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EDITORIAL

Com edição deste volume 4, a revista Justiça & História ingressa em seu quarto ano de
idade. O presente número 7 traz 11 artigos e uma entrevista. Mais uma vez, sentimo-nos
honrados diante da qualidade das contribuições e diante da importância acadêmica dos
articulistas aqui reunidos.

O primeiro artigo, de Daniele Silva do Nascimento, intitulado Da locação das insulae em


Roma, propõe um estudo histórico-jurídico dos imóveis urbanos de vários pavimentos
maciçamente utilizados na Urbs e destinados à locação ou locatio conductio.

Em A figura do herege no Livro V das Ordenações Manuelinas e nas Ordenações Filipinas,


Ângelo Adriano Faria de Assis, João Henrique dos Santos e Frank dos Santos Ramos,
analisam a idéia de herege e de heresia contida nas leis portuguesas durante os séculos XVI e
XVII, apontando os principais comportamentos de heresia e os grupos mais perseguidos por
essas leis, possibilitando, desta forma, encontrar indícios do panorama sócio-político-religioso
de Portugal Moderno.

Márcia Maria Menendes Motta, em Sesmarias e o mito da primeira ocupação, avalia a


historicidade dos conflitos agrários no País e procura refletir sobre os significados da
concessão de sesmaria e a legislação subseqüente que buscou definir os procedimentos para a
sua regularização, através de um estudo dos litígios de terra ocorridos na Fazenda de São
Bento, Maricá, Rio de Janeiro.

O artigo de Adriana Pereira de Campos, Heranças Lusitanas: Direito e Escravidão,


apresenta a tradição jurídica de legislar sobre os escravos na América portuguesa, partindo do
pressuposto de que houve diferenças fundamentais no tratamento legal dado aos escravos nas
Américas, conforme a potência colonizadora de cada parte, sendo a trajetória ibérica na
modernidade européia apontada como o principal elemento constitutivo da tradição
jurisdicionalista que guiou os portugueses na formatação do edifício jurídico de manutenção
dos laços servis em sua colônia americana.

Izabel Andrade Marson, em Política, polícia e memória: a atuação do Chefe de Polícia Jerônimo
Martiniano Figueira de Melo na Revolução Praieira, retrata, por meio da atuação repressiva do Juiz
Jerônimo Martiniano, Chefe de Polícia da Província de Pernambuco, quando da eclosão da
Revolta Praieira, o conflito no qual liberais e conservadores pernambucanos se defrontaram na
disputa pelo controle dos cargos políticos, policiais e judiciais da Província. Seu estudo permite
visualizar o alcance do poder atribuído aos chefes de polícia pela Lei de Interpretação do Ato
Adicional e pela Reforma do Código de Processo, para manutenção da ordem pública, durante
o Segundo Reinado.

Em Criminalidade no Triângulo Mineiro: crimes e criminosos na Comarca de Uberaba/MG (1890-


1920), Marcelo de Souza e Silva, apresenta os resultados da pesquisa realizada no Arquivo
Público de Uberaba, relativos à quantificação dos processos criminais, onde constatou uma
predominância dos crimes contra a pessoa em todo o período estudado, podendo inferir
aspectos acerca do funcionamento da Justiça na Comarca de Uberaba, e traçar o perfil do
criminoso que era julgado, entendendo, dessa forma, uma pouco mais da dinâmica social local
e suas relações com o cenário nacional.

Eliane D. Fleck, Ana Paula Kordörfer e Aline K. Cadaviz, apresentam em O julgamento


moral dos corpos – a infância abreviada pela violência (Porto Alegre – 1890-1904), uma análise
preliminar dos dados constantes dos Códices da Polícia, dos Processos-crime e dos Livros de
Matrícula Geral de Enfermos da Santa Casa de Porto Alegre no período de 1890 a 1904, uma
abordagem sobre criminalização da sexualidade e o julgamento moral dos corpos de meninas –
mulheres.

O artigo de Jens R. Hentschke, From “Order and Progress” to “National Security and
Economic Development” – The Origins of Brazil’s 1969 National Secuity State, retoma a tese de Philip
Schmitter e Thomas E. Skidmore que realçaram as continuidades entre o Estado Novo de
Getúlio Vargas e o autoritarismo burocrático do regime militar brasileiro, aplicando-a à
formação de um Estado de segurança nacional, e argumentando que os termos segurança
nacional e desenvolvimento econômico foram introduzidos anos antes da instalação do Estado
Novo e que substituíram o binômio positivista de “ordem e progresso”.

Antonio Carlos Duarte de Carvalho, em Visões e representações sobre as práticas populares de


saúde em São Paulo de 1950 a 1980: uma análise de acórdãos judiciários, faz um estudo a partir de 179
Acórdãos Judiciários relativos a casos de práticas de Curandeirismo, práticas ilegais da
Medicina, da Odontologia e da Farmácia, entre outros, publicados na Revista dos Tribunais em
São Paulo, e uma reflexão a respeito dos perigos e possibilidades que o historiador encontra
quando trabalha com fontes judiciárias.
Em O Poder Judiciário e seu orçamento: a última década do século XX, Mary Biancamano,
Marco Aurélio Kihs, Mariana Neumann e Marilete Nicoli, apresentam os principais
indicadores orçamentários, financeiros, de recursos humanos e material da movimentação
jurisdicional e os resultado dessas estratégias, de forma a contribuir para uma maior
compreensão sobre a importância do papel do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.

O artigo de Gunter Axt, Algumas reflexões sobre os critérios para a identificação e guarda dos
processos judiciais históricos, apresenta sugestões quanto ao tratamento dos chamados “processos
históricos”, buscando identificar possibilidades no sentido de construir alternativas de gestão
que garantam a preservação eficaz do patrimônio histórico ao mesmo tempo em que levem em
consideração as premências de ordem administrativa enfrentadas pelo Poder Judiciário na
contemporaneidade.

Estas duas últimas contribuições são resultado das pesquisas e reflexões abrigadas pelo
Memorial do Judiciário.

Finalmente, na seção dedicada às entrevistas, a revista reproduz depoimento, realizado


no âmbito do Programa de História Oral do Memorial do Judiciário, da Dra. Eunice Nequete,
ex-Procuradora-Geral do Estado do Rio Grande do Sul.

Editoria.
DA LOCAÇÃO DAS INSULAE EM ROMA*/**
OF INSULAE’S LOCATIONS AT ROME

DANIELE SILVA DO NASCIMENTO***

Resumo
Este artigo propõe um estudo histórico-jurídico da locação das insulae em
Roma, que eram imóveis urbanos de vários pavimentos, maciçamente
utilizados na Urbs e destinados à locação ou locatio conductio.

Abstract
This article proposes a juridical-historic studying of insulae’s locations at
Rome wich were urban immobiles of many floors, hardly used at Urbs
and destinated to location or locatio conductio.

Palavras-chave
Direito – História – Direito Romano – Locatio Conductio Rei – Insulae

Key words
Law – History – Roman Law – Locatio Conductio Rei – Insulae

Introdução
A Roma antiga, a Cidade por excelência, a exuberante rainha orgulhosa de um mundo,
deixou um majestoso legado para as sociedades modernas, mormente na esfera jurídica. Institutos
jurídicos como a locação de imóveis, por exemplo, já eram amplamente utilizados no quotidiano
de Roma há mais de dois mil anos.

No presente artigo, revelar-se-á tal conspecto ao proceder-se a uma investigação


concernente à locação da insula, nome que, evocando uma “ilha”, designa o imóvel urbano de
vários pavimentos, maciçamente utilizado na Urbs e destinado à locação ou locatio conductio.

* Artigo recebido em 15.01.2004 e aprovado em 14.03.2004.


** Trabalho desenvolvido na disciplina de Direito Romano do Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-

Históricas da Universidade de Coimbra, no ano letivo de 2002/2003.


*** Mestranda em Ciências Jurídico-Históricas pela Universidade de Coimbra – Portugal.
2

Para tanto, visualizar-se-á um estudo histórico-jurídico propriamente dito, no qual, numa


primeira parte, será analisada a realidade urbanística da antiga Roma, sob os aspectos do
crescimento de sua população, e do surgimento das insulae ou “casas de aluguel” como alternativa
para o problema da escassez de moradia. E, num segundo momento, será levado a efeito um
exame da locatio conductio rei, nomenclatura dada ao contrato de locação de coisas; neste caso, de
imóvel urbano.

1. Realidade urbanística da antiga Roma


1.1 O crescimento da população da Urbs e a crise de moradia
Roma, a cidade “universal e eterna”, foi a “cabeça e o coração” (Bellido, 1985: 117) do
primeiro grande Império surgido na História, a capital do mundo antigo. A Urbs, diante de sua
magnitude, apresentava um panorama urbanístico peculiar, marcado pela escassez de moradia,
como sói acontecer nas grande metrópoles modernas.

Este fenômeno teve início já no século V a.C. e intensificou-se no século III a.C., quando
a cidade começa a crescer de forma bastante acentuada. O crescimento da cidade deve-se, num
primeiro momento, ao gradual despovoamento do campo, causado, designadamente, pelo
processo de expansão e conquista.

As contínuas guerras, que levavam aos campos de batalha milhares de indivíduos,


determinaram, de fato, um significativo êxodo rural. Os pequenos camponeses que serviam o
exército, a partir do instante que ficavam afastados por um grande lapso de tempo das suas
propriedades, que restavam abandonadas, “custavam a retornar à produção regular”; sem falar
que a vida de soldado, ao transformar os hábitos dos camponeses, “dificultava a sua readaptação
à vida agrícola” (Florenzano, 1994: 81).

Em virtude do empobrecimento dos homens do campo, que aumentava


proporcionalmente à expansão militar (Florenzano, 1994: 80-81), os pequenos proprietários
iniciaram um êxodo contínuo para a cidade a fim de encontrar trabalho e melhores condições de
vida, o que determinou um crescimento desproporcional da Urbs.

Sabe-se que Roma cresceu de forma desmesurada principalmente depois de sua vitória
sobre Cartago. E, logo depois das grandes conquistas do Oriente e do Ocidente, ao longo do
século II a.C., Roma converteu-se não só na cidade mais importante de todo o Mediterrâneo, mas
no principal centro do mundo antigo (Bellido, 1985: 119).
3

Calcula-se que o período de maior densidade demográfica foi entre Augusto e Trajano,
podendo conjeturar-se que nos finais da República a Urbs já atingia cerca de um milhão de
habitantes (Guillen, 1977: 53); e que, em meados do século II da era cristã, a sua população
somava, provavelmente, um milhão e meio1 de almas, todas a palpitar no frenesim de uma grande
metrópole.

Pode imaginar-se o que deveria ser a Urbs durante o apogeu do Império, quando ela deixa
de ser “um povoado grande”, para transforma-se na metrópole imperial e “cabeça do orbe”
(Bellido, 1985: 125). Milhares de imigrantes, oriundos dos quatro pontos cardeais, especialmente
de todo o mundo Mediterrâneo e da península itálica, chegavam a Roma. Em tempos de festas,
consagrações nos templos ou inaugurações de monumentos, tinha-se a impressão de que o
mundo todo se deslocava até lá. Ademais, o provinciano que desejava prosperar, estudar, e que
necessitava negociar, tinha de ir a Roma, que era “o império do comércio, a academia das
ciências, a honra dos favoritismos” (Guillen, 1977: 54).

Portanto, com o vertiginoso crescimento da população da cidade ao longo do tempo,


verifica-se uma situação bastante comum em qualquer grande metrópole: a escassez de moradia.
Constata-se, ainda, uma diminuição progressiva do espaço útil para construção, causado
notavelmente pelas construções monumentais (Dosi; Schnell, 1992: 48-49).2

Pode-se asseverar que tais fatores determinaram a necessidade do aumento da altura das
casas de habitação, a fim de que estas pudessem abrigar o maior número possível de pessoas. O
arquiteto romano Vitruvius (Vitruvius apud Rua, 1998), contemporâneo de Augusto, em sua obra
De Architectura, refere que Roma tinha necessidade de alojar um número infinito de habitantes,
sendo que a altura dos edifícios recompensaria a falta de espaço.

Para agravar mais a situação, vigorava em Roma o princípio superficies solo cedit, segundo o
qual tudo o que estivesse ligado ao terreno, tudo o que se lhe acrescentasse ou incorporasse,
pertencia ao dominus fundi, inclusive todo o edifício construído (Santos Justo, 1997: 210). Santos
Justo (1997: 210) preleciona que “esta situação causava, obviamente, graves inconvenientes ao
desenvolvimento de uma civitas cujo solo era propriedade do populus Romanus, de algumas

1 Conforme Marchi (1995: 12): “Baseando-se sobretudo na área total da Urbs delimitada pelos Muros

Aurelianos confrontada com o número de casas habitadas (fornecido pelos Regionarii), bem como levando-se em
consideração os dados relativos aos recenseamentos, às frumentationes (distribuições gratuitas de gêneros alimentícios),
aos congiaria (distribuição de dinheiro ao povo) e ao consumo do trigo, os estudiosos da topografia antiga de Roma
costumavam calcular a população da Urbs, no auge de seu desenvolvimento, entre um mínimo de 500/600 mil
habitantes e um máximo de 1200/1500 mil habitantes”.
2 Segundo Bellido (1985: 134), as compras e expropriações por parte do Estado, com o propósito de

embelezar Roma, dotando-a de grandes foros, de enormes termas e edifícios oficias, colocaram na rua muitos
cidadãos e encareceram o espaço habitável da cidade, fomentando o aumento de valor do terreno útil para moradias.
4

instituições públicas e de uns poucos cives”. Portanto, em não se admitindo a propriedade em


sentido horizontal (conceito moderno dado à propriedade separada por pisos, em razão de o
edifício estar dividido por planos horizontais), face ao dogma típico do ius civile, que não admitia
ser a superfície objeto de propriedade separadamente do solo3, restava como alternativa o
contrato de locação dos apartamentos dos altos edifícios da Urbs, frente à situação urbanística
trazida à baila.

Neste contexto, difundem-se as chamadas insulae ou “casas de renda ou aluguel”, que se


consubstanciavam em edifícios de apartamentos com vários pisos, nos quais habitava a maioria
da população da Urbs. Tais “casas de renda ou aluguel”, como o próprio nome já diz, estavam
fundamentalmente reservadas à locação ou arrendamento, que se traduzia num contrato – a locatio
conductio –, pelo qual um locador (locator) alugava, em regra, por certo tempo, um apartamento
(cenaculum), a um locatário (conductor, ou, especificamente, inquilinus), devendo este pagar um
aluguel (merces) pelo uso do bem. 4 Outrossim, era facultado ao locador alugar toda a insula para
um único locatário, podendo este sublocar os apartamentos, o que traduz, também, o direito de
uso e gozo da coisa locada.

1.2 Das insulae ou “casas de aluguel”


Impende trazer à evidência que as casas de moradia da cidade de Roma dividiam-se em
dois grandes grupos: as insulae5 e as domus6.

3 Conforme Silva Pereira (2002: 62): “Os autores modernos, trabalhando sobre os textos, permitem discutir
se no período clássico já se admitia a divisio por planos horizontais. Certo é, contudo, que no direito post-justinianeu,
as fontes bizantinas e o Livro Siro Romano de Direito são apontados como fontes que autorizam admitir a figura da
propriedade horizontal no direito romano.” Para maiores desenvolvimentos vide Eduardo C. Silveira Marchi (1995:
15 e ss.). Para lembrar, giza-se que as épocas do direito romano são: arcaica (de 753 a 130 a.C.); clássica (de 130 a.C. a
230); pós-clássica (de 230 a 530); e justinianeia (de 530 a 565).
4 Cumpre elucidar que no Brasil atual utiliza-se exclusivamente as expressões locação e aluguel para designar,

respectivamente, o nome desse tipo de contrato (locatio conductio rei) e o preço locativo. Note-se que tal designação, no
direito brasileiro, é utilizada tanto para coisas móveis quanto para coisas imóveis. O Código Civil de 1916 utiliza,
para denominar o preço locativo, o termo aluguer; e o Código de 2002, a variante aluguel. Em Portugal, a expressão
empregada para a locação de imóvel é arrendamento; e, para a remuneração, renda. Já o termo aluguer é empregado para
denominar o contrato de locação de coisas móveis e também o preço da locação mobiliária, sendo, neste caso, o
correspondente da palavra renda. O leitor do presente texto deverá ler os vocábulos arrendamento e locação como
sinônimos, bem como, renda e aluguel, ainda que na sua essência se reportem a conceitos diferentes. Isso explica-se
pelo fato de as pesquisas para a elaboração deste trabalho terem sido procedidas em textos de autores de diversas
nacionalidades (ou em obras traduzidas para o português, quer do Brasil, quer de Portugal), cada um deles usando as
expressões aceites em seus respectivos países.
5 De acordo com a Lex XII Tabularum apud Pessôa (2001: 49), há a figura do ambitus ou espaço vazio de dois

pés e meio ao redor dos edifícios. Os autores revelam, diante disso, que a denominação “ insula” (“ilha”) deve-se ao
fato de que todas as casas estavam separadas umas das outras pelo ambitus. Assim, conforme Guillen (1977: 77-78),
“em sua origem a insula era uma moradia completamente isolada e rodeada por todas as partes de um jardim ou uma
rua. Formava, pois, o que hoje chamamos uma mansão. Este mínimo de separação de uma casa da outra, marcado
pela lei duodecimal, irá estreitando-se pela escassez do terreno (...)”.
5

A domus era a casa clássica, chamada “casa de tipo pompeiano”, tendo sido, na sua
origem, uma casa rústica, e não urbana, que evoluiu a fim de adaptar-se paulatinamente às
condições urbanas (Grimal, 1993: 224). Tratava-se de uma casa “cômoda, ampla, belíssima, aberta
ao ar e ao sol” (Guillen, 1977: 61), “ocupada por um só proprietário e sua família” (e pelos seus
escravos) e “disposta de ordinário sobre um só piso, com ambientação interior até um pátio
central, não comunicada ao exterior não mais do que com uma porta e com desenvolvimento em
sentido horizontal” (Guillen, 1977: 59). Em contrapartida, a insula, como já restou evidenciado,
era um edifício de estrutura vertical composto de vários pavimentos, formando um verdadeiro
prédio de apartamentos na acepção moderna (Marchi, 1995: 11), que era destinado ao
arrendamento por parte dos menos favorecidos pela fortuna.

Com efeito, as domus eram as residências dos homens mais importantes – as casas da elite
romana – e símbolo de prestígio (Hanoune; Scheid, 1996: 88); e as insulae, as residências de
“caráter urbano e comercial, destinadas à coabitação de várias famílias” (Guillen, 1977: 59-60)
mais modestas.7

As insulae dividiam-se em andares, as chamadas contignationes, e em minúsculos


apartamentos muito apertados, os cenacula. No rés-do-chão encontrava-se, em geral, as tabernae,
destinadas ao comércio8. Na medida em que os mais ricos geralmente alugavam os andares de
baixo; os mais pobres alugavam os andares superiores, que continham apartamentos mais
baratos, principalmente porque os inquilinos ficavam expostos às intempéries climáticas,
sobretudo ao frio do inverno e ao calor do verão.

O historiador e arqueólogo Jérôme Carcopino (1964: 42-43) assevera que as insulae se


dividiam em duas categorias. Vale trazer à colação, por oportuno, um excerto de sua magnífica
obra “A vida cotidiana em Roma no apogeu do Império”:

6 Jérôme Carcopino (1964: 33) assinala: “para um latinista a domus, palavra que evoca etimològicamente a

idéia de domínio hereditário, é a residência particular, em que vive ùnicamente, sem partilhas, a família do
proprietário”.
7 Segundo Guillen (1977: 59), o termo “inquilino” não soava bem para uma domus, porquanto a

tradição determinava uma moradia própria e fixa. Na verdade o termo designava um homem aventureiro e sem
terra.
8 O ilustre historiador francês Pierre Grimal (1993: 226-227) descreve algumas características das insulae, da

seguinte forma: “A insula, pelo seu aspecto exterior, recorda muito os prédios dos bairros de Nápoles, de Gênova
ou, em França, da velha Nice. Todos os andares são divididos em apartamentos independentes, aos quais se tem
acesso por uma escada que dá directamente para a rua. A iluminação era assegurada por grandes janelas rasgadas na
fachada ou dando aos poços de luz no interior. O rés do chão era geralmente ocupado por lojas, cada uma delas
formando uma divisão independente largamente aberta para a rua e fechada, à noite, por persianas móveis. Dos
diferentes compartimentos que formavam um apartamento nenhum tinha um destino especial; não havia cozinha,
nem sala de banhos, nem latrinas. A água, como dissemos, não chegava aos andares de cima e era preciso buscá-la à
fonte da encruzilhada mais próxima.”
6

“Estas imponentes construções, a que o passante só conseguia ver o alto


fazendo um bom recuo, repartiam-se em duas categorias: as mais
sumptuosas, em que o rés-do-chão constituindo um todo posto à
disposição de um só locatário, adquiria o prestígio e as comodidades de
uma residência particular na base da insula, donde o nome de domus, que
muitas vezes se lhe dá por oposição aos apartamentos ou cenacula dos
andares superiores; e as mais comuns, cujo rés-do-chão estava dividido
numa infinidade de lojas e estabelecimentos, as tabernae, frequentemente
mencionadas nos textos, e tanto mais fáceis de imaginar quanto a
ossatura de muitas delas até hoje na Vila Biberatica e em Óstia. Só as
grandes personagens, bem endinheiradas, se davam ao luxo da domus
pertencente àquela primeira categoria (...). Pelo contrário debaixo da
abóbada das tabernae vegetava uma população humilde. Cada uma delas
abria para a rua por uma grande porta em arco que lhe ocupava quase
toda a largura, e cujos batentes de madeira se baixavam – ou puxavam –
todas as noites e eram cuidadosamente ferrolhadas. À primeira vista
compreendia apenas o armazém de um mercador, a oficina de um
artífice ou a loja de balcão do revendedor; mas a um dos cantos da
taberna havia quase sempre espaço para uma escada de quatro ou cinco
degraus de tijolo ou de pedra, que se prolongava com uma escada de
madeira. Por ela se subia a um sótão alumiado directamente por uma
única janela oblonga aberta no alto e no meio da porta, o qual servia de
habitação íntima aos ocupantes da loja, os guardas do armazém, aos
operários da oficina. Em todos os casos, trabalhadores livres ou
escravos, os usuários de uma taberna dispunham só de uma divisão para si
e suas famílias; ali trabalhavam, cozinhavam, comiam, dormiam, numa
confusão pelo menos igual àquela em que viviam, como veremos, os
locatários dos últimos andares. Mas eram talvez ainda mais infelizes que
estes: parece pelo menos que geralmente tinham sérias dificuldades para
pagar as rendas. Para os forçar a pagar – diz-se – o proprietário limitava-
se a retirar a escada que os levava ao quarto, cortando-lhes os víveres.
Ora a expressão percludere inquilinum, bloquear o inquilino, que é uma
imagem, não se teria tornado para os jurisconsultos romanos sinónima
de forçar o inquilino ao pagamento se a operação por ela evocada e que
só se compreende no humilde quarto da taberna não fosse correntemente
praticada na Roma imperial. Havia, portanto, diferenças entre os dois
géneros de imóveis de rendimento a que se convém o nome de insula,
mas elas resultam quase exclusivamente da disparidade da domus com as
tabernae do rés-do-chão, e não impedem que ambos os géneros de insulae
existissem lado a lado no mesmo terreno e obedecessem às mesmas
regras no arranjo interno e no aspecto exterior dos seus andares.”

Sabe-se que já nos fins do século III a.C. havia em Roma insulae de três ou mais
pavimentos (Bellido, 1985: 119), para alojar os inquilini ou inquilinos de renda regular. A partir da
mesma época, as insulae difundem-se, aumentando cada vez mais o número de pavimentos,
estando tal fato nitidamente relacionado com o fenômeno da escassez de moradia na Urbs, que
7

gera a correspondente especulação imobiliária (Román, 1997: 68). Mas foi a partir do Império
que ela se tornou a casa de habitação mais generalizada em Roma, com um desenvolvimento
considerável nos séculos I e II. Este panorama urbanístico, caracterizado pela imensa quantidade
de insulae, é confirmado também pelas fontes jurídicas, conforme observa Maschi apud Marchi
(1995: 12).9

Sob o ponto de vista arquitetônico, as imensas insulae eram edifícios muito frágeis e mal-
construídos, que desmoronavam e incendiavam com freqüência. Os construtores, visando apenas
o lucro, “economizavam na resistência da alvenaria e na qualidade dos materiais” (Carcopino,
1964: 48). A especulação imobiliária fez com que as ruas se estreitassem; e os perigos constantes
de incêndios fizeram com que os empresários construíssem insulae de forma que, não obstante a
melhor aparência que tivessem, o preço de sua edificação fosse o menor possível. “De trás de
aparentes fachadas escondiam-se vivendas sórdidas, sem luz, sem ventilação, estreitas, mal-
cheirosas e ameaçando ruir a qualquer momento” (Guillen, 1977: 53).10

Uma vez que os fenômenos da especulação imobiliária, da superpopulação e da falta de


espaço, levaram os locadores a multiplicar o número de apartamentos num determinado terreno,
consoante já se afirmou, com o passar do tempo, o número de pavimentos foi aumentando. “A

9 Conforme D. 9, 3, 5 pr., “si vero plures diviso inter se coenaculo habitent...,” (“Mas se muitos habitassem num

aposento, tendo-o entre eles dividido...”); D. 9, 3, 1, 10, “si plures in eodem coenaculo habitent...” (“Se habitaram muitos
em um mesmo aposento...”); D. 19, 2, 27 pr., “habitatores...si Paulo minus commode alinqua parte coenaculi uterentur...” (“Se
os habitantes usassem de alguma parte de um cenáculo com pouco menos comodidade...”); e D. 7, 1, 13, 8 refere a
divisão da domus em cenacula, ou seja, a transformação das mesmas em insulae.
10 Guillen (1977: 79) curiosamente assinala que “estas casas se construíam demasiado depressa e com
estruturas de madeira nas paredes, para que permitissem ser mais delgadas, as quais se chama parietes graticii. Por
sua imensa altura, pela estreiteza das ruas, os vizinhos podiam dar-se as mãos pela janela com os da casa em
frente; porque estavam privadas de água corrente, e sobre tudo, pela sua má construção, estas casas estavam
expostas a incêndios e desmoronamentos”. Destarte, os locatários de uma insula viviam constantemente com
receio que ela desmoronasse sobre suas cabeças. Jérôme Carcopino (1964: 50) diz: “Por outro lado ardiam tão
freqüentemente como as de Istambul no tempo dos sultões (...); o incêndio era moda corrente na existência dos
romanos. O rico treme pela sua morada, e na sua angústia põe tropa de escravos a vigiar o seu âmbar amarelo,
os seus bronzes, as suas colunas de mármore frígido, as suas incrustações de laca. O pobre é surpreendido no
seu sono pela invasão da chama na sua mansarda, e cuida ser assado vivo. A obsessão é para todos tão forte
que para lhe fugir Juvenal está pronto a desertar Roma. ‘Ah! Quando poderei eu viver num lugar onde não haja
fogo, onde as noites não tenham alarma!’.” Augusto chegou a criar uma espécie de corpo de bombeiros para
acudir aos sinistros, derrubamentos ou incêndios. Muitos casos previstos no Digesto, inclusive, supõem a
situação precária das insulae romanas. Cicero, em Att. 4, 9, 1, apud Guillen (1977: 79) escreve a seu amigo Atico
sobre o mau estado de uma insula de sua propriedade: “desmoronaram-me duas tabernae; nas outras, as paredes
estão todas fundidas; não só se vão os inquilinos, mas até os ratos. Juvenal 3, 225 apud Guillen (1977: 79) chega
ao ponto de dizer que “alugar um aposento” seria o mesmo que conducere tenebras. Realmente, não obstante suas
belas fachadas, que poderiam impressionar os estrangeiros e os provinciais que chegassem pela primeira vez na
Urbe, as insulae eram frágeis, altamente combustíveis, imundas e infestadas por parasitas. Segundo Carcopino
(1964: 63), nas suas dependências,“...se achatavam umas contra as outras famílias inteiras”, havendo
“...exércitos de escravos e de porteiros, às ordens de um intendente servil para manter a ordem na sua
população atrozmente misturada”, além de verdadeiros batalhões de escravos dos locadores para as
reconstruções imediatas após os sinistros.
8

corrida para as nuvens havia começado. Os ‘arranha-céus’ haviam feito sua aparição vinte séculos
antes que em Chicago e Nova York” (Bellido, 1985: 137). Os Imperadores intervieram no sentido
de limitar a altura das construções, sendo que Augusto proibiu a construção de insulae com mais
de 70 pés de altura (aproximadamente 20 metros) e Trajano reduziu este limite para 60 pés (um
pouco menos de 18 metros) (Grimal, 1993: 227). No entanto, tais medidas não eram respeitadas,
“não tanto pela avidez dos domini insulae, ou caseiros, ou dos gestores, intermediários (exactores ad
insulas) e demais especuladores, mas porque, entre o século I e o III de nossa era, haviam mudado
muito os modos de trabalho e, antes de tudo, os materiais empregados na construção”(Bellido,
1985: 140).11

Diante do exposto até aqui, pode perceber-se claramente que a locação das isulae era um
dos principais meios de renda na Roma antiga, tanto que estes edifícios ocupavam a maior parte
do tecido urbano da cidade, chegando ao número de 46 602 (96,3%) contra apenas 1 797 domus
(3,7%) no século IV da era cristã 12; e a sua locação era um negócio muito rentável, sendo que, na
época de César, se pagava um aluguel quatro vezes maior que em outras cidades da península
itálica.

Considerar-se que a locatio insularum era um importante modus vivendi na capital do Império,
ou um dos principais modos de aquisição de renda, pode soar estranho num primeiro momento,
mormente porque os “autores que se ocuparam da história social e econômica de Roma, ao
tentar determinar a procedência das rendas dos cidadãos romanos mais abastados, passaram por
alto, na maioria dos casos, pelo investimento imobiliário realizado em solo urbano” (García,
2002: 43-44). Garnsey apud García (2002: 44) preleciona que tal omissão “pode depender ou de
um simples descuido, ou também do fato de que a propriedade imobiliária não era tomada
seriamente em consideração como negócio imobiliário”.

Na verdade, a “atividade do arrendador era considerada como especulativa, própria da


classe plebéia e indigna da aristocracia romana” (García, 2002: 44-45). García (2002: 45) elucida

11 De qualquer sorte, os arranha-céus representavam sempre um perigo iminente, até para os

transeuntes das ruas e vielas estreitas da cidade, porquanto os inquilinos dos edifícios mais altos aproveitavam a
escuridão da noite para lançar pelas janelas todos os tipos de sujeiras. Segundo Guillen (1977: 56), de toda a
parte choviam sujeiras, entulhos, excrementos de todos os tipos e outros objetos. No próprio Digesto, se
encontram disposições criadas no afã de evitar acidentes, tais como as de Ulpiano em D. 9, 3, 5 pr. e D. 9, 3, 1,
10. Observe-se, por exemplo, o que diz esta última passagem: “Si plures in eodem coenaculo habitent, unde deiectum est,
in quemvis haec actio dabitur”(“Se habitaram muitos num mesmo aposento, de onde se arremessou alguma coisa,
dar-se-á esta ação contra qualquer deles”). Apesar das disposições mencionadas, as pessoas continuavam
lançando coisas pelas janelas, devendo os homens prudentes sair de casa à noite “só por grande necessidade e
bem acompanhados”, nas palavras de Guillen (1977: 56).
12 Estatísticas trazidas pelos historiadores, segundo os Regionarii, que são documentos do século IV da nossa

era, nos quais consta uma lista das regiões de Roma capital, de seus monumentos, imóveis públicos e privados, vias
etc.
9

que um bom patrício se dedicava a atividades honoráveis e também rentáveis, tais como a
agricultura, o comércio em grande escala ou as profissões liberais.

Cícero apud Florenzano (1994: 79-80), na sua passagem sobre o valor das profissões (De
Officiis, I, XLII) não inclui no rol das profissões dignas a atividade do locador de prédios de
rendimento e nem chega a falar sobre ela, quando se refere às indignas. Entretanto, o mesmo
Cícero deixa claro, ao falar sobre o investimento de capital em imóveis urbanos, em várias
passagens de sua extensa obra, que o arrendamento de insulae “era uma das formas mais seguras
de obter grandes rendas” (García: 2002: 45).

Em suma, a locação das insulae, consoante restou inequivocamente demonstrado no


panorama histórico trazido a lume, era um negócio muito praticado na Urbs e forte gerador de
rendas. Com a ajuda das fontes literárias a que se tem acesso, pode-se notar que “(...) as elites
cidadãs não eram meramente donas de propriedades rurais, mas também faziam investimentos
nada depreciáveis em propriedades urbanas” (Garnsey ; Saller, 1991: 64). Não era por mero acaso
que se vislumbrava na cidade as figuras dos gerentes (procurator insulae, ad insulas, supra insulas,
exactor ad insulas) (García, 2000: 50) e demais especuladores que representavam o proprietário
perante o inquilino, ocultando, de tal sorte, as figuras aristocráticas genuinamente donas dos
imóveis.

Por derradeiro, passa-se agora ao estudo pormenorizado desse contrato firmado entre o
locator e o inquilinus (ou conductor), contrato este de manifesta envergadura face ao seu uso
amiudadamente repetido em Roma. O insigne romanista Arangio-Ruiz (1986: 388) já falara da
“particular importância” da locação de imóveis com fins de lucro, na qual se dá ao locatário o
nome de inquilinus, em se tratando de um edifício.

2. Da locatio das insulae como um tipo de locatio conductio rei


O contrato de locação firmado entre o locator e o inquilinus regia-se pelas normas do
direito romano tangentes ao contrato denominado locatio conductio. Esta espécie contratual
permitia que um indivíduo, mediante uma remuneração (merces) que outro se obrigava a pagar-lhe,
se comprometesse a pôr à disposição deste uma coisa, ou a prestar-lhe um serviço, ou a executar
certa obra.

Por questões de clareza e comodidade para o seu estudo 13, a doutrina moderna subdividiu
o instituto da locatio conductio em três espécies distintas, conforme a natureza do objeto do

13 Giovanni Pugliesi (1994: 602) refere-se a “fins descritivos e expositivos”.


10

contrato. Portanto, a locatio conductio triparte-se em: locatio conductio rei – locação de coisa; locatio
conductio operarum – prestação de serviço; e locatio conductio operis – empreitada.14

Contudo deve ter-se a necessária atenção para o fato de que essa tripartição não era
admitida no mundo jurídico romano. Em se reportando à estrutura do título “Locati, conducti” do
Digesto (D. 19, 2), bem como ao título “De locatione et conductione” das Instituições (I. 3, 24), não se
encontra sinal de classificação (Brasielo, 1927: 539-540). Do mesmo modo, o escrito por Gaius
(Gaius 3, 142 e ss.) acerca da locatio conductio demonstra que os romanos não tinham em mente
uma concepção tripartida do instituto (Arangio-Ruiz, 1986: 385), conhecendo apenas um tipo de
locatio conductio, apesar de possuir três finalidades diversas (Moreira Alves, 1998: 177).

Moreira Alves (1998: 177) assinala que “das três finalidades da locatio conductio (rei, operarum
e operis), a mais antiga é a locatio conductio rei, dela derivando as outras duas”. E é o estudo da locatio
conductio rei que será procedido aqui, de vez que a insula15 é a coisa (res) objeto do contrato de
locação (locatio conductio).

2.1 Da locatio conductio rei


2.1.1 Características e elementos essenciais do contrato
A locatio conductio rei, assim como as outras duas figuras (locatio conductio operarum e locatio
conductio operis), é um contrato consensual, oneroso, baseado na bona fides, e bilateral perfeito, ou

14 Nesse diapasão, o Código Civil Brasileiro de 1916 disciplina o contrato de locação em três seções do

mesmo capítulo, a primeira dedicada à locação de coisas; a segunda, à locação de serviços; e a terceira; à empreitada;
reservando ainda, na primeira seção, disposições específicas sobre a locação de prédios e uma especial concernente
aos prédios urbanos. Segundo Caio Mário da Silva Pereira (1999: 169-170), este critério de classificação observado no
Código Civil de 1916 começou a ser “fundamente atingido desde que Marcel Planiol propôs distinguir os contratos
cujo objeto é uma coisa daqueles em que se visa a um trabalho ou a um direito. Atentando para a locação, sente-se
que é muito maior a aproximação entre a locação de coisa e a venda, o comodato, o depósito, por um lado; entre a
locação de serviços e o mandato, por outro de que entre a clássica locatio rerum e a locatio operarum.” Orlando Gomes
(1999: 271-272), nesse sentido, fala que “para se verificar o artificialismo da pretensa unidade, basta considerar a
chamada locação de serviços, hoje desdobrada nas figuras independentes do contrato de trabalho e do contrato da
prestação de serviços”. O Código Civil de 2002, seguindo essa linha moderna, por ser mais racional segundo alguns,
afastou-se da topografia do antigo Código ao tratar das três modalidades não mais em seções diferentes do mesmo
capítulo, mas em três capítulos distintos (Cap. V – Da Locação de Coisas; Cap. VII – Da Prestação de Serviço; Cap.
VIII – Da Empreitada). Porém, a locação propriamente dita é só a de coisas, sendo esta tratada nos arts. 565 a 578
do novo diploma, que abandonou a distinção entre locação de bens móveis e de prédios (urbanos e rústicos) e
realizou uma abordagem sucinta do instituto, na qual foram traçados apenas princípios gerais. Note-se que antes da
entrada em vigor do novo Código, já vigia a Lei n. 8.245 de 1991 – popularmente conhecida como “Lei do
Inquilinato” – , a qual contém disposições específicas sobre as locações dos imóveis urbanos e os procedimentos a
eles pertinentes. Com o advento do Código de 2002, a lei especial referida continuou a reger o contrato de locação
do imóvel urbano, aplicando-se as disposições do Código às demais hipóteses ou em caso de omissão da lei especial.
Curiosamente a “Lei do Inquilinato” fora publicada no Brasil um ano após a publicação, em Portugal, do chamado
“Regime do Arrendamento Urbano”.
15 Em sentido genérico, de vez que se poderia locar cada um dos apartamentos ( cenaculum) ou as lojas,

oficinas e armazéns do rés-do-chão (tabernae), servindo estes também de moradia. De acordo com Guillen (1977: 78),
em geral, um senhor alugava toda a insula, para posteriormente alugar cada uma de suas partes, o que se chamava
cenaculariam exercere. Vide a respeito D. 9, 3, 5, 1; ib., 10, 3, 1.
11

seja, contractus bilateralis aequalis (Marki, 1995: 127). Por meio dela, o locador (locator) se obriga a
pôr à disposição do locatário (conductor), temporariamente, uma coisa móvel não fungível ou
imóvel para uso ou uso e gozo, mediante retribuição (merces) paga por este.

O conductor é mero detentor da coisa, não possuindo direito real sobre ela; mas, tão-
somente, direito de crédito exercitável contra o locator (Iglesias, 1993: 379). Sendo mero detentor,
é negada ao conductor a posse interdital (Kaser, 1999: 252), não gozando, assim, da proteção dos
interdictos possessórios (Iglesias, 1993: 379). Na visão de Max Kaser (1999: 252) isso denota a
situação social desfavorável do locatário. A título de exceção, o Digesto (D. 43, 16, 12 e 18) prevê
o interdictum de vi armata, do qual poderia dispor o locatário quando fosse expulso do imóvel
locado pelo uso de armas por parte de outrem.

A fim de proteger os direitos derivados da locatio condcutio, o locator dispõe da actio locati ; e o
conductor, da actio conducti (I. 3, 24, pr.).

Os elementos essenciais da locatio conductio rei são: a res (coisa), a merces (aluguel) e o
consensus (acordo de vontade).

A res poderia ser qualquer coisa móvel ou imóvel não consumível. Exemplifica-se:
instrumentos de trabalho, propriedades agrícolas, escravos, objetos para exposição, apartamentos
etc.

Pugliesi (1994: 605) ensina que a locação de imóvel privado foi mais recente que a de
móveis, como aquela em relação ao ager publicus. Este mesmo autor (Pugliesi, 1994: 605) aduz que
a locação de imóvel começou a desenvolver-se,

“de um lado, com a difusão da propriedade fundiária privada e da


destinação à agricultura intensiva de grande parte do ager publicus; e de
outro lado, com o aumento da população urbana e a correlata construção
(do III sec. a. C em diante) de casas de muitos pisos e muitos
apartamentos (insulae), nas quais os senadores e sobretudo fidalgos
investiam o seu dinheiro”.

O autor ainda lembra que o conductor de fundos rústicos era chamado de colonus; e o de
casas de habitação, inquilinus (Pugliesi, 1994: 605).

A merces16 é o segundo elemento essencial à locação, fator principal que a distingue do


comodato (commodatum). Consiste na remuneração que o conductor paga pelo uso ou uso e fruição

16 Conforme Max Kaser (1999: 251), as vezes encontra-se a palavra pretium.


12

da res e deve ser em dinheiro17. No commodatum não há remuneração pelo uso da coisa, mas o uso
gratuito da res com a obrigação do comodatário de restituí-la.

Outrossim, percebe-se uma propinqüidade entre a locatio conductio rei e a emptio venditio
(compra e venda) (I. 3, 24 pr.). Gaius (Gaius 3, 142 e 145) já demonstrava preocupação em
distinguir as duas espécies contratuais, ressaltando que em alguns casos era suscitada uma dúvida
sobre o tipo de contrato firmado entre as partes. Todavia, não obstante serem ambas espécies
contratuais de natureza consensual, são estruturalmente distintas, havendo, e. g., um “preço de
utilização” na locatio conductio e um “preço do valor da coisa” na emptio venditio.

O consensus fora referido por Gaius (Gaius 3, 136 e 136) quando escreveu:

“Contraem-se obrigações mediante o consentimento nas compra e


vendas, nos arrendamentos, nas sociedades e nos mandatos. E dizemos
que por estes modos se contraem as obrigações porque não se requer
nenhuma formalidade, nem palavras, nem escritura, senão que é
suficiente que consintam aqueles que realizam o negócio.”

No caso da locação das insulae, portanto, em virtude de um consensus entre as partes, o


inquilinus, pagando certa merces (aluguel), aluga do locator um cenaculum para sua moradia. Ademais
disso, o inquilinus pode alugar a taberna para sua moradia e negócio, ou ainda uma insula inteira
para sublocar. Sobre esta sublocação, D’Ors (1991: 554) assinala: “a locação de propriedades
urbanas pode ser de uma casa de moradias inteira, para que o arrendatário da mesma subarrende
as moradias separadamente com lucro na renda: D. 19, 2, 35 pr. e 59 (58); fala-se então de locatio
aversione (...)”.

A sublocação era de fato permitida no contrato de locatio conductio rei (C. 4, 65, 6).18

2.1.2 Obrigações das partes

17 Consoante Moreira Alves (1998: 178-179): “a merces consiste, a princípio em dinheiro, e não em coisa

(essa exigência, no entanto, segundo alguns autores, só se fez em época tardia), embora sempre se tivesse admitido
uma exceção: na parceria rural (colonia partiaria ), o locatário do imóvel pode obrigar-se a entregar ao locador uma
quota dos frutos (pars quota) produzidos pelo imóvel; ademais a merces deve ser determinada desde o momento da
formação da locatio conductio rei, admitindo-se, porém, no direito justinianeu, sua fixação por terceiro, que se não o
fizesse, determinaria a ineficácia do contrato(...)”.
18 Ao passo que o Código Civil brasileiro de 1916 consagra a sublocação de prédios no seu art. 1.201, o
Código Civil de 2002 é omisso quanto a tal figura. No entanto, a “Lei do Inquilinato”, ainda em vigor, prevê a
sublocação nos seus art. 14 a 16, estando a mesma subordinada ao regime jurídico da locação, desde que se evidencie
a necessária autorização do locador.
13

O locator e o conductor devem cumprir certas obrigações contratuais, as quais se passa a


expender a partir de agora.

As obrigações do locator são as seguintes: a) entregar a coisa alugada ao conductor, para seu
uso ou uso e fruição, e em estado de servir plenamente àquilo a que se destina, enquanto durar o
contrato;19 b) manter a coisa em bom estado e sem vícios20, propiciando o livre uso e gozo,
conforme sua própria destinação (Iglesias, 1993: 379). Se o locator, de forma culposa 21, não
cumpre tal obrigação, deve indenizar o conductor pelos prejuízos causados (Kaser, 1999: 251)22.
Kaser (1999: 251) assinala que “o mesmo acontece se garantiu expressa ou tacitamente a
idoneidade da coisa arrendada”.23 Em se tratando de caso fortuito, o locator não precisa indenizar
o conductor. Contudo, este está isento do pagamento da merces, ou, se já o efetuou, terá direito ao
ressarcimento24. Ademais, o locador não poderá fazer alterações que tornem a coisa imprópria ou
menos idônea para o uso e gozo por parte do locatário, enquanto durar o contrato (Iglesias, 1993:
380); 25 c) proceder às reparações necessárias à conservação da coisa (D. 19, 2, 25, 2), bem como
reembolsar o conductor das despesas necessárias e úteis feitas com a res (Iglesias, 1993: 380; Moreira
Alves, 1998: 179); d) suportar os encargos públicos que incidem sobre a res (Iglesias, 1993: 380;
Moreira Alves, 1998: 179).

As obrigações do conductor são as seguintes: a) pagar a merces contratada, na medida em que


efetivamente usou e gozou da coisa; “nesse sentido se diz que o risco é do locador (periculum
26
locatoris)” (D’Ors, 1991: 556). Mas se o conductor não puder usar e gozar da coisa, em razão da
superveniência de eventos danosos graves, tais como inundações, incêndios, desmoronamentos
(estes dois últimos exemplos eram muito comuns no caso das insulae), não precisa pagar o aluguel;

19 O Código Civil brasileiro de 2002 estabelece tal obrigação no art. 566; e a “Lei do Inquilinato”, a seu

turno, também o faz no art. 22, I. Evidencia-se aqui, pois, mais um exemplo, dentre inúmeros outros que se poderia
trazer à evidência, de regras jurídicas do direito romano que foram consagradas pelo direito brasileiro.
20 Observe-se o ensinamento de Iglesias (1993: 379158).: “a responsabilidade do locator, na época clássica, só
se dá por motivo dos vícios ou defeitos que lhe são conhecidos; no Direito Justinianeu alcança também os que
ignora. Cf. D. 19, 2, 19, 1.(...)”.
21 Saliente-se que a culpa compreendia o dolo e simples negligência, de acordo com Iglesias (1993: 379 159).
22 Nesse sentido vide a propósito das insulae D. 19, 2, 30 pr.
23 Vide também Giovanni Nicosia (1957-1958: 403-426).
24Max Kaser (1999: 251) refere que “se o uso ou a fruição tiver sido impedido por um acontecimento de
força maior (vis cui resisti non potest), o risco (periculum) corre pelo locator, i. e., não tem direito à renda, na medida em
que o conductor não teve a fruição (e tem de devolver a renda já paga, mas não precisa de pagar qualquer
indemnização). Nos outros casos fortuitos, pelo contrário, o risco corre pelo conductor, que tem de pagar a renda,
apesar de não ter a fruição; cfr. Ulp. eod. 15, 2; Afr. eod. 33)”.
25 A propósito vide D. 19, 12, 19, 5.
26 Para maiores desenvolvimentos acerca do periculum locatoris na locatio conductio rei vide Juan Miquel (1664:
134-190).
14

ou se teve o uso limitado, há a redução do aluguel de forma proporcional ao uso efetivo do


bem27; b) servir-se zelosamente do bem e para os usos convencionados ou presumidos no
contrato. O não cumprimento desta obrigação leva à responsabilização do conductor por culpa; c)
pagar os gastos com a manutenção da coisa locada, sendo que as despesas necessárias correm por
conta do locator (D’Ors, 1991: 556); d) restituir a res ao término da locação, a qual cessa por vários
motivos, que serão a seguir evidenciados.

2.1.3 Extinção do contrato


Dá-se a extinção da locação, em regra, quando finda o prazo estipulado pelas partes. Após
o término do prazo contratual, se os contratantes não dispuseram de modo diverso, admite-se a
relocatio tacita, podendo o conductor continuar usando e gozando do bem por prazo indeterminado
(D. 19, 2, 13, 11). 28

Todavia, nem sempre há um termo certo para a locação, situação em que o contrato se
extingue a qualquer tempo pela vontade do locator (expellere, repellere) ou do conductor (relinquere,
deserere, discedere, migrare) e sem a necessidade de um aviso prévio (Iglesias, 1993: 381). Neste
ponto, especificamente quanto à locatio conductio das insulae, cabe o ensinamento de Filippo Gallo
(1964: 1201-1202). O autor, evocando as Intuições de Gaius (Gaius 3, 142), afirma que no caso da
locatio conductio rei o aluguel não poderia ser estabelecido sem se referir a certo período (dez ao
mês, cem ao ano).

“Na hipótese, portanto, em que não se fosse explicitamente pactuada a


duração do negócio, poderia haver, por exemplo, uma locação de um
apartamento por dez ao mês. Não se pode dizer que num contrato de
locação assim estipulado faltasse qualquer critério para determinar a
duração do negócio. O acordo sobre o preço, de fato, sem o qual não
havia locação, continha uma referência temporal. É sabido, de outra
parte, que neste contrato a declaração das partes se devia interpretar
segundo a boa fé.” (Gallo, 1964: 1201).

Portanto, “ao menos no período de tempo no qual foi medido o preço (no exemplo, feito
por um mês), os contratantes tinham que respeitar a palavra dada” (Gallo, 1964, 1202).

27 Os arts. 1.190 e 567 dos Códigos Civis de 1916 e 2002, respectivamente, contêm tal regra.
28 Sobre a relocatio tacita, a “Lei do Inquilinato”, ao tratar da locação residencial de prédios urbanos, no art.
46, § 1º, dispõe: “Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias
sem oposição do locador, presumir-se-á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas
e disposições do contrato”.
15

Além dessas hipóteses, Iglesias (1993: 381), com notável clareza expositiva, enumera
outras causas que podem levar à extinção do contrato. O autor, alicerçado nas fontes jurídicas,
revela que o locador pode pôr fim ao contrato quando: a) não recebe o aluguel por mais de dois
anos; b) a coisa não está sendo usada de forma normal ou está sendo estragada; c) desejar
retomar o imóvel para sua moradia ou para reformá-lo .

E o locatário pode rescindir o contrato quando: a) o locador retarda a entrega da res; b) a


coisa apresentar vícios que impeçam o uso e gozo, ou os limitem ou dificultem29; c) verificar que
há perigo em permanecer usando a coisa locada.30

A locação não se extingue, em regra, com a morte de uma das partes, a não ser que isso
tenha ficado acordado, porquanto as obrigações se transferem aos herdeiros.31-32

Outra questão importante a saber é a que se refere à venda de bem imóvel locado a
terceiro. Em sendo a relação locatícia uma relação jurídica pessoal, com o advento da relação de
natureza real estabelecida ente o locator (vendedor) e o comprador através da emptio venditio, o novo
dominus pode expulsar o conductor (colonus ou inquilinus) da propriedade, o que se expressa na regra
emptio tollit locatum (a venda rompe a locação) (Torrent, 1967: 265). O conductor, por sua vez, pode
pedir indenização do locator, sempre que tiver de deixar o imóvel antes do prazo fixado33. A fim
de evitar tal inconveniente, o vendedor deve introduzir no contrato de compra e venda uma
cláusula prevendo que, se houver a venda do bem locado, o comprador se obriga a tolerar a
locação (Torrent, 1967: 265). Se tal cláusula não for cumprida pelo comprador, resta ao vendedor
a alternativa da actio venditi (Torrent, 1967: 271).

29 Emilio Betti (1960: 241 73) cita um exemplo tangente à locação de habitação urbana, em que um vizinho

da casa locada constrói sobre o próprio edifício de modo a obscurecer a luz do apartamento do inquilino. Neste
caso, o locador deve ser responsabilizado, não obstante se tratar de uma obra de terceiro. Além disso o inquilino
pode legitimamente desistir da locação.
30 Note-se que muitas destas hipóteses estão previstas ainda hoje no ordenamento jurídico brasileiro, tais

como: o pedido do imóvel alugado para uso próprio ou para reforma; a rescisão contratual em decorrência da falta
de pagamento do aluguel ou do dano causado ao bem por abuso do locatário etc. Para se constatar todas as hipóteses
vide a Lei. n.º 8.245/91 combinada com a Lei 10.406/02.
31 Conforme I. 3, 24, 6: “Mortuo conductore intra tempora conductionis, heres eius eodem iuri in conductionem succedit”

(“Morto o arrendatário durante o tempo do arrendamento, lhe sucede nele com o mesmo título o seu herdeiro”).
32 Mais um exemplo de uma regra do direito romano abraçada pelo direito brasileiro. Os arts. 1.198 e 577,

dos Códigos Civis de 1916 e 2002, respectivamente, têm o a mesma redação nesse sentido: “Morrendo o locador ou
o locatário, transfere-se aos seus herdeiros a locação por tempo determinado.” E mais, os arts. 10 e 11, da “Lei do
Inquilinato”, também contêm esta regra, mas com a particularidade de mencionar (no art. 11, I) que, morrendo o
locatário, “ficarão sub-rogados nos seus direitos e obrigações: (...) nas locações com finalidade residencial, o cônjuge
sobrevivente ou o companheiro e, sucessivamente, os herdeiros necessários e as pessoas que viviam na dependência
econômica do ‘de cujus’, desde que residentes no imóvel”.
33 Segundo Nicola Palazzolo (1965: 28632), no caso de venda da coisa locada, o locator só é responsável

perante o conductor se este for proibido de usar e gozar da coisa, o que estaria expresso claramente em D. 12, 2,
25, 1.
16

Enfim, com a presente explanação, tem-se que restaram evidenciados alguns do principais
aspectos atinentes à locação das insulae em Roma, o que envolve, de um lado, a problemática da
sua locação como um negócio imobiliário de larga utilização face à escassez de moradia; e de
outro, a questão do regime jurídico aplicado à relação contratual existente entre o locador e o
inquilinus.

Conclusão
Para Santos Justo (2000: 24),

“o ensino do Direito Romano evidencia a grande perfeição técnico-


jurídica da jurisprudência romana que soube criar, com um rigor
inexcedível, figuras jurídicas; formular princípios doutrinais e regras
jurídicas; e consagrar uma terminologia jurídica que os séculos não
estiolaram. Sem exagero já se disse que o Direito Romano constitui ‘o
alfabeto e a gramática da linguagem jurídica’”.

Sem dúvida, com o presente estudo pode-se perceber o inegável valor das palavras do
citado Mestre, na medida em que antigos institutos jurídicos romanos, tais como a locatio conductio,
erigiram a base teórica e conceitual sobre a qual se edificaram grande parte das figuras jurídicas
patentes na dinâmica social moderna.

Ainda se pode notar que a herança romana não restou adstrita tão-somente ao âmbito
jurídico. É deveras impressionante vislumbrar as influências de Roma nos mais diversos
domínios: “espaços nacionais e políticos, estética e moral, valores de todos os tipos, sistemas
jurídicos dos Estados, usos e costumes da vida quotidiana; nada do que nos rodeia seria o que é
se Roma não tivesse existido” (Grimal, 1993: 11).

Roma, a capital do mundo antigo, “a deusa dos continentes e das nações”, a “cidade
tentacular e colossal” cuja grandeza assombrava a todos (Carcopino, 1964: 25), “ilumina com
uma luz viva cerca de doze séculos da história da humanidade” (Grimal, 1993: 25), sendo o ponto
de encontro entre o mundo antigo e o novo e, por isso, pertencente a todos, universal e eterna”
(Polidori, 1997: s. n.).

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A FIGURA DO HEREGE NO LIVRO V DAS ORDENAÇÕES MANUELINAS E NAS ORDENAÇÕES
FILIPINAS*
THE FIGURE OF HERETICS ON THE BOOK V OF ORDENAÇÕES MANUELINAS AND
ORDENAÇÕES FILIPINAS

ANGELO ADRIANO FARIA DE ASSIS**


JOÃO HENRIQUE DOS SANTOS***
FRANK DOS SANTOS RAMOS****

Resumo
O presente artigo procura analisar a idéia de herege e heresia contida nas
leis portuguesas durante os séculos XVI-XVII, utilizando-se dos códices
legais da época – as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas -,
apontando os principais comportamentos de heresia e os grupos mais
perseguidos pelas leis. Desta forma, é possível encontrar indícios do
panorama sócio-político-religioso do Portugal Moderno.

Abstract
This article desires analyze the idea of heretic ands heresy that exists in
the Portugueses’ laws during the XVI-XVII centuries, using the legals’
codes of that time – Ordenações Manuelinas and Ordenações Filipinas –
showing the main behaviours of heresy and the most pursued groups by
laws. That way, is possible find some traces of the cultural, political and
religious landscape of Portugal in the Modern Age.

Palavras-chave
Ordenações Manuelinas - Ordenações Filipinas - leis portuguesas –
Hereges - Portugal Moderno.

Key words
Ordenações Manuelinas - Ordenações Filipinas - portugueses’ laws – heretics -
Portugal in the Modern Age.

“Com a rebeldia não há concórdia:

* Artigo recebido em 15.01.2004 e aprovado em 31.01.2004.


** Mestre e Doutorando em História, UFF.
*** Mestrando em História, UFRJ.
**** Graduado em História, UFF.
2

Punir com firmeza é uma forma


De demonstrar misericórdia”
(Gianfrancesco Guarnieri, in “Arena conta Zumbi”)

“E essa realidade deles não pode ser destruída por nenhum documento,
pois eles a respiram, a vêem, sentem-na... e tocam-na! No máximo o
documento serviria a vocês, só a vocês, satisfazendo uma tola
curiosidade. E mesmo aí estariam condenados ao maravilhoso suplício
de ver, ao mesmo tempo, aqui o fantasma, e aqui a realidade, e não saber
distinguir um do outro!”
(Luigi Pirandello, in Assim é (se lhe parece))

Introdução
Em 1578, o jovem monarca português Dom Sebastião, moço ainda solteiro de apenas 24
anos, desapareceria nas areias do Marrocos durante a fracassada campanha militar de Alcácer
Quibir, deixando o trono português vago pela falta de herdeiros. O cardeal D. Henrique, tio de
D. Sebastião, resolveria temporariamente o problema, assumindo a Coroa que, contudo,
continuava sem herdeiros diretos. De idade avançada, combalido e celibatário (por razões
óbvias), o cardeal-rei morreria em pouco tempo, pondo fim à Dinastia dos Avis e dando início,
em 1580, a uma das páginas mais trágicas da história portuguesa.

Assim, os sessenta anos do período denominado União das Coroas Ibéricas, entre os anos
de 1580 e de 1640, marcariam a subordinação lusitana à Espanha, causando reflexos em todos os
níveis no reino e demais regiões ultramarinas portuguesas  aí incluindo-se a colônia brasílica
, as quais sentiriam as mudanças organizacionais junto ao aparelho administrativo do Estado
Luso. As Ordenações Manuelinas, códice de leis que regiam a vida sócio-política do reino,
promulgadas em 1521, dariam lugar a um novo conjunto de ordenações, Filipinas, cuja
compilação iniciou-se entre os anos de 1583 e de 1585, durante o reinado de Don Filipe II de
Espanha1, somente vigorando, porém, a partir de 1603, em pleno reinado de Don Filipe III de
Espanha. As Ordenações Filipinas perdurariam em vigor em Portugal, no Brasil e nas demais
colônias lusitanas até a Restauração da Coroa Portuguesa, em 1640, tendo à frente o Duque de
Bragança, que assumiria o trono como D. João IV, de justa alcunha O Restaurador, iniciando-se a
Dinastia dos Bragança.

1 Don Filipe II, rei de Espanha, foi coroado em Portugal, durante a União Ibérica, com o nome de Don

Filipe I, assim como seu filho, Don Filipe III de Espanha, seria coroado Don Filipe II em Portugal.
3

A estrutura do novo conjunto de leis que, em substituição ao códice manuelino passava a


vigorar no reino, é dividida e organizada em cinco livros distintos, a tratarem de temas jurídicos
específicos, a saber:

• O Livro I trata dos direitos, deveres, prerrogativas e atribuições dos


magistrados e oficiais de justiça, com exceção dos ligados ao
desembaraço do Paço;
• O Livro II trata das relações entre o Estado e a Igreja; dos privilégios
desta e da nobreza e dos direitos fiscais eclesiásticos e nobiliárquicos;
• O Livro III compreende as ações cíveis e criminais e regula o direito
subsidiário;
• O Livro IV regula o direito das coisas e pessoas, fixando normas
comerciais, testamentárias, sucessórias e fundiárias;
• O Livro V, objeto do presente estudo, é dedicado ao direito penal,
fixando os delitos e as penas.

Por ora, nosso destaque cabe ao Livro V das Ordenações, do qual serão extraídos
subsídios para entender a posição e a política de atuação dos governos dos Filipes em relação à
concepção então vigente de herege.

Já as Ordenações Manuelinas foram resultado da reforma feitas por D. Manuel nas


ordenações anteriores, as Afonsinas, e somente passaram a vigorar em versão definitiva a partir de
1521, mesmo ano de falecimento d’O Venturoso. Deste modo, cerca de oito décadas separam a
implantação das ordenações de D. Manuel das ordenações implantadas pelo período filipino.
Ressalte-se ainda que a estrutura das Ordenações Manuelinas  bastante elaborada se comparada
com as legislações anteriores  é também dividida em cinco livros, tratando de variados temas
jurídicos, no intuito de abranger, segundo a concepção de seus idealizadores, todos os estratos e
questões pertinentes à sociedade lusitana da época. A separação temática do códice manuelino
não diferiria no geral de seu sucessor, estando assim dividido:

• Livro I: trata do regimento dos magistrados e oficiais de justiça,


apontando as atribuições, vigências, responsabilidades, direitos e
prerrogativas dos cargos e de seus ocupantes;
• Livro II: identifica funções, responsabilidades, limites e deveres dos
representantes do clero e da Igreja; atribuições e direitos de fidalgos;
privilégios e obrigações nobiliárquicos e eclesiásticos concedidos pelo
rei; responsabilidades e jurisdição dos oficiais d’el Rey;
4

• Livro III: define as ações cíveis e criminais, especificando suas


abrangências legais e burocráticas;
• Livro IV: aponta os direitos e deveres da população, delimitando as
normas fundiárias, comerciais, testamentárias e de sucessão;
• Livro V: estabelece o funcionamento do direito penal, definindo os
delitos, suas gravidades e respectivas penas.

Igualmente, o destaque irá para o Livro V dessas ordenações, onde também encontramos
títulos específicos referentes à questão da visão e tratamento dado aos hereges, objetivo central
deste artigo para os hereges, objeto central deste artigo.

Em linhas gerais, busca-se com este debate, tentar comparar ou perceber as diferenças e
semelhanças, ou ainda, as aproximações e distanciamentos, entre as duas ordenações
supracitadas, principalmente levando-se em consideração as realidades específicas de cada época.
Foram tempos de grandes perseguições contra os descendentes da casa de Israel, comumente
denominados gente da nação hebréia, transformados, à força, em 1497  pois impedidos de
manter a antiga fé e de deixar o reino, batizados em pé e contra a vontade  em cristãos:
cristãos-novos, porém, diferenciados desta forma dos outros cristãos, velhos, considerados livres
da mácula judaica que continuava a correr nas veias neoconversas independente da sinceridade ou
não de sua conversão. Cristãos-novos, herdeiros de primeira hora de todo o tipo de preconceitos
e intolerância outrora dedicados aos judeus durante os tempos de livre crença na Ibéria lusa.
Cristãos-novos, acusados de manutenção das tradições e crenças judaicas na clandestinidade,
ocultamente, de forma dissimulada, denominados por isso criptojudeus, ameaçadores da pureza
da fé católica. O surgimento da Inquisição portuguesa, em 1536, encontrava aí a justificativa
primeira para seu surgimento e o combustível principal para suas perseguições. Tornava-se assim
o cristão-novo, desde o nascedouro, causa e conseqüência para a instauração e atuação do
Tribunal do Santo Ofício da Inquisição em Portugal.

Para um primeiro momento de análise, contudo, será necessário entender algumas


concepções fundamentais e pertinentes à compreensão deste debate proposto entre heresia e poder.

A concepção de heresia:
A Igreja Católica Apostólica Romana, desde sua institucionalização como religião de
Estado, no século IV, sempre sofreu questionamento de seus dogmas e métodos, ameaçando
sobremaneira a legitimidade e a extensão do seu poder, o que se tornou mais agudo no final do
século XI, vindo a assumir dimensões maiores no final do século XIII. A cristandade vivia
5

princípios de um período de transição com muitas transformações em todos os níveis, posto que,
pouco a pouco e imperceptível, desmoronavam-se as estruturas feudais, consolidando-se, desta
forma, os Estados Nacionais — posteriormente Absolutistas — e a política mercantilista,
responsável pela solidificação do poder econômico desses Estados. Concomitante a esse
complexo processo, a Igreja tinha seu poder e influência reduzidos em razão dos cismas
religiosos. Presenciava-se, deste modo, o início do fim da sua unicidade hegemônica. Foi deste
cenário que emergiam premissas teológicas dissidentes e contestatórias do catolicismo que eram
taxadas de heresias, conquanto a existência de heresias possa se dizer ser tão antigas como a
própria existência da Igreja.

Etimologicamente, a palavra herege provém do grego hairesis e do latim haeresis,


significando, em senso estrito, “escolha”, “opção” e, genericamente, a partir do ano 325, quando
o arianismo foi tratado como doutrina herética, ganhando o conceito pejorativo de doutrina
contestatória às normas definidas pela Igreja Católica no que se refere aos seus dogmas de fé
(Azevedo, 2002: 183).

Desde o primeiro congresso de Heresiologia realizado na França em 1962, aceitou-se a


definição do teólogo medievalista M. D. Chene. Na sua definição, herege é “o que escolheu”, o
que optou por uma crença, além de se obstinar em segui-la e defendê-la.

A heresia representaria a contestação à ordem espiritual de uma religião dominante e,


portanto, uma ameaça para essa, que pode ser — como foi em muitas ocasiões — endêmica. Por
conta disso, seria muito combatida e encarada como uma representação patológica e maligna.

Por representar uma dissidência teológica, a heresia renasce constantemente; bastando


haver repressão ou posições antitéticas para que ela se efetive. Representa a diversidade, o
diferente. Na Península Ibérica, por exemplo, presenciar-se-ia o aparecimento de inúmeras
posições “heréticas”. Isso se deveu a coexistência, por longa data, de diferentes grupos étnicos
neste espaço geográfico. Mesmo com a forte presença da ação do Tribunal do Santo Ofício
(desde 1478 em Espanha e desde 1536 em Portugal), essas idéias contestatórias continuavam a se
reproduzir socialmente.

Existe um fator importantíssimo para compreendermos as perseguições aos “hereges” na


Península Ibérica: o sentido da palavra heresia variou conforme o tempo, o espaço e as
circunstâncias em que estavam circunscritos tais personagens. Em Portugal, por exemplo, seu
6

sentido estava definido no regimento de 1640 da Inquisição2. Eram os cristãos-novos que


mantinham as práticas judaicas após terem sido convertidos ao catolicismo pela força do
sacramento do batismo. Eram conhecidos por judaizantes ou criptojudeus. Também a “heresia
protestante” era combatida, com o mesmo Regimento determinando aos fiéis católicos “que
denunciem os que souberem ‘que tenha, ou haja por boa a seita de Lutero, Calvino, ou de outro
algum heresiarca dos antigos, os modernos, condenados pela santa Sé Apostólica’” (Siqueira,
1996: 879).

O conceito de heresia seria acolhido pela Igreja Católica com o intuito de justificar e
legitimar a forte repressão contra a proliferação daqueles diferentes da fé cristã católica no mundo
conhecido, alcançando, entretanto, pouco êxito em terras européias — haja vista o progressivo
sucesso das expansões doutrinárias das Igrejas Cristãs Reformadas. Por outro lado, nas regiões
coloniais atlânticas e asiáticas, o controle dos papistas seria considerável e, alguns casos, teriam
efeitos devastadores para as populações locais, apesar da fluidez do poderio das instituições
católicas nessas regiões. Havia uma clara intenção da Igreja Católica em usar a heresia como um
instrumento aglutinador para o retorno da unicidade cristã católica medieval, já bastante
debilitada na Era Moderna, por causa da consolidação das inúmeras ramificações das doutrinas
reformadas, além do constante perigo da expansão territorial pelos infiéis.

A concepção de Poder e as Ordenações


O exercício do poder por parte dos Filipes de Espanha era calcado numa concepção que
remontava os Reis Católicos do século XV e que perduraria por toda a Idade Moderna,
sobrevivendo mesmo nos tempos pós-iluministas, através do Despotismo Esclarecido, onde o
monarca representaria um papel central no teatro do poder.

Essa concepção centrava na figura do Monarca e naqueles que recebessem poder


delegado por este a instância maior, algumas vezes única, de decisões sobre as esferas da vida
comercial, judicial, civil e, em alguns aspectos, religiosa da população. De tal sorte que se formou
ao redor do Monarca uma Corte, por vezes hipertrofiada, mas dependente de alguns
personagens-chave, encarregados de funções específicas e especiais, próximas ao Rei — recorde-
se que a Lei Sálica impedia o acesso de mulheres ao trono espanhol até o final do século XVIII
— e gozando de sua inteira confiança.

2 A Inquisição portuguesa teve, ao todo, seis regimentos: regimento de 1552; regimento de 1570; regimento

de 1613, época de domínio filipino; regimento de 1640; regimento de 1774, e o projeto de regimento redigido
durante o governo da Rainha D. Maria I.
7

A descoberta de novas rotas comerciais, sobremaneira marítimas atlânticas, ligando os


principais centros difusores de mercadorias europeus aos mercados fornecedores de matérias-
primas e especiarias do Extremo Oriente, assim como a conquista do Novo Mundo, a América,
alimentariam elevadas expectativas de lucros em todos os estratos da sociedade européia: do clero
e da nobreza, perpassando pela emergente burguesia moderna até alcançar as camadas mais
desprovidas da população, essa particularmente motivada pela possibilidade de melhoria de vida.
Esse novo caminho para o empreendedorismo e para a oportunidade de próxima grande
prosperidade esbarraria num perigoso entrave: a Espanha estava num estado de guerra quase
permanente com outras nações européias, sobremaneira Holanda, Inglaterra e, por vezes, a
França.

Assim, as Ordenações Filipinas, promulgadas com o título geral de “Ordenações e leis do


Reino de Portugal recompiladas por mandado do muito alto, católico e poderoso rei dom Filipe, o primeiro”,
emergiriam como resposta à necessidade de disciplinar, reger e ordenar os negócios do Reino,
dada à forte imoralidade presenciada no reinado anterior, segundo as concepções espanholas.

Embora editadas sob a égide da coroa castelhana, sua normatização seguia a tradição legal
portuguesa, sendo de se notar que as Ordenações Filipinas apresentavam menos concessões ao
poder eclesiástico do que o fazia o chamado “Código Sebastiânico”, o conjunto de leis, ditas
extravagantes, compiladas por Duarte Nunes de Leão e promulgadas em 1569, no reinado de D.
Sebastião. Essa ressalva é notável de certo modo visto o alinhamento tácito de Filipe II à contra-
reforma, que o levou a ser chamado pela historiadora Adriana López de “o intransigente católico
calvinista do Escorial”, em epíteto brilhante para defini-lo face às suas posições de não aceitação de
qualquer transigência contra a fé católica romana (Lopez, 1999).

Emergia das Ordenações Filipinas a figura do Rei forte, como que a querer desmentir o
vaticínio camoniano de que “um fraco rei faz fraca a forte gente” (Camões, 2002: canto III, verso 138).

A “confessionalização” da Monarquia e as Ordenações


O termo “confessionalização” (“Konfessionalisierung”) foi desenvolvido por Heinz Schilling
e Wolfgang Reinhard, baseando-se em conceituações formuladas por alguns historiadores
alemães. Realçam o processo de mudanças que envolveu as estruturas religiosas, políticas, sociais
e culturais ocorridas na sociedade alemã da Idade Moderna. Pode, por extensão, ser aplicado para
definir os procedimentos assumidos durante a Reforma e a Contra-Reforma na Europa como um
todo.
8

A aplicação desse conceito teve importância capital durante o reinado de Filipe II, com
desdobramentos na vida civil, religiosa e administrativa do Estado. Uma figura exponencial nesse
processo foi o confessor real, o frade franciscano Bernardo de Fresneda, definido por Henar
Pizarro Llorente como “uma das figuras chave no processo de confessionalização da monarquia hispânica, pela
atividade que desenvolveu em consonância com seu ideário de radicalismo religioso” (Millán, 1994). O frade
Fresnada iniciou sua carreira eclesiástica simpático ao reformismo jesuítico, mudando, entretanto,
de campo político após sua estada nos Países-Baixos, entre os anos de 1555 e de 1559, quando,
então, tornar-se-ia patrocinador das ações do Santo Ofício.

Somente o Inquisidor Geral Diego de Espinosa eclipsou Fr. Bernardo de Fresnada em


importância no delineamento do papel da religião no reinado de Filipe II. A ação de Espinosa
inseriu-se no ideário filipino de manter afastada do Reino toda ideologia herética ou heterodoxa
que pudesse suscitar qualquer movimentação social. Neste sentido, Filipe II iniciou uma ampla
reforma, “esforçando-se a monarquia por impor um intransigente sistema de idéias e crenças a toda a sociedade,
utilizando o Santo Ofício como instituição que punia os transgressores”, na afirmação de José Martinez
Millán (Millán, 1994).

O Inquisidor Geral emergiu como um primus inter pares em gabinete integrado por ele
próprio, Fr. Bernardo de Fresneda, Francisco de Menchaca, Doutor Velasco e pelo Secretário
Real Pedro del Hoyo. Seu papel na “confessionalização” da monarquia espanhola foi
fundamental, alcançando ampla repercussão em toda a administração. Centralizou processos e
decisões na figura do Rei e subordinou as disposições legais e administrativas à ortodoxia da fé
católica.

Espelhos de outrora: O tratamento dado ao “herege” nas Ordenações Manuelinas.


A compilação das leis que formariam as ordenações implantadas por D. Manuel era
reflexo do processo de monopólio da fé que surgira em Portugal sob as ordens deste monarca.
Assim, não é de se estranhar que a figura do herege apresente intensa ligação com a figura do
cristão-novo, descendente direto dos judeus em suas primeiras gerações dentro da fé cristã.
Afinal, embora proibido por lei em 1497, o judaísmo continuava a existir  inclusive com certa
complacência real, que proibia qualquer tipo de punição por prática descuidada do catolicismo
durante quase quatro décadas após a expulsão! , em Portugal, considerado a principal ameaça à
unicidade e pureza da fé cristã no reino.

Já no Título II, Dos Hereges e Apostatas, define-se a responsabilidade dos julgamentos e a


indissociável ligação entre a Igreja e o Estado:
9

“O conhecimento do crime de heresia pertencem principalmente aos


juízes eclesiásticos, os quais devem ver e julgar os feitos dos hereges
segundo acharem por direito. E quando eles condenarem alguns hereges
por suas sentenças, porque a eles não pertence fazer as tais execuções
por serem de sangue, devem remeter a Nós os condenados, com os
processos que contra eles forem ordenados, ou as sentenças que contra
eles derem”.

Aí reside a justificativa para as condenações inquisitoriais que envolvam a morte do réu


nunca serem feitas pela própria Inquisição: os réus eram condenados à Justiça Secular, ou seja:
enviados para o braço Secular, a jurisdição real, posto que os representantes eclesiásticos não
podiam realizar a pena de morte. Invariavelmente, um indivíduo condenado à Justiça Secular pelo
Santo Ofício  apesar de todas as recomendações dadas pelos inquisidores para que se haja
“com misericórdia e sem derramamento de sangue” do prisioneiro  tinha destino certo: era
queimado vivo nas fogueiras (garroteado antes, porém, se aceitasse a morte cristã).

A pureza da fé era buscada a todo o custo. Assim, os envolvimentos amorosos entre


indivíduos de origem diversa também eram condenados, pois o correto era seguir a norma de
cristãos envolvidos unicamente com cristãos. Tal é o assunto de que trata o Título XXI, Do Judeu
ou Mouro que dorme com alguma Cristã. E Cristão que dorme com Moura ou qualquer outra infiel:

“Qualquer cristão que houver ajuntamento carnal com alguma moura ou,
com qualquer outra infiel, ou cristã com mouro, ou judeu, ou com
qualquer outro infiel, moura por ele; e isto quando tal ajuntamento fosse
feito por vontade, e a sabendas [sic], porque se alguma mulher de
semelhante condição fosse forçada, não deve ela morrer, nem por ela
haver pena; somente haverá a dita pena aquele que cometesse a tal força.
E isso mesmo que tal pecado fizesse por ignorância, não sabendo, nem
havendo justa razão de saber, como a outra pessoa era d’outra lei, não
merece ela pena, e somente será punida aquela pessoa, que da dita
infidelidade fosse sabedor, ou houvesse justa razão de o saber; cá em
alguma culpa fosse por o saber, ou ter justa razão de o saber, será punido
segundo a culpa em que for achada”.

Já o Título XXXIII, Dos feiticeiros, e das vigílias que se fazem nas Igrejas, dá-nos noção da
intensidade da cultura popular então vigente em Portugal, ao procurar coibir práticas
consideradas de feitiço. Percebe-se a força do imaginário religioso então existente, representado
pelo temor de práticas que, em última instância, significavam menos a prática ritual do que a
sobrevivência memorial de antigos costumes e “abusões” do Medievo e da Antigüidade europeus.
10

É, de qualquer modo, um riquíssimo quadro das crenças e continuidades que se precisava


extinguir.

“não seja alguma pessoa tão ousada que, para adivinhar, lance fortes,
nem varas, para achar haver, nem veja em água, ou em cristal, ou em
espelho, ou em espada, ou em outra qualquer cousa luzente, nem em
espádua de carneiro, nem façam para adivinhar figuras, ou imagens
algumas de metal, nem de qualquer outra cousa, nem se trabalhe de
adivinhar em cabeça de homem morto, ou de qualquer animália, nem
traga consigo dente, nem baraço de enforcado, nem qualquer outro
membro de homem morto, nem faça com as ditas cousas ou cada uma
delas nem com outra alguma espécie alguma de feitiçaria”.

Práticas jejunais e de guarda de dias que não os sagrados ao catolicismo eram veementemente
condenadas:

“pessoa alguma não faça vodus, nem vigílias de dormir e comer e beber
em igrejas, nem se ajuntem a comer e beber por razão das missas que
mandam dizer, que chamam missas dos sábados, nem guardem por
devoção o sábado, ou quarta-feira, não sendo cada um dos ditos dias
mandado guardar por ordenança da Igreja ou por constituição do
Prelado”.

As penas aos culpados variavam conforme a gravidade da culpa, mas eram sempre
rigorosas:

“Mandamos que seja publicamente açoitado com baraço e pregão pela


vila ou lugar onde tal crime acontecer, e seja ferrado em ambas as faces
com o ferro que para isso Mandamos fazer de um [sic], para que seja
sabido pelo dito ferro que foram julgados e condenados pelo dito
malefício, e mais seja degradado para sempre para a Ilha de São Tomé
(...) e além da dita pena corporal pagará três mil réis para quem o acusar”.

Contudo, as punições variavam ainda de acordo com a posição social dos acusados:

“se for peão, ou daí para baixo, seja publicamente açoitado com baraço e
pregão pela vila, e mais pague dois mil réis para quem o acusar. E se for
Vassalo ou Escudeiro, ou daí para cima, ou mulher de cada um destes,
11

seja degradado para cada um dos Nossos Lugares d’Além em África por
dois anos, e mais pague quatro mil réis para quem o acusar”.

O desrespeito e a descrença aos símbolos sagrados do cristianismo, também eram


punidos pelas Ordenações. Assim, o Título XXXIV trata Dos que arrenegam, e blasfemam de Deus, e
dos seus Santos, define o rigor das penas aos possíveis hereges:

“Todo aquele que por qualquer maneira disser que arrenega, ou não crê,
ou descrê de Nosso Senhor, ou de Nossa Senhora, ou da sua fé, se for
vassalo, ou d’outra tal qualidade, que não seja peão filho de peão, ou se
for escudeiro, ou cavaleiro, que fidalgo não for, seja degredado um
ano...”

O códice manuelino cuidava ainda dos excomungados. De acordo com o Título XLVI,
Dos excomungados, e da pena que hão de pagar, o não-respeito à sua situação de excomunhão  “tanto
que for denunciado por excomungado ao povo por seu Prelado ou por aquele que houver
poderio de o excomungar, se se absolver e sair da dita excomunhão” gerava pena de prisão “por
qualquer Justiça de Nossos Reinos”, além de pagamento de pena em dinheiro. Caso apelassem à
Roma, ordena o Título XLVII, Dos excomungados apelados, que “se não proceda contra ele por
Nossas Justiças, nem seja preso, nem evitado, nem lhe levem penas de excomungado”.

O tratamento dado ao “herege” nas Ordenações Filipinas


Também nas Ordenações Filipinas encontramos variadas referências à orientação legal
que deveria ser dada ao trato com os hereges, em boa parte, outra vez identificado com a figura
do neoconverso. Já o Título 1 – “Dos Hereges e Apóstatas”, estabelecia em seu caput que “o
conhecimento do crime de heresia pertence principalmente aos juízes eclesiásticos”; ressalvando,
porém, que estes, por não poderem fazer as execuções nos condenados, por serem estas “de
sangue”, deveriam remetê-los aos tribunais civis para que os desembargadores cumprissem as
penas, punindo, “como devem”, os hereges condenados.

Determinava, também, o confisco dos bens, permitindo aos seus herdeiros apenas o
usufruto. Em caso de aforamento sobre o qual incidisse prazo imposto pela Igreja, o fisco do
Reino sucederia ao herege condenado caso este não tivesse herdeiros naturais, antes que se
apresentasse “herdeiro estranho por lei, costume ou contrato”. Na hipótese de os bens,
12

transcorrido esse prazo, deverem retornar aos herdeiros ou ser passados à posse da Igreja, o fisco
estipularia o valor das benfeitorias e melhoramentos.

O artigo 4 do Título 1 trazia interessante interpolação entre o direito civil e o eclesiástico,


ao estabelecer:

“Porém, se algum cristão leigo, quer antes fosse judeu ou mouro, quer
nascesse cristão, se tornar judeu ou mouro, ou a outra seita e assim lhe
for provado, nós tomaremos conhecimento dele e lhe daremos a pena
segundo direito.
Porque a Igreja não tem aqