicial, não teriam motivos para diminuírem.
5 Em 1919 o número de crimes julgados foi de 49, dentro da média dos outros anos anteriores; já em 1920,
ação judicial, como é o caso deste trabalho. 6 Isto não se encaixa na comarca estudada devido ao
fato de haver um maior número de crimes contra a pessoa, os quais poderiam até ter um caráter
utilitarista, mas não no sentido teorizado por Paixão.7 O gráfico 2 mostra que os crimes contra a
pessoa cresceram na mesma proporção, ou até mais, do que os crimes contra a propriedade.
GRÁFICO 2
VARIAÇÃO NO NÚMERO DE OCORRÊNCIAS DE CRIMES CONTRA A PESSOA E CRIMES CONTRA A
PROPRIEDADE NA COMARCA DE UBERABA
1890-1920
Crimes contra a pessoa Crimes contra a propriedade
50
45
40
Número de ocorrências
35
30
25
20
15
10
5
0
90
92
94
96
98
00
02
04
06
08
10
12
14
16
18
20
18
18
18
18
18
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
19
Anos
Fonte: APU
O que se percebe pela observação do gráfico é que, em primeiro lugar, Uberaba tinha um
grau de variação diferente entre os crimes contra a pessoa e contra a propriedade; além disso,
nota-se que, somente por um breve período, no final do século XIX, os crimes contra a
propriedade estiveram, quantitativamente, próximos aos contra a pessoa. As variações de
crescimento possuem, ainda, outra diferença importante: no caso dos crimes contra a
propriedade, as variações bruscas são menos freqüentes, o que, em certa medida, mostra que este
tipo de crime tinha uma presença constante na sociedade local, apesar de em um dos anos
6 Posto que o Judiciário não tinha o mesmo caráter da polícia, ou seja, pouco tinha que reprimir as
“estratégias de sobrevivência” cotidianas das classes que enfrentavam as barreiras às benfeitorias e produtos urbanos.
(Cf. Fausto, 1984, passim).
7 Um crime contra a pessoa, por exemplo, homicídio, poderia ser praticado com vistas a lograr algum
benefício, material ou não, como a defesa da honra. Entretanto, isso não significaria que fora praticado pelos
17
analisados não haver chegado aos tribunais nenhum crime contra a propriedade (pelo menos
segundo as fontes consultadas), mostrando tanto que estes tipos de crimes pouco ocorriam
como, também, que a polícia e a justiça não conseguiam ser eficientes no seu combate.
A linha de desenvolvimento dos crimes contra a pessoa é muito parecida com a linha
geral da criminalidade apresentada no gráfico 1; isto se explica pelo fato de que este tipo de crime
representava a maior quantidade de crimes julgados, mais de 74%, e, assim, é o seu crescimento
que alavanca a linha do primeiro gráfico. Então, os crimes contra a propriedade, mesmo que
estivesse a região da comarca de Uberaba passando por diversas transformações econômicas e
sociais naquele período – incluindo o desenvolvimento da área urbana – não teve a tendência de
aumento. Contudo, é notável o fato de que no texto de Felício Buarque o crescimento da cidade
seja apontado como uma causa do aumento da insegurança local; isto nos leva a crer, pois, que
além dos possíveis efeitos maléficos do desenvolvimento urbano à propriedade privada não
superaram, na visão de Buarque, a falta de senso moral que carregavam as pessoas que chegavam
intensamente à região, fazendo com que os índices de criminalidade crescessem além do que
considerava normal.
Uberaba contava com, pelo menos, dois jornais importantes no período estudado: a
Gazeta de Uberaba, fundado em 1876, e o Lavoura e Comércio, fundado em 1899 e que circulou até o
motivos expostos por Paixão, que atrela a prática criminosa a fatores externos – de natureza econômica muitas das
vezes – ao indivíduo.
18
8 Este jornal, infelizmente, não pôde ser consultado na íntegra de sua coleção, disposta no então prédio sede
do periódico, devido às precárias condições em que se encontram os materiais, resultado da ação do tempo.
Restando-nos analisar alguns exemplares encontrados no Arquivo Público de Uberaba.
9 Os jornais analisados são em número de 60 exemplares, dos anos de 1893, 1909 a 1916.
10 Mais uma vez me refiro, aqui, ao conjunto dos artigos analisados por amostragem. Escrevia-se muito a
respeito das posições da política local em relação ao resto da nação, com altercações acerca de temas como o apoio
determinada candidatura, ou os trabalhos legislativos tanto no plano estadual quanto nacional.
19
as mulheres pouco figuravam como rés nos processos. Conforme a tabela 5, elas representam
uma quantidade bastante inferior em relação ao número de homens.
TABELA 4
SEXO DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA
1890-1920
Sexo Quantidade %
Masculino 1431 93,6
Feminino 97 6,4
Total 1528 100,0
Fonte: APU
Segundo Boris Fausto, (Fausto, 1984) o aparelho de repressão policial não representava
um instrumento básico para o controle social da mulher; este era realizado por meio da família,
da escola, da igreja, enfim, de outros segmentos que cuidavam de veicular a ideologia masculina
dominante. Os baixos índices de criminalidade feminina vêm sendo explicados já há algum
tempo pela historiografia mostrando que, no período em questão, a mulher tinha um estatuto
similar aos das crianças e loucos, isto é, era inimputável. Isto quer dizer que não eram
consideradas, pelos juristas, como capazes de responder por seus crimes.(Cf. 1996: 180, et seq.) O
lema dos juristas da época analisada neste estudo – “tratar desigualmente os desiguais” – vinha
carregado do pensamento penalista de então. A mulher, segundo a visão de alguns juristas, como
Tobias Barreto, era considerada como um dos alvos da política de “defesa social”, isto é, devia
fazer parte do grupo de pessoas que deveriam ser protegidas para evitar que incorressem no
crime – juntamente com as crianças e os loucos – não merecendo, dessa maneira, o mesmo
tratamento recebido pelos homens.11
Dessa forma, tendo em vista este fato de que a mulher vinha sendo considerada, por
alguns juristas adeptos da nova escola penal,12 como inimputável, temos melhor subsídio para
entender o porquê do número tão reduzido de mulheres nos dados expostos na tabela 5. Porém,
11 Segundo Tobias Barreto, “o sexo feminino deve formar, por si só, uma circunstância ponderável na
apreciação do crime. A má fé criminosa pressupõe a consciência da lei; mas esta consciência nunca se encontra nas
mulheres no mesmo grau em que se encontra nos homens. Já tem sido mesmo por vezes indicado como um traço
característico da mulher o mostrar ela pouco interesse pelos negócios públicos; ao que acresce que, por sua educação,
pela exclusão de toda e qualquer ingerência na política, ela tem sido proibida de chegar a um determinado
conhecimento do direito [...]” (Tobias Barreto, Menores e Loucos e fundamentos do direito de punir, 1926, p. 31 apud
Alvarez, 1996: 181).
12 Nova Escola Penal é o título de uma das principais obras de divulgação do pensamento criminológico no
Brasil, escrito por Viveiros de Castro, lançado em 1894. O sociólogo Marcos César Alvarez caracteriza esta escola
diferenciando-a do pensamento penalista que ela combatia: “Enquanto a antiga escola estudava o crime, a nova
escola penal se propõe a estudar o criminoso, punindo os indivíduos não de maneira uniforme, mas segundo as
necessidades da defesa social” (Alvarez, 1996: 90), isto é, “tratando desigualmente os desiguais”, buscando formas de
controle social segmentando a sociedade e adotando profilaxias distintas a cada caso. (Cf. Alvarez, 1996: 86 et seq).
21
há ainda outra questão pertinente quanto à participação feminina no cenário criminal, que é a
discussão quanto ao tipo de crimes por elas praticados e que mereciam a apreciação do Judiciário.
A tabela seguinte revela os traços do movimento das mulheres enquanto rés na comarca
uberabense.
TABELA 5
CRIMES PRATICADOS POR MULHERES JULGADOS NA COMARCA DE UBERABA/MG
1890-1920
Crime Quantidade %
Agressão Física 64 66,2
Tentativa de Homicídio 13 13,4
Homicídio 8 8,2
Roubo 3 3,1
Danos materiais 3 3,1
Ofensas verbais 2 2,0
Briga 1 1,0
Rapto 1 1,0
Incêndio 1 1,0
Adultério 1 1,0
Total 97 100
Fonte: APU
sofrendo dos mais variados crimes. Ante a estas constatações, acreditamos que, possivelmente, o
delito feminino representasse, em algum nível, uma resposta à ação masculina. Nas palavras de
Regina Caleiro,
Há, ainda, outra interpretação deste cenário, que pode ser feita tendo-se por base os
estudos como o de Mariza Corrêa sobre a invenção e reinvenção dos papéis sexuais nos
julgamentos de crimes envolvendo mulheres e homens. (Corrêa, 1983). Poderíamos, seguindo a
linha de pensamento geral de Corrêa, crer que os julgamentos de mulheres tivessem um caráter
de afirmação dos padrões de comportamento esperados desse gênero. A despeito do número
bastante superior de agressões e tentativas de homicídio, encontramos, ainda, julgamentos cujas
existências estão diretamente ligadas a esta questão da normatização da conduta feminina – como
as ofensas verbais, as brigas e, principalmente, o adultério que, não obstante o fato de se
encontrarem em número reduzido, são representativos de uma ação judicial que buscava trazer à
sociedade uberabense os exemplos de como não se deveria portar a mulher. Entretanto, bem
sabemos que a validação destas afirmações carece, por certo, de uma análise aprofundada dos
processos em questão, o que, especificamente aqui, não interessa a este trabalho.
TABELA 6
FAIXA ETÁRIA DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA
1890 - 1920
Faixa Etária Número %
até 10 anos 3 0,3
23
A análise destes dados seguirá, aqui, duas linhas principais. Em primeiro lugar, devemos
atentar para o grande número de jovens que figuram no rol dos julgados na comarca de
Uberaba.13 Estes representavam mais de 60% dos réus, o que nos leva a fazer considerações no
mesmo sentido do que Eric Hobsbawm escreveu. Ao tratar do banditismo social, este historiador
faz uma tipologia do bandido, dizendo que os mais jovens teriam uma predisposição maior a este
tipo de atividade. Afirma, ademais, que neste grupo de jovens estão aqueles que não possuem
família, nem nenhum tipo de vínculo com propriedades ou quaisquer outras responsabilidades
em geral.(Hobsbawm, 1979) Seria possível, então, concluir que, no caso estudado neste trabalho,
também é válida essa explicação. Por dedução, acreditamos que isso até poderia ter alguma
influência – afinal, é inegável o fato de que realmente o número de pessoas jovens é maior em
relação aos de demais idades. Entretanto, os números da tabela 7 associados aos dados sobre o
estado civil dos réus mostram que a argumentação de Hobsbawm pode não ser totalmente
aplicável à comarca de Uberaba. O número de solteiros (47,5%) é muito similar ao de casados –
os quais figuram com um pouco menos (46,8%) – levando-nos à crença de que, provavelmente,
quase não havia impedimentos, quanto ao estado civil, para que se cometesse um crime; isto vem
de encontro ao que Hobsbawm diz uma vez que ele supõe que os casados já possuíam algumas
responsabilidades as quais os poderiam afastar do crime. Mas não podemos, de mais a mais, ir
muito longe com esta comparação posto que Hobsbawm, ao tratar do banditismo social, está
escrevendo a respeito de um fenômeno substancialmente diferente do que é pesquisado neste
trabalho.
A segunda linha de interpretação dos dados constantes à tabela 7 diz respeito à questão
do número de indivíduos menores de idade que foram processados – aqueles que tinham até 21
anos representavam 22,5% dos criminosos. Segundo Alvarez, os menores, no pensamento dos
juristas influenciados pela nova escola penal, deveriam ser o alvo das estratégias de defesa social –
noção muito utilizada como objetivo (prevenção dos crimes) e como justificativa das práticas
penais (criação de locais próprios para detentos especiais, como os loucos e menores) – sendo
13 O termo “jovem”, aqui, designa as pessoas que estão na faixa dos 11 aos 30 anos de idade.
24
que sua criminalização era vista como uma maneira de incentivar à não reincidência. (Alvarez,
1996: 172 et seq). Por todo o país, exigia-se a construção de colônias correcionais para os jovens
com o fim de discipliná-los para prevenir o aumento da criminalidade e, ainda, livrá-los um pouco
das amarras estabelecidas pelo Código Penal de 1890, segundo o qual “o menor deveria cumprir
pena, definida como pena disciplinar, em estabelecimentos industriais especiais, correndo o risco
de aí ficar até os 21 anos, quando considerado vadio”.(Fausto, 1984: 81). A responsabilização
penal do menor passava por outras questões adjacentes como a da sua inserção no trabalho versus
sua educação. A pressão dos industriais contra os projetos de criação de colônias correcionais
para os jovens delinqüentes era bastante grande, o que fez prolongar a discussão deste tema no
início do século XX. (Fausto, 1984: 82 et. seq) Como foi dito acima, as teorias da nova escola
penal priorizavam a questão da prevenção dos crimes por meio da educação, coisa até então rara
entre as crianças pobres, as quais, desde fins do século XIX, tinham sua responsabilidade penal
atrelada ao fato de trabalharem desde cedo.
No caso estudado neste trabalho, o índice de réus menores processados (22,5%) atesta
que as determinações estabelecidas no Código Penal de 1890 eram cumpridas, isto é, apesar de a
consulta a outras fontes poder esclarecer melhor a questão, acreditamos que, talvez, a
preocupação com a não criminalização do menor não suplantasse a preocupação em respeitar a
lei e impedir a impunidade;14 isto vem corroborar uma das idéias centrais deste trabalho: a justiça
enfrentava, no seu cotidiano, desafios que iam além do que era discutido pelos penalistas
nacionais do início da República, e adotava medidas eminentemente funcionais, no sentido de
melhor resguardar a ordem pública.
14 Sempre é bom lembrar que, aqui, não estamos tratando, ainda, do discurso criminalizador empregado
pelos agentes da justiça, tampouco nos aludimos às absolvições ou condenações, as quais, caso fossem tomadas em
conta, somariam várias outras nuances à problematização que vem sendo exposta, mas também nos desviaria de
nossos objetivos neste artigo.
25
sabiam ler nem escrever.(Fausto, 1984: 86 et seq) Destarte, discutir-se-á alguns dos números
encontrados sobre a comarca de Uberaba, tendo em mente que muito pouco se poderá ir além
das constatações que dizem respeito à predominância de uma ocupação e de um nível de
instrução em relação aos outros.
TABELA 7
PRINCIPAIS OCUPAÇÕES DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA, 1890-1920
Ocupação Quantidade %
Lavrador 389 34,6
Outras 230 20,3
Negociante 75 6,7
Pedreiro 72 6,3
Jornaleiro 67 5,9
Soldado/policial/militar 67 5,9
Serviços domésticos 49 4,5
Carpinteiro 32 2,8
Sapateiro 26 2,3
Empregado do comércio 20 1,7
Ferreiro 16 1,4
Carroceiro 16 1,4
Alfaiate 13 1,1
Boiadeiro 13 1,1
Viajante 12 1,0
Agenciador 12 1,0
Cozinheiro 11 1,0
Cocheiro 10 1,0
Total 1130 100
Fonte: APU
Temos, pois, que o número de réus que se declararam lavradores é muito superior aos
demais. No caso estudado por Maria Aparecida de S. Lopes, o estado de Chihuahua, no México,
as transformações por que passava a região, ligadas diretamente a um cenário de
desenvolvimento econômico, traziam a oportunidade para os indivíduos de praticarem maior
26
gama de atividades. (Cf. Lopes, 1999: 78, et. seq.) Em seu caso, Lopes também se defrontou com
um cenário em que o número de lavradores era superior e, diante disso, argumentou que isso
seria sinal de que os réus pertenciam a uma categoria de trabalhadores bastante ampla. A resposta
à variedade de ocupações encontradas nas qualificações dos réus da comarca de Uberaba pode,
também, a exemplo do que ocorria no México, ser um reflexo das transformações que a cidade
vivia à época focalizada por este estudo. Com a chegada da ferrovia, em 1889, a cidade fortaleceu
seu tino comercial, atraiu imigrantes, estrangeiros e de outros estados, e experimentou, por algum
tempo, um momento de prosperidade econômica.15 As mudanças desse período seriam também a
explicação para o grande número de casos de réus que se declaram profissionais em ramos de
atividades tipicamente urbanos. Era um contingente bastante expressivo, superando, quando
somados, inclusive, o número de lavradores.
15 Esta prosperidade durou pouco tempo, pois, ainda nos anos 1890, foi terminada a extensão da linha
ferroviária de Uberaba até Araguari, passando por Uberabinha (atual Uberlândia), dividindo com estas cidades o
movimento comercial. Este fato contribuiu, ainda, para o progressivo enfraquecimento econômico-comercial da
cidade a inauguração da estrada de ferro entre Bauru e Campo Grande. (Cf. Rezende, 1991).
27
Podemos, por fim, argumentar, a exemplo do que ocorreu no caso estudado por Lopes,
que o réu não era um marginal. Ao declarar uma ocupação, por mais que isso pudesse não ser
verídico, este demonstra ter inserção na dinâmica social.
Conhecer o nível de instrução dos criminosos é tarefa das mais difíceis, principalmente
quando se está tratando com dados judiciais, pois esbarramos nos problemas mencionados acima,
quanto à forma de classificação. Nos casos estudados, o auto de qualificação do réu quase sempre
trouxe resposta a esses problemas. Nas respostas dos réus, a instrução consistia em quatro graus
que, por sua vez, foram utilizados para a quantificação. Os graus eram os seguintes: saber ler e
escrever; não saber ler e escrever; saber assinar o nome e mal saber assinar o nome e ler e/ou
escrever. Em uma época em que a instrução pública engatinhava, o número de pessoas que
diziam saber ler e escrever é surpreendente. A tabela 8 vai lançar um pouco de luz sobre esta
questão.
TABELA 8
NÍVEL DE INSTRUÇÃO DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA
1890-1920
Nível de Instrução Quantidade %
Sabe ler/escrever 623 56,4
Não sabe ler/escrever 394 35,7
Sabe assinar o nome 66 6,0
Mal sabe assinar o nome e/ou ler/escrever 21 1,9
Total 1104 100,0
Fonte: APU
28
Mais da metade dos réus julgados na comarca de Uberaba declararam saber ler e escrever.
Desse modo, não há como fazer uma tipologia do criminoso quanto à sua condição social por
meio destes dados. Para isso, teremos que recorrer ao cruzamento dos dados relativos também à
ocupação. Como dissemos acima, existia um grande contingente de réus que declararam
profissões típicas da cidade, figurando entre as 107 ocupações catalogadas todo o tipo de
atividade, inclusive, a dos profissionais liberais, funcionários públicos de importância municipal e
estadual, prestadores dos mais variados serviços entre outros. A observação da próxima tabela
pode nos fazer enxergar melhor quais seriam as implicações deste cenário inusitado no que se
refere ao grau de instrução apresentado pelos réus.
TABELA 9
CRUZAMENTO ENTRE DADOS DA OCUPAÇÃO E DE RÉUS QUE SABIAM LER /ESCREVER NA
COMARCA DE UBERABA
1890 – 1920
Sabe ler/escrever %
Outros 198 32,6
Lavrador 160 26,5
Negociante 56 9,2
Pedreiro 39 6,6
Soldado/policial 26 4,2
Sapateiro 22 3,6
Jornaleiro 21 3,4
Carpinteiro 20 3,2
Empregado do comércio 18 2,9
Ferreiro 13 2,1
Alfaiate 13 2,1
Serviços domésticos 12 1,9
Agenciador 10 1,7
Total 608 100
Fonte: APU 16
16 As diferenças entre os números desta tabela e a tabela de ocupações (7) se devem ao fato de que nem
todos os réus declararam ao mesmo tempo sua ocupação e seu grau de instrução, havendo casos em que nenhuma
das duas questões foi respondida pelo réu.
29
Onde tantos lavradores aprenderam a ler? E porque isso ocorria, já que se trata de uma
época em que a instrução pública apenas se esboçava? Essas e outras questões saltam das tabelas
e vêm tornar cada vez mais intrigante esta questão da ocupação e instrução dos réus na comarca
de Uberaba. Infelizmente, não nos é possível responde-las com a precisão pretendida, mas
podemos problematiza-las ainda mais. Certo é que a justiça em Uberaba estava tratando com
pessoas as quais podiam discernir, no mínimo, a importância que o conhecimento da escrita
podia lhes render, mesmo que não a soubessem. Portanto, para além da simples dedução de que
se trataria de mera coincidência o quadro revelado acima, devemos pensar em, basicamente, duas
questões: procurar entender como se mostrava o quadro educacional de Uberaba no período e,
em segundo lugar, em conseqüência da primeira, perguntarmo-nos a respeito da plausibilidade
das declarações dos réus.
Caso os dados de Silvio Camara estejam corretos, mesmo próximos a isso, configura-se
uma situação extremamente intrigante neste ponto do trabalho. Como poderia, em 1909, haver
30
70% de analfabetos e tantos criminosos que alegavam saber ler e escrever? A hipótese de que
ocorreu uma coincidência não pode ser aceita, principalmente, depois que cruzamos os dados da
ocupação com os da instrução.
A segunda questão a ser analisada na tentativa de explicar o que acontecia é que talvez
fosse comum se declarar alfabetizado, mesmo mal sabendo ler ou assinar o nome, sendo que esta
parece ser a opção mais aceitável para este caso, tendo em vista a discrepância entre os dados
apresentados por Silvio Camara e aqueles coletados nesta pesquisa. Ante todas essas
possibilidades, o mais certo é que havia uma confusão entre os conceitos de quem era ou não era
alfabetizado, sendo que os indivíduos julgados se auferiam a capacidade de ler e escrever, mas, ao
que parece, isso não era considerado alfabetização por alguns como o autor do trecho acima. Em
outras palavras, saber ler e escrever era diferente de ser alfabetizado. Tanto isto pode ser verdade
que já em meados dos anos dez do século passado, de acordo como a análise de alguns dos
processos criminais, constatou-se que a justiça começou a utilizar os termos “alfabetizado” e
“analfabeto” para qualificar os réus.
Por fim, pouco se pode ter como certo no tipo social do criminoso julgado na comarca de
Uberaba. Percebemos que havia um reconhecimento por parte dessas pessoas com relação ao
valor da educação básica para sua própria valorização junto aos seus pares, o que pode nos levar a
crer em um cenário no qual a afirmação perante a sociedade, em um meio eminentemente rural
que se urbanizava, passava a ser contada pela capacidade de ler/escrever. Ligado a isto, deve-se
ressaltar o papel do Judiciário neste processo, qual seja, a confiabilidade que ele detinha junto
àqueles com quem lidava. O fato de os indiciados utilizarem-se do sistema judicial para
afirmarem-se socialmente é marca de que a justiça exercia no cotidiano local um papel de
respeitabilidade considerável, sendo um local onde não se permitiria adotar ou mesmo ser algo
diferente daquilo considerado ideal, neste caso, alfabetizado.
Os imigrantes que vieram para a região de Uberaba, em sua maioria, eram transmigrados
do interior de São Paulo. Alguns vinham em busca de melhores condições de trabalho na lavoura,
mas muitos traziam suas reservas econômicas, auferidas no trabalho braçal no estado vizinho e
assumiam em Uberaba postos de comerciantes, vendedores entre outros. (Cf. Silva, 1998)
Portanto, o imigrante que veio para a região seria, teoricamente, menos propenso, segundo o
pensamento da época, à prática de crimes.
TABELA 10
QUANTIDADE DE CRIMES PRATICADOS POR ESTRANGEIROS JULGADOS NA COMARCA DE UBERABA
1890 - 1920
Nacionalidade Quantidade %
Italiano 58 33,0
Espanhol 35 19,9
Turco 29 16,5
Português 22 12,5
Sírio 21 11,9
Inglês 4 2,3
Argentino 2 1,1
Austríaco 2 1,1
Alemão 1 0,6
Paraguaio 1 0,6
Belga 1 0,6
Total 176 100,0
Fonte: APU
Estes dados mostram que, ante o pequeno contingente de imigrantes da região, houve
uma repressão equivalente, em quantidade, às suas atividades cotidianas. Isto é, como não havia
tantos estrangeiros vivendo em Uberaba, poucos também foram os que tiveram apreciações
judiciais de seus atos delituosos. Os crimes mais praticados pelos estrangeiros foram, seguindo os
padrões dos demais julgamentos, as agressões físicas. Os números apresentados são
32
Encontramos nos dados levantados que a ocupação mais declarada pelos estrangeiros foi
a de negociante, com aproximadamente 16%, seguida pela de pedreiro, com 13% ficando a de
lavrador com apenas 7% do total. Isso mostra, pois, que o imigrante que vinha para Uberaba era
realmente mais bem estruturado financeiramente e, por isso, possuía meios para exercer
atividades mais lucrativas e urbanas, mas isso não os tornava menos propensos a cometerem
delitos, porquanto o fato de que aqueles os quais, provavelmente, teriam mais recursos
financeiros, ou seja, os negociantes – ocupação declarada por aqueles que possuíam algum tipo de
estabelecimento de comércio (bares, mercados, etc) – eram os que com maior freqüência se
encontravam entre os criminosos estrangeiros na comarca uberabense.
* * *
À guisa de conclusão a este artigo, podemos dizer que o os crimes julgados na Comarca
de Uberaba eram práticas de resolução dos conflitos cotidianos, as quais a justiça tentava
disciplinar. Isto implica imaginarmos que a região pesquisada detinha valores culturais e padrões
de comportamento eminentemente ligados a uma cidade de hábitos “rurais”, na qual
predominavam os crimes contra a pessoa. Este modo de se comportar e pensar da sociedade
local era alvo das ações do Judiciário que, como um todo, tentava “modernizar” o Brasil.
Ademais, este tipo de crimes julgados – contra a pessoa – e as características dos indivíduos que
passaram pelas teias da Justiça – eram eminentemente homens e trabalhadores braçais –
17 Segundo Fausto (1984, p. 69/69)“No terreno da criminalidade, em seu sentido mais genérico, os
estrangeiros deixaram de constituir um grupo específico que alguns setores letrados quiseram vincular à prática do
crime como ocorreu por um breve período. Isto se deveu [...], secundariamente, às possibilidades abertas de ascensão
social, que não incentivaram o surgimento do crime organizado nas mãos dos estrangeiros”. Acreditamos, que em
Uberaba, houve uma rápida aceitação dos imigrantes, pois, muitos deles transmigraram de São Paulo, trazendo
reservas monetárias que possibilitaram sua colocação na sociedade como pequenos produtores e comerciantes. (Cf.
Silva, 1998).
33
Por fim, cabe, aqui, ressaltarmos que a atuação do Judiciário do início da República do
Brasil, sob a óptica de seus contemporâneos, caminhava para além desta constatação de que
deveria reprimir as “classes perigosas”. Sua legitimidade era conseguida à medida que procurava
criminalizar indistintamente todo aquele que atentasse contra a lei, sendo que sua atuação, de
acordo com os dados até aqui discutidos, denota que o Judiciário enfrentava situações que
ultrapassavam as questões discutidas pelos juristas à época.
Fontes consultadas
Manuscritos
PROCESSOS CRIMINAIS. Arquivo Público de Uberaba, Minas Gerais.
Localização:
1890-1900: caixas 10 a 76 – 312 processos
1901-1910: caixas 84 a 178 – 454 processos
1910-1920: caixas 92 a 189 – 476 processos
Publicações e periódicos
BUARQUE, Felício. A criminalidade em Uberaba: ensaio de criminologia local (parte II). Revista
de Uberaba, fascículo 3, volume 1, 1904.
CAMARA, Silvio. “Analphabetismo”, In: Gazeta de Uberaba, 28/11/1909, n. 3720.
GAZETA DE UBERABA, n. 3454, 26/1/1909.
GAZETA DE UBERABA, n. 3457, 29/1/1909.
Relatórios dos presidentes de província de Minas
SENA, Joaquim Cândido da Costa. Relatório do presidente do Estado de Minas Gerais, 1902, p.
25. Disponível em: <http://wwwcrl.uchicago.edu/brazil/pindex.htm> acessado em 13 de out.
2002.
34
SILVA, João Pinheiro da. Relatório do Presidente do Estado de Minas Gerais, 1906, p. 46.
Disponível em <http://wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil/pindex.htm.>. Acesso em: 13 out.
2002.
Referências Bibliográficas
ALVAREZ, M. C. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil (1889-
1930). São Paulo: FFLCH/USP, 1996. Tese (doutorado em sociologia).
ALVES, Paulo. A verdade da repressão: práticas penais e outras estratégias na ordem republicana (1890-
1921). São Paulo: FFLCH/USP, 1990, p. 4. Tese (doutorado em História).
BRETAS, M. L. A guerra das ruas: povo e polícia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1997.
CALEIRO, Regina Célia Lima. História e Crime: quando a mulher é a ré. Franca 1890-1940.
Franca: Unesp, 1998. Dissertação (mestrado em história).
CORRÊA, Mariza. Morte em Família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal,
1983.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense,
1984.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.
HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
LOPES, Maria Aparecida de Souza. Abigeos, bandidos sociales y “malhechores facciosos”:
criminalidad y justicia en el estado de Chihuahua. 1876-1920. Cidade do México: El Colegio de
México, 1999. Tese (doutorado em história).
PAIXÃO, Alfredo Luiz. “Crimes e criminosos em Belo Horizonte, 1932-1978”. In: PINHEIRO,
Paulo Sérgio (org.). Crime, violência e poder. São Paulo: Brasiliense, 1983.
REZENDE, Eliane Mendonça Maquez de. Uberaba, uma trajetória sócio-econômica (1811-1910).
Uberaba, MG: Arquivo Público de Uberaba, 1991.
SALVADORI, M. A. Capoeiras e malandros: pedaços de uma sonora tradição popular (1890-
1950). Campinas: Unicamp/IFCH, 1990, p. 47. Tese (doutorado em História).
SILVA, Heladir Josefina Saraiva e Silva. Representação e vestígio da (des)vinculação do Triângulo
Mineiro: um estudo da imigração italiana em Uberaba, Sacramento e Conquista (1890-1920).
Franca: Unesp/FHDSS, 1998. Dissertação (mestrado em história).
THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
O JULGAMENTO MORAL DOS CORPOS – A INFÂNCIA ABREVIADA PELA VIOLÊNCIA (PORTO
ALEGRE – 1890-1904)*
THE MORAL JUDGMENT OF THE BODIES – THE CHILDHOOD ABBREVIATED BY VIOLENCE
(PORTO ALEGRE – 1890-1904)
ELIANE D. FLECK**
ANA PAULA KORNDÖRFER ***
ALINE K. CADAVIZ ****
Resumo
Este artigo aborda a “criminalização da sexualidade” e o julgamento
moral dos corpos de meninas - mulheres, apresentando uma análise
preliminar dos dados constantes dos Códices da Polícia, dos Processos-
crime e dos Livros de Matrícula Geral de Enfermos da Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre, no período de 1890 a 1904.
Abstract
This article broaches the "criminalization of sexuality" and the girl’s and
women’s bodies moral judgment, introducing a preliminary analysis of
the related data found in the Police Codices, in the Crime-Processes and
in the General Registration Books of Patients of the “Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre”, along the period of 1890 - 1904.
Palavras-chave
Sexualidade – criminalidade – infância - Rio Grande do Sul.
Keywords
Sexuality – criminality – childhood - Rio Grande do Sul.
Este artigo apresenta uma análise preliminar dos dados relativos ao período de 1890 a
1904, levantados junto aos Acervos do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Desenvolve investigações vinculadas às linhas de pesquisa
“Populações Indígenas e Missões Religiosas na América Latina” e “Idéias e Movimentos Sociais na América Latina.
*** Aluna do Curso de Graduação em História da Unisinos – Bolsista – UNIBIC.
**** Aluna do Curso de Graduação em História da UNISINOS – Bolsista PIBIC/CNPq.
2
do Arquivo Histórico e do Arquivo Público do Rio Grande do Sul e que apontam para o elevado
índice de prática de violência sexual contra meninas e para o julgamento moral de seus corpos.
Nas últimas décadas do século 19, considerava-se violência, o ato sexual com uma pessoa
menor de idade1, mesmo que ela tivesse consentido. A “criminalização da sexualidade” visava a
controlar, portanto, a sexualidade dos adolescentes para que estes não se transformassem em
“pervertidos”. Entre os delitos catalogados pelos criminólogos constavam o defloramento, o
estupro, o atentado ao pudor, o rapto e o adultério2. Em todos eles estava presente a questão
sexual, sendo que outras práticas como, o sadismo, o incesto e a perda da virgindade, eram
também analisados pelos juristas.
O defloramento constava como crime no Código Penal Brasileiro de 1890, em seu art.
267. Para tanto, fazia-se necessária a cópula com uma mulher virgem e o rompimento do hímen,
mediante consentimento obtido por sedução, engano ou fraude. Caso não houvesse cópula, o
delito seria atentado ao pudor. Sem o consentimento da mulher, o crime seria estupro 3.
O Código Penal de 1890, no art. 269, definiu como estupro o ato sexual com uma mulher
sem o seu consentimento, ou seja, com a utilização de violência, diferindo, pois, do defloramento
consentido. Tanto no defloramento, quanto no estupro, a existência de laços de sangue e
parentesco, relações de dependência ou facilidade para realização do atentado ou a
impossibilidade de casar-se eram consideradas circunstâncias agravantes. Entre os parentes
estavam englobados pais, irmãos e cunhados; nas relações de dependência, tutor, curador,
encarregado de guarda e educação ou quem tivesse alguma autoridade sobre a vítima. Tanto nas
situações de crime de defloramento, quanto nas de estupro, o indivíduo viria a ser processado
somente com a formalização de queixa da vítima4. A relação sexual incestuosa não era
considerada propriamente um crime, entretanto, era penalizada como defloramento ou estupro.
1 De acordo com Adriana de Resende Vianna (1999), era considerado menor o indivíduo situado nos limites
etários da maioridade, o que implicava uma absoluta ausência de gestão sobre seu destino e, ainda, uma total
desvalorização de qualquer argumento por ele utilizado (Vianna, 1999: 25-27).
2 No século 19, o corpo feminino era considerado de responsabilidade e de direito de seus genitores. Em
casos de estupro, não era o corpo estuprado que era considerado a principal vítima e sim os seus genitores ou
responsáveis. No Código Penal de 1890, as ofensas sexuais eram consideradas “crime contra a segurança da honra e
honestidade das famílias”.
3 O Código Penal de 1890 definiu como estupro o ato sexual com uma mulher sem o seu consentimento,
mediante utilização de violência. De acordo com Mazzieiro, a mulher casada não podia dar queixas do marido por
estupro, pois o uso da força em face de resistências ao ato sexual não se constituía em crime, mas em exercício de
direito marital. (Mazzieiro, 1998: 31).
4 De acordo com Martha de Abreu Esteves, “as mulheres que desejavam ser protegidas pela Justiça, além de
atribuírem em seus relatos toda a ação ao homem, deviam dar muita ênfase à dor e ao sangue”, pois eram os
“emblemas da virgindade”. A comprovação da perda virgindade era elemento característico do delito e para prová-la
era necessário o exame de corpo de delito (Esteves, 1989: 61).
3
Também pelo mesmo Código, em seu art. 270, foi considerado crime o rapto, ou seja,
retirar do lar doméstico, mulher honesta através da violência ou sedução. Caso a ele se seguisse o
defloramento ou o estupro, o indivíduo seria enquadrado também nesses artigos 5
O estudo realizado por Sueann Caulfield, Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação
no Rio de Janeiro (1918-1940), constatou que as queixas de defloramento estiveram entre as mais
freqüentes queixas criminais até a década de 1940, perdendo apenas para lesões corporais e
roubo, e lideravam de longe a lista de crimes sexuais até os idos de 1970 (Caulfield, 2001) 6.
5 Segundo a análise de Esteves, os juristas defendiam que “a honra era sinônimo de virgindade sexual e ideal
de casamento”, vinculando-a a “determinadas atitudes consideradas morais”, ou seja, “para a coexistência dos valores
de virgindade e casamento era necessária a prática de determinados comportamentos” (Esteves, 1989: 119).
6 Embora estejamos interessados em analisar os dados referentes à violência cometida contra menores num
período anterior ao que foi alvo da investigação de Caulfield, consideramos significativas as suas conclusões, a partir
das quais estabelecemos aproximações.
4
caráter”, trabalhadores, tinham mais chance de serem absolvidos. (Esteves, 1989: 41; Gavron,
2002: 106)
As políticas sexuais às quais se refere Esteves são as políticas através das quais médicos e
juristas pretendiam transformar os hábitos, as moradias, as condições de existência, uma vez que
a educação dos corpos, das mentes e dos desejos resultaria em sujeitos saudáveis, aptos para o
trabalho, disciplinados e docilizados. 7
7 É possível perceber, nos Relatórios da Secretaria do Interior e Exterior, que o Estado busca disciplinar,
educar os cidadãos em vários aspectos da vida. No que se refere aos altos índices de mortalidade infantil, observa-se
o seguinte discurso: “A ignorancia da população, como ficou dito no resumo da estatistica de 1891, alliada à falta de
recursos de sua grande maioria; é a causa d´esse mal; uma propaganda bem dirigida corrigirá aquella (...)” (Relatório
da Secretaria do Interior e Exterior – SIE.3 – 001)
8 Interessante observar que a sexualidade também tinha seus limites no lar, devendo ser respeitada a
“natureza” e contidos os excessos. As relações sexuais deveriam ocorrer dentro dos padrões tradicionais, extirpando-
se desvios e mantendo a reprodução e a sexualidade sadia.
9 Estes comportamentos “patológicos” constituem, de acordo com Martha de A. Esteves, todos aqueles que
se relacionam com condutas desonestas, proibidas e em desacordo com as normas higiênicas valorizadas e reforçadas
no período (Esteves, 1989: 47).
5
Médicos e juristas, no período em questão, não julgavam adequado uma mulher sair só,
ou freqüentar determinados lugares em determinadas horas, pois o exercícoo de determinadas
atividades revelaria uma conduta não honesta. Em razão disso, poderia ser considerada
marginalizável, logo, não amparada pela proteção da justiça.10
É o caso das domésticas, por ocasião das compras para a casa; das
lavadeiras, quando faziam entregas a domicílio; das operárias da
indústria, nas horas em que se locomovem para o local de trabalho ou
para casa após uma exaustiva jornada diária. E como seria possível às
mães que precisavam trabalhar acompanhar suas filhas ao trabalho ou
mesmo ao lazer? (Esteves, 1989: 47)
Dessa percepção resultava que homens trabalhadores eram homens de “bom caráter”;
mulheres trabalhadoras – que, por isso, precisassem sair sozinhas – eram mulheres de conduta
condenável.11
O ato sexual também era alvo de discursos e normas por parte de juristas e médicos. As
mulheres poderiam ter prazer sexual, mas as relações sexuais deveriam acontecer dentro do
casamento, caso contrário o ato sexual seria considerado leviano e doentio. As relações sexuais
também não deveriam ser nem de mais nem de menos; os extremos poderiam trazer problemas
familiares. (Esteves, 1989: 54)
O fato de as mulheres serem vistas por médicos e juristas como esposas e mães, e o
casamento (e as relações sexuais dentro deste) como base da família e da pátria (questões de
higiene e moral) deixa claro que meninas defloradas, estupradas ou alvo de atentado ao pudor
eram “situações desviantes” e que representavam uma “ameaça à ordem sexual”. A intervenção
se fazia necessária12. “Assim, aquela que não preenchesse os requisitos estipulados pela natureza,
inscrevia-se no campo sombrio da anormalidade, do pecado e do crime”. Em razão disso, “não
10 Segundo os juristas e médicos do final do séc. XIX, as mulheres que freqüentavam as ruas, explorando o
meretrício, ofendiam a moral e o pudor público, exibindo-se escandalosamente. No séc. XIX, com o
desenvolvimento da ginecologia, os médicos, embasados nas funções biológicas das mulheres, afirmavam que estas
estariam mais aptas às atividades na esfera privada familiar. Aos homens, por sua vez, caberiam as atividades públicas
(Rhoden, 2002: 117).
11A rua, para muitas mulheres, configurava-se como seu local de trabalho ou trajeto obrigatório para os
mesmos. Nos discursos dos juristas, a rua representava uma ameaça pela tentação e desvios de conduta que oferecia.
Em razão disso, idealizava-se a mudança dos hábitos dos populares, especialmente, das mulheres pobres (Esteves,
1989: 47).
12 No início do século 19, a veneração da castidade feminina era a responsável pelo alto número de
assassinatos relacionados com a honra sexual e pela enxurrada de queixas de defloramento que assolavam as
delegacias de polícia. Uma nova geração de juristas iria rever os conceitos de honra e virgindade, na década de 20,
dirigindo seu foco de preocupação para a proteção dos chamados menores, em vez de centrar-se na preocupação
com a virtude feminina.
6
amamentar e não ser esposa e mãe significava desobedecer a ordem natural das coisas, ao mesmo
tempo que se punha em risco o futuro da nação.” (Rago, 1985: 79)
13 Citando ainda o historiador Jean Delumeau, Mary Del Priore afirma que “entre os séculos XII e XVIII, a
Igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal sobre a terra.” (Del Priore, 2000:17) Classificado como
“receptáculo de pecados”, “impuro”, o corpo feminino estava longe de ser desvendado, compreendido. A mulher era
vista como um ser inferior, negativo e subordinado. É importante lembrar que para a Igreja, fonte também de
discursos normativos, a família era extremamente valorizada e o sexo era visto como ato para a procriação.
14 Ao tratar desta questão em seu livro As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo no República Rio-
Grandense – 1889-1928, Beatriz Teixeira Weber afirma que: “A existência de espaços e práticas de cura ‘alternativos’
manifesta-se com maior intensidade no atendimento às ‘moléstias de senhoras’. As mulheres eram atendidas em casa
ou nas casas das parteiras e, mesmo quando atendidas por médicos, ainda não havia conhecimento suficiente
sobre técnicas obstétricas como cesariana ou o funcionamento do corpo feminino” (Weber, 1999:195) [grifo
nosso] .
7
Em razão dessa concepção de mulher como “alma da família”, estabeleceu-se uma rígida
moral que entendia o casamento como caminho natural, “mas antes de chegar lá, era preciso
vigiar as jovens e preservar a virgindade das moças, coibindo namoros” (Pesavento, 1990: 74).
Eram freqüentes, nos jornais das duas últimas décadas do século 19, notícias de meninas
que eram seduzidas e arrastadas aos prostíbulos e de crianças (meninos e meninas) que
esmolavam e perambulavam pelas ruas, atraídas por toda sorte de vícios. A responsabilidade por
esta situação de desamparo da infância era imputada às mães que falhavam em sua tarefa de
educadoras, mas também, à ausência de políticas públicas orientadas para a juventude.
15 De acordo com o Guia de atenção aos maus-tratos na infância e adolescência, de 2001, editado pela
Sociedade Brasileira de Pediatria, as definições para violência contra a criança e o adolescente variam de acordo com
as visões culturais e históricas sobre a criança e seus cuidados, com os direitos e o cumprimento de regras sociais
relacionados a ela e com os modelos explicativos usados para a violência. Esta é usualmente entendida como ação
impetrada através da força, que cause danos físicos, morais, emocionais e/ou espirituais a alguém. Os dados reais
sobre os maus-tratos contra crianças e adolescentes são muito imprecisos, uma vez que a grande maioria dos casos
não implica a busca de atendimento médico para as vítimas. Os dados existentes se baseiam, ou em denúncias, ou em
registros de atendimentos por lesões traumáticas em hospitais e clínicas.
16 Entende-se por abuso sexual todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual cujo
agressor está em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o adolescente. Essas
práticas eróticas e sexuais são impostas à criança ou ao adolescente pela violência física, por ameaças ou pela indução
de sua vontade.
8
Dos 16 registros criminais (processos-crime ou registro nos Códices da Polícia) por nós
pesquisados, envolvendo meninas menores de vinte e um anos, 14 se constituíam em crimes
sexuais. Dentre estes registros, é grande a quantidade de casos de rapto seguido de defloramento,
os quais têm como desfecho o casamento (10 casos) [ex.: H. F. – 16 anos].
17 Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Caso de estupro da menor A. S. Processo-crime, Cartório Júri,
Este aspecto – o julgamento dos corpos – foi também observado por Martha de Abreu
Esteves, que constatou que:
18 Não dispomos de informações sobre as razões que determinaram a diferenciação entre defloramento e
É interessante observar que as idéias acerca do julgamento dos corpos, referidas por
Esteves, aparecem de forma clara no trecho do processo-crime que transcrevemos.
C. S. apresentaria um “extraordinário” desenvolvimento de suas partes sexuais, pois teria sido
deflorada já há bastante tempo e manteria relações sexuais. O corpo da menina de doze anos
forneceria provas sobre seu comportamento sexual.
Além de ficarem evidenciados nos dados obtidos junto ao Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul, tais discursos “moralizantes” e “educativos” são também identificáveis nos dados
coletados junto ao Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. O
levantamento feito teve como objetivo principal relacionar as causas de internações e óbitos de
pacientes enfermos com idade entre zero e vinte e um anos, no período entre 1880 – 1920. As
informações que levantamos nos Livros de Matrícula Geral de Enfermos obedecem a uma
classificação sexual e etária.
Dos zero aos sete anos, o número de meninas internadas é equivalente ao de meninos. Os
motivos mais comuns para a internação são as doenças respiratórias ou epidêmicas, agravadas
pelas más condições de higiene, a má alimentação e pelo inverno gaúcho rigoroso. Embora haja o
registro de uma menina de quatro anos que permaneceu internada por 3 meses, sem apresentar
moléstia alguma, a falta de informações impede qualquer interpretação rigorosa ou qualquer
vinculação a caso de violência contra menor.21
Dos oito aos doze anos, há um crescente número de internações masculinas. Dos treze
aos dezessete anos, a maioria numérica é de meninos. Para o objetivo deste artigo, chamou-nos a
atenção o fato de que, nesta faixa etária, aparecem doenças venéreas como causa de internação,
sendo que dos 9 casos registrados, surpreendentemente 7 são de meninas, a maioria casada.
21 Em levantamento realizado junto ao Arquivo Histórico, constatamos que nos Relatórios da Diretoria de
Higiene, afeta à Secretaria dos Negócios do Interior e do Exterior, o Estado do Rio Grande do Sul manifesta
preocupação em relação à alta incidência de moléstias gerais (tuberculose, sífilis, sarampo, etc.) e do aparelho
digestivo. Outra questão que merece ser apontada é a preocupação constante dos Diretores de Higiene do Estado
com relação à qualidade dos gêneros alimentícios, especialmente do leite. A má qualidade deste alimento, tão
importante nos anos iniciais, poderia explicar, em parte, o grande número de óbitos de crianças por problemas
digestivos. A insalubridade de Porto Alegre também foi preocupação dos médicos e higienistas do período. Cortiços
habitados por várias famílias, com pouca iluminação, “ar contaminado”, água de má qualidade e sem instalação de
esgotos eram lugares propícios para o desenvolvimento de doenças, muitas das quais contagiosas. As escolas, em
período posterior, foram consideradas meios de propagar, através das crianças, hábitos higiênicos que atingiriam
esses lares.
11
Especulando, poderíamos dizer que, possivelmente, essas meninas foram contaminadas pelos
maridos ou adquiriram a moléstia em relações extraconjugais, exercendo a prostituição.
Dos dezoito aos vinte e um anos, as entradas de homens representam 60% do total,
sendo que dos atendimentos que lhes são prestados, 75% correspondem a doenças sexualmente
transmissíveis. O atendimento a mulheres, de forma geral, mostra-se inferior, independentemente
da doença. Pode-se presumir que as jovens mulheres não quisessem ou não pudessem afastar-se
da família, determinando a negação da doença e reforçando a concepção de inferioridade
feminina. Infelizmente, podemos apenas fazer inferências, sem poder confirmá-las.
Acreditamos que muitos homens e mulheres, preocupados com sua reputação, não
procuravam atendimento médico ou o buscavam tarde demais. Em uma época em que as
políticas públicas de saúde e higiene eram incipientes ou inexistentes e em que o sexo ainda era
alvo de percepções moralistas, as doenças venéreas devem ter se alastrado com rapidez o que, no
entanto, não garantiu seu atendimento terapêutico hospitalar.
Ao elevado índice de prática de crimes de ordem moral e sexual, observáveis nos Códices
da Polícia e nos Processos-crime do período em questão, soma-se a constatação, feita nos Livros
de Matrícula Geral de Enfermos da Santa Casa de Misericórdia, da propagação de doenças
sexualmente transmissíveis entre menores de vinte e um anos. Nesse sentido, a confrontação e a
análise destes dados nos remete à possibilidade de verificar nos Relatórios da Diretoria de
Higiene da Secretaria do Interior e Exterior do Estado do Rio Grande do Sul, a adoção de
estratégias que evidenciem a preocupação com o crescente número de jovens que praticavam o
“sexo doente”.
Fontes Documentais
Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Livro de Matrícula Geral de
Enfermos, período de 2 de julho de 1888 a 15 de julho de 1892.
Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Livro de Matrícula Geral de
Enfermos, período de 7 de junho de 1893 a 28 de setembro de 1894.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Códices da Polícia, Livro 04, p. 51. Os nomes
dos envolvidos foram preservados. Ano: 1896.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Códices da Polícia, Livro 04, p. 85. Os nomes
dos envolvidos foram preservados. Ano: 1896.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Relatórios da Secretaria do Interior e Exterior
(SIE.3 – 003, SIE.3 – 004, SIE.3 – 006, SIE.3 – 007, SIE.3 – 008).
12
Referências Bibliográficas
BRANCO, Lúcia Castello. O que é erotismo. São Paulo: Brasiliense, 1984.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas: Unicamp; Cecult, 2001.
DEL PRIORE, Mary. O Corpo Feminino, sua História e sua Relação com o Social. In: O corpo
ainda é pouco: seminário sobre contemporaneidade. CABEDA, Sonia T. Lisboa, CARNEIRO,
Nadia Virgínia B., LARANJEIRA, Denise Helena P. (org.). Feira de Santana: NUC/ UEFS,
2000.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
GAVRON, Eva Lúcia. Mulher honesta sente desejo? Esboços: Revista do Programa de Pós-
Graduação em História da UFSC. Chapecó: UFSC, n.9, 2002.
MARTINS, Ana Paula Vosne. Corpos mutantes: o debate médico-científico sobre a menstruação
no século XIX e início do XX. São Paulo: UNESP, Revista Pós-História, n. 10, 2002.
MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade criminalizada: prostituição, lenocínio e outros delitos –
São Paulo 1870/1920. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 35. São Paulo, 1998, p. 1 - 38.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O cotidiano da República. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1990.
RAGO, Margareth. Do Cabaré ao Lar: A Utopia da Cidade Disciplinar: Brasil 1890-1930. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1985.
ROHDEN, Fabíola. Ginecologia, Gênero e Sexualidade na Ciência do século XIX. Porto Alegre:
URGS, Horizontes Antropológicos, ano 8, n. 17, 2002, p. 101 - 125.
VIANNA, Adriana de Resende. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro
(1910 - 1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.
WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo na
República Rio-Grandense – 1889-1928. Santa Maria: Ed. da UFSM; Bauru: EDUSC – Editora da
Universidade Sagrado Coração, 1999.
FROM “ORDER AND PROGRESS” TO “NATIONAL SECURITY AND ECONOMIC
DEVELOPMENT” - THE ORIGINS OF BRAZIL'S 1969 NATIONAL SECURITY STATE*/ **
DA “ORDEM E PROGRESSO” À “SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO” – A ORIGEM DO ESTADO DA SGURANÇA NACIONAL NO BRASIL DE
1969
JENS R HENTSCHKE***
Resumo
Quando os militares assumiram o poder em 1964, justificaram a
sua intervenção com uma ameaça para segurança nacional e
desenvolvimento econômico. O “desenvolvimentismo” liberal
parecia ser arruinado. Brasil e os outros países do Cone Sul
demonstraram que o processo de modernização não devia levar,
quase inevitavelmente, à democracia pluralista, como alguns
teoristas tinham prognosticado. Ao contrário, em países em via
de desenvolvimento, com um alto grau de heterogeneidade
estrutural, esta modernização (conservador) podia resultar numa
ditadura de tipo “burocrático-autoritário” e demobilisador que
seguiria um “modelo de desenvolvimento associado-
dependente”. Porém, já nos anos setenta do século passado
cientistas políticos e economistas começaram a discutir de novo
o caráter aparentemente inovador do sistema político e do
modelo de desenvolvimento dos militares. Philip Schmitter e
Thomas E. Skidmore realçaram as continuidades entre o Estado
Novo de Getúlio Vargas e o autoritarismo burocrático. Outros
acadêmicos defenderam o seu ponto de vista segundo o qual a
Doctrina de Segurança Nacional, a base politico-ideológica do
golpe de 1964, foi o produto da Escola Superior de Guerra e,
portanto, do período de pós-guerra. Este artigo retoma a tese de
Schmitter e Skidmore e aplica-a à formação de um Estado de
segurança nacional. Eu quero argumentar que os têrmos de
“segurança nacional” e “desenvolvimento econômico” foram
introduzidos já alguns anos antes da instalação do Estado Novo
e sustituiram o binômio positivista de “ordem e progresso”.
Ainda que o surgimento do populismo e o começo da Guerra
Fria contribuissem à elaboração e reinterpretação do conceito
original de segurança nacional, a ESG podia partir do legado
Varguista.
Abstract
When the Brazilian military took power in 1964, they justified
their intervention by pointing to a threat to both national
security and economic development. Liberal desenvolvimentismo
seemed to be bankrupt. Brazil and other countries of the Cono
Sur proved that modernisation did not inevitably lead to
democracy, as some theorists had prognosticated. On the
contrary, in take-off countries with a high degree of structural
heterogeneity it could result in a new, “bureaucratic-
authoritarian” type of dictatorship which demobilised and
depoliticised society and embraced a model of “associated-
dependent development.” However, it would not take long
before social scientists and economists began to debate how new
the military’s polity and their development model actually were.
Philip Schmitter and Thomas E. Skidmore emphasised the
continuities between Getúlio Vargas’s Estado Novo and the new
bureaucratic authoritarianism. Other scholars continued to stress
that the military’s Doctrine of National Security, the rationale for
the 1964 coup, was rooted in the Escola Superior de Guerra and
therefore remained a product of the post-war period. This article
takes up Schmitter’s and Skidmore’s thesis and applies it to the
formation of a national security state. I want to argue that the
terms of “national security” and “economic development” were
introduced long before the installation of the Estado Novo and
replaced the positivist binomial of “order” and “progress”.
Although the emergence of populism and the beginning of the
Cold War would contribute to a further elaboration and
reinterpretation of the original concept of national security, the
ESG could build upon Vargas’s legacy.
Palavras-chave
Estado de Segurança Nacional - modelos de desenvolvimento –
positivismo - Estado Novo - ditadura militar - Rio Grande do
Sul - exército
Keywords
National Security State - development models – positivism -
Estado Novo - military dictatorship - Rio Grande do Sul - army
When the Brazilian military took power in 1964, they justified their intervention
by pointing to a threat to both national security and economic development. Liberal
developmentalism, with its belief in ‘universalistic and unilinear progression toward a
3
good society’ and its extrapolation from European and U.S. models, seemed to be
bankrupt (Martz/Myers, 1992: 265). Brazil and other countries of the Cono Sur proved
that modernisation did not inevitably lead to democracy, as both Rostow and Lipset had
prognosticated. On the contrary, in relatively backward and dependent countries with a
high degree of structural heterogeneity it could result in a demobilising and depoliticising
dictatorship. Guillermo O’Donnell (1980) coined the term ‘bureaucratic-authoritarian’
for the regime the military established, while Dieter Nohlen and his students
(Nohlen/Thibaut, 1992: 66-67) spoke of a ‘new military regime’. For Fernando Henrique
Cardoso (1973), the insurgent generals embraced a new economic strategy of ‘associated-
dependent development’ combining domestic and foreign capital under the auspices of a
modernising State (see also: Evans 1979). However, during Brazil’s long abertura, social
scientists (Cammack 1985; Lauth 1985) and economists (Thorp, 1984: 13-14;
Sangmeister, 1992: 273-4) began to debate how new the polity of the military dictatorship
and its development model actually were. Given that the 1964 coup d’etat marked the
beginning of a critical realignment in South America, an answer to this question was of
importance not only in Brazil but also regionally.
In this paper, I intend to take up Schmitter’s and Skidmore’s thesis and apply it to
the formation of a national security state. I want to argue that the terms ‘national
security’ and ‘economic development’ were introduced long before the installation of the
Estado Novo and replaced the Positivist binomial ‘order and progress’ which had
characterised the country’s transition from monarchy to republic and Rio Grande do
Sul’s Castilhismo. Although the emergence of populism and the beginning of the Cold
War would contribute to a further elaboration and reinterpretation of the concept of
national security, the Supreme War College could build upon Vargas’s legacy.
4
My study is divided into four sections. First, I shall examine how the military
legitimised their 1964 coup. In the second step, I will analyse the institutionalisation of
the Doctrine of National Security until the consolidation of an authoritarian polity in
1969. From this basis, a retrospective view can be taken of how state security was
defined and organised under Vargas’s dictatorial regime. Finally, the adjustment of this
concept to new domestic and international conditions after 1945 has to be explored. The
conclusion will focus on functional equivalents in the formation of the two national
security states. In this paper, I will place emphasis on the institutional, rather than the
personal and structural, dimension of ‘violence’ (Waldmann, 1977) and highlight the
political-ideological aspects of ‘culture’.
preventative measure against a possible revolutionary threat (with regard to his attitude
towards entrepreneurs, see Toledo, 1994: 33) and for some leftist analysts did not go far
enough (Frank, 1969: 348), his enemies, among them the military, felt the opposite was
the case: Goulart would actually prepare the ground for a leftist coup against the
country’s democratic institutions and (already restricted) market economy. Similarly, U.S.
officials were obsessed with the possible emergence of a second Cuba and a
terceiromundismo policy following decolonisation in Africa.
A small circle of high-ranking ESG graduates, who were also linked to a private
conservative think tank, the Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, formed what Dulles
(1980: 21) called an ‘estado-maior informal’, i.e. a co-ordinating centre for a possible coup:
Humberto de Alencar Castello Branco, Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva, and
Ademar de Queirós (see also Abreu, 2001: 1215ff). This group was horrified by the
increasing mass mobilisation instigated by Communists and populist demagogues and
ranked the elimination of this domestic threat to the existing social and economic order
higher than the army’s more conventional task of national defence. For the ESG, the
latter had become part of a wider concept of ‘national security’ which included military,
political, psycho-social, and economic instruments to deal with external and internal
enemies: training, equipment, and mobilisation of the armed forces and control of the
security apparatus in a wider sense; rational institution-building and decision-making
procedures; formation of a national consciousness based on a consensus of Christian and
democratic [sic] values; formation of capital and its investment in industries, agriculture,
infrastructure, and social policies. In this concept, ‘national security’ and ‘economic
development’ could not be separated. Without first decapitating the Left, removing
populists from power, and placing government authority in the hands of a coalition of
patriotic military, apolitical technocrats, and responsible entrepreneurs, the new elite
emphasised, it would not be possible to create a new polity and implement an unpopular,
but necessary and well thought-through, programme of economic stabilisation. The
success of this programme and the consequent generation of high growth rates would
then fund a modernisation of the army, allow social reforms, strengthen cohesion in
society, and consolidate the political institutions; in short, national security would be
cemented. For these ESG disciples, long-term growth depended on embarking on a new
‘development’ model. According to Aarão Reis Filho (2001: 6), ‘they intended to destroy,
in its foundations, the national-statist order and traditions which Jango [Goulart]
represented and replace them by an internationalist-liberal alternative which focused on
6
an economic opening towards the international market; incentives for private, including
foreign, capital; [and] a different, more regulative than interventionist, role of the State in
the economy.’
When the military actually intervened in politics in March 1964 and Castello
Branco became president, it was not an individual, but the armed forces as a corporation,
who exercised power and focused on a transformation of State and society following
ESG guidelines. The State was described as a ‘political-institutional organ or as an
instrument of collective well-being’ (Schneider, 1971: 247). It was to define and achieve
short-term and permanent national objectives and stand above the antagonisms existing
within a historically and culturally mature society. For ESG ideologues, an optimum
‘national policy’ had to take into account the country’s ‘natural’ or ‘supra-social’
conditions such as geography, resources, and infrastructure and to guide ‘government
policy.’ Such a concept would distinguish their decision-making from the
‘incrementalism’ which had characterised populist policies (Schneider, 1971: 246-7; Werz,
1992:,122-41). In other words, the ESG was convinced it was the only group to have an
alternative policy for rational state and nation-building, output-oriented modernisation of
the economy, unification of the country, and achievement of regional great-power status.
Moreover, they had the personnel and institutionalised power to implement their
strategy. Last but not least, in their self-image, they did not represent a specific social
class but the entire nation. Those who attacked them were depicted as the Anti-Nation
and became the target of the national security apparatus.
The ‘authoritarian liberals’ (Rouquie/Suffern, 1994: 252) who took over power in
1964 ‘sought to establish a highly centralised technocracy which could provide the
requisite institutional conditions for economic planning’ (Schneider, 1971: 113). Castello
Branco initially defined his government as temporary. He thought that, once anarchy was
overcome and technocratic rule established, (engineered) presidential elections could take
place. Moreover, Castello Branco was willing to collaborate with civilians, in particular
the União Democrática Nacional (UDN). Those politicians shared the military’s abhorrence
of Getulismo and of the parties which administered Vargas’s legacy, the Partido Social-
Democrático (PSD) and especially the Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Indeed, it was not only parties on the extreme left, most notably Moscow-
oriented and Maoist Communists, but also populist leaders and their loyal public
servants, trade unionists, and leftist intellectuals who suffered from the promulgation, in
1964, of a first Ato Institucional (AI) allowing amendments to the 1946 Constitution. This
Institutional Act was to expire at the end of the presidential term in January 1966 (later
extended to 1967). Until 15 June 1964 it authorised the executive to revoke legislative
mandates and to deprive citizens of their political rights for a period of up to ten years.
441 Brazilians were affected, among them the three presidents who had followed Vargas
in office after his suicide in 1954. In the two months following the coup, police and
military arrested between 10,000 and 50,000 people and tortured several hundred for
more than two days. However, the government refused demands from hard-line military
to extend this witch-hunt beyond the expiry date. Job security in the public services was
suspended for six months thereby allowing more time for purges. Not only civilians lost
their employment, 122 officers were also forced to retire. Thereafter, however,
persecution diminished and censorship was moderate (Skidmore, 1988: 23-7). Finally, still
in 1964, the Castello Branco administration created a notorious secret service, the Serviço
Nacional de Informação (SNI), headed by General Golbery de Couto, although initially this
was to be a civil government body.
government answered with yet another institutional act which further limited civil
liberties and political rights. AI-2, promulgated in October 1965, was a reaction to the
unexpected election of two PSD/PTB-supported governors in key states. Though
Castello Branco respected their mandates, similar surprises were to be prevented in the
future. The institutional act and various complimentary acts which followed gave the
government the right to abolish all political parties (including the UDN), to deprive
adversaries of their constitutional guarantees and political rights, and to make the election
of the president indirect. Moreover, the executive further strengthened its power at the
cost of the judiciary branch: it increased the number of judges on the Supreme Court
from 11 to 16, further limited the court’s authority to review the actions of the
government, and placed crimes by individuals against national security under the
jurisdiction of military courts. By the end of 1965 two new parties were founded, the
government party Aliança Renovadora Nacional (ARENA) and the ‘opposition’ party
Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Just four months later, in February 1966, AI-3
required that state assemblies had to choose their governor who would then, after
formally consulting the legislative, appoint the prefects of state capital municipalities.
With the two new parties in place and purges under way, the legislature had become a
mere ‘rubber stamp’ (Burns, 1993: 455-6). The 1967 Constitution ended the experiment
in ‘authoritarian liberalism’ and made Brazil a barely disguised dictatorship (Martins 1993;
Excerpts 1999).
The hardening of Castello Branco’s position resulted not least from the limited
success of his economic stabilisation programme. AI-1 had already given the president
the exclusive right to propose expenditure bills to Congress which the latter could not
increase. This was part of the strategy to restore public finances. Technocrats led by
planning minister Roberto Campos and minister of finance Octávio Bulhões created a
central bank and implemented an anti-inflationary policy (Skidmore, 1999: 177-8).
Exports were promoted and the investment climate for private domestic and foreign
capital improved (Hartlyn/Valenzuela, 1994: 142; Skidmore, 1985: 115-6). However,
progress was slow and social costs high: the influx of international capital remained
moderate while real wages fell and unemployment increased. This resulted in social and
political protests which were perceived as a threat to national security. However, the
hope that the 1967 National Security Law would quell any opposition was shattered.
1968 saw the climax of political protest. Workers went on strike in Osasco (São Paulo)
and other cities and corporatist union leaders (who had an ‘ideology attestation’ by the
military) proved unable to control their organisations. Urban middle classes and the
Catholic Church began to raise their voices against a socially unjust austerity policy and
institutionalised violence. A powerful student movement was organised and often
displayed solidarity with striking workers. In some cases, both groups had considerable
influence on local governments (Hall/Garcia, 1989: 182-4). One federal deputy, Márcio
Moreira Alves, called upon Brazilians to voice their protest against militarism. For hard-
line military, this was the result of Castello Branco’s yielding policy, at least after the
initial purges. Now that they were in charge and the linha branda with its ESG-ideology
marginalised, they wanted to carry out a ‘coup within the coup’ and install a national
security state. However, even Castello’s hard-line successors Arthur da Costa e Silva
(1967-1969) and Emílio Garrastazu Médici (1969-74) shared what Skidmore (1988: 57-8)
calls the Brazilian elites’ wide-spread assumption ‘that the solution to any problem was a
new law’. Therefore, even they maintained a pseudo-democratic façade: on 13 December,
AI-5 closed (but did not abolish) Congress and state assemblies, suspended the 1967
Constitution, imposed censorship, and placed crimes against national security under the
jurisdiction of military courts. In January 1968, the National Security Council was
reorganised. Its military president became a cabinet minister (Schneider, 1971: 237-8).
Similarly, the government reshaped the SNI which would now combine the
functions of a federal investigative police, secret service, military intelligence coordinator,
and national security advisory board. It became an ‘invisible government’
10
(Rouquier/Suffern, 1995: 253). Its head, a senior army officer who presided over
approximately 5,000 employees, had the rank of a minister and was often the first choice
when it came to the (indirect) election of a new (military) President of the Republic (both
Médici and Euclides Figueiredo had previously headed the security service). The SNI was
not subjected to any outside (financial) supervision. Its agents worked in every
government agency, state enterprise, university, and branch of the armed forces. From
the early 1970s, the army, navy, and air force had their own intelligence agencies though
the SNI remained intact (Conniff/McCann, 1989: 266-7; Stepan, 1973: 58-9). Its
founder, Golbery de Couto, admitted at the end of his life that he had created a
‘monster.’ Moreover, he disapproved of AI-5 and warned his friends in the U.S. embassy
as early as January 1969 that Costa e Silva lacked leadership qualities and was surrounded
by some incompetent military hard-liners. Shortly thereafter, Washington began to
distance itself from Rio and reduced economic and military aid (Sotero, 1998).
By the end of October 1969, when General Médici took over power, the
formation of a national security state was complete. The institutions and legislation had
effaced the boundaries between State and society, public and private spheres, internal
security and public safety. The militarisation of day-to-day life had reached such a scale
11
that the founder of the ESG, General Cordeiro de Farias, and the intellectual mastermind
of the coup, Golbery do Couto, became open advocates of an abertura. Under Médici,
politicians, diplomats, academics, and writers were, once again, blacklisted and lost their
job. Already in April 1969, more than 200 individuals were expelled from Congress, state
assemblies, the diplomatic service, Foreign Ministry, universities, and media. Among
them were the Rector of the University of São Paulo and internationally known
historians (Caio Prado Júnior, Emília Viotti da Costa), social scientists (Florestan
Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso), and physicists (Mário
Schemberg). Equally, journalist Antônio Callado lost his political rights (Schneider, 1971:
285). If modern means of communication were used for ‘subversive propaganda’, then
article 5 of the 1969 National Security Law prescribed a punishment of up to four years
in prison (Flynn, 1978: 424). Censorship was especially harsh with regard to television
and radio which reached an ever increasing part of the population. In contrast, print
media and literature enjoyed slightly more freedom since, in a developing country with a
high illiteracy rate, they rather targeted a small intellectual elite (Ginway, 1999). However,
the effects of this national security legislation went further than depriving intellectuals
and politicians of their political rights and censoring the media. During the Médici
government alone, 4,460 political trials took place (Bernecker/Pietschmann/Zoller,
2000: 285). Until 1972, Amnesty International registered 1,076 cases of torture by 472
individual, often sadistic, torturers. A considerable number of Brazilians ‘disappeared’, a
euphemism for political murder. The repressive apparatus included police, army, and
paramilitary forces (Skidmore, 1988: 125-35, 150).
the regime offered them to criticise it but it would not take long before they collided with
the National Security Law (Dunn 1999).
The second half of the Costa e Silva government and especially the Médici
administration not only represented the most repressive phase of Brazil’s military
dictatorship, they also coincided with the so-called ‘Brazilian Miracle’. Between 1968 and
the first oil price shock in 1973, Brazil produced unparalleled growth rates of more than
ten per cent, left its South American competitor for regional hegemony, Argentina, well
behind, and engaged in an ‘internal expansionism’ into the hinterland, especially the
Amazon, which had geopolitical (border security, prevention of a ‘balkanization’ of Brazil
through the international recognition of First Nations), economic (exploration of raw
materials) and social reasons (distribution of new land in the Interior instead of an agrarian
reform in the centres of colonisation) (Burns, 1993: 485-6). This expansionism and
creation of a national consciousness was supported by the development of television
(Mattos 1982). The regime’s propaganda machine AERP made sure that ‘many Brazilians
[…] concluded that increased national power and a rapidly growing economy were the
result of going authoritarian’ (Skidmore, 1988: 110). Those who did not step into this
trap and criticised the political, social, and ecological costs of Brazil’s development
‘model’ were targeted by the national security apparatus. The new legislation explicitly
forbade the distribution of negative news about the national economy (Skidmore, 1988:
134).
consolidated its role as supreme planning and regulating authority, used its legal
possibilities to intervene in the economy, and established monopolies in sectors deemed
to be essential for national security (Sangmeister, 1992: 235). Moreover, when the world
recession of 1974 hit Brazil and ended the ‘miracle’, Ernesto Geisel’s government even
returned to an import-substituting industrialisation (Pereira, 1978: 24) while Chile’s and
the second Argentinean military regime had learned the lessons and tried a neo-liberal
approach.
The 1930 ‘Revolution’ resulted from the breakdown of the Old Republic’s fragile
system of regional ‘pillarisation’ and political clientelism. It was not a preventative step
against further mass mobilisation, as in 1964. Though the 1920s were characterised by a
crisis of social and regional participation, social mobilisation remained very limited and
passed its climax by 1927/1928. There can be little doubt that, had the Great Depression
not hit Brazil and reignited the political opposition, the café-com-leite coalition would have
been successful in co-opting dissident factions as so often before. The events of 1930-
1937/8 followed a well-established pattern, already probed in 1817-1822/3 and 1888-
1889/94: they represented a mixture of conspiracy, civil/military coup, and limited
reform following an aborted revolution or at least a defused political crisis.
Though neither of the two main actors of the ‘revolution’, a new generation of
gaúchos and highly politicised ‘young officers’ (tenentes), could rely on an elaborate and
conclusive ideological concept, such as the ESG doctrine, an alternative political strategy
did exist. Getúlio Vargas and his civil (Oswaldo Aranha et al) and military protégés (Pedro
Aurélio de Góes Monteiro, Eurico Gaspar Dutra) followed the doctrine of their political
master Júlio de Castilhos, a free interpreter of Auguste Comte, whose political ideas had
been deeply inculcated into Rio Grande do Sul’s political institutions. The executivismo
centralizante, ‘administrative continuity,’ and political and legal engineering, so typical of
14
the southern state, had guaranteed that Castilhos’s heir Antônio Augusto Borges de
Medeiros remained in power for a quarter of a century. When Vargas became governor
in 1928, he still shared the belief in the healing powers of a Positivist developmental and
educational dictatorship but tried to find a new form of political representation which
responded to the demands of a more urban and industrialised society. Italo-fascist ideas
of restructuring State and society along corporatist lines began to fuse with, but did not
contradict, the Positivist legacy. Vargas and his followers ‘had learnt all the subtle
connotations of the word “order”: order as a conservative password, order which
rationalised Borges’s restrictive regime, order which left no alternative to political
opponents but rebellion, order which explained the most surprising changes of line […,]
and order which was a prerequisite for progress, even social change’ (Bourne, 1974: 53).
Order was the codeword for the formation of a centralised and corporatist nation state
vested with authority (a euphemism for authoritarianism gaúcho-style) and progress
translated as (delayed) industrialisation through a policy of economic nationalism. Not
only was the former instrumental to the latter, modernisation would also provide political
stability and a place for Brazil among the world’s ‘great nations.’
Tenentes agreed with gaúchos that the (formally) liberal, federalist and outward-
looking state of the Old Republic, dominated by agrarian-export oligarchies and their
belief in laissez-faire (though actual policies often departed from it) was to be replaced by a
strong, centralist and nationalist regime which would be willing and able to intervene in
both the economy and society in order to foster rapid and planned industrialisation. The
Great Depression proved how important it was to overcome Brazil’s dependence on a
few agricultural staple products, and a national-statist model seemed to be the only
alternative to laissez-faire.
The origins of an intellectually and politically engaged army can be traced back to
the ‘young officers’ of the 1880s and the changes in military careers after the Paraguayan
War. Moreover, due to the absence of a nation-wide war of liberation against the
Portuguese, the Brazilian army was only founded after the Independência. The coincidence
of civilian and military leader during Spanish America’s revolution for independence,
fertile soil for the region’s chronic caudillismo, did not exist in Brazil. Here the army was
not a reliable pillar of power. In political conflicts, it often sided with the revolutionary
faction. When precisely this happened in the 1831 abdication crisis, a National Guard
was founded. It was to counter-balance a revolutionary army (with coronelismo becoming a
Brazilian variant of caudillismo) but this policy proved to be unsuccessful. During the war
15
of the Triple Alliance more middle class elements gained commissions and Positivists at
the Military School of Praia Vermelha challenged the notion of a neutral army. After the
war, ‘young officers’ joined the abolitionist and republican movements, and between
1889 and 1894 they tried to implement their project of an enlightened despotism aiming
at industrial-technical modernisation. However, eventually they had to succumb to
powerful regional oligarchies which feared a politicised army, the only national institution
during the Old Republic. The officer corps continued to feel neglected and complained
about the civilian elites’ ignorance of national defence needs and their deviation from the
1891 constitutional system.
The army’s journal A defesa nacional, published between 1913 and 1922, reveals the
ideas which motivated many ‘young officers’ to support the 1930 Revolution. Following
nationalist Olavo Bilac, they hoped that their intervention would lead to a ‘political-social
transformation’ of society, with them being the educators and organisers of the citizenry
and the architects of a new Brazil. The country was seen as ‘an improvised nation,
without roots in the past, and of indefinite ethnic formation, and therefore easy to break
up.’ The enemy were not only foreign powers but also the country’s ‘lack of national
cohesion.’ (McCann, 1989: 59). Among those who served on the journal’s editorial board
were gaúchos like Dutra but also the young Castello Branco, who had received his military
formation in Rio Grande do Sul but supported the state’s liberal opposition party (Abreu,
2001: 1209).
What was missing in the 1930 coalition, compared to 1964, was an aggressive
class of industrial entrepreneurs and civil technocrats. Their formation and education
‘from above’ would be one of Vargas’s and his supporters’ main objectives.
The years from 1930 to 1937 were characterised by a crisis of hegemony which
left little room for implementing a new political project. During the provisional
government (1930-1934), Vargas faced harsh resistance from reunited regional
oligarchies or, as one leading protagonist put it: the ‘rabble of anarchy’ against which an
‘elite of order’ was to be mobilised.1 In 1932, São Paulo even tried a counter-revolution.
Though Vargas used its defeat to deny 14 categories of opponents their political rights
for the duration of three years, among them not only the leaders of the Paulista rebellion
1 FGO/CPDOC, OA 32.10.29 cp, folhas 974-979, O. Aranha to F. Da Cunha, Rio de Janeiro 29.
10. 1932.
16
and their supporters in other states but also many politicians of the Old Republic,2
repression and censorship remained rather moderate. Furthermore, given the fact that
liberal constitutionalists retained power in the states, Vargas tried a policy of
reconciliation which included the country’s re-constitutionalisation. It was the tenentes
who held him in power during these difficult years and supported him in the engineering
of the 1933 elections for a Constituent Assembly. However, the 1934 Constitution
remained Janus-faced and preserved the hybrid status quo between Positivist gaúchos and
national-revolutionary tenentes, on the one hand, and (oligarchic) liberal constitutionalists,
on the other.
This memorandum outlined a new security architecture. It would not take long
before Góes Monteiro’s ideas became reality. In February 1934, Law No. 23873 indeed
organised the Conselho de Defesa Nacional which was to include, as full members with the
right to vote, the President, all ministers and the chiefs-of-staff of the armed forces.
Other legislative acts created a Comissão de Estudos da Defesa Nacional, a potential think
tank for questions of national defence, and seções de defesa nacional in each ministry. A
Secretaria-Geral da Defesa Nacional centralised and co-ordinated decision-making in this
2 See PRO/FO 371/16548, A 115/115/6, W. Seeds to J. Simon, Rio de Janeiro 13. 12. 1933.
3 See FGV/CPDOC, OA 34.01.29/2 cp, folhas 0692-0710, Memorandum by P. A. Góes
Monteiro, to Finance Secretary O. Aranha, Rio de Janeiro 29. 1. 1934.
17
policy field and was directly responsible to the President. The 1934 Constitution (Article
159) already referred to the installation of a Conselho Superior de Segurança Nacional, and
after 1934 the term ‘national security’ replaced that of ‘national defence’ in the names of
study commissions and the Secretariat-General as well.4
organisations lost their legal status, civil servants and university teachers their position,
members of the armed forces their commission, and naturalised foreigners their
citizenship.
Similar to 1967, such a draconian security law was supposed to prevent a further
radicalisation and polarisation of society but the effort was in vain. On 5 July 1935, ANL
president and Communist leader Luis Carlos Prestes called upon Brazilians to overthrow
the Vargas government thereby forcing the organisation into illegality. If initially the
ANL had indeed enjoyed support from a broad spectrum of social and political forces,
now it found itself converted into little more than a Trojan Horse of the Communist
Party embracing the golpista strategy of its ex-tenente leader. The Intentona Comunista in
November 1935 was not successful but provided Vargas with a justification for further
strengthening national security legislation. In December 1935, a second, much tougher
National Security Law followed (No. 136).7 It provided that, if a crime against the social
and political order went hand in hand with the commitment of an ordinary crime, the
penalties for both offences would be added up. 8 The use of a weapon in an attack against
an individual was an aggravating fact and led to imprisonment for ten to twelve years
with hard labour. If the victim died, the offender faced 20 to 30 years in jail, again
combined with hard labour. Editors and journalists who abused their ‘freedom of
criticism’ could go to prison for six months to two years. A civil servant who committed
a crime was not only fired but for the next ten years he would also not get a job in any
public or semi-public institution. This included private enterprises working with
government concessions. An employer, director or administrator who accepted a
candidate from an official blacklist faced dismissal himself. Even employees in private
enterprises or educational institutes could, with permission of the Ministry of Labour,
end up on these backlists. Last but not least, the new security legislation allowed the
government to proclaim a state of siege and to extend it without limitation. Vargas
indeed governed Brazil with emergency powers until October 1937.
confirmed in the 1934 Constitution, still provided due-law procedures, at least formally.
Except in times of war, no special tribunals could be installed. This prevented the Vargas
regime from quickly trying and incarcerating those it considered to be a security risk.
However, in March 1936 a state of war was proclaimed (based on a previous
constitutional amendment which defined serious subversive activities against the State as
a war-like situation). On this basis, a Tribunal de Segurança Nacional (TSN) was installed in
September 1936 (Law No. 244). Though this National Security Court was meant to be a
temporary institution, targeting primarily the COMINTERN-supported ANL leadership,
it would remain intact until 1945. It had full responsibility for investigating and trying, in
the first instance and even retrospectively, those military and civilians who, by order of or
with support from foreign or international organisations or in relation with them, had
committed crimes against the country’s external security or carried out attacks against its
armed forces. This definition included subversive activities against political and social
institutions which led to political turmoil and, as a consequence, war-like situations. The
Supremo Tribunal Militar acted as court of second instance and appeal.9
The TSN was composed of military and civilians. It was part of a repressive
apparatus which also included: preventative, repressive, and secret police units; a
National Commission for the Repression of Communists; military-run penal colonies in
the hinterland and on remote islands. Moreover, the proto-fascist Integralista movement,
founded in 1932, was used to crush the extreme Left. Sadistic and pro-Nazi police chief
Felinto Müller arrested hundreds of alleged Communists and introduced new methods of
torture (Whitehead 1994:42). The fate of some COMINTERN-agents who had
instigated the November revolts was revealing. German Artur Ewert was tortured and
his wife raped in his presence; he lived on in a state of insanity. American Victor Allen
Barron threw himself out of a window during police interrogations; the official version
being that he committed suicide. The Jewish wife of Communist leader Luís Carlos
Prestes, Olga Benário, was extradited to Nazi Germany, ignoring her pregnancy; she died
in Bernburg’s gas chamber (Moraes, 1985: 107-283). However, repression did not stop
with aliancistas. Leftist deputies (Abguar Bastos, Domingos Velasco, João Mangabeira,
Otávio da Silva) and senator Abel Chermont who dared to take on Arthur Ewert’s
defence were incarcerated for 14 months before they were tried (Levine, 1970: 122).
Vargas’s challenger in the presidential elections scheduled for 1938, Armando de Sales
Oliveira, and Integralista leader Plínio Salgado were exiled (Dulles, 1967: 190-192). The
9 See PRO/FO 371/19767, A 7763/68/6, Mr Coote to A. Eden, Rio de Janeiro 16. 9. 1936.
20
populist governor of the Federal District, Pedro Ernesto, a tenente (Conniff, 1999: 45-47),
and his minister of education, Anísio Teixeira, who had opposed the introduction of
religious education as an option in school curricula both had to leave office. They were
accompanied by the Rector, eight deans, the director of music and art, and other scholars
of the University of Rio de Janeiro (Levine, 1970: 135). French Journalist René de
Jouvenelles was arrested for carrying a membership card of the Society of the Friends of
Russia (Zuvenel’ 1936). Some of Brazil’s leading artists were attacked as ‘subversive
elements’: Jorge Amado, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Cândido Portinari, Oscar
Niemeyer, and Vargas’s biographer André Carrazoni (Levine, 1970: 135). Interestingly,
when Robert M. Levine published his doctorate in 1970 and reminded readers of the
victims of Vargas’s regime, General Médici’s government blocked a Brazilian edition.
The similarities with practices of the military regime were striking and potentially
explosive. When the book was eventually allowed to appear in Brazil during the abertura,
it topped the non-fiction bestseller list for weeks.
When, on 10 November 1937, Brazilians woke up in the Estado Novo and read a
new Constitution in the newspapers, a coup within the coup had taken place. Vargas
remained in office and had been given dictatorial powers. No longer did he have to take
into account the interests of state particularists and obstructive liberal-democratic
politicians. He had successfully played off the Right against the Left, and now felt that
his regime was consolidated enough to prohibit all political parties, including Integralists
who had hoped for a totalitarian regime with them being in the driving seat. When it
became clear that the Estado Novo would be an authoritarian-corporatist non-party regime
and had no use for them, some Integralista leaders tried an unsuccessful armed attack on
the presidential palace in 1938. They thereby provided Vargas and his military supporters
with the justification for a further strengthening of the security edifice. If the 1937
Constitution had already preserved the security council, now called Conselho de Segurança
Nacional (Wahrlich, 1983: 594; 598-599), Decree-Law No. 474 and Constitutional
Amendment No. 1 of May 1938 once again aggravated the national security legislation.
The decree-law introduced new regulations at the Tribunal de Segurança Nacional (now
representing a special branch of the judiciary, the Justiça de Defesa do Estado) which made
trials a farce. The prosecution had to accuse an alleged offender within 24 hours but
could try him in his absence. The ‘defence’ was allowed to call two witnesses (though in
trials with more than five defendants the number of witnesses could not exceed ten) and
cross-examinations were to last no longer than five minutes. After Prosecution and
21
Council had given their final speech, the pronouncing of judgement had to follow within
30 minutes. Appeal proceedings had to be completed within 48 hours of the trial.10 The
ability to promulgate such a law revealed the new realities of power. Though another law
from June 1938 extended the time limitations again,11 the threat of a Rightist coup had
been averted. The constitutional amendment introduced capital punishment for serious
offences such as the violation of Brazil’s national integrity or constitutional order in co-
operation with a foreign power or internationally-operating organisation; the attempt to
establish a class dictatorship; an armed revolt against public authorities; the instigation of
a civil war or other acts which threatened the State’s national security or the freedom and
life of the President.12 This amendment shows clearly that the enemy was now seen to be
both outside and within Brazil, on the extreme Left as well as the extreme Right.
American scholar Bailey W. Diffie who visited Brazil during the height of the
Estado Novo did not share German writer Stefan Zweig’s illusions about Vargas’s regime
(Zweig 1960). For Diffie (1999: 203), Brazil had become ‘a democratic country with one
voter who always elects himself as saviour, and then uses arbitrary arrests, red baiting, a
form of terror, censorship of the press, suppression of free speech, abolition of civil
rights, nullification of academic freedom, and the systematic oppression of all forms of
liberal thought and all advocates of liberal thought, as a means of perpetuating his one-
man-rule’. In the name of national security, article 122 of the 1937 Constitution imposed
harsh censorship over the press, cinema, theatre, and radio. The Código de Imprensa from
December 1939 forbade any criticism of public authorities. In early 1938, Vargas
founded a propaganda office, transformed into a Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) on 27 December 1939 (Abreu, 2001: 1831f.). It appointed the heads of DIPinhos in
the states13 and thereby centralised, co-ordinated, and controlled all instruments of mass
communication and popular culture (Gomes, 1982: 109; Schwartzman, 1983: 61-63;
Wahrlich, 1983: 41, 594-595). The Press and Propaganda Office took responsibility for
censoring the news and broadcasting the official radio programme ‘A Hora do Brasil’. It
skilfully created many of the long-standing myths of the Vargas Era, such as the
10 See PRO/FO 371/21422, A 4662/29/6, H. Gurney to Viscount Halifax, Rio de Janeiro 20. 5.
1938.
11 See PRO/FO 371/21422, A 5523/29/5, H. Gurney to Viscount Halifax, Rio de Janeiro 28. 6.
1938.
12 See PRO/FO 371/21422, 4662/29/6, H. Gurney to Viscount Halifax, Rio de Janeiro 20. 5.
1938.
13 See PRO/FO 371/3378, A 2624/2624/6, 1942 Annual Report, N. Charles to A. Eden, Rio de
President’s portrayal as the ‘father of the poor’, and his carefully staged appearances in
public. DIP also produced the image of Brazil being a ‘racial democracy.’ In a country
where the very existence of colour differences could be denied, there was no need for
addressing problems of racial or ethnic discrimination. Parades on the Dias de Raça rather
celebrated how far the nation had come in the process of abranqueamento and the
formation of a ‘new Brazilian.’ ‘The general tendency in Brazil is toward Aryanism’ and
becoming ‘a European or occidental country’, we read in an official publication (DIP
1942: 18). DIP’s National Commission for Textbooks depicted coloured people as
authentic nationals but considered the discussion of differences to be detrimental and
forbade any pessimism or doubt about the white future of the Brazilian race (Nava 1995:
64-65, 79). Foreign academics who challenged the myths of Vargas’s ‘democracy’ were
officially criticised, even when teaching abroad.14 Within Brazil they would lose their job,
no matter whether charges against them eventually had to be dropped, as in the case of
American social worker Lois Marietta Williams who, for no other reason than personal
vengeance, was denounced to the TSN. In her own words, ‘the full extent of my
communism is that I am a reader of THE NATION and that certain of Professor
Dewey’s ideas are used in our playground work.’15 This liberalism was already too much
for the military who in their search for dangerous literature in school libraries even
blacklisted Mark Twain’s ‘Huckleberry Finn’ (Sharp, 1940: 10-11). No wonder then that
socially satirical films like Charlie Chaplin’s ‘The Great Dictator’ were immediately
banned. Editors and journalists who tried to defy censorship and reveal the nature of
Vargas’s regime faced penalties and repression. Critical foreign correspondents had
difficulties doing their job. Telegrams going abroad were opened, private clubs
penetrated by secret agents, and women used as decoys (Diffie, 1999: 200-201; Levine,
1998: 60-62; Sharp, 1940: 12).
However, in a non-party regime like the Estado Novo, Vargas’s ‘one-man-rule’ was
conditional. It depended on the army which had been strengthened, united, and gradually
depoliticised since 1930. The dictatorial regime placed the federal states’ Military Police
14 Karl Loewenstein’s book Brazil Under Vargas and his critical lectures on Brazil in the United
States irritated Brazil’s dictator but the State Department considered Loewenstein’s analysis to be realistic.
See FGV/CPDOC, DE 42.08.05, Ambassador Caffrey to State Department (‘strictly confidential’), Rio de
Janeiro 16. 12. 1942; and reply Foreign Office to Caffrey, Washington 21. 12. 1942. See also Loewenstein
1942.
15 NARA, RG 59, M 1472, roll 18, pp. 0905-0906, U.S. Councelor of the Embassy R. M. Scotten
(in the name of the ambassador) to Secretary of State, Rio de Janeiro 11. 2. 1938. See also NARA, RG 59,
M 1472, roll 18, p. 0904, Department of State/Division of the American Republics, Memorandum, s. l., 21.
2. 1938; Sharp 1940:11.
23
under the control of central government, completed the purges of the armed forces
which had gone on since 1935, and put more emphasis on self-recruitment in the forces
(McCann, 1989: 63-65). The army became the link between developmental and
educational dictatorship. High-ranking officers occupied decisive positions in the State,
educational, security, and propaganda apparatus and were involved in the controversial
nationalisation of ‘foreign’ schools, the strengthening of civic, moral, and physical
education in curricula, the formation of a youth organisation, and the colonisation of the
hinterland which included the construction of ‘colônias-escolas’. Military technocrats were
also represented in the councils and state enterprises which shaped economic and
infrastructural development. It was in these institutions where close military-civilian co-
operation first developed. In 1939, with the war approaching, the Conselho de Segurança
Nacional participated in the creation of heavy industry, considered to be essential for
becoming a ‘great nation’. The siting of a steel plant in Volta Redonda, called the
Companhia Siderúrgica Nacional, was revealing, as Kapstein (1988: 138-141) stresses:
decisions with regard to location (50 miles away from the coast where its supply would
have been cheaper but its destruction by naval gunfire more likely), ownership (state-led
for reasons of national defence, despite more lucrative private offers), and technological
choice (development of expensive technology to use low-quality Brazilian coal for
reasons of self-sufficiency in critical times) were all guided by national security
considerations. When in 1942 pro-American forces within the Vargas administration, led
by Oswaldo Aranha, gained the upper hand over pro-Axis military and the country
joined the Anti-Hitler-Coalition, Brazil had another strategic advantage: it benefited from
its alliance with America economically and politically. In a lecture on the occasion of the
ESG’s 50th anniversary, Therezinha de Castro reminded her audience that the idea to
found an elite centre for the collective study and tackling of Brazil’s developmental
problems can be traced back to the creation of the Curso de Alto Comando para Oficiais e
Coronéis do Exército in 1942 and the consequent visit of Brazil’s chief of General Staff to
America’s National War College (Castro, 1999).
However, the closer the end of the war approached and the link to liberal
America developed, the more Vargas and his dictatorship became an obstacle. It was the
military which overthrew the President, not in order to abandon the strategy of national
security and economic development but to continue it after the inevitable (formal) re-
democratisation.
24
The immediate postwar period brought new conditions. Brazil had accumulated
gold reserves abroad but this money was soon ‘burned’ in a massive importation of
consumer goods. Further investment in heavy industries and infrastructural projects
under General Dutra’s administration was largely funded through foreign credits and
thereby added to the inflationary effects resulting from the pressure militant labour
exerted on wages and, as a result, prices. Sangmeister (1992: 230) considers Dutra’s anti-
inflationary policies after 1948 the ‘dress rehearsal for the policy of the “economic
miracle.”’ This interpretation would, to a certain extent, also be valid for the twin brother
of ‘economic development’, ‘national security’, though, of course, not with regard to the
degree of violence employed. The Cold War ended, in Brazil as in other countries of
Latin America, the experiment in liberalisation which had characterised the first two
years after World War II. The alliance with the U.S. was renewed in the 1947 Rio Pact.
Brazil declared the Brazilian Communist Party to be illegal, broke off diplomatic relations
with the Soviet Union, and repressed strikes. Brazilian officers were increasingly sent to
American military academies, including in the Panama Canal Zone, and trained in civic
action and counter-insurgency (Mols, 1985: 89).
The eventual foundation of the Escola Superior de Guerra in 1949 was part of this
anti-democratic turn. More than ever, Brazil’s military, many of them gaúchos or trained in
Rio Grande do Sul, were convinced that only they were able to plan and implement
‘national security’ and ‘economic development’, derivations from the Positivist motto of
‘order and progress’. It was now that these, so far rather diffuse, concepts were
25
elections in the Clube Militar. For these conservatives, the participation of foreign capital
in the exploration of oil resources was absolutely vital and nationalist officers were
infected by Communist propaganda (Abreu, 2001: 1212, 2100).
Vargas proved unable to exorcise the many bogeys he had conjured up. However,
his suicide in 1954 and the dominance of a ‘legalist’ faction within the armed forces
helped populism to survive for another decade. Vargas’s first elected successor, Juscelino
Kubitschek (1956-61), hid his more liberal desenvolvimentismo and experiment in
‘associated-dependent development’ behind a distinctly nationalist rhetoric. His success
was spectacular and represented a liberal precursor of the 1968-73 ‘economic miracle’.
However, Kubitschek pleased neither the Centre-Left which, in 1955, had founded an
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Jorrín/Martz, 1970: 436-441) and defended
government ownership of key industries and control of foreign capital, nor the Right and
its IPES think tank, created in 1962, which complained that growth had been bought at
the cost of an economically and politically destabilising inflation. Jânio Quadros’s
intermezzo in power and especially João Goulart’s ‘nationalist capitalism’ (Sangmeister,
1992: 232) confirmed the Right’s worst fears and prompted the military’s intervention in
March 1964.
5. Synthesis
The similarities in the formation of a national security state by Vargas and the
military are striking. In 1930 as in 1964, an elected government was overthrown by a
civilian-military coup. In both cases, the insurgent faction intended to achieve more than
a mere palace revolution. Whether gaúchos and tenentes in 1930 or Castelistas in 1964, they
focused on a profound transformation of the political system, the search for a new polity
in order to implement new policies. Consciously or unconsciously, they stood in the
tradition of Alberto Tôrres, Oliveira Vianna, and especially Júlio de Castilhos. The option
for authoritarianism was a function of their interest in generating ‘progress’ or ‘economic
development’. Either of the two terms meant in reality economic growth, or ‘numerical
accumulation’, not what contemporary theory understands under ‘development’, namely
‘the maximum use of a nation’s potential for the greatest benefit of the largest number of
the inhabitants’ (Burns, 1993: 169-170), or, according to Nohlen’s and Nuscheler’s
‘magical pentagon’, growth, employment, equality/justice, participation, and
independence (with each of these five concepts representing both means and objectives)
27
regimes there was no place for a bargaining between divergent social and political
interests; the resort to authoritarian means to restructure State and society was the logical
consequence. However, even after the ‘coup within the coup’ in 1937 and 1968/9, a
democratic or legalist façade was preserved. This was important since ‘tyrannies do not
have illegitimate enemies’ and therefore cannot define acts against the political and social
order as crimes against national security (Abreu, 2001: 3058).
Obviously, there were also differences between both regimes. In 1964, the army
took over power as an institution. With the victory of the linha dura, it became more the
incarnation of the State than the guardian of the nation. This was the result of the
fundamental changes in military recruitment and career patterns since the Estado Novo. In
the early 1960s, every third cadet came from a military family and more than 90% of
them had been educated within the army since the age of 12 (Mols, 1985: 89). A de-
revolutionised army demobilised and depoliticised society. For Castello Branco, and even
more so the hard-liners, the crisis of 1963/4 was more than an intra-elitist conflict or a
very limited mobilisation and therefore did not allow the co-optation of dissent factions
or new groups. What was at stake, in their perception, was nothing less than the capitalist
model of accumulation (Flynn, 1978: 317). International Communism seemed to have
penetrated not only labour but also parts of the middle and upper classes, as student
revolts, guerrilla activities, and accusations by liberation theologists proved. Therefore, as
Skidmore stresses, the differential treatment of lower class elements and members of the
elite by legislator, police, and courts was no longer valid (Skidmore, 1988: 126; Skidmore
1999:174). Violence became more frequent and was more systematically organised
though in Brazil repression never reached the same scale as in Chile after 1973 or
Argentina after 1976. Even so, more than 20 years of military dictatorship and human
29
rights violations have cast a long shadow which can still be seen in today’s Brazil. Those
who after the long transición pactada advocated a continuation of the Vargas era, forgot
that the ‘father of the poor’ was also the godfather of the military’s security state. As one
SNI officer expressed it: 1964 had to be seen as the ratification of the military’s historic
decision in November 1935 (Giordani, 1986: 29).
The formation of a National Security State after 1930 and after 1964
Bibliography:
Archives
FGV/CPDOC – Fundação Getúlio Vargas/Centro de Pesquisa e Documentação, Rio de
Janeiro
NARA – National Archives and Record Administration [of the U.S.], College Park,
Maryland
PRO/FO – Public Record Office/Foreign Office, London Kew
Literature
Abreu, Alzira Alves de (ed., et al)
2001 Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Pos-1930, 4 vols. (cons. pp), Rio de
Janeiro.
Barros, Reynaldo/Paim, Antônio
1982 ‘Correntes e temas políticos contemporâneos (Unidade XII), in: Curso de
introdução ao pensamento político brasileiro. Brasília, 83-139.
Bernecker, Walter L./Pietschmann, Horst/Zoller, Rüdiger
2000 Eine kleine Geschichte Brasiliens. Frankfurt am Main.
Bethell, Leslie
1992 On Democracy in Brazil Past and Present. London (ILAS Occasional Papers, no.
7)
Bourne, Richard
1974 Getúlio Vargas of Brazil, 1883-1954. Sphinx of the Pampas. London/Tonbridge.
Burns, E. Bradford
31
1997 ’Brazil. Conflict or Conciliation?’ in: William Gutteridge (ed.), Latin America
and the Caribbean: Prospects for Democracy.
Aldershot/Brookfield/Singapore/Sydney, pp. 237-271.
Ginway, Elizabeth
1999 ‘Literature under the Dictatorship’, in: Robert M. Levine/Crocitti, John J.
(eds.), The Brazil Reader. History, Culture, Politics. London, pp. 248-253.
Giordani, Marco Polo
1986 Brasil. Sempre. Porto Alegre.
Gomes, Angela de Castro
1982 ‘O Redescobrimento do Brasil’, in: Lucia Lippi Oliveira/Mônica Pimenta
Velloso/Angela de Castro Gomes (eds.), Estado Novo. Ideologia e poder. Rio de
Janeiro, pp. 109-150.
Grupo de Educação Moral e Cívica
1999 ‘The Maximum Norm of the Exercise of Liberty’, in: Robert M.
Levine/Crocitti, John J. (eds.), The Brazil Reader. History, Culture, Politics.
London, pp. 258-259.
Hall, Michael M./Garcia, Marco Aurélio
1989 ‘Urban Labor’, in: Michael L. Conniff/Frank D McCann (eds.), Modern Brazil.
Elites and Masses in Historical Perspective. Lincoln/London, pp. 161-191.
Hartlyn, Jonathan/Valenzuela, Arturo
1994 ’Democracy in Latin America since 1930’, in: Leslie Bethell (ed.), The
Cambridge History of Latin America, vol. 6.2., Cambridge, pp. 99-162
Hentschke, Jens R.
1996 Estado Novo. Genesis und Konsolidierung der brasilianischen Diktatur von 1937 – Eine
Fallstudie zu den sozioökonomischen und politischen Transformationen in Lateinamerika
im Umfeld der Groβen Depression. Saarbrücken.
Jorrín, Miguel/Martz, John D.
1970 Latin American Political Thought and Ideology. Chapel Hill.
Kapstein, Ethan B.
1988 ’Economic Development and National Security’, in: Edward E. Azar/Chung-
in Moon, National Security in the Third World. The Management of Internal and
External Threat. Aldershot, pp. 136-187.
Kaufman, Robert R.
1979 ‘Industrial Change and Authoritarian Rule in Latin America: A Concrete
Review of the Bureaucratic-Authoritarian Model, in: David Collier (ed.), The
New Authoritarianism in Latin America. Princeton, pp. 165-253.
Kruijt, Dirk
1996 ‘The State Under Siege’, in: Richard L. Millet/Michael Gold-Biss (eds.),
Beyond Praetorianism: The Latin American Military in Transition. Miami, pp. 261-
289.
Lauth, Hans-Joachim
1985 Der Staat in Lateinamerika. Die Staatskonzeption von Guillermo O’Donnell.
Saarbrücken/Fort Lauderdale.
Levine, Robert M.
1970 The Vargas Regime. The Critical Years, 1934-1938. London/New York.
1998 Father of the Poor? Vargas and His Era. Cambridge.
Martins, Ives Gandra da Silva
1993 ‘A Constituição de 1967’, in: Luiz Felipe d’Ávila et al (eds), As constituições
brasileiras. Análise histórica e propostas de mudança. São Paulo, pp. 71-82.
Martz, John D./Myers, David J.
33
Schmitter, Philippe C.
1973 ‘The “Portugalization” of Brazil’, in: Alfred Stepan (ed.), Authoritarian Brazil.
Origins, Policies, and Future New Haven/London, pp. 179-232.
Schneider, Ronald M.
1971 The Political System of Brazil. Emergence of a ‘Modernizing Authoritarian Regime,
1964-1970. New York/London.
Schwartzman, Simon (ed.)
1983 Estado Novo, um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanema). Brasília.
Sharp, Walter R.
1940 ‘Brazil 1940 – Whither the “New State”?’, The Inter-American Quarterly, vol.
2:4, 5-17.
Skidmore, Thomas E.
1973 ‘Politics and Economic Policy Making in Authoritarian Brazil, 1937-71’, in:
Alfred Stepan (ed.), Authoritarian Brazil. Origins, Policies, and Future New
Haven/London, pp. 3-46.
1985 ‘The Political Economy of Policy-Making in Authoritarian Brazil, in:
O’Brien, Philip/Cammack, Paul (eds.), Generals in Retreat. The Crisis of Military
Rule in Latin America. Manchester, pp. 115-143.
1988 The Politics of Military Rule in Brazil, 1964-1985. New York/Oxford.
1999 Brazil. Five Centuries of Change. New York/Oxford.
Sotero, Paulo
1998 ‘Para artífice do golpe, Costa e Silva foi fraco. Telegrama de embaixador dos
EUA relata encontro em que Golbery condena AI-5 e analisa militares,’
Estado de São Paulo (Internet publication
http://www.estado.estadao.com.br/edicao/especial/AI5/ai522.html, access
10. 8. 2003)
Stepan, Alfred
1971 The Military in Politics. Changing Patterns in Brazil. Princeton.
1973 ‘The New Professionalism of Internal Warfare and Military Role Expansion,
in: Alfred Stepan (ed.), Authoritarian Brazil. Origins, Policies, and Future. New
Haven/London, pp. 47-65.
Thorp, Rosemary
1983 ’Introduction’, in: Rosemary Thorp (ed.), Latin America in the 1930s: the Role of
the Periphery in World Crisis. London/Oxford, pp. 1-16.
Tobler, Hans Werner
2001 ‘¿Un siglo de violencia? Apuntes de un historiador’, in: Klaus
Bodemer/Sabine Kurtenbach/Klaus Meschkat (eds.), Violencia y regulación de
conflictos en América Latina. Caracas.
Toledo, Caio Navarro de
1994 ‘1964: O golpe contra as reformas e a democracia populista,’ Revista de
Sociologia e Política, no. 2 (Internet publication
http://www.revistasociologiaepolitica.org.br/revista2, access 8. 8. 2003)
Vargas, Getúlio
1999 ‘New Year’s Address, 1938’, Robert M. Levine/Crocitti, John J. (eds.), The
Brazil Reader. History, Culture, Politics. London, pp. 186-189.
Wahrlich, Beatriz M. de Souza
1983 Reforma administrative na era de Vargas. Rio de Janeiro.
Waldmann, Peter
1994 ‘Staatliche und parastaatliche Gewalt in Lateinamerika’, in: Detlef
Junker/Dieter Nohlen/Hartmut Sangmeister (eds.), Lateinamerika am Ende des
20. Jahrhunderts. Munich, pp. 104-123.
35
Werz, Nikolaus
1992 Das neuere politische und sozialwissenschaftliche Denken in Lateinamerika, 2nd ed.
Freiburg.
Whitehead, Lawrence
1994 ‘State Organization in Latin America since 1930’, in: Leslie Bethell (ed.), The
Cambridge History of Latin America, vol. 6.2., Cambridge, pp. 3-95.
Zuvenel’ (Jouvenelle?), René de
1936 ‘Brazilija vo vlasti terrora’, International’naja Literatura, vol. 24:1, pp. 89-91.
Zweig, Stefan
1960 Brasil. País do Futuro. Rio de Janeiro 1960.
VISÕES E REPRESENTAÇÕES SOBRE AS PRÁTICAS POPULARES DE SAÚDE EM SÃO
PAULO DE 1950 A 1980: UMA ANÁLISE DE ACÓRDÃOS JUDICIÁRIOS*
VISIONS AND REPRESENTATIONS REGARDING THE POPULAR HEALTH
PRACTICES IN THE STATE OF SÃO PAULO FROM 1950 TO 1980: ONE ANALYSIS OF
THE JUDICIARY COLLECTIVE SENTENCES
Resumo
Neste artigo identificamos e analisamos as visões e
representações sobre as práticas populares de saúde em São
Paulo, a partir de 179 Acórdãos Judiciários relativos aos
casos de práticas de Curandeirismo, Práticas Ilegais da
Medicina, da Odontologia e da Farmácia, entre outros,
publicados na Revista dos Tribunais em São Paulo, entre os
anos de 1950 e 1980. Por se tratar de um tipo de fonte
pouco utilizada em pesquisas na área de História, a analise
dos Acórdãos Judiciários permitiu que realizássemos
também uma série de reflexões a respeito dos perigos e
possibilidades que o historiador encontra quando trabalha
com fontes judiciárias, bem como sobre algumas
especificidades próprias do oficio do historiador.
Abstract
In this article, we identify and analyze the visions and
representations regarding the popular health practices in the
state of São Paulo, based on 179 Judiciary Collective
Sentences concerning the cases of Charlatanry, Illegal
Malpractice of Medicine, Dentistry and Pharmacy, etc.,
published on the “Revista dos Tribunais” (Tribunal
Magazine) in the state of São Paulo, between the years of
1950 and 1980. Once the analysis of the Judiciary Collective
Sentences is a type of source that is scarcely used on
researches in the area of History, this type of analysis has
allowed us to reflect on the dangers and possibilities the
historian faces when he/she works with judiciary sources,
Palavras-chave
Representações - Práticas Populares de Saúde - Fontes
Judiciárias - Ofício do Historiador
Keywords
Representations - Health Popular Practices - Judiciary
Sources - The job of a historian
1 Este artigo é fruto das reflexões realizadas no Doutorado em História intitulado Feiticeiros,
Burlões e Mistificadores: criminalização, expropriação e mudança dos hábitos e práticas populares de
saúde em São Paulo de 1950 a 1980, defendido na FCL/Assis – UNESP, em abril de 2001.Parte das
reflexões aqui desenvolvidas foram apresentadas no curso: Fontes Judiciárias na História, ministrado
no XVI Encontro Regional de História – Poderes e Representações, promovido pela ANPUH
Regional de São Paulo, no campus da UNESP – Franca em setembro de 2002.
3
defenderiam que esta é uma falsa questão, mesmo porque o que se buscava era uma
avaliação qualitativa da documentação pesquisada. Apesar disto, sentimos a
necessidade de amadurecer a questão, buscando apoio de pesquisadores que já tivesse
enfrentado tal objeção.
Refletindo sobre esta questão, que também lhe foi colocada quando
trabalhou com fontes jurídicas, Keith Thomas (Thomas, 1991) afirma que tais
documentos revelariam ao pesquisador apenas a “ponta de um iceberg”, cuja base
nunca poderá ao certo dimensionar, mas apenas inferir. Como este autor,
acreditamos que o número de acórdãos feitos e publicados é, para todos os tipos de
delito, infinitamente inferior ao número total de processos efetivamente ocorridos, e
a quantidade destes é, por sua vez, infinitamente menor do que o número de
ocorrências. Embora não possamos quantificar ao certo todas as ocorrências, desde
as simples denúncias até os acórdãos, passando pelos inquéritos e processos, a
quantidade de acórdãos localizados nos dá uma pequena dimensão da presença que
estes delitos tiveram no período apontado. Além do mais, acreditamos que as fontes
jurídicas, produzidas por instâncias superiores do judiciário, podem nos fornecer
alguns registros da “expressão coletiva de convicções” que não seriam fornecidos por
documentos de menor alcance regional, político e jurisdicional. Neste sentido,
concordamos com autores como Mandrou (1979: 17/18) e Ginzburg (1989: 39)
quando apontam que, muito embora não sejam numericamente abundantes, estas
fontes podem ser consideradas como verdadeiras “cristalizações” e “luzes”
reveladoras de complexas e abrangentes relações sociais de uma época.
em primeira instância, a sentença pode ter sido considerada satisfatória pelas partes
envolvidas e o processo pode ter sido arquivado; mesmo que uma das partes tenha
recorrido da decisão de primeira instância, nada garante que, necessariamente,
ocorrerá um novo julgamento e uma nova sentença; somente se o tribunal superior
reavaliar a sentença anterior (confirmando-a, ou reformulando-a total ou
parcialmente) é que haverá o registro do caso e da nova decisão sob a forma de
acórdão, o qual, por sua vez, poderá ou não ser selecionado para publicação numa
revista de jurisprudência.
Fonte: Revista dos Tribunais. Vol. 185 a 536. Maio de 1950/Junho de 1980.
Schritzmeyer conclui que a maioria dos acórdãos por ela pesquisados era
procedente do Sul-Sudeste (99%), sendo que 43% era procedente do interior de São
Paulo, 30% da capital e grande São Paulo, 13% do Rio de Janeiro e 13% outros
Estados. Em nossa pesquisa, restrita aos casos do Estado de São Paulo, notamos que
a maioria dos acórdãos publicados se refere a casos do interior do Estado. Com
relação aos rótulos e classificações que aparecem nos acórdãos, quando se referem
aos acusados por práticas ilícitas, a autora aponta que predominam as classificações
religiosas em 21% dos casos, “espertalhões” ou “farsantes” em 20% dos casos,
9
muitas vezes por apresentarem características comuns a vários deles (leitura de mãos
e predição do futuro, por exemplo).
Com relação aos casos onde houve condenação dos indivíduos, em nove
deles configurou-se a habitualidade e a remuneração das práticas, o que caracterizaria
que estes indivíduos faziam delas uma profissão. Inexistindo no Brasil o ensino da
grafologia, ninguém se podia dizer diplomado nessa ciência. Assim, todo aquele que
se dedicasse profissionalmente à mesma, instalando escritório e cobrando consulta,
estaria praticando a “exploração da credulidade pública” mediante as várias
modalidades estabelecidas no artigo número 27 da Lei das Contravenções Penais.
Em dois dos casos os indivíduos foram condenados, sem que ficasse provado
a habitualidade e a cobrança dos serviços, pois segundo a visão dos juizes, não seria
necessária a habitualidade para caracterizar a infração prevista no artigo número 27
do C.P. O elemento subjetivo da contravenção consistiria em abusar, com qualquer
impostura, da credulidade popular e é desta forma que a punição se justifica.
Justiça. Já nos casos em que houve absolvição, ficou caracterizado que os indivíduos
não cobravam pelos serviços nem os executavam habitualmente, e desconheciam que
estavam cometendo ilícitos penais ao adotar tal conduta (“error júris”) e/ou agiam de
boa fé, descaracterizando que estivessem intencionalmente explorando as crenças da
população. Nestes casos, julga-se inadmissível presumir que alguém tenha explorado
a credulidade pública somente porque se dedicava ao estudo da astrologia e colabora
em jornais e emissoras de rádio fazendo horóscopos.
Mas o que seria este Exercício Ilegal da Medicina, que preocupava tanto os
médicos e era tão perseguido pelo Serviço de Fiscalização da Medicina e pela Justiça?
Segundo o artigo número 282 da Lei Penal, enquadra-se no Exercício Ilegal da
Medicina quem, exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista
ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites. A pena nestes
casos era de detenção de seis meses a dois anos. Se o crime fosse praticado com o
12
fim de lucro, aplicar-se-ia também multa de mil a cinco mil cruzeiros. Na verdade o
exercício das profissões de médico, farmacêutico, dentista e, inclusive, de enfermeira,
sempre esteve condicionado à posse de um diploma fornecido por Faculdade
reconhecida e devidamente registrado nos órgãos competentes, ou pelo menos a uma
autorização2 devidamente expedida pelos órgãos competentes. Qualquer um que
praticasse alguma dessas profissões sem ser formado, ou sem possuir o diploma
devidamente registrado, estariam exercendo ilegalmente a profissão e poderia ser
punido. Seria necessária, portanto, a habilitação legal para o exercício da profissão.
Foi o que aconteceu com algumas parteiras formadas e outras práticas, que atuavam
no período, acusadas de exercer, habitualmente, atos privativos da profissão médica,
como abortos, intervenções ginecológicas, aplicação de injeções, fornecimento de
receitas e aplicação de medicamentos em pacientes ou de, simplesmente, não
possuírem a devida formação e/ou autorização para exercerem a atividade de
parteira.
Dos seis acórdãos sobre parteiras condenadas por prática ilegal da medicina,
apenas um refere-se a um caso ocorrido na cidade de São Paulo, sendo os outros
cinco das cidades de São José do Rio Preto, Conchas, Cerqueira César, Brotas e
Araras. Isto ocorre porque na maioria das cidades do interior de São Paulo,
principalmente nas décadas de 50 e 60, ainda era difícil encontrar a quantidade
necessária de médicos e mesmo parteiras, formados e/ou autorizados a exercer suas
profissões, o que, de certa forma, estimulava uma série de pessoas a exercerem as
atividades que caberiam àqueles profissionais. Segundo apuramos, a partir de analise
de relatórios do IBGE do período estudado, existiam no ano de 1956, 1988 médicos
atuando nas 43 cidades citadas nesta pesquisa3. Na maioria delas o número de
médicos era pequeno, como por exemplo, nas cidades da comarca de Assis, onde
Cândido Mota e Paraguaçu Paulista contavam com apenas um médico cada, Palmital
contava com dois médicos e Assis, que era a maior cidade da comarca, atendendo
muitas vezes aos doentes das cidades da região, possuía apenas oito médicos. Esta
situação de carência de profissionais da medicina no interior do Estado, não é
totalmente ignorada pela Justiça que, devido a isto, chega a afirmar que as
“aparadeiras” ou “curiosas” são um mal necessário.
Carlos, São José do Rio Preto, São Paulo, Sertãozinho, Sorocaba, Tupã e Tupi Paulista. Estes dados
constam de levantamento do IBGE, publicados na Revista Brasileira dos Municípios, N. 41/42, Ano
XI, janeiro/junho de 1958, p. 4/122.
14
onde não estava disponível um médico para assistir ao parto e um Hospital para
realiza-lo. Muitas vezes agiam com a autorização de médicos que as indicavam e
orientavam na realização dos partos. Outro motivo para absolvição foi devido ao
fato da profissão de parteira não estar incluída entre aquelas que constam do artigo
número 282 do código penal (médico, farmacêutico e dentista), o que impediria seu
enquadramento como crime de Exercício Ilegal da Medicina.
estes casos, percebemos que, assim como no caso das parteiras, eles residiam no
interior de São Paulo, em Araçatuba, Dois Córregos e Lucélia, cidades estas que
possuíam respectivamente dez, um e nenhum médico no ano de 1956. Sabe-se que,
no caso dos acusados, tratavam-se de indivíduos formados e estabelecidos (dois eram
donos de farmácia), que exerciam habitualmente e de maneira remunerada, atividades
próprias da classe médica e que, concretamente, estabeleciam, ou poderiam
estabelecer, concorrência com os profissionais locais.
Mas havia outros tipos de defesa possíveis e muito utilizados como, por
exemplo, a alegação de que os atos de Curandeirismo eram realizados gratuitamente,
sem que houvesse a pretensão de obter lucro.
Uma das argumentações utilizadas que espelham bem o que, de forma geral,
aparece neste tipo de defesa é a que pleiteia a absolvição do acusado sob a alegação
de que não se cobrava nada pelo atendimento e não se enganava ninguém. Frente a
este tipo de argumento, a Justiça afirmava que, por não ser um crime de dano, mas
de perigo à saúde pública, pouco importava se a prática de Curandeirismo tivesse
sido ou não remunerada, pois este não seria um elemento fundamental para a
configuração do delito. Pelo contrário, se ficasse provado que houve cobrança por
parte do curandeiro, poderia ser configurado um agravante da pena a ser imposta.
Em resumo, este tipo de argumento foi, sempre que apresentado como fundamento
de apelação, prontamente rechaçado pela Justiça, muito embora em primeira
instância, pelo menos nos casos analisados, tenha sido uma linha de argumentação
relativamente bem aceita (dois casos de um total de seis).
Outra razão muito forte para que houvesse a condenação de alguém pela
prática de Curandeirismo era a prova de que ele agia habitualmente. A própria Lei
Penal fala em “exercer o Curandeirismo”, o que implica não um ato isolado e
esporádico, mas uma atividade cotidiana. A acusação procurava, de todas as formas,
provar a habitualidade destas práticas:
Código Penal, todo aquele que utilizasse gestos e passes como pretexto para curar
pessoas, independente do registro da atividade.
Além disto, de qualquer modo, seria impossível uma solução favorável ao réu, já que
sabia que o seu procedimento o levaria à prática do Curandeirismo.
Uma das acusações que podem levar alguém a ser acusado de crime de
Estelionato é a da obtenção de vantagem ilícita mediante promessa de livrar sua
vítima de pretensos malefícios. Foi exatamente isto o que aconteceu com os
indivíduos Carmine Mirabelli, da Capital de São Paulo; Fátima Campos, também da
Capital; e Almir Rodrigues Lopes, de Sertãozinho.
Mas não houve somente condenações, pois localizamos também três casos de
absolvição da acusação de Estelionato. Todos eles ocorreram no interior do Estado
nas cidades de Araraquara, Buritama e Fartura. Dois desses casos, envolviam
ministros da Igreja Evangélica Quadrangular e praticantes da Umbanda, e a
absolvição foi baseada na liberdade de culto religioso, inscrita na Constituição. Suas
práticas, de pregar a cura por meio da oração e da fé, num caso, e de realizar
“trabalhos” espirituais para afugentar os males dos que os procuravam, no outro,
foram consideradas próprias das religiões. No caso, de ciganos que se diziam
curandeiros, prognosticavam maus augúrios às vítimas e cobravam para afastar
espíritos, ocorre a absolvição porque se entendia que quando a fraude patrimonial era
de Assis; Antonio de Paula Carneiro, de Marília. Em todos estes casos, não ficou
provada a habitualidade das práticas ilegais, pois os indivíduos teriam sido acusados
de atos isolados. Devido a isto, impunha-se a absolvição, pois a configuração do
crime de exercício ilegal de profissão, previsto no artigo número 282 do C.P.,
pressupunha a prática reiterada de atos a ela privativos. Outra acusação comum foi a
de Exercício da Odontologia sem o devido registro de diplomas no Conselho
Regional de Odontologia, exigência imposta pela Lei número 4.324 de 14/04/64,
regulamentada pelo Decreto número 68.704 de 03/06/71. Foi o que ocorreu com os
Cirurgiões Dentistas: Paulo Nakamura, da Capital; Dempsey Miguel Assad Taraia, de
Palmital; Sebastião de Oliveira, também de Palmital; e Joaquim Rodrigues Costa, de
Sorocaba. Nesses casos, os profissionais possuíam formação universitária em
Odontologia, bem como registro de seus diplomas no Departamento Nacional de
Saúde do Ministério da Saúde e no Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina e
Farmácia. Apenas não haviam providenciado o devido registro de seus diplomas no
Conselho Regional de Odontologia, como exigia a Lei. Daí a denúncia ao Conselho.
A decisão pela absolvição, tomada pela Justiça, foi baseada no entendimento de que
o médico, o farmacêutico e, também, o dentista que tivessem registrado o diploma
no Departamento Nacional de Saúde Pública, com o fim de exercer a profissão, mas
permaneceram sem o registro na repartição estadual competente, não estariam
praticando ilícitos penais, mas apenas “ilícito administrativo”, pois o que a Lei penal
protegia era a saúde pública, e esta, neste caso, não correria perigo.
Pelo que pudemos perceber na análise dos acórdãos a que tivemos acesso, o
Serviço de Fiscalização das Profissões, vinculado à Secretaria de Saúde do Estado, e
o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo, tinham muitas dúvidas quanto à
validade e mesmo a veracidade de alguns diplomas expedidos por Faculdades,
principalmente de outros Estados. Dos quatro dentistas denunciados pelo Conselho
Regional à Justiça, três possuíam diplomas expedidos por faculdades de outros
Estados. A exigência de registro do diploma no Conselho Regional foi, talvez, uma
forma de estabelecer um controle maior sobre o exercício da profissão que, ao que
parece, era, pelo menos naquele período, campo fértil para a atuação dos práticos e
mesmo de outros profissionais que obtinham diplomas em faculdades não
29
Referências Bibliográficas
ARAÚJO, A. M. “Alguns ritos mágicos - abusões, feitiçaria e medicina popular”.
Revista do Arquivo Municipal. Publicação do Departamento de Cultura, Ano XXVI,
Vol. CLXI, 1958.
30
MARY BIANCAMANO **
MARCO AURÉLIO KIHS***
MARIANA NEUMANN****
MARILETE NICOLI*****
Resumo
A Carta Política de 1988 ensejou à sociedade brasileira a potencialização do
exercício da cidadania, criando mais direitos ao cidadão e em contrapartida
mais deveres ao Estado. Em particular, a um dos seus Poderes: o Judiciário.
Vendo-se na condição de solver o crescimento de conflitos decorrentes
dessa nova relação social, teve o Poder de se estruturar para fazer frente a
esta nova realidade. Não apenas no aspecto político das relações com os
demais Poderes, mas também, e principalmente, na obtenção de recursos
que o capacitasse a atender os anseios da sociedade. Daí as profundas
alterações ocorridas nesse período, como o acréscimo na participação no
orçamento do Estado, a busca de soluções criativas para a racionalização de
custos e maximização de resultados, a melhoria da infra-estrutura
operacional, a informatização e a implementação de ações que resultassem
em maior celeridade na prestação jurisdicional. Os principais indicadores
orçamentários, financeiros, de recursos humanos e material, da
movimentação jurisdicional e os resultados dessas estratégias estão
apresentados no presente artigo, que se espera possa contribuir para uma
maior compreensão sobre a importância do papel do Poder Judiciário do
Rio Grande do Sul.
Abstract
The Constitution of 1988 lead the Brazilian society to an improvement of
the exercise of the citizenship, creating more rights for the citizens and more
duties for the State. In particular, for one of its Powers: the Judiciary.
Finding itself in the condition of solving the conflict’s growth as a
consequence of the new social relationship, the Judiciary had to arrange its
structure in to deal with this reality. Not only in the political aspect of the
relationship with the others Powers, but also, and mainly, in the attainment
of resources that enabled it to take care of the yearnings of the society. The
Palavras-chave
Judiciário – Orçamento – Indicadores
Keywords
Judiciary – Budget - Pointers
Introdução
A necessidade de o Poder Judiciário “abrir suas portas” é consenso entre os diferentes
segmentos da sociedade civil brasileira, resultando em um forte movimento pró-controle externo da
Instituição. Entretanto, há que se estar atento a procedimentos que estão longe de proteger o cidadão
e a democracia. Em palestra proferida, “A magistratura e a comunicação de massa”, 12-05-99, Carlos
Alberto Bencke enfatiza que “não devemos esquecer que o Judiciário é um desconhecido e o povo
mata aquilo que não conhece, ainda mais quando se considera prejudicado por este sistema que
ignora”1, reiterando a preocupação da Magistratura com a falta de informações e o desconhecimento
da comunidade acerca da Justiça, sua estrutura e atividades, já manifestada inúmeras vezes, como na
Carta de Rio Branco, de 14 de junho de 1996, em que o Colégio de Presidentes de Tribunais de
Justiça do Brasil ponderou à Nação que identificava uma “difusão de idéias e posições desfavoráveis
ao Poder Judiciário e comprometedoras de sua imagem pública”.
diminuição, o seu apequenamento ou a sua inexpressividade, só podem favorecer aos que querem
fazer prevalecer seus interesses” (Carvalho Leite, 1998)
Nessa esteira, na última década do século XX, o Poder Judiciário do RS sofreu diversas
alterações em sua estrutura administrativa, refletindo os novos ventos da gestão nas organizações, ao
buscar tornar-se mais eficaz na execução de suas políticas e estratégias e da prestação jurisdicional,
como se vê de parecer da Corregedoria-Geral, em que propõe a criação dos Conselhos de
Conciliação, 1999 – Projeto Judiciário Cidadão – Nenhum Município sem Justiça, como forma de
minimizar as dificuldades enfrentadas:
1 In www.tj.rs.gov.br/site_php/noticias, 09/02/2004.
4
Dessa forma, esse artigo tem como objetivo trazer a lume algumas considerações sobre a
conformação do orçamento do Poder Judiciário, por meio de uma análise do período 1990 – 2000,
do ponto de vista de suas inter-relações com a sociedade gaúcha, dando continuidade ao trabalho de
pesquisa desenvolvido no Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, conforme seu compromisso
com a discussão da identidade institucional do Poder Judiciário, de forma transparente, e na
viabilização de sua compreensão sistêmica.
Poder-se-ia citar, também, o papel do Judiciário como agente arrecadador do Governo que,
na defesa de ações contra si ou no combate à sonegação, tem no Judiciário uma força aliada que faz
reverter aos cofres públicos os recursos desviados a outras finalidades. Milhões de reais retornaram
aos cofres públicos pela atuação dos magistrados da Justiça do Estado.
Saliente-se que, nessa década, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul esteve nas mãos
de partidos políticos originários da oposição ao governo militar de 1964 – de 1987 a 1990: Pedro
Simon (PMDB); de 1991 a 1994: Alceu Collares (PDT); de 1995 a 1998: Antonio Britto (PMDB); de
1999 a 2002: Olívio Dutra (PT). Durante o período da ditadura, a participação do Judiciário no
Orçamento Geral do Estado ficou em torno de 2,0%, muito aquém de suas necessidades. A situação
orçamentária não logrou alteração significativa, não chegando a bom termo as tratativas entre os
Poderes e alcançando o Judiciário somente 2,5% do Orçamento estadual no período 1980-1990,
denotando, entretanto, a tendência das relações entre Poderes que Axt (2003: 289) ressalta: “um
regime democrático tende a ser mais generoso com o orçamento judiciário do que um regime no qual
o espaço da representação política e do exercício da cidadania está comprimido”.
Neste mesmo ano, sob a Presidência do Des. Nelson Luiz Púperi, é publicada Portaria nº
02/91, criando o Conselho de Administração para “examinar e opinar sobre todos os processos que
tratem da aquisição de bens e serviços”, contemplando a necessidade de reformulação das atividades
administrativas e financeiras do Tribunal de Justiça, para gerência dos duodécimos repassados pelo
Tesouro do Estado, calculados no percentual de 6% sobre a receita corrente líquida do Estado,
auferida no mês anterior. A composição desse Conselho contemplava integrantes das Diretorias de
Orçamento, Material e Engenharia, Arquitetura e Manutenção, além da Corregedoria-Geral, sob a
coordenação de um Desembargador designado pelo Tribunal Pleno, buscando a administração do
Tribunal de Justiça prover-se de órgãos de planejamento e reflexão permanentes, deixando de lado o
empirismo praticado.
A Lei Complementar nº 101, assim, estabelece normas de finanças públicas voltadas para a
responsabilidade na gestão fiscal ao restringir o comprometimento orçamentário e ao proibir
despesas extras em anos eleitorais, salientando-se que os gastos com pessoal estão limitados a 60% da
Receita Corrente Líquida do Estado. A adequação à norma previa um período de transição,
8
considerado como parâmetro o ano de 1999, até o ano de 2002. Fazendo um levantamento dos
gastos percentuais com pessoal, pelo Poder Judiciário do RS, obtiveram-se os seguintes dados: 1997
– 6,97%; 1998 – 7,15%; 1999 – 7,39%; 2000 – 6,74%, demonstrando estar sempre acima do definido
pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Antes do advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Orçamento para repasse das verbas
do Poder Executivo ao Judiciário era efetuado com base nas médias realizadas nos últimos 3 ou 5
anos, decorrente de uma negociação, a fim de prover as necessidades mínimas de cada Poder,
considerados os recursos previstos para o ano vindouro. Assim, por consenso, chegava-se aos
números exíguos necessários a fazer frente às despesas do ano.
A Tabela 2 está construída com base nas Receitas e Despesas do Estado. Demonstra que as
Despesas do Poder Judiciário, em valores relativos, correspondem, em média, a 4,80% e 4,97%, em
relação a Despesa e a Receita do Estado, respectivamente; portanto, dentro de patamares bastante
razoáveis.
Não sendo possível “simplificar” alguns processos a meros números, afirmações sem
fundamentação sobre gastos excessivos ou da existência de grupos privilegiados são, no mínimo,
perigosas. Há que se demonstrar que os números podem ter outras interpretações, que eles
representam não a simples retirada de recursos de outras funções do Estado, e sim um crescimento da
função analisada e o aumento das exigências dos usuários desta função. Adiante, mostra-se esse
crescimento de exigências que não estão sendo atendidas com o proporcional aumento de recursos.
Pode-se estabelecer, então, que o custo real do Judiciário deve ser reduzido dos valores que
envia aos cofres públicos, por ser ele mesmo o gerador de parte da receita, oriunda da prestação dos
seus próprios serviços. Esses valores, se canalizados diretamente à atividade-fim, tornariam ainda
menor o percentual de repasse que a função judiciária recebe do Executivo. Abaixo, demonstram-se
os valores arrecadados e repassados ao Executivo por meio da cobrança das taxas e custas judiciais.
Isto representa, em números e valores reais, o que o Poder Judiciário recebeu no período
como repasse para todo o seu funcionamento, inclusa, também, a Justiça Militar, sendo que:
• para o pagamento de sua Folha de mais de 6000 servidores que atendiam a todo o Estado
do Rio Grande do Sul,
Iniciativas que visassem a minimizar essa situação de escassez financeira são detectadas em
todos os períodos da história do Poder Judiciário, ora com ênfase na ação política de seus membros,
ora contando com a boa vontade de governantes e legisladores. Saliente-se aqui a criação do Fundo
de Reaparelhamento do Poder Judiciário, pela Lei nº 7.220, de 13-12-78, que autorizava o Poder
Judiciário a o instituir, e regulamentado pelo Decreto nº 28.099, de 21-12-78, possibilitou um enorme
avanço na melhoria da infra-estrutura física das unidades do Poder, sendo que a Lei nº 7.221, de 13-
12-78, alterou seu valor, a exemplo de outros fundos existentes à época, com o objetivo de
solucionar freqüentes problemas de reformas, construções e reaparelhamento de foros nas diferentes
Comarcas do Estado. Tinha o Fundo como principal fonte de receita a Taxa Judiciária, em um
percentual de 20%, percentual este alterado em 1983, pela Lei nº 7.785, para 50% da Taxa Judiciária.
Efetuados os cálculos dos novos valores do Judiciário versus Despesa do Estado, encontram-
se percentuais entre 2,55% (no menor caso) a 5,81% (maior caso), permanecendo quase todos os
números na faixa entre os 3 e 4%, conforme pode ser comprovado na Tabela 5.
Os percentuais assinalados na Tabela 5 falam por si só. É de domínio público que a Justiça
estadual é responsável por dois terços dos atendimentos de justiça do País, pois é ela quem realmente
atende à população, aos anseios do cidadão comum, a todas as demandas entre cidadão e empresas,
restando às demais entidades do Judiciário, de âmbito federal, o terço restante.
Comparados aos valores apregoados como “exagerados gastos do Judiciário”, vê-se que
realmente, com todo o âmbito estadual de atendimento, esses valores não foram exagerados e
13
merecem uma reflexão da sociedade, imprensa e governantes, para não tornar inexeqüíveis os
serviços da Instituição.
Disso equivalente dizer-se que, se persistisse a média de julgamentos havida em 1990, de 530
processos julgados por magistrado, em 2000, seriam necessários atualmente a quantidade de 1.840
magistrados para os 975.195 processos julgados, quando havia somente 663 magistrados, num
incremento notável de produtividade.
Produtividade da Magistratura
2000
1500
1000
500
0
1990 1992 1994 1996 1998 2000
1991 1993 1995 1997 1999
A busca pela justiça vem crescendo a cada ano. Os dados apresentados na Tabela 7 revelam
que, em 1990, somente 3,16% da população do Estado entrou com algum processo na Justiça. Já em
2000, esse número passou para 12,17%, representando um acréscimo de 285,12% no período.
Significa dizer que, em 1990, para cada 31 habitantes, 1 ingressava com alguma ação na Justiça,
enquanto, em 2000, de cada 8 habitantes, 1 buscou o Judiciário para solução de conflitos,
representando quase de quatro vezes o acréscimo no número de pessoas que, dessa forma, passaram
a exercer seus direitos. Assim, os direitos outorgados na Constituição de 1988 tornam-se expressos
na medida em que a sociedade deles tem conhecimento.
Verificando a difusão desse aumento nas diferentes entrâncias, constatou-se que, no ano de
1996, na entrância inicial, os processos iniciados tiveram um decréscimo de 4,33%; na entrância
intermediária, houve uma elevação em 30,43% das ações distribuídas em relação ao ano anterior; e,
16
na entrância final, 1,34% de aumento confrontados o número de processos distribuídos com aqueles
do ano de 1995. (Relatório Anual do PJ, 2000)
O número de Varas, que efetuam o atendimento especializado das matérias judiciais, também
aumentou em número não muito significativo, passando de 375 Varas, em 1990, para 4637 Varas, em
2000. Assim, os recursos propiciados ao atendimento direto da população para a busca de suas
demandas, não tiveram crescimento muito acentuado.
A análise da situação das Varas Judiciais também demonstra níveis percentuais semelhantes.
Recebiam uma média de 761 processos anuais, em 1990, e, no ano de 2000, a quantidade de 2.665
processos por Vara, num incremento de 248,88%.
Assim, a função jurisdicional está na solução dos litígios, sendo necessário que o Juiz afirme a
existência de uma vontade concreta da lei em relação a uma das partes do litígio, e a eficácia da
prestação jurisdicional está na sua validade absoluta para não perdurar o conflito e, na imutabilidade
da sentença que produziu coisa julgada, a definição da função jurisdicional.
Dentro da visão de que os objetivos de uma organização são sua razão de ser e se constituem
em fonte de legitimidade que justifica suas atividades (Etzioni, 1976), e diante da necessidade de o
Poder Judiciário não só se adaptar a novas exigências sociais, sob pena de se tornar retrógrado em
sua constituição e estrutura, como também para proteger-se dada sua vulnerabilidade à intromissão
de outros Poderes em sua organização, seus membros têm defendido a necessidade de reformulação
de seu modo de gestão, com toda a ética e cautela necessárias.
Em 1994, o então Presidente do Tribunal de Justiça, Des. Milton dos Santos Martins, propôs
a busca de solução para os problemas enfrentados por meio da modernização da gestão:
Os Juizados Especiais
20
Instituído em 1986, pela Lei Estadual nº 8.124, o Sistema Estadual de Juizados de Pequenas
Causas, somente em 1991, com a Lei Estadual nº 9.446, foi regulamentado em sua competência, e,
em 1995, a Lei Federal nº 9.099 instituiu e regulamentou nacionalmente os Juizados Especiais,
orientados pela simplicidade, informalidade, rapidez e economia processual, buscando em primeiro
lugar a conciliação entre as partes.
Em 1986, a lei conferiu competência aos Juizados em causas de valor até 5 vezes o salário
mínimo nacional, ou 10 vezes, em caso de ter por objeto “a condenação à entrega de coisa certa,
móvel ou ao cumprimento de obrigação de fazer, a cargo de fabricante ou fornecedor de bens e
serviços para consumo; a desconstituição e a declaração de nulidade de contrato relativo a coisas
móveis e semoventes.”
A Lei nº 9.446, de 1991, instituiu algumas facilidades para o ingresso de ação e aumentou o
limite para ingresso no valor de 40 salários mínimos, passando os Juizados a abranger causas para as
quais a lei prevê processo sumário, assim como a execução de títulos extrajudiciais, cujo valor não
exceda o limite estabelecido. Regula também os atos processuais e a execução das sentenças,
tornando os procedimentos mais simples e ágeis, dentre eles a audiência de conciliação em 15 dias do
pedido.
A Lei nº 9.099/95, em seu art. 9º, determinou que “nas causas de valor até vinte salários
mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor
superior, a assistência é obrigatória. § 1º Sendo facultativa a assistência, se uma das partes comparecer
assistida por advogado, ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual, terá a outra parte, se
quiser, assistência judiciária prestada por órgão instituído junto ao Juizado Especial, na forma da lei
local.” Assim, com o objetivo de fazer frente à demanda excepcional em causas, cujos valores situam-
se na faixa dos 20 a 40 salários mínimos, o Tribunal de Justiça propôs em 2003 a ampliação da
obrigatoriedade do ajuizamento, no Juizado Especial, de causas de valor até 40 salários mínimos,
excepcionando os casos previstos na Lei nº 9.099, o que gerou ponto de conflito entre a Ordem dos
Advogados do Brasil, Seção RS, e o Poder Judiciário do RS.
São instituídos também, com a Lei 9.099, os Juizados Especiais Criminais, cuja competência é
processar e julgar as contravenções penais e crimes, em que é prevista pena máxima de 1 (um) ano,
promovendo a reparação dos danos sofridos pela vítima e, preferencialmente, aplicação de pena não
privativa de liberdade.
somente com um documento que diga qual o seu problema, o cidadão consegue fazer valer seus
direitos sem despender um centavo sequer.
Essa assistência é gratuita à população, entretanto, o seu custo é arcado pelo Poder Judiciário.
É um serviço aditivo à justiça convencional que consome recursos, tempo e instalações. A maioria
das sessões desses Juizados acontece em horários noturnos, após o horário normal de expediente dos
servidores. Isso implica pagamento de adicionais noturnos ou concessão de dias de folga. Além disso,
no Judiciário gaúcho - que possui os Juizados Especiais mais atuantes em nível nacional - os Juízes
Leigos e Conciliadores recebem pagamento por seus serviços, cuja eficiência é incontestável, de
recursos provenientes do orçamento geral do Judiciário.
É essa conta, portanto, um ônus financeiro adicional ao Judiciário, que viu crescer a demanda
de 7.396 processos distribuídos em 1990 para 331.738 processos anuais em 2000, numa
impressionante evolução de 4.385% (quatro mil trezentos e oitenta e cinco pontos percentuais) no
período. Conforme se vê na Tabela 1, os anos de 1992, 1993 e 1997 são anos de explosão da
demanda nos Juizados Especiais. Nos julgamentos, a diferença atinge mais de 3000% de crescimento,
ressaltado o fato de que quase todos os processos que ingressam tem seu resultado conhecido em 30
ou 40 dias.
Vindos
Variação Variação Variação Variação
Ano do Ano Distribuídos Julgados Passam
% % % %
Anterior
1990 2.259 100,0 7.396 100,0 7.335 100,0 2.320 100,0
1991 2.320 2,7 19.413 162,5 15.858 116,2 5.875 153,2
1992 5.875 160,1 44.346 499,6 38.624 426,6 11.597 399,9
1993 11.597 413,4 66.092 793,6 60.464 724,3 17.225 642,5
1994 17.225 662,5 85.232 1.052,4 80.270 994,3 22.187 856,3
400.000
350.000
300.000
250.000
200.000
150.000
100.000
50.000
-
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000
Distribuídos Julgados
Considerações finais
No final do século 20, malgrado a necessária autonomia e independência dos Poderes se ver
ameaçada ao não ser conferido ao Judiciário co-participação no exercício do poder político do
Estado, constata-se uma crescente “profissionalização” daqueles que administram a Justiça, se não
pessoalmente, buscando em seus quadros e fora deles integrantes com competência e experiência na
área de administrativo-financeira.
Fazendo um comparativo com a média da despesa com pessoal, na década anterior (1980 –
1990), houve um decréscimo, alcançando 58% do orçamento realizado do Poder Judiciário, no ano
de 2000, excluindo-se, por óbvio, os pensionistas e inativos.
Em seu § 2º, a Lei assegurou parcela ao Poder Executivo quando definiu que “os
rendimentos líquidos referentes aos depósitos judiciais relativos a tributos estaduais”, constituindo-se
desde então em “item de receita do Fundo Estadual de Saúde, do Fundo Estadual de Segurança
Pública, do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento dos Pequenos Estabelecimentos Rurais, do Fundo
Estadual de Sanidade Animal e do Fundo de Reaparelhamento de Estradas do Sul, em partes iguais”.
Referências Bibliográficas
ALBERTO, André. A Reforma do Judiciário. Correio do Povo. Porto Alegre, 23-10-1998.
AXT, Gunter. Interpretações sobre a História do Orçamento Judiciário no Rio Grande do Sul. Justiça
& História, vol. 3, n. 5. Porto Alegre : Tribunal de Justiça, 2003.
BIANCAMANO, Mary da Rocha. O Poder Judiciário e o Movimento da Qualidade Total: aspectos
determinantes na implantação do PGQJ em um estudo exploratório. Dissertação de Mestrado,
PPGA/UFRGS. 1999.
BRASIL. Constituição Federal. Brasília : Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
CARTA de Rio Branco. Diário da Justiça. Porto Alegre, n. 896, 20-06-1996.
CARVALHO LEITE, Luís Carlos. Discurso. Diário da Justiça. Porto alegre, n. 1381, 1998.
DIÁRIO POPULAR. Pelotas. Editorial. 02-09-1998.
ETZIONI, Amitai. Organizações Complexas. São Paulo : Atlas, 1973.
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. O inimigo público. Zero Hora. Porto Alegre, 04-03-1996.
FARIA, José Eduardo. Justiça e Conflito. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1992.
LEGISLAÇÃO estadual. Decreto 28.099, de 21/12/1978. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO estadual. Emenda Constitucional n. 22. Diário da Justiça. Porto Alegre, n. 1282, 1998.
LEGISLAÇÃO estadual. Lei 6.124, de 28/12/1970. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO estadual. Lei 7.220, de 13/12/1978. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO estadual. Lei 7.785, de 01/06/1983. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO estadual. Lei 8.124, de 10/01/1986. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO estadual. Lei 9.446, de 06/12/1991. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO estadual. Lei 11.075, de 06/01/1998. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO estadual. Lei 11.667, de 11/09/2001. http://www.al.rs.gov.br/legis . acesso em
dezembro de 2003.
LEGISLAÇÃO federal. Lei n. 9.099/95. Porto Alegre : Rev. de Jurisprudência e Outros Impressos,
1996.
26
GUNTER AXT**
Resumo
Nos últimos anos, têm crescido os esforços, tanto no plano da
legislação quanto no administrativo e no acadêmico, no sentido do
desenvolvimento de estratégias eficazes para o enfrentamento do
problema relativo à gestão documental do Judiciário. Este artigo
pretende apresentar sugestões quanto ao tratamento dos chamados
“processos históricos”. Fundamentalmente, busca-se identificar a
possibilidade de construir alternativas de gestão que garantam a
preservação eficaz do patrimônio histórico ao mesmo tempo em que
levem em consideração as premências de ordem administrativa
enfrentadas pelo Poder Judiciário na contemporaneidade.
Abstract
Palavras-Chave
Processos históricos – Judiciário - arquivos judiciais
Key words
Apresentação
Ao se considerar a guarda e a preservação dos processos judiciais com “valor histórico”
agregado, cabe, como indagação preliminar, saber em que medida incumbe ao Poder Judiciário
a competência sobre a concepção e a execução de políticas arquivísticas próprias, tema que
1
precisa ser compreendido tanto à luz da legislação vigente, quanto na perspectiva da
conveniência administrativa, bem como social. Assim sendo, na primeira parte deste artigo
veremos como a legislação corrente tem regulado este campo de atividade. Em seguida,
trataremos do sentido sócio-político que encerram os documentos e os arquivos judiciais,
intentando avaliar o interesse destes arquivos para o conjunto da sociedade. Na terceira parte,
abordaremos aspectos da metodologia tradicional sugerida pela arquivologia para o tratamento
científico das tarefas de identificação e conservação da documentação de preservação
permanente, bem como procuraremos acompanhar, com base nas informações disponíveis,
aspectos das experiências neste campo reunidas pela Justiça Federal, pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pelo
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.
2
O Decreto Federal nº 2.134, de 24 de janeiro de 1997, fixou, ainda, diretrizes para
concepção e aplicação das normas para acesso a documentos considerados sigilosos,
determinando a todos os órgãos públicos a instalação de Comissões Permanentes de Acesso:
“as comissões deverão analisar, periodicamente, os documentos sigilosos sob custódia, submetendo-os à autoridade
responsável pela classificação, a qual, no prazo regulamentar, efetuará, se for o caso, a desclassificação”. Estão
nesse rol, certamente, os processos judiciais, vez que envolvem, muitas vezes, informações de
caráter privado relativas a pessoas físicas e jurídicas. O Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro
de 2002, suspendeu parcialmente a validade do Decreto nº 2.134, estendendo o prazo de
vedação à consulta dos documentos considerados sigilosos de 30 para 50 anos e esvaziando a
importância das Comissões Permanentes de Acesso. Todavia, o Projeto de Decreto Legislativo
nº 11/03, de autoria da Deputada Federal Alice Portugal (PC do B-BA), que tramita na CCJ da
Câmara Federal, pretende a restituição das normas aplicadas pelo Decreto 2.134. O PDL
amplia o papel das Comissões Permanentes de Acesso, atribuindo-lhes o cuidado pelo “acesso
pleno aos documentos públicos”.
A forma como estes temas vêm sendo interpretados pode ser captada nos anais do
XIII Congresso Brasileiro de Arquivologia, promovido pela AAB – Associação Brasileira de
Arquivistas – em outubro de 2000, na cidade de Salvador (BA). Na oportunidade, estabeleceu-
se uma lista de recomendações, dentre as quais podemos destacar como as de maior interesse
para o Poder Judiciário:
3
• Que sejam empreendidos estudos para subsidiar a regulamentação
do uso, armazenamento e controle da documentação eletrônica do
Poder Judiciário.”
(http://www.aab.org.br/quadro_sublinks.htm)
1 Lei nº 6.246, de 7 de outubro de 1975, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu
4
Por sua vez, as soluções aplicadas na jurisdição comum nem sempre têm primado pela
clareza jurídica e pela objetividade administrativa. Num extremo, pelo menos seis diferentes
Estados da Federação (TO, RR, RO, AP, GO e MS) sequer possuem legislação arquivística
específica. Em outro pólo, verificamos que na Bahia a documentação judicial é custodiada pelo
Arquivo Público Estadual, gerido pelo Poder Executivo, e, no Sergipe, criou-se um Arquivo
Público do Poder Judiciário (Gomes, 2003).
Da década de 1950 em diante, muito embora existam ainda alguns processos mais
recentes guardados no Arquivo Público, os processos judiciais deixaram de ser enviados ao
Arquivo Público do Estado, sob o aparente argumento de que a capacidade de armazenagem
desta instituição esgotara-se. Destarte, a documentação judicial passou a ser acomodada, via de
regra, nos fóruns. Se esta fórmula conseguiu garantir a preservação da documentação, trouxe,
por outro lado, o grave inconveniente de sobrecarregar as administrações dos fóruns,
5
consumindo recursos humanos e financeiros e ocupando espaço físico que poderiam estar
sendo direcionados para a prestação jurisdicional, aliás, cada vez mais demandada pela
sociedade. Além disso, este acervo jamais recebeu um tratamento arquivístico tecnicamente
apropriado, sendo, na prática, em geral acomodado de forma improvisada, quando não,
precária3.
3 Um diagnóstico de 1996 descreveu a situação dos arquivos judiciais da jurisdição federal, que pode, em
grande medida, ser considerada análoga à existente na jurisdição comum do Rio Grande do Sul:
a) Inexistência do Arquivo como unidade administrativa. Em muitos casos, os documentos
administrativos e autos findos são arquivados nas Varas, acarretando uma crescente necessidade de
ampliação do espaço físico e, conseqüentemente, da construção de novos prédios;
b) Espaços físicos inadequados, insuficientes, com problemas de infiltração, rachaduras, falta de
resistência da estrutura, mofo, umidade, iluminação insuficiente, exposição ao sol, ao calor,
ventilação inadequada, equipamentos de segurança contra incêndios inadequados a depósito de
papéis, fiação elétrica exposta, falta de higienização e limpeza adequadas, presença de agentes
poluentes e a existência de até 13 depósitos de documentos em diferentes locais em uma mesma
cidade sede de Seção Judiciária;
c) Falta de recursos humanos em número e em qualificação;
d) Falta de recursos materiais: sistemas automatizados, estantes, caixas-arquivo, computadores,
impressoras, mesas e outros mobiliários;
e) Falta de equipamentos de proteção (luvas, máscaras, jalecos) e ocorrência de doenças adquiridas em
função do trabalho (alergias respiratórias e de pele) devidamente comprovadas pelos serviços
médicos das instituições;
f) Falta de normas, manuais, sistemas automatizados e instrumentos de gestão documental, planos de
classificação de documentos, guias de transferência de autos findos das Varas para os Arquivos,
métodos de recuperação dos documentos, critérios de eliminação de documentos. 19,4% dos
arquivos já haviam eliminado documentos e outros 29% não souberam informar. (Sordi & Marques,
2003)
6
do Arquivo Ótico e de Processo do Poder Judiciário, objetivando a paulatina substituição de
todos os arquivos judiciais por um único arquivo centralizado, bem como a implantação de um
sistema de arquivamento ótico, por meio magnético digital, dos processos judiciais e de
natureza administrativa. A Resolução pretendeu, ainda, o descarte dos processos judiciais
findos há mais de cinco anos, depois de serem os mesmos escaneados, bem como o descarte
de certos processos cíveis e criminais, sem exigência de digitalização, tais como habeas-corpus,
embargos diversos, agravos de instrumento, ações cautelares, processos tramitados nos
juizados especiais cíveis, etc.
7
da escrita e de sua interação, se liberam as forças, os movimentos do pensamento” (Baratin & Jacob, 2000:
9).
Conforme registra Jaques Le Goff (1990), a todo ato de lembrar corresponde um ato
de esquecer. O investimento na guarda de um documento pode estar determinando a exclusão
de outro. A forma com que as instituições arquivísticas organizam e disponibilizam o seu
acervo pode contribuir para guiar o olhar do consulente e do pesquisador, que mais tarde irá
trabalhar a construção de interpretações sobre o vivido, a formulação de identidades. A
memória coletiva é sempre seletiva, é produto de uma construção política animada pelo influxo
de forças sociais organizadas.
Assim, o poder dos arquivos e bibliotecas não se situa apenas no campo das palavras e
dos conceitos. Como demonstram os historiadores Anthony Grafton e Roger Chartier, o
domínio sobre a memória escrita e sobre a acumulação de livros e documentos possui sentidos
políticos. Representa o signo e o instrumento de poder, por exemplo, da Igreja, dos monarcas,
da aristocracia, da nação, da república; poder econômico de quem dispõe de recursos
necessários para comprar, acumular e conservar um acervo documental, poder intelectual
sobre os intelectuais (Baratin & Jacob, 2000: 169-199).
8
6.000 volumes, para que a coleção do Congresso Nacional fosse reiniciada. A Biblioteca do
Congresso resiste até hoje como materialização da memória e da identidade dos Estados
Unidos da América (Darnton, 2003: 10). Como demonstra Luciano Canfora em estudo sobre a
mítica biblioteca de Alexandria, a perda dos livros significou a perda de civilizações (Baratin &
Jacob, 2000: 234-245). Aniquilar o passado e começar uma nova sociedade a partir do que o
Khmer Vermelho chamou de “ano zero” foram exatamente os objetivos do Exército de Pol
Pot quando destruiu a Biblioteca Nacional de Phnom Pehn, no Camboja, dando origem a um
dos mais obscuros e sanguinários regimes políticos da nossa era (Darnton, 2003: 11).
9
cuja reconstituição pode ser essencial para o estabelecimento de referenciais identidários. Mas
os documentos não falam por si só. Cada historiador, ao compulsar um corpo documental,
organiza e elabora séries documentais, sistematizando dados e construindo sentidos analíticos e
interpretativos conforme suas perguntas. Ora, como já registrou o filósofo italiano Benedetto
Croce, as perguntas formuladas pelos historiadores são invariavelmente influenciadas e
determinadas pelas experiências individuais e coletivas que lhe são contemporâneas. Portanto,
por esta lógica presume-se que um estudo, por exemplo, sobre a evolução da propriedade
fundiária somente será alvo de interesse quando a questão agrária converter-se em problema
social, político e econômico de uma determinada sociedade, e assim por diante.
Até a bem pouco tempo, a História Nacional vinha sendo contada, sobretudo, da
perspectiva do encadeamento de eventos e fatos, que tinham como protagonista o Poder
Executivo, a ação de seus integrantes e sua arquitetura institucional. Esta cultura historiográfica
foi caudatária de uma concepção específica de poder, que sempre se estribou na apologia do
presidencialismo forte e voluntarista, freqüentemente sobreposto às demais instâncias de
poder. Aqui, o Estado, ao invés de ser entendido como uma das agências de poder na
sociedade sobre a qual incide a pluralidade da cidadania, era caracterizado como um veículo
funcional, cuja prática seria ou providencial ou retrógrada, dependendo da perspectiva
ideológica do analista (Axt, 2002).
10
Aos poucos, esta análise vem convergindo para as organizações sociais não
governamentais, para os movimentos sociais, para a ação dos partidos políticos e para a
conformação do Parlamento e da Justiça. No início, algumas teses acadêmicas passaram a
compulsar os anais do Legislativo bem como processos judiciais, na condição de fontes para
enriquecer o tratamento dado à pesquisa. Em seguida, começaram a surgir os primeiros
trabalhos exclusivamente dedicados a estes personagens institucionais (Axt, 2002). Com efeito,
“uma instituição como a Justiça, pela amplitude de seu poder de intervenção na ordem social, é capaz de
espelhar, de maneira indireta, boa parte das características dessa mesma sociedade, daí o interesse dos
historiadores na consulta da documentação por ela produzida” (Camargo, 2003: 329).
Para citar, neste sentido, apenas um exemplo recente, bastante próximo da realidade
sul-rio-grandense, merece registro o trabalho do historiador norte-americano John Chasteen,
que se valeu recentemente das fontes judiciais produzidas no Brasil do Século XIX para
reconstituir aspectos fundamentais dos hábitos culturais e cotidianos dos habitantes da região
fronteiriça entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, contribuindo sobremaneira para o esforço
de caracterização e de entendimento da identidade característica do gaúcho. A sua opção
metodológica encontra explicação, em grande parte, no fato de o sistema judicial brasileiro,
mais organizado do que o dos demais países latino-americanos nesta época, era das poucas
instituições estatais que chagavam ao campo (Chasteen, 2001: 76).
Ora, quem poderia imaginar, nos remotos anos de 1870, que simples processos de
cidadãos anônimos guardados durante décadas por zelosos funcionários do Judiciário,
poderiam se converter, mais de cem anos depois, em fonte tão rica para o estudo da alma do
povo gaúcho?
11
“os historiadores que se valeram dos processos judiciais, neles
encontraram informações que não foram previstas pelas instituições
produtoras da documentação. É o caso de trabalhos clássicos da
História da Cultura, que utilizam os processos-crime para caracterizar
idéias, valores e comportamentos de toda uma sociedade. Em lugar do
crime, razão pela qual foram elaborados os processos, são outros os
fatores que, de forma espontânea, transparecem nos autos. Vale
lembrar, entre nós, o livro de Maria Sílvia de Carvalho Franco sobre
homens livres na ordem escravocrata, baseados em processos
criminais da Comarca de Guaratinguetá, SP. Trata-se de importante
exemplo da utilização dessa fonte para o estudo, não do crime, mas
das relações comunitárias.” (Camargo, 2003: 329)
Ou seja, quando o documento perde o seu valor corrente e administrativo, quando ele
se distancia do objeto para o qual foi produzido originalmente, ele ganhará um novo valor,
cujo sentido é estabelecido pelo historiador a partir das perguntas norteadoras de sua pesquisa.
Assim, um documento histórico, para o historiador, não tem um sentido em si, um valor
intrínseco, pois é o próprio historiador, no exercício do seu métier, que poderá conferir sentido
ao documento. E este sentido é cambiante, variando de um historiador para outro, de uma
época para outra, pois cada pesquisador carrega a sua pergunta sobre o passado.
12
investigar o contexto de produção do documento histórico bem como o contexto de
preservação do conjunto no qual o mesmo se insere institucionalmente. Esta tarefa,
naturalmente, torna-se mais fácil quando o historiador dispõe para suas investigações de
arquivos bem organizados e indexados e cuja unidade temática não foi mutilada pela ação do
tempo ou dos homens (Camargo, 2001: 7-8).
Além disso, como registra com pertinência Heloísa Bellotto, professora da USP e
especialista em gestão de arquivos, os acervos documentais também podem ser objeto de um
uso popular e individual. Nesse caso, o foco de interesse é informativo e o sujeito que visita o
arquivo é o cidadão comum que persegue ali dados informativos ou comprobatórios de seus
direitos e deveres. Foi com a Revolução Francesa que as populações começaram a ter acesso
aos arquivos públicos, indicando que há uma relação estreita entre a disponibilização da
informação e o fortalecimento da cidadania. No Brasil, o hábeas data consolidado na
Constituição de 1988 e expresso, também, na Lei nº 8.159/91, garante a todo cidadão acesso a
documentos ou bancos de dados que lhe digam respeito (Bellotto, 2002: 169).
Em síntese, quando nos remetemos a uma instituição arquivística qualquer, não pode
haver equívoco maior do que considerá-la tão somente pelo prisma administrativo – embora
13
seja o mesmo importantíssimo –, pois os arquivos encerram uma poderosa dimensão social,
exprimem paradigmas simbólicos e representam relações de poder, explícitas e implícitas. A
propósito da submissão da lógica administrativa ao interesse social, como sabem os estudiosos,
o filósofo alemão Max Weber tinha por referencial sempre inquirir qualquer política pública
com a pergunta: que Homem queremos construir no futuro com este investimento, com este
gasto? De fato, parece que toda a institucionalização democrática ocidental contemporânea
pretende, pelo menos conceitualmente, assentar-se sobre esta inspiração. De forma que, ao
pensarmos ou desprezarmos uma política arquivística, precisamos ter em mente que estaremos
legando às gerações futuras o entendimento hodierno e embalado por uma fração de classe
específica do que é memória e do que merece ser lembrado, o que, certamente, constrangerá o
alcance cognitivo daqueles que virão sobre o seu próprio passado e poderá limitar a
compreensão das perspectivas e dos impasses do presente no futuro.
Eis porque para um historiador é, a priori, impossível – assim como para um juiz é
impossível afirmar que um processo que envolve somas de 10 milhões de reais é mais
importante do que aquele que representa disputas em torno de 10 reais – determinar níveis de
historicidade para os documentos. O historiador com consciência apurada da sua
responsabilidade ética sabe que – assim como o juiz não pode decidir que um cidadão tem
mais direito de acessar a Justiça que outro – não pode decidir quais as práticas sociais, quais os
cidadãos, quais as instituições que serão lembrados e quais deverão ser esquecidos. O
historiador consciente de suas responsabilidades éticas, tal qual o juiz que precisa ouvir todas
as partes antes de prolatar uma sentença, sabe que precisa auscultar todos os interlocutores
sociais, captar todas as representações possíveis, antes de propor à sociedade uma
interpretação sobre um determinado fato e, destarte, tem perfeitamente presente que o que
pode ser uma interpretação cientificamente aceita nos dias de hoje, pode não mais sê-lo no
futuro, quando as pessoas poderão descobrir novas fontes, inquirir os documentos de outras
maneiras, sempre à luz das questões que forem mais pertinentes aos dramas próprios de suas
identidades coletivas.
Portanto, a questão que se afigura neste momento é: como agentes de democracia, qual
o direito que temos de legar aos pósteros uma memória seletiva do nosso presente? Quais os
prejuízos intrínsecos a uma opção como esta para o enfrentamento dos impasses que o futuro
trará aos nossos filhos e netos? Existem fatores que devem nos estimular a operar intervenções
14
seletivas nos esquemas de preservação da memória? Quais são eles, como justificá-los
teoricamente e como executá-los metodologicamente sem ofender o interesse público e sem
prejudicar a legalidade, a coerência conceitual e a memória orgânica de uma instituição?
Dentre outras coisas, os dois diplomas supracitados determinam que toda instituição
arquivística deverá ser dirigida por arquivista competente, o qual somente poderá ser
substituído por um profissional da área da biblioteconomia naquelas regiões e estados da
Federação onde não houver cursos superiores de arquivologia. No Rio Grande do Sul,
funciona na Universidade Federal de Santa Maria um dos mais antigos cursos do gênero do
País. Recentemente, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul instituiu, também, um curso
superior em arquivologia.
O termo “arquivo” parece ter surgido na antiga Grécia, com a denominação de arché,
atribuída ao palácio dos magistrados, daí evoluindo para archeion, local de guarda e depósito de
15
documentos legais. A moderna ciência arquivística ampliou e classificou o conceito. Entende-
se serem funções básicas do arquivo a guarda e a conservação de documentos com alguma
organicidade conceitual e origem comum, visando a sua utilização para fins administrativos e
históricos. Jean-Jacques Valette (1973), inspirado em Schellemberg, norte-americano
considerado pai da moderna arquivologia, propôs três idades para os arquivos, numa
classificação hoje universalmente aceita: corrente, intermediária e permanente. Arquivos
correntes são aqueles que reúnem a documentação de uso contemporâneo. Arquivos
intermediários são aqueles que abrigam a documentação que já não é mais de uso cotidiano,
mas pode ainda vir a ser consultada para fins administrativos. A permanência dos documentos
nestes arquivos é essencialmente transitória. Finalmente, os arquivos permanentes, ou de
terceira idade, preservam a documentação que perdeu todo valor de natureza administrativa,
mas que deve ser conservada em razão do seu interesse histórico, constituindo o meio de
conhecer o passado e a evolução da cultura de uma instituição ou da sociedade. Recomenda-se
que haja separação espacial entre os arquivos de três idades, ou seja, ainda que abrigados no
mesmo prédio, devem os mesmos ocupar espaços diferenciados (Paes, 1991: 4-6).
Todavia, impende registrar que arquivos descentralizados estão mais próximos das
comunidades que produziram os documentos e, portanto, podem ser objeto de consultas mais
freqüentes e podem se prestar mais a fins e usos didáticos do que arquivos centralizados,
aspecto que vem sendo progressivamente valorizado por historiadores e arquivistas (Bellotto,
2000: 158-9).
16
documentos administrativos são preservados nos arquivos permanentes. Em países como os
Estados Unidos e a França, por exemplo, estima-se que apenas de 5 a 20%, no máximo, dos
documentos administrativos devam ser preservados, sendo os demais eliminados. Um arquivo
permanente deve dividir suas atividades em cinco etapas: 1) a Destinação opera a
transferência dos documentos, o recolhimento, a análise, a avaliação, a seleção e a eliminação
daqueles documentos que não forem considerados como agregando valor de conservação
perene; 2) o Arranjo reúne e ordena adequadamente os documentos; 3) a Descrição e
Publicação respondem pela execução da política de acesso aos documentos para consulta e
pela divulgação do acervo; 4) a Conservação responde pelos trabalhos de proteção e guarda
dos documentos, visando impedir sua destruição pela ação deletéria do tempo, de fungos, etc.
5) finalmente, a Referência responde pela concepção da política de acesso e de uso dos
documentos (Paes, 1991: 73).
17
janeiro de 1997, constituir Comissões Permanentes de Acesso, cujas normas básicas de
composição e funções acham-se regulamentadas.
Nesse sentido, constatamos que a teoria arquivística tradicional, que, aliás, nunca se
debruçou especificamente sobre a documentação judicial, é igualmente incapaz de definir
“valor histórico” aos documentos, sendo tão somente capaz de estabelecer valores de direito e
de vigência. De tal sorte que, se aplicada a metodologia tradicional, tanto na perspectiva da
ciência histórica, quanto na perspectiva da ciência arquivológica, constata-se ser impossível a
eliminação de processos judiciais, excetuando, quando muito, documentos como embargos
(que reproduzem partes do processo), habeas-corpus ou intimações (documentos de pura
formalidade).
18
mesmo, um cidadão qualquer (no caso de um indivíduo não encontrar nos arquivos judiciais
processos em que tenha figurado como parte, visto que, pelo Artigo 24 da Lei 8.159/91,
parece evidente a responsabilidade do Poder Público, e especialmente do Judiciário, também
na preservação de documentos sigilosos que possam, a qualquer momento, ser requisitados
pelas partes). Ainda que os Judiciários estaduais tenham autonomia para gerir sua política
documental, se assim o quiserem, não resta dúvida de que a legislação federal pertinente
estabeleceu diretrizes conceituais rígidas para o tratamento da matéria, tanto ao nível do
Executivo, quanto do Legislativo, do Judiciário e da iniciativa privada, as quais parecem que
devem ser observadas. Ou seja, parece estar na alçada da jurisdição estadual optar, por
exemplo, por transferir a responsabilidade da gestão documental para o Poder Executivo ou
assumi-la diretamente, ou, ainda, por uma política centralizada ou descentralizada de gestão
documental. Mas não é possível implementar uma política de eliminação de documentos sem
uma tabela de temporalidade concebida por uma comissão especializada, na forma da lei, e
aprovada por autoridade competente. Perpassando a autonomia administrativa da instituição
estarão sempre o bem comum e o interesse social, de sorte que uma política polêmica poderá
provocar a ação das instituições que zelam pela preservação do patrimônio histórico e
documental, bem como pelo fortalecimento da cidadania.
Foi exatamente isto o que aconteceu com a solução pretendida pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, com base no polêmico Provimento nº 556, em 14 de fevereiro de
19974, que previu a eliminação de processos após cinco anos de arquivamento, com exceção
4
PROVIMENTO CSM Nº 556/97.
Regulamenta a destruição física de autos de processo, arquivados há mais de 05 (cinco) anos
em primeira instância, nas Comarcas da Capital e do Interior do Estado.
O Conselho Superior da Magistratura, no uso de suas atribuições legais, nos termos do artigo 216, inciso
XXVI, "b" do Regimento Interno;
Considerando o elevado número de processos definitivamente arquivados na Capital e Comarcas do
Interior do Estado;
Considerando a necessidade de adotar providências que permitam reduzir, com segurança e resguardo, o
número de autos que, arquivados há mais de 05 (cinco) anos, desinteressem às partes, ao Poder Público e às
entidades de preservação histórica;
Considerando o alto custo e dispêndio de trabalho e servidores na manutenção de grande quantidade de
autos findos nas condições acima e a absoluta falta de espaço nos fóruns do Interior e nos arquivos da Capital;
Considerando que expressiva parte deles está danificada e deteriorada pela ação do tempo;
Considerando, ainda, os precedentes deste Conselho Superior e da Corregedoria-Geral da Justiça
constantes dos expedientes CG-83.298/88, G-147.055/88, CG 83.645/88 e do Provimento CSM nº 485/92;
19
Considerando, finalmente, que este Conselho Superior, no Processo nº 25/92 - DEPRI, aprovou em
24.10.1996 parecer da Comissão de Arquivo e autorizou a destruição de processos findos, arquivados
definitivamente há mais de (05) cinco anos,
Resolve:
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Artigo 1º - Os autos de processos judiciais ou administrativos poderão ser eliminados por incineração,
destruição mecânica, transformação em aparas ou por outro meio adequado, findo o prazo de 05 (cinco) anos,
contado da data do arquivamento, segundo os critérios e condições estabelecidas neste Provimento.
Parágrafo único - Ficam excluídos da destruição física todos os autos cujo interesse histórico seja
comprovado por entidade regularmente instituída, ou por deliberação do Conselho Superior da Magistratura.
Artigo 2º - Somente os processos findos, arquivados há mais de 05 (cinco) anos, poderão ser eliminados.
Parágrafo único - Considera-se processo findo aquele definitivamente decidido, com trânsito em julgado,
que não comporte qualquer recurso, bem como as causas resolvidas por acordo de vontades.
Artigo 3º - É lícito às partes e interessados requerer, às suas expensas, o desentranhamento de
documentos que juntaram aos autos, ou a reprodução total ou parcial do feito, por intermédio de extração de
cópias reprográficas, microfilmagem, "escaneamento", leitura ótica, ou qualquer outro sistema disponível.
Parágrafo único - Não sendo possível o atendimento pela Vara, Foro ou Arquivo Central, qualquer das
partes do processo poderá requerer a retirada dos autos, pelo prazo de 10 (dez) dias, para sua reprodução total ou
parcial.
Artigo 4º - Se, a juízo da autoridade judiciária em exercício na Comarca ou Vara no Interior, e da
Presidência do Tribunal de Justiça, na Capital, houver, nos autos, documentos de valor histórico comprovado,
serão eles recolhidos e colocados à disposição da Comissão de Arquivo para as providências necessárias ou
entrega à entidade dedicada à preservação que demonstre interesse.
Artigo 5º - A destruição de autos se fará duas vezes por ano, a cada período de 06 (seis) meses.
§ 1º - A destruição de autos e a periodicidade estabelecida são obrigatórias.
§ 2º - Quando houver algum impedimento ou dificuldade para dar cumprimento ao estabelecido no
parágrafo anterior, o Magistrado ou a Comissão de Juízes deverá, fundamentadamente, pedir autorização ao
Conselho Superior da Magistratura para exceder ou diminuir esse prazo ou suspender o procedimento.
Artigo 6º - Competirá a este Conselho Superior, ouvida a Comissão de Arquivo, estabelecer ou alterar
prazos, critérios e sistemas necessários ao cabal cumprimento deste Provimento.
CAPÍTULO II
DO PROCEDIMENTO NA DESTRUIÇÃO DE AUTOS
SEÇÃO I
Das Disposições Comuns
Artigo 7º - A lista dos processos que serão eliminados será organizada em ordem numérica, segundo o
ano de distribuição.
Parágrafo único - A lista será elaborada em 03 (três) vias.
Artigo 8º - Na elaboração das listas os autos serão identificados apenas pela Vara, Foro Distrital, Foro
Regional ou Comarca, Ofício de Justiça respectivo, ano de distribuição e número de registro, vedada a divulgação
do nome das partes ou a natureza da ação.
Artigo 9º - O Escrivão-Diretor do Ofício de Justiça e o Diretor do Arquivo Geral manterão,
obrigatoriamente, Livro de Registro de Autos Destruídos, que será composto por cópias das relações de
processos destruídos, cabendo à Corregedoria-Geral fiscalizar a sua correta organização e manutenção.
20
SEÇÃO II
Da Destruição de Autos nas Comarcas do Interior
Artigo 10 - Nas Comarcas do Interior competirá ao Juiz Titular da Vara ou, estando vago o cargo de
titular, ao Diretor do Fórum em exercício, onde houver Vara única, as providências para a destruição de autos.
Artigo 11 - O Escrivão-Diretor elaborará lista de processos que deverão ser eliminados, e a submeterá ao
Juiz Titular da Vara.
§ 1º - Conferida e corrigida a lista no prazo de 10 (dez) dias, o Magistrado determinará a publicação do
edital e da lista de processos na Imprensa Oficial uma única vez, com o prazo de 30 (trinta) dias para apresentação
de requerimentos ou reclamações.
§ 2º - Da decisão do Juiz de Direito ou da Comissão de Juízes Corregedores caberá recurso para o
Conselho Superior da Magistratura, no prazo de 10 (dez) dias.
§ 3º - Enquanto o recurso estiver pendente de julgamento os autos não poderão ser destruídos.
Artigo 12 - O ato de eliminação física de autos será presidido pelo Juiz Titular ou em exercício, auxiliado
pelo Escrivão-Diretor e contará, obrigatoriamente, com a presença de 03 (três) testemunhas, dentre autoridades
ou cidadãos previamente convidados, podendo dele participar, querendo, um representante da Subseção da
Ordem dos Advogados do Brasil e de outras entidades de preservação histórica.
Parágrafo único - Do ato lavrar-se-á, no verso da relação de processos destruídos, termo circunstanciado,
certificado pelo Escrivão-Diretor e assinado pelo Juiz Presidente e pelas testemunhas.
SEÇÃO III
Da Destruição de Autos na Comarca da Capital
Artigo 13 - Na Comarca da Capital competirá a uma Comissão de Juízes Corregedores as providências
para a destruição de autos.
§ 1º - A Comissão será composta por dois Juízes designados pelo Conselho Superior da Magistratura,
sendo um indicado pela Corregedoria-Geral e outro pela Presidência.
§ 2º - A designação será feita por um período de 02 (dois) anos, coincidindo com os mandatos do
Presidente e do Corregedor-Geral da Justiça, podendo os membros ser substituídos por ato do Conselho
Superior.
Artigo 14 - O Diretor do Arquivo Geral elaborará lista dos processos que deverão ser eliminados e a
submeterá à Comissão de Juízes Corregedores.
Parágrafo único - Conferida, corrigida e procedidas às diligências necessárias, no prazo de 10 (dez) dias, a
Comissão determinará a publicação do edital e da lista de processos na Imprensa Oficial uma única vez.
Artigo 15 - O ato de eliminação física de autos será presidido pela Comissão de Juízes, auxiliados pelo
Diretor do Arquivo Geral, com a presença de 03 (três) testemunhas, dentre autoridades e cidadãos previamente
convidados, podendo dele participar, querendo, um representante da Ordem dos Advogados do Brasil e de outras
entidades de preservação histórica.
Parágrafo único - Do ato lavrar-se-á, no verso da relação de processos destruídos, termo circunstanciado,
certificado pelo Diretor do Arquivo Geral e assinado pelos Juízes Corregedores e pelas testemunhas.
SEÇÃO III
Do Edital
Artigo 16 - O edital deverá esclarecer quais processos serão destruídos, a Vara, Foro Distrital, Foro
Regional ou Comarca, Ofício de Justiça, ano de distribuição, número dos processos, local, hora e o sistema de
destruição a ser utilizado.
§ 1º - Cópia do edital, com a respectiva lista, será encaminhada à Ordem dos Advogados local, com
antecedência mínima de 15 (quinze) dias.
21
§ 2º - Outra cópia será remetida, com a mesma antecedência, ao Departamento da Magistratura, na
Capital, onde será aberta pasta especial de registro de autos destruídos para cada Comarca e para a Capital.
§ 3º - Se na Comarca houver alguma entidade de preservação histórica, ser-lhe-á, no mesmo prazo,
remetida cópia.
CAPÍTULO III
DOS CRITÉRIOS E RESTRIÇÕES PARA A DESTRUIÇÃO
SEÇÃO I
Dos Feitos Criminais
Artigo 17 - Serão mantidos em arquivo, facultada, oportunamente, a documentação por outro meio, e
posterior destruição, os processos relativos a ações penais em que o réu tenha sido condenado.
Artigo 18 - A destruição física de autos de natureza criminal, segundo a classificação abaixo, fica
autorizada sem necessidade de documentação prévia:
I - inquéritos policiais e termos circunstanciados arquivados (Lei nº 9.099/95);
II - ações penais absolutórias onde não tenha sido aplicada medida de segurança;
III - ações penais onde tenha sido declarada a extinção da punibilidade antes de proferida a decisão sobre
o mérito;
IV - ações penais da competência dos Juizados Especiais Criminais onde tenha havido absolvição,
transação, ou a extinção pela reparação do dano.
SEÇÃO II
Dos Feitos Cíveis e Administrativos
Artigo 19 - Serão mantidos em arquivo, facultada, oportunamente, a documentação por outro meio, e
posterior destruição, os processos relativos a:
I - ações relativas à família, sucessões, união estável entre conviventes e ao estado e capacidade das
pessoas;
II - ações relativas a registros públicos, inclusive processos administrativos;
III - ações relativas à posse, registro e propriedade de bem imóvel, inclusive as de desapropriação,
apossamento administrativo (desapropriação indireta), usucapião, servidão, retificação de área, discriminatória de
terras, divisão, demarcação e adjudicação compulsória;
IV - procedimentos de infância e juventude de adoção, guarda e suprimento do consentimento.
Artigo 20 - A destruição física dos demais processos cíveis e administrativos, qualquer que seja a
natureza da ação, processos incidentes, medidas cautelares, antecipatórias ou conexas, fica autorizada, sem
necessidade de documentação prévia.
CAPÍTULO X
DAS DlSPOSlÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS
Artigo 21 - O Conselho Superior da Magistratura poderá autorizar a entrega de processos que, nos
termos do artigo 2º, deveriam ser destruídos, a Universidades e Faculdades de Direito situadas no Estado de São
Paulo, à Escola Paulista da Magistratura e a entidades de preservação histórica.
§ 1º - Só se permitirá a entrega para fins de estudo e preservação histórica, hipóteses em que na capa do
processo deverá conter a expressão, sob carimbo, "Documento de propriedade do Poder Judiciário de São Paulo -
Preservação obrigatória".
§ 2º - A entidade depositária será responsável pela preservação dos processos, vedada a sua entrega a
terceiros, podendo, contudo, devolvê-los à origem.
22
dos chamados “processos históricos”. Na oportunidade, o Juiz aposentado Fausto Couto
Sobrinho, Diretor do Arquivo do Estado de São Paulo, e a Dra. Zilda Iokoi, Presidenta da
ANPUH (Associação Nacional dos Historiadores), afirmaram categoricamente que os Juízes
“não têm condições técnicas para decidir o que tem valor histórico”. Ambos manifestaram temor de que
interpretações apressadas permitissem a destruição de processos valiosos em todo o Estado.
Segundo o jornal O Estado de São Paulo, Zilda Iokoi sublinhou o exemplo da tese de doutorado
do historiador Sidney Chalhoub, da Universidade de Campinas, que se valeu de processos
judiciais na sua pesquisa para demonstrar que, no Século XIX, muitas escravas conquistaram a
sua liberdade recorrendo à Justiça, junto a qual provavam que seus senhores as haviam
23
obrigado a se prostituir, o que era proibido pela legislação civil e escravagista brasileira. Ora, na
época processos envolvendo escravos eram considerados banais pelas pessoas, porém,
justamente por terem sido guardados e preservados, permitiram aos homens do futuro a
reconstituição de importantes traços da nossa cultura social e jurídica. Certamente, estes
processos consultados pelo historiador, lente da academia brasileira, permaneceram
adormecidos nos arquivos por décadas, sem que ninguém os consultasse, até que renascessem
para a sociedade por meio das páginas de um excelente livro de história (O Estado de São
Paulo, 11 de outubro de 1998).
Por sua vez, comentando o mesmo Provimento, a historiadora Ana Maria de Almeida
Camargo, então Presidenta da AAB, esclareceu: "antes de destruir, uma comissão
multidisciplinar deveria dar valores para cada documento, determinando prazos de
conservação e definindo o que pode ser eliminado”. Na mesma linha de opinião, o Diretor do
Arquivo Nacional, com sede no Rio de Janeiro, Jaime Antunes da Silva, afirmou, que “o
critério temporal para destruir processos judiciais arquivados é irrelevante”, acrescentando,
também, que o importante é o “valor atribuído ao documento pela tabela de temporalidade e
não há quantos anos o processo está arquivado”. Compartilhando da posição dos colegas, a
historiadora Rose Marie Inojosa, da Fundação do Desenvolvimento Administrativo do Estado
de São Paulo, não viu justificativa razoável para o estabelecimento de um prazo geral e
arbitrário de cinco anos para eliminar documentos essenciais para a memória da sociedade,
perguntando-se: "por que cinco e não um ou dez ou cem?". Na mesma oportunidade,
finalmente, o advogado José Galante Rodrigues, conselheiro do Instituto dos Advogados de
São Paulo (IASP), condenou duramente o Judiciário: "um povo que destrói a documentação
que contém o drama de suas populações é um povo que destrói seu passado e tende a repetir
desmandos e erros que atrasam o progresso da Nação" (O Estado de São Paulo, 11 de outubro
de 1998).
24
Não tendo havido acordo entre a comunidade acadêmica, a comunidade de arquivistas
e gestores públicos, de um lado, e a Magistratura, de outro, o impasse teve desdobramentos
judiciais. O Procurador-Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (de
nº 1.919-8/SP) em face Provimento nº 556. Em dezembro de 1998, o plenário do Supremo
Tribunal Federal concedeu, por unanimidade, “medida cautelar para suspender, até a decisão final da
ação direta, a eficácia do Provimento CSM nº 556”. O mérito da referida ADIN ainda não foi
julgado. Posteriormente, a Associação dos Advogados de São Paulo – AASP –, impetrou
mandado de segurança contra a mesma Resolução, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo.
Denegado na origem, a impetrante obteve, via Recurso Ordinário em MS (de nº 22.824-SP), a
concessão do mandamus, em julgamento unânime assim emendado: “Recurso ordinário conhecido e
provido para declarar a nulidade do Provimento nº 556/97 do Conselho Superior da Magistratura, por sua
flagrante ilegalidade”. O julgamento ocorreu em 16.04.2002 (Facchini Neto, 2003; Tedesco, 2003:
303).
Na Justiça Federal, antes que uma comissão pertinente iniciasse seus trabalhos, notava-
se uma carência de políticas de preservação e organização, o que dificultava o acesso às
informações. Em diagnóstico da situação dos arquivos da Justiça Federal, realizado pelo CJF
em 1996, constatou-se um enorme volume de processos nesses arquivos. Grande parte desses
documentos ainda não está cadastrada em sistema automatizado, o que dificulta sua
localização5. O maior problema, no entanto, é a velocidade de crescimento desses acervos,
5
“Grande volume de documentos judiciais e administrativos. Grande volume de documentos não
cadastrados em sistema automatizado ou manual, não sendo, portanto, passíveis de recuperação. Enfileirados, são
1.600 Km de autos findos julgados após 1967. O custo médio de construção para abrigar esse volume de papéis –
25
proporcional à explosão da demanda processual, que resulta em altos custos no aluguel ou na
construção de depósitos para esses documentos (Critérios, 2003).
140 mil metros quadrados – é equivalente a R$ 68 milhões ou ao custo de construção de 5.000 casas populares.
Não incluindo nesses custos os relativos à manutenção, equipamentos, móveis e recursos humanos.” (Sordi &
Marques, 2003)
26
executórias e um último grupo incluindo embargos e ações especiais.
Para cada grupo, foram estipulados diversos prazos de guarda,
dependendo do provimento demandado, do provimento obtido, da
análise do mérito e do processo vinculado” (Critérios, 2003).
27
A propósito da seleção de determinadas ações da competência constitucional da Justiça
Federal para a guarda permanente, privilegiaram-se, justamente, as ações coletivas, pois se
entendeu que elas encerram um conteúdo social amplo, altamente representativo dos
problemas sociais do País, ao qual não é possível determinar, para efeitos de tratamento
arquivístico, nem valor de direito nem tampouco valor de vigência. De fato, as ações coletivas,
produto da tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, são o resultado
da própria consolidação do regime democrático brasileiro e surgiram no País há relativamente
pouco tempo, sobretudo, na década de 1980. Ressalta, portanto, que ainda estamos, no Brasil,
“iniciando o exercício das ações coletivas e nos familiarizando com a idéia de direitos difusos”. (Fontinele &
Domingues, 2001). Além disso, importa registrar que as ações coletivas representam parcela
relativamente pequena do conjunto da massa documental produzida pelo Poder Judiciário, não
chegando, portanto, a significar um escolho dramático para a administração judiciária e para a
gestão documental.
O método da proporcionalidade não se fixa com base em uma quota arbitrária, como,
por exemplo, X ou Y documentos de um determinado tipo devem ser preservados e os demais
eliminados. A classificação prévia dos documentos por meio de uma tabela de temporalidade é
28
fundamental, bem como é importantíssimo conhecer a variação da quantidade de tipos de
ações em cada ano. Por exemplo, no Estado de São Paulo há períodos em que as ações de
desapropriações têm uma incidência enorme, divergindo da média de processos desse gênero,
o que certamente é um forte indicativo de conjunturas de crise social, dado, este, que não pode
ser desprezado ou perdido pela memória.
Portanto, como afirma Ana Maria Camargo, consultora da Justiça Federal do Estado de
São Paulo,
Sublinhe-se que, no âmbito da Justiça Federal, cada Tribunal Regional e cada Seção
Judiciária constituiu a sua Divisão de Arquivo e Documentação, nomeando para a sua direção
funcionários efetivos, concursados e formados em arquivologia. Igual caminho seguiu o
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul que criou, em 2000, a Divisão de
Documentação, para a qual foram nomeados arquivistas concursados. A Divisão de
Documentação coordenou os trabalhos de desenvolvimento e aplicação de uma tabela de
temporalidade, cuja concepção contou com o acompanhamento e a consultoria dos
29
historiadores do Memorial do Ministério Público. Como efetivamente sublinha Bertoletti
(2002), “pesquisas sobre a história da instituição são essenciais para que se possa elaborar um programa e um
projeto de preservação dos documentos”. Neste caso, a formatação da tabela de temporalidade
somente foi possível depois de um estudo sobre a evolução institucional do Ministério Público
sul-rio-grandense elaborado pelos historiadores do Memorial. Atualmente, a Divisão de
Documentação vem ministrando palestras para os funcionários de todas promotorias para
explicar o funcionamento e a aplicação da tabela de temporalidade. Além disso, está reunindo
toda a documentação de guarda permanente em um arquivo de instalações amplas e dotado de
equipamentos modernos. O Ministério Público estadual também já constituiu a sua Comissão
Permanente de Avaliação, com base em uma formatação multidisciplinar (Miranda, 2003).
30
acessados com mais freqüência pelos consulentes. Quanto a esse aspecto, devemos estar
atentos aos livros de registro de consultas, às informações dos funcionários dos arquivos, às
datas comemorativas. Os técnicos não costumam recomendar a reprodução de acervos em
estado avançado de deterioração ou que não são consultados pelos pesquisadores. Portanto, a
reprodução é entendida como uma estratégia de conservação do acervo e de facilitação da
consulta (Bertoletti, 2002: 18, 31).
Com efeito, “a reprodução do acervo não significa o seu abandono”. Os originais reproduzidos
não só não podem ser destruídos como, ainda, devem ser objeto de conservação regular e
sistemática. A eliminação de documentos deve, portanto, ser aplicada a um arquivo antes do
início do trabalho de reprodução e não posteriormente. Os arquivistas também defendem que
cada tipo de documento, cada corpo documental, cada série documental seja objeto de um
projeto específico de reprodução, para que não sejam, por exemplo, reproduzidos documentos
pouco consultados (Bertoletti, 2002: 22).
De qualquer forma, é preciso que fique bem claro que o custo das técnicas de mudança
de suporte é bastante elevado. Como sublinham Sordi e Marques (2003), “o Arquivo das Índias,
que é um departamento do Arquivo Nacional da Espanha, onde são guardados os documentos do período de
colonização das Américas Espanholas, gastou US$ 10 milhões em 1992 para digitalizar 5% do seu acervo.
Em 1999, gastou US$ 2,5 milhões para migrar de mídia porque os equipamentos atuais não liam os CDs
antigos”. Por seu turno, “no Tribunal Regional Federal da 3ª Região todos os acórdãos foram digitalizados
utilizando a tecnologia de fitas magnéticas”, mídia considerada a mais moderna existente na época.
Todavia, ultrapassados três anos, houve necessidade de conversão de todos os documentos
para mídia ótica, importando em novos gastos. Um dos Tribunais Regionais Federais gastou,
em 1999, R$ 300 mil apenas na digitalização de uma terça parte dos acórdãos (Sordi &
Marques, 2003).
31
Algumas reflexões sobre a política dos arquivos de acesso à documentação ao público
podem ainda ser rapidamente tecidas. Como registramos anteriormente, historiadores
dificilmente consultam um único documento para realizar suas pesquisas. Justamente por
buscar constituir nexos culturais, os historiadores precisam formatar séries documentais. Para
tanto, é recomendável que os arquivos sejam equipados da melhor forma possível para receber
o pesquisador, permitindo-lhe consultar conjuntos de documentos. Eis porque seria muito
importante que o trabalho de classificação dos processos previsse também ementas explicativas
do conteúdo de cada documento (contendo dados tais como comarca de origem, apelações,
juizes, partes envolvidas, tipo de processo, sentença, artigo dos códigos jurídicos), bem como
permitisse aos pesquisadores cruzarem estas informações. Um bom sistema eletrônico de
consulta permitiria, por exemplo, a um pesquisador obter em segundos uma lista de todos os
processos junto aos quais um dado juiz atuou; ou, ainda, obter com um toque de teclado uma
relação de todos os processos iniciados e/ou julgados em uma certa comarca durante um certo
período de tempo; ou, finalmente, obter com facilidade uma relação dos processos que
tematizaram uma certa área do Direito ou que se remetem a algum artigo ou legislação
específicos.6
6
A propósito das dificuldades que o historiador costuma enfrentar para pesquisar em arquivos judiciais,
reproduzimos trecho do relatório da Dra. Marília Schneider (USP) à FAPESP, em 2000, sobre o arquivo judicial
de São Paulo:
“Minha experiência com os arquivos do Poder Judiciário de São Paulo foi bastante frustrante. As dificuldades encontradas
pelo pesquisador começam na burocracia: é necessário obter uma autorização para ser admitido nas instalações do arquivo. O acesso é
controlado pelo TJ, através de um Juiz Corregedor do Departamento Técnico de Primeira Instância- Depri. Trabalhei com pesquisa
entre 1997 e 2000, quando o Depri elaborava um credenciamento com validade de 90 dias. Para requerer o credenciamento, era
necessário justificar a consulta e detalhar quais documentos seriam consultados. Certa vez, pedi o credenciamento, aguardei a semana
de praxe para obtê-lo e fui até o arquivo, nada próximo ao Tribunal. Meu credenciamento autorizava a consulta aos Livros de
Acórdãos da primeira década de vida republicana. Porém, os Livros não estavam no arquivo e a funcionária não sabia aonde eles
poderiam estar. Então, para ‘não perder a viajem’, pedi para consultar os relatórios da Presidência do Tribunal. Porém, meu
credenciamento não mencionava os tais relatórios e o acesso foi negado.
Minha pesquisa coincidiu com a mudança física do arquivo, o que explica parte da desorganização. Até poucos anos atrás,
o Arquivo do Judiciário paulista era um simples depósito de documentos, localizado em um local de acesso bastante difícil, no Bairro
chamado Leopoldina, na zona Oeste da cidade. Tristemente famoso pelas inundações que destruíram as fileiras de documentos
guardados nas prateleiras mais baixas. Naquele depósito a situação era muito precária, tanto no que diz respeito às instalações,
quanto aos inexistentes critérios de catalogação. Existia um índice de documentos regido pela classificação das varas distritais, o que
não ajudava em nada a pesquisa de caráter histórico. Milhares de processos amarrados eram de conteúdo completamente desconhecido.
As pessoas mais qualificadas do Arquivo Judiciário mencionaram a retirada de documentos ‘interessantes’ para exposição no Museu
do Palácio da Justiça ou para exposições em outras casas da Justiça. Não havia qualquer critério, além da opinião pessoal dos
diretores de Arquivo que simplesmente mutilavam as coleções de documentos, sem o menor compromisso técnico ou social.
Atualmente o Arquivo está localizado em um bairro um pouco mais central, no Ipiranga, na Rua dos Sorocabanos, 680
(f: 6161 7040). Estive lá duas vezes e desisti da pesquisa, de forma que não sei como o arquivo está funcionando atualmente. Preferi
trabalhar com documentos impressos que estão disponíveis na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) ou então, na
biblioteca do Palácio da Justiça. Até onde sei, o Tribunal vinha trabalhando na digitalização dos documentos, mas todo esse esforço
32
Para além do uso acadêmico e investigativo que historiadores e sociólogos fazem dos
arquivos, hoje se admite, como registra o Documento Final do Congresso Patrimônio
Histórico e Cidadania, realizado em São Paulo, em 1992, que “as instituições que atuam na
preservação do patrimônio histórico e cultural devem promover uma política de divulgação das suas atividades e
de esclarecimento de suas práticas e instrumentos de ação a fim de estabelecer amplos canais de comunicação com
todos os segmentos da sociedade, de modo claro e direto” (Bellotto, 2000: 158). Enfim, mesmo um
arquivo centralizado pode desenvolver atividades de extensão para a comunidade, agregando
profundo valor didático e social, pois “há todo um público potencial a conquistar” para os arquivos.
Alguns exemplos nesse sentido seriam: 1) oficinas de preservação e restauração de documentos
para jovens carentes; 2) convênios com os cursos universitários de arquivologia, objetivando a
criação de estágios curriculares (obrigatórios e não remunerados) e/ou extracurriculares
(remunerados) para os estudantes; 3) visitas de estudantes da rede de ensino médio realizadas
ao arquivo e guiadas por arquivistas e funcionários; 4) aulas de história do Judiciário
(explicando o papel da Justiça na nossa sociedade) realizadas por professores especializados no
arquivo para alunos da rede; 5) concursos de monografias para estudantes do ensino médio; 6)
confecção e distribuição de kits pedagógicos, constituídos de reprodução de trechos de
documentos, formando um conjunto elucidativo; 7) exposições históricas de originais do
arquivo.
vinha sendo desenvolvido por funcionários do próprio Tribunal, ou por estagiários. Ao que parece, essa reorganização estava atendendo
a critérios da organização judiciária e não envolvia profissionais da história.”
33
Júnior. Dentre os livros mais recentes publicados estão: “O despertar do campo: lutas camponesas no
interior do Estado de São Paulo”, de Emiliana Andréo da Silva, “Combates pela Liberdade: o Movimento
Anarquista sob a vigilância do Deops/SP (1924-1945)”, de Lucia Silva Parra, “Na Boca do Sertão: o
perigo político no interior do Estado de São Paulo (1930-1945)”, de Beatriz Miranda Brusantin. Outro
exemplo das publicações construídas a partir do projeto é o livro organizado por Maria Luiza
Tucci Carneiro, intitulado “Minorias Silenciadas”, a partir de um seminário acadêmico, que traça
uma instigante história dos métodos de censura no Brasil. Outra faceta visível da pesquisa foi
disponibilizada ao público entre 6 de janeiro e 20 de abril de 2004 na mostra “Livros malditos,
idéias proibidas”, exposta na Estação Ciência, em São Paulo. Todas estas atividades vêm
sistematicamente granjeando espaços destacados na grande imprensa nacional, como a matéria
de capa do Caderno Ilustrada do Jornal Folha de São Paulo do dia 30 de dezembro de 2003
(Aquino et. alli., 2001; Carneiro, 2002; FSP, 30.12.2003, págs. E1 e E2).
Considerações finais
A competência do Judiciário para conceber e executar políticas de gestão documental
não apenas está garantida em lei como parece ser um imperativo administrativo diretamente
relacionado às necessidades do Poder. Não obstante, a autonomia administrativa do Judiciário
neste campo parece dever interagir com as diretrizes estabelecidas na legislação federal
pertinente de 1973, 1991 e 1997 – supracitadas –, bem como dialogar com os saberes
constituídos e organizados da nossa sociedade que respondem pela reflexão em torno da
preservação da memória e do patrimônio, vez que um arquivo encerra, como vimos, delicadas
dimensões social e política, as quais transcendem o cotidiano administrativo institucional.
Fundamentalmente, uma política de gestão documental precisa ser institucionalizada e tratada
de forma técnica e constante.
34
historiadores e arquivistas, enfim, devem ser capazes de, juntos, encontrar alternativas
construtivas para o impasse criado. Até o momento, as sugestões e experiências que parecem
ter alcançado melhores resultados e mais aceitação na comunidade científica e junto à opinião
pública são as que optaram pelo método de amostragem.
Quanto à digitalização de um acervo, esta medida tem sido sugerida pelos arquivistas
experimentados como uma forma, não de substituir na íntegra um arquivo em base impressa,
mas, sim, como uma forma de facilitar o acesso aos consulentes a uma parte da documentação
de um arquivo, normalmente muito consultada. Ou seja, todos os especialistas insistem em que
não se pode substituir acervo impresso por acervo digital e que a digitalização deve ser
precedida por um tratamento técnico do acervo.
Finalmente, mais do que nunca, numa época em que o Judiciário vem sendo zurzido
por uma perigosa crise de legitimidade, como sugerem os baixos índices de aprovação que o
Poder goza junto aos cidadãos, os quais foram medidos por recentes pesquisas de opinião que
ganharam as manchetes nacionais, ou, ainda, como indicam os ataques desferidos de parte do
Poder Executivo Federal ao longo do ano de 2003, parecem imprescindíveis investimentos na
formação de uma nova consciência popular sobre o Poder, o que, certamente, passa também
pelo trabalho junto aos arquivos e pela aproximação dos arquivos e da história do Judiciário à
comunidade, pois é por meio deles que se pode, também, ajudar a construir novos formadores
de opinião. Afinal, como disse o célebre publicitário Duda Mendonça a cerca de 800
participantes do 18º Congresso Brasileiro de Magistrados, realizado na Bahia, em outubro de
2003, “é fácil criticar o Judiciário; difícil é defender, porque vocês não dão argumentos (...)”: o Judiciário
“precisa urgentemente aprender a se comunicar com o povo” (Folha de São Paulo, 25.10.2003, pág. A 10).
Bibliografia consultada
AQUINO, Maria Aparecida et alli. No coração das trevas: o Deops/SP visto por dentro. Dossiês
DEOPS/SP: radiografia do autoritarismo republicano brasileiro. Vol 1. São Paulo : Imprensa
Oficial, 2001.
AXT, Gunter. Justiça e memória. A experiência do memorial do Judiciário do Estado do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre : Justiça & História, Vol. 2, nº 4, 2002, págs. 215-238.
BARATIN, Marc & JACOB, Christian. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio
de Janeiro : Editora da UFRJ, 2000.
35
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Patrimônio documental e ação educativa dos arquivos. Ciências
& Letras. Porto Alegre : Faculdade Porto-Alegrense de Educação, nº 27, 2000.
_______ . Documento de arquivo e sociedade. Ciências & Letras. Porto Alegre : Faculdade
Porto-Alegrense de Educação, nº 31, 2002.
BERTOLETTI, Esther Caldas. Como fazer programas de reprodução de documentos de arquivo. São
Paulo : Arquivo do Estado/Imprensa Oficial do Estado, 2002.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo : Cia. das Letras, 1994.
BRANDÃO, Elieusa Guedes. Plano de Classificação e Tabela de Temporalidade: uma experiência que
deu certo. São Paulo : Centro Cultural Justiça Federal, Conselho da Justiça Federal, 2001.
CAMARGO, Ana Maria. Política arquivística e historiografia no Judiciário. Palestra proferida
no I Seminário de Política de Memória Institucional e Historiografia. Porto Alegre : Justiça &
História, Vol. 3, nº 5, 2003, Memorial do Judiciário do RS, Tribunal de Justiça do Estado do RS,
pp. 327-334.
_________________ . Sobre o valor histórico dos documentos. Relatório de consultoria
apresentado à Comissão Interdisciplinar de Gestão Documental do Conselho da Justiça
Federal. Brasília, DF : dat., outubro de 2001; Arquivo Rio Claro, Rio Claro (SP), nº 1, 2003, págs.
11-17.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias Silenciadas. História da cesura no Brasil. São Paulo
: Edusp/Imprensa Oficial/Fapesp, 2002.
CHALOUB, Sidney. Visões da liberdade. São Paulo : Ed. Cia. das Letras, 1995.
CHASTEEN, John Charles. Héroes a caballo: los hermanos Saravia y su frontera insurgente.
Montevideo : Ediciones Santillana/Fundación Bank Boston, 2001.
CRITÉRIOS para eliminação dos processos da Justiça Federal estão disponíveis para consulta.
Superior Tribunal de Justiça, 10 de abril de 2003.
DARNTON, Robert. Vandalismo em Bagdá. São Paulo : Folha de São Paulo, Caderno Mais, 4 de
maio de 2003, págs. 10 e 11.
FACCHINI NETO, Eugênio. Parecer da Comissão de Seleção e Avaliação de Processos. Porto Alegre :
Corregedoria-Geral de Justiça, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, dat., 21 de março de
2003.
FICO, Carlos. Como eles agiam. Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio
de Janeiro : Ed. Record, 2001.
FONTINELE, Isadalva Rabelo & DOMINGUES, José Marques. Prescrição, decadência e
temporalidade da guarda de autos findos. São Paulo : Centro Cultural Justiça Federal, Conselho da
Justiça Federal, 2001.
GOMES, Júlio César Gomes et alli. Destinação final dos documentos do Poder Judiciário Estadual
brasileiro. Huerta Grande (Argentina) : V Congresso de Arquivologia do Mercosul, 2003.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas : Ed. Unicamp, 1990.
36
LOPES, Luiz Carlos. O lugar dos arquivos na cultura brasileira. Ciências & Letras. Porto Alegre
: Faculdade Porto-Alegrense de Educação, nº 31, 2002.
MIRANDA, Eliane. A Divisão de Documentação do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.
Anais do Seminário Política de Memória Institucional e Historiografia. Porto Alegre :
Memorial do Judiciário do RS, 2003.
NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. São Paulo : Revista
Projeto História, vol 10, dez 1993, pág. 7-28.
PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria e prática. Rio de Janeiro : Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1991.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. A longa viagem da biblioteca dos reis. Rio de Janeiro : Companhia das
Letras, 2002.
SORDI, Neide Alves Dias de & MARQUES, Miriam Gestão documental da Justiça Federal.
http://www.cjf.gov.br/Pages/Sen/eventos/forum_arquivo/textos/Neide.doc., 2003.
TEDESCO, José Eugênio. Os arquivos judiciais e o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre : Memorial do Judiciário do RS, Tribunal de Justiça do Estado do RS, Justiça &
História, Vol. 3, nº 6, 2003, pp. 299 a 313.
VALETTE, Jean-Jacques. O papel dos arquivos na administração e na política de planificação dos países
em desenvolvimento. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 1973.
VILLAR, Ruth Lima. A organização do arquivo histórico. São Paulo : Centro Cultural Justiça
Federal, Conselho da Justiça Federal, 2001.
37
ENTREVISTA: DRA. EUNICE NEQUETE*
2003, na sede do Memorial do Tribunal de Justiça. Degravação feita pela Diretoria de Taquigrafia e
Estenotipia do TJ/RS. Textualiação de Márcia de la Torre.
2
sua escolha, pelo Direito, em que medida ela tem ou não influência da família e da
vivência familiar.
Entrevistada - Ela tem muita influência da família, especialmente do meu pai, que
foi uma pessoa muito inspiradora na minha vida. Acho que só me dei conta do tamanho
dessa influência depois que ele morreu, quando percebi que seu papel não tinha sido
apenas de pai, ele foi um ídolo, um modelo, ele foi o meu formador, foi um mestre para
mim em casa, como o foi também na faculdade, pois lá foi meu professor. Então, foi
bastante determinante, apesar de que eu não tivesse muita consciência disso. Eu me
achava muito independente, muito diferente dele. Fiz escolhas no Direito bastante
diferentes das escolhas dele, e isso me parecia um pouco reativo, como uma filha batendo
pé e escolhendo caminhos independentes dos de seu pai, ou fazendo opções diferentes
das opções do seu pai. Ele trabalhou muito com o Direito Privado. No âmbito público,
trabalhou exatamente com a própria visão institucional do Poder Judiciário, com a história
do Poder Judiciário. Aí, sim, ele optou, um pouco mais adiante na vida, pelo tratamento
de um tema que dizia respeito mais ao “interesse” público, mais àquilo que eu entendia
como “interesse público”. Por outro lado, apesar de ter trabalhado, durante longo
período, tanto com o Direito Civil como com o Direito Penal, com todas as especialidades
no Direito, pois ele era Juiz único na Comarca de Canoas, num aspecto da sua vida, que
não era diretamente ligado à sua vestimenta profissional, meu pai era extremamente
comprometido com questões sociais, com questões públicas, e acho que esse aspecto me
contaminou. O pai dele foi fundador do Partido Comunista, e ele foi do grupo fundador
do Partido Socialista. Isso enquanto não foi Juiz; depois de se tornar Juiz, ele deixou
completamente as atividades políticas de lado, dedicou-se somente à Magistratura, e à
pesquisa de instituições de Direito Privado e de algumas questões mais filosóficas do
Direito. Inclusive ele tem uma obra sobre filosofia. Acho que me influenciei e trouxe para
dentro da minha visão profissional essa mais ligada à política, mas a política com “p”
maiúsculo que o meu pai havia vivenciado, e acabei optando por um direito político,
como foi inicialmente chamado por alguns publicistas o Direito Administrativo. Nasceu
em casa essa opção por ser advogada do Estado. E por que eu queria ser advogada do
Estado? Porque me parecia que já havia instituições suficientes para tratar de interesses
privados, para tratar de interesses que diziam respeito a coletividades, mas não havia
3
representem a simples opção pelo interesse de uma das partes em detrimento de outros
interesses. Essa era uma idéia que o meu pai também tinha, de que o Poder Judiciário, a
hermenêutica jurídica e as instituições do processo estão muito bem aparelhadas para
atender aos interesses individuais e o antagonismo entre eles, mas nem sempre para
resolver o antagonismo entre os interesses do Estado e os interesses individuais. E os
interesses individuais - digo aqui entre parênteses e em negrito - não são interesses
menores, são interesses que podem ser tão públicos e tão maiores quanto os ditos
interesses públicos ou os ditos interesses de Estado e, de outra parte, os interesses ditos
públicos também podem ser de maior ou de menor grandeza e, assim, podem legitimar ou
não a ação estatal.
tendo, porque em alguns casos tais posições são abstratamente imprevisíveis, como, a
título de exemplo, pode ocorrer com a discussão de determinadas licitações, nas quais
tanto se pode questionar se o poder estatal deu ou não tratamento isonômico aos
concorrentes, quanto se o mesmo atende ou não à finalidade pública. E como se poderia
identificar o sujeito titular do interesse na geração e distribuição da energia? Esta
identificação não é possível, e contrasta com aquela propiciada saudavelmente pelo
princípio da sindicabilidade, que atribui a vários representantes legitimidade para agir no
controle da ação estatal, pelo que se impõe a adequada representação e defesa judicial do
ente estatal. E o papel da Procuradoria, nesse sentido, é muito rico, pois é um papel de
consultoria prévia, ou seja, um trabalho de prevenção. Ela pode fazer um trabalho de
prevenção, pode até opinar, por exemplo, pelo desfazimento e a correção de uma licitação
inteira, mas, uma vez implementado o processo licitatório, se ele estiver regular, ele
precisará ser defendido e ser defendido em tempo de a ação governamental servir os
interesses públicos e sociais a que se deve propor.
Entrevistada - Pode até estar destinada a uma ação que vai atender a uma
população futura ou à possibilidade da formação, de surgimento de uma população futura.
Poder, porque não é de qualidade de atuação que estou falando, não gostaria de ser mal
interpretada, mas me parece que há ainda muito trabalho a ser desenvolvido no próprio
âmbito da doutrina jurídica, para que, especialmente as questões ditas de interesse público
possam ser submetidas a um processo próprio de fundamentação, de discussão e de
decisão, e este processo ainda não se encontra plenamente desenvolvido sequer no âmbito
da atuação da administração pública, para a qual é crucial.
Memorial - Quando foi a sua entrada na PGE? Naquele momento ela se chamava
Consultoria?
tomada por lei. Uma lei deve prever que essa representação judicial é exercida pela
Procuradoria, porque, de regra, e tomando o exemplo das S/As, a representação judicial
das estatais tem que ser delas próprias, porque a Lei das S/As diz quem é o representante
legal da S/A e como a mesma é representada em juízo. É claro que existe, em tese, a
possibilidade de atuação da Procuradoria, pelo fato de que as economias mistas revestem a
forma da S/A, e a própria Lei das S/A lhes dispensa tratamento especial. Por contarem
com capital público e controle acionário do Estado se submetem não só ao Direito
Comercial, mas também ao Direito Público. E assim sua representação judicial poderia ser
cometida à Procuradoria Geral do Estado, nos termos da lei, especialmente quando sua
atuação disser respeito ao interesse público. Não é dever originário da Procuradoria o
exercício direto da defesa judicial das estatais, é necessário que haja questão relevante ao
interesse público, para que a procuradoria possa assumir sua representação em
determinadas questões ou processos, ou que haja uma previsão legal de que essas estatais,
como quaisquer outras entidades da administração indireta, sejam representadas pela
Procuradoria-Geral.
administração. Então, isso não vai simplesmente se fazer dentro da Secretaria, a Secretaria
vai ter que observar as diretrizes dadas pela Procuradoria.
Entrevistada - Mas tenho a impressão de que agora não fazem só a defesa dos
atos da Mesa...
Memorial - Parece que existiu uma requisição formal, uma solicitação de parte do
Presidente da Assembléia e do Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da
Assembléia, naquele momento, para que os Procuradores do Estado auxiliassem o
funcionamento das Comissões Constituintes. Então, junto às Comissões, sempre atuavam
membros da PGE, e isso, inclusive, chegou a produzir, num determinado momento, um
estranhamento que verteu para a imprensa também. Tens alguma lembrança disso?
Entrevistada - Aqui temos que distinguir duas linhas de atuação dos procuradores
do Estado: uma, relativa a sua atuação profissional, que não pode misturar os interesses da
13
instituição com os seus próprios interesses pessoais; outra, de atuação exclusiva no âmbito
da Associação dos Procuradores, que é a linha de defesa dos interesses da corporação - e
aí se pode chamar de corporação mesmo -, é outro braço da atuação de um Procurador,
mas que não é da Procuradoria. Sempre estive mais por dentro do braço da Procuradoria,
e para nós ficava muito clara a necessidade desta distinção, porque era o que garantia a
confiabilidade do nosso trabalho. Se misturássemos isso, estaríamos correndo o risco de
contaminar o nosso trabalho, e isso sempre foi muito claro, a ponto de termos feito a
defesa, inclusive a pedido do Poder Judiciário, de ações judiciais que seriam contrárias aos
interesses da corporação e que foram muito bem sucedidas.
Entrevistada - Mas estou antes do Governo Britto. Essa foi uma questão que
surgiu antes do Governo Britto, acho que foi no período do Governador Collares.
Entrevistada - Ela tem que defender o Estado. Existe um tipo de interesse que
obrigatoriamente tem de ser representado pelo defensor do Estado, como Procurador do
Estado, que é o interesse do Estado, na forma eventualmente expressa por seu
governante, como no caso em que inicia um processo legislativo ou sanciona uma lei,
14
como representante de todos, e enquanto do próprio Estado. Isso tem que ser bem
entendido. E há um tipo de interesse que vai resultar da atuação específica do
representante legal do Estado daquele momento, e este não é o Procurador do Estado.
Um procurador tem que ter muita clareza com relação a isto, assim como qualquer
advogado tem que ter relativamente a seu cliente. No caso da advocacia pública, há que se
ter presente que na maioria esmagadora das ações em que atuam os procuradores não há
qualquer ingerência da vontade de um governante, e, em determinadas ações - em bem
poucas, é verdade - o interesse do Estado é definido pelo próprio governante através de
processos constitucionais e legais. É o povo que elege diretamente, que escolhe o
governante e que escolhe, presumivelmente, o que o governante vai fazer, e, assim, quem
detém a representação judicial do Estado há de acatar e dar defesa a tais iniciativas, nos
termos da lei e observada a legalidade destas, porque aquele representante estará agindo
em nome do Estado, e não em seu nome pessoal, a menos que se invalide sua atuação por
falta de amparo legal. E um advogado do Estado está na representação judicial deste
cliente por força de lei. Na prática pode até acontecer de um Procurador não se sentir
muito inspirado ou preparado para fazer determinada defesa e pode solicitar a designação
de outro, mas a instituição deverá prover de qualquer forma a defesa. Não poderá haver
uma declinação daquela defesa indefinidamente. O que o responsável pela coordenação
dos trabalhos pode fazer é dar preferência a quem com tranqüilidade aceite a defesa que
lhe seja requerida, porque devemos compreender que alguém, estando convencido de uma
determinada questão, encontra e desenvolve melhores argumentos, e o discurso jurídico é
de construção de argumentos capazes de comprovar a juridicidade e a correção de uma
dada questão. Isto favorece o sucesso da atuação. E o sucesso traz grande gratificação
profissional, além de valor à própria instituição. Por outro lado, se a despeito da excelência
do trabalho da representação judicial do Estado, este não é bem sucedido em uma ação,
cabe a seus procuradores a orientação pelo acatamento e cumprimento da decisão judicial.
Memorial - Com certeza. Em tese - isso não aconteceu durante o Governo Britto,
mas já aconteceu na história do Estado -, no caso de o Estado ter uma determinada ação
política, sofrer uma contestação jurídica disso, perder juridicamente esta ação...
Memorial - Sim, porque ela engloba a Polícia Civil, ela engloba ...
Memorial - Não tem problema, muitos falam isso nas nossas entrevistas. Esse é
um tema recorrente nas nossas entrevistas, e existem posições diversas. Há alguns
depoentes nossos que criticam muito o dispositivo da isonomia na Constituinte, e há
outros que defendem. Então, as posições são diversas. É um tema bastante recorrente,
não precisa preocupar-se.
com um problema muito mais sério com relação aos seus servidores, pois eles faziam um
concurso único para o Ministério Público e para a PGE, e iam alternadamente para o
Ministério Público, e para a PGE. Que pouca sorte tiveram os que foram para a PGE,
pois, de repente, ficaram fora de qualquer política salarial! Eles deveriam ter o mesmo
tratamento remuneratório, porque esse foi o tratamento acenado no concurso público que
fizeram, que foi o mesmo, para os servidores de ambas as instituições. No entanto, pelo
temor dos legisladores de que se confundissem servidores com procuradores, para
assegurar-se da penalização dos procuradores do Estado, penalizaram-se ambos, tendo
ficado tanto servidores como procuradores fora de todas as revisões remuneratórias a
partir de então, fora de toda e qualquer política salarial do Estado.
Memorial - E aí tenho uma pergunta, pois é algo que me suscita interesse: antes
mencionávamos que a PGE tem dois braços, o braço institucional e um braço político,
que seria a associação.
Memorial - A gente poderia falar ainda um pouco sobre o Governo Britto. Como
foi o Governo Britto visto da perspectiva da Procuradoria-Geral do Estado? Quais foram
as suas diretrizes fundamentais, quais foram os aspectos mais importantes do trabalho da
Procuradoria?
interessante, que ilustra bem o tipo de visão que um advogado tem que ter e que, não
importa se sua posição política pessoal seja favorável ou contrária à do administrador,
como advogado deve agir de acordo com sua função. Lembro que a minha diretriz, a qual
partilhava com os colegas responsáveis pela atuação em juízo naquelas causas vultosas e
vistosas, era a seguinte: a decisão não nos cabe, não temos competência para decidir, a
decisão está tomada. Trabalhar pelo cumprimento efetivo de tais deliberações deveria ser
trabalhar pelo melhor cumprimento das mesmas, de sorte a preservar os interesses
públicos postos a nossa guarda. Com relação, por exemplo, à CRT, que foi uma causa tão
propalada, nela se discutia o valor do patrimônio do Estado, não propriamente do serviço
de telefonia, que não pertence nem pertencia ao Estado. A transferência do serviço de
telefonia para o Estado estava terminando ali, iria reverter para a União, e o Estado tinha
um patrimônio que estava investido naquela sociedade de economia mista, cujo controle
acionário detinha, e que, de alguma forma, se perderia se simplesmente deixássemos
escoar aquele prazo sem fazer aquele bem reverter em favor do próprio Estado-membro e
sem os percalços que poderiam determinar a desvalorização das respectivas ações postas à
venda.
Entrevistada - Muito maltratado, mas deixo claro que minha posição não é nem
de apologia nem de crítica, porque não era política a função da PGE.
Entrevistada - É provável.
sabendo que aquele prazo estava terminando no curso daquelas ações todas. Para mim, era
fator fundamental para a tomada de qualquer decisão política, mas não importa, a decisão
política não era minha. Tomada a decisão de venda, o que a minha consciência funcional e
profissional determinava? Que eu não permitisse, pela minha atuação, que nenhum
interesse escuso tivesse lugar, ou, melhor, pudesse ter êxito. Então, naquele momento,
tivemos que por em prática não só nossas habilidades profissionais, mas ainda aquelas
habilidades que melhoram as possibilidades de sucesso daquelas, as de estabelecimento de
estratégias. Montávamos as estratégias das ações, as estratégias da defesa, para que não
houvesse o menor lapso de tempo entre uma ação judicial proposta para paralisar a ação
do Estado e a venda, porque quanto mais ações são propostas contra uma determinada
entidade, quanto mais se consegue desgastar a confiabilidade daquela instituição, e mais ela
é desvalorizada. Toda a estratégia foi montada neste sentido: os recursos a serem obtidos
são do povo, foram investidos pelo Estado, pelo povo, para isso, e devem voltar, para os
cofres públicos, com o maior valor possível. Considero que o grande mérito do trabalho
da Procuradoria, naquele período, foi garantir não só a manutenção, como talvez até a
elevação do valor das ações, tanto é que as privatizações daqui saíram supervalorizadas, e
as de fora daqui, nem sempre.... Foi uma coisa surpreendente. Mas o fundamental era
saber do dever de prestar defesa fiel ao Estado, e vislumbrar neste cliente, não o
governante, mas a coisa pública, a coisa do povo e, assim empenhar-se não só em apoiá-lo
a atingir suas metas, mas a atingi-las sem que estas lhe impusessem o depauperamento do
bem público e consequentemente dos valores pecuniários nos quais seria convertido.
Memorial - Fiz questão de fazer essa pergunta justamente porque quem compara
os processos de privatização nos Estados percebe que o daqui tem algumas características:
primeiro, ele foi muito contestado por setores da sociedade civil organizada; segundo,
acho que ele foi muito mal-explicado do ponto de vista de conceito de política pública.
Mas, se formos comparar com outros, acho que ele é um processo de privatização que
atinge um sucesso significativo. Um outro aspecto interessante é que, quando se fala ainda
nas privatizações, fala-se apenas no Governador e quando muito, numa determinada área
do Governo que chamaria a si essa competência e essa tarefa, mas a Procuradoria-Geral
não aparece nesse trabalho para a grande opinião, digamos assim.
20
Entrevistada - Eu fiquei sabendo, por exemplo, que o Estado não mais poderia
prestar o serviço de telefonia naquele momento, quando tive que me debruçar sobre
aquela papelada toda para coordenar alguns dos trabalhos daquela defesa. Porque não a fiz
diretamente, mas acompanhei o trabalho com os meus colegas, ia designando, chamando
eventualmente alguns colegas, lendo, relendo, ajudando e estabelecendo, principalmente,
as estratégias. A estratégia envolvia tudo, até a hora de sair de Porto Alegre, até o tipo de
entrevista que se daria e o momento em que se daria. E a minha função, nas entrevistas a
imprensa não era defender o Governo, não era explicar o que o Governo estava fazendo,
mas tão somente, dizer, na medida do possível, o que a Procuradoria iria fazer.
Entrevistada - Agora entendi o que estás fazendo. Até hoje me emociona ter
recebido aquele telefonema. E graças à competência dos meus colegas conseguimos. E só
teríamos conseguido da forma institucional, porque uma das inspirações que nos movia
era também uma espécie de orgulho institucional, que nos fazia almejar também
comprovar a eficiência da defesa feita por profissionais visceralmente ligados ao seu
representado, de tal sorte que jamais interessasse a proliferação de processos, para que
fossem seus defensores agraciados com índices percentuais de remuneração por processo
defendido, ou mesmo por processo judicial efetivado, cabendo-nos a posição privilegiada
de em determinados casos podermos evitá-lo.
22
Memorial - Isso foi uma coisa que em algum momento apareceu, e penso que até
no último Governo apareceu um pouco mais para a imprensa do que no Governo Britto,
que são os contratos que o Estado faz de escritórios de advocacia para defender uma
determinada causa. Como é que se dá a relação desses contratos com a PGE?
Entrevistada - Não sei como é que se deu a relação desses contratos. Sei que a
PGE foi acionada durante o Governo Britto, em função de que havia aberto uma licitação
para contratação de escritórios de advocacia para defesa de uma estatal x, porque a estatal
não tinha quadros suficientes e sequer tínhamos procuradores suficientes, enquanto as
ações eram numerosíssimas e de altos valores. Nesse momento, essa licitação foi
completamente interrompida por essa ação judicial, e acabou não se realizando. Não sei
em que contexto, mas ouvi falar que houve uma contratação recentemente, mas não
soube muito a respeito...
Entrevistada - E é, pois há certas ações que não têm como ser melhor defendidas
por escritórios particulares, porque só se contrata um advogado quando se tem uma ação
em juízo. Não se contrata um advogado, e um advogado, em princípio, não é constituído,
para evitar ações, quer dizer, até pode ser contratado como assessor para evitar ações, mas
o forte ou a remuneração típica do advogado, é o honorário pela atuação em um processo
judicial. É uma contradição pensar que o Estado vai estar melhor defendido quando
estiver em juízo; de preferência, que não esteja, mas, se estiver em juízo, tem que estar
com a melhor defesa. De preferência, que atue bem, que haja uma consultoria preventiva,
um assessoramento preventivo, um controle interno da legalidade, um controle preventivo
da legalidade, e que o Estado esteja tanto menos quanto possível em juízo.
que apareceu muito pouco. A fusão da Caixa com o Banrisul, por exemplo, foi outro tema
impactante, na época, com mobilização de parte da Assembléia. Lembro do ex-
Governador Leonel Brizola dando conferências na Assembléia Legislativa e reunindo toda
a imprensa para contar como ele havia fundado a Caixa e que era um verdadeiro crime a
sua extinção naquele momento. Enfim, uma posição política legitima. A PGE se envolveu
com alguma coisa nesse processo?
Entrevistada - Aí, sim, era papel da PGE fazer valer, porque normalmente a PGE
é chamada ou para defender ou para entrar em juízo. Nesse caso, não foi para entrar em
juízo, foi sempre para defender ou orientar a execução da decisão administrativa. Em
todas essas ações emblemáticas do Governo Britto, a PGE atuou para promover a defesa,
muito embora, naquele período, a PGE tenha sido bastante pró-ativa. Costumávamos não
só promover as ações de cobrança e de execução das dívidas fiscais, mas também
responsabilizar determinados particulares ou determinadas empresas que talvez não
esperassem ser chamadas à responsabilidade por um órgão público. Também temos essa
liberdade, a Procuradoria pode sinalizar a possibilidade, aliás, em muitos casos ela sinaliza,
e na maior parte das vezes, entra diretamente com ações, mesmo que o administrador não
determine isso, porque esta iniciativa é normalmente da própria instituição. Em um bom
número de ações, inclusive, recebemos até consultas de alguns políticos sobre a
possibilidade de não propor ou postergar a propositura de certas ações, ou acordar. Aí,
temos o poder, o dever e a liberdade de dizer não, porque a não propositura de
determinadas ações pode significar a disposição de um interesse público, e felizmente
nossos políticos tem sido bastante sérios e tem sabido acatar a decisão da PGE, que no
particular detém efetivamente competência para tanto.
Entrevistada - Não sei. Senti que muitas pessoas tentaram identificar detalhes
mais femininos na minha atuação, mas digo com honestidade que não consigo ter essa
ótica porque nunca fui homem, e também nunca me discriminei como mulher, ou seja,
24
como um ser desigual aos demais, a minha ótica é essa. Diziam-me que as mulheres são
mais conciliadoras, mais dedicadas. Não sei. Acho que foi diferente porque causou algum
impacto o fato de uma instituição já razoavelmente antiga não ter tido até então uma
chefia feminina, mas foi o impacto em si que fez um pouco de diferença, não o fato de eu
ser mulher. Isso não deve ter pesado tanto. Com relação à recepção que tive por parte dos
que não me conheciam, aí sim poderia apontar alguns indícios de que haveria uma
consideração diferente daquela que eu podia observar com relação aos demais. Mas, quase
sempre, até me omito de dizer como é ser mulher no meio público, porque acho muito
pouco educativo dizer o que realmente se sente, em determinadas, e felizmente poucas,
ocasiões, sendo mulher, em determinados ambientes mais discriminatórios. Prefiro
lembrar das ocasiões já mais comuns de tratamento não discriminatório e, portanto,
respeitoso, e afirmar que...
Entrevistada - Mas, antes de eu ser mais conhecida, a coisa mais comum era eu
chegar em um gabinete qualquer e ser tratada como se eu fosse de posição inferior a dos
demais que estivessem presentes e fossem ou homens ou mesmo mulheres mas já
conhecidas. Não posso comparar, é ofensiva a comparação com qualquer outra pessoa de
posição inferior, mas me tratavam como uma guria, mais uma carinha ”no pedaço”, me
tratavam por “tu”, “meu bem”, quer meus interlocutores fossem homens ou mulheres.
Por sorte minha, a maior parte dos ambientes que freqüentei foi extremamente civilizada.
Mas em ambientes menos acostumados ao trato com profissionais do sexo feminino, o
tratamento era contrastante: qualquer outra pessoa do sexo masculino era recebido como
“Chefe! Mestre! Comandante!”. Enquanto eu, seria “E tu, heim, o que tu queres?” Mas
isto está se tornando cada vez mais raro. E é por isto que agora até me animo a falar sobre
o assunto. Antes não admitia expressamente isto para ninguém, porque achava
deseducativo. Naquele momento, eu achava que era deseducativo, agora acho educativo
lembrar que tais fatos começam a ser história passada, superada, enfatizando que o
tratamento que se dispensa a pessoas conhecidas ou desconhecidas jamais pode ser
discriminatório e desqualificador. É sempre preferível senhora ou senhor a ”fofa” ou
“Chefe”!
25
Memorial - E isso é relativamente recente, não tem trinta anos que aconteceu
isso.
Entrevistada - É incrível.
Memorial - Mas vamos falar um pouquinho do Dr. Lenine ainda. Como era o
convívio com o Dr. Lenine, que é realmente uma lente no meio jurídico do Rio Grande
do Sul? Conversávamos antes a respeito, e acredito que ele foi uma das poucas pessoas no
Brasil que se dedicou, efetivamente, ao estudo da história do Direito e do Poder Judiciário,
tema tão pouco abraçado pelos historiadores e pelos juristas. Como era esse convívio e
essa participação com ele?
Entrevistada - Sempre me dei conta do valor desse convívio, mas ele ficou muito
mais evidente quando não o tinha mais e vi o quanto era difícil encontrar alguém com
quem discutir o que costumávamos discutir. Também fui percebendo o quanto o pai
estava à frente do seu tempo. Ele era uma pessoa de excelência no seu serviço, na sua
função de Juiz, mas era também de extrema excelência do ponto de vista acadêmico. Ele
sabia o que era pesquisar, ele sabia o que era estudar, coisa que a grande maioria dos
nossos profissionais e dos nossos estudantes, até pouco tempo, não sabia, especialmente
na área do Direito. Lembro-me de um determinado momento na minha vida, em 1992,
em que ele me pediu que eu fizesse concurso para a Universidade. Eu lhe disse que não
queria mais lecionar, havia lecionado na Unisinos e fora um período muito cansativo para
mim, pelo acúmulo de funções, eu não queria voltar. Ele, então, disse que, depois que eu
me aposentasse, seria bom voltar para a Universidade como Professora, poderia me
dedicar a ler, a estudar. Como ele estava pedindo, eu faria. Foi um concurso bem
26
concorrido. Fui aprovada, fui nomeada e comecei a lecionar Hermenêutica, que foi a
cadeira que ele lecionou por último na UFRGS. Meu pai começou como Professor de
Introdução à Ciência do Direito na UFRGS em 1970, depois de ter fundado a Faculdade
de Direito da Unisinos e de ter sido seu Diretor e Professor. Ele entrou na UFRGS, em
1970, e foi meu primeiro professor na Introdução à Ciência do Direito. Quando eu falei
que estava apavorada, pois havia feito concurso para Direito Administrativo e teria que
lecionar Hermenêutica, ele disse: “Mas é o que se faz a vida inteira. Hermenêutica é o que
somos obrigados a fazer a vida inteira”. E ele efetivamente fazia. Ele não lia simplesmente,
ele lia e estudava o que lia. Assim como o Direito e seus processos, ele estudava Eça de
Queiroz. Também apreciava música erudita, além da literatura. E tudo parecia ser uma
forma de exercício de sua capacidade de perceber e compreender. Somente depois que ele
morreu, descobri que um instituto de hermenêutica jurídica dos Estados Unidos, tem
departamentos dedicados à interpretação literária, à música e os seus integrantes são
juristas. Meu pai, portanto, estava alguns passos à frente do que eu podia entender. Em
certa ocasião conversamos sobre algo que uma vez ouvira alguém dizer dele: que ele seria
um pouco dispersivo por gostar de coisas tão diversas como literatura, direito e música. E
ele comentou que quem pensasse que literatura, direito e música, seriam inconciliáveis,
não se dava conta de que a literatura e a música seriam atividades que contribuiriam ao
desenvolvimento da capacidade de interpretação da lei. Ninguém se dedicaria à
interpretação da lei sem conhecer a língua, sem literatura, sem refinar sua sensibilidade.
Realmente, em certas outras especialidades é até mais evidente a preocupação com o
desenvolvimento das habilidades necessárias ao exercício da função profissional, como,
por exemplo, quantos cirurgiões plásticos, hoje, fazem artes plásticas, ou alguma outra
atividade para manter as mãos aptas para o seu trabalho? O pai, portanto, foi acuradíssimo
em tudo o que fez, e dotado de um senso de justiça extremamente desenvolvido. Logo
depois que ele fez concurso para Juiz, começou a atuar em Nova Prata e teve um caso
muito difícil de usucapião. A partir daí, ele se dedicou de corpo e alma àquele assunto e
acabou escrevendo o seu primeiro livro sobre o tema. Ele sentiu necessidade de pesquisar
profundamente em função dos casos difíceis que enfrentou e não em função de uma
atividade exclusivamente acadêmica.
Memorial - Por que ele não ascendeu ao desembargo? Ele chegou a integrar listas
de promoção, ou não?
Entrevistada - Isso eu não sei dizer. Sempre tive dúvidas. E ele não falava a
respeito. Não sei se teria sido pelo fato de ele ter tido alguma atividade política antes de
ingressar na carreira, se pelo fato de se chamar Lenine e ser filho do Fundador do Partido
Comunista...Talvez estes fatores não fossem muito favoráveis a ele, de acordo com a ótica
da época.
Entrevistada - Apenas gostaria de deixar a relação dessas obras que ele publicou:
“Da prescrição aquisitiva (Usucapião)”, “Da passagem forçada”, “O Poder Judiciário no
Brasil” (em 4 volumes), “O Poder Judiciário no Rio Grande do Sul”, “O Escravo na
Jurisprudência Brasileira”, “Filosofia e História”, “Usucapião Especial” e “Itinerário
Poético de Eça de Queiroz”, entre outras. Pouca gente sabe que o pai, além de bacharel
em Direito, era Bacharel em Filosofia e Livre-Docente em Direito.
28
Memorial - A súmula teológica de São Tomás de Aquino. De certa forma, ele foi
um continuador do trabalho que o Dr. Câmara fez.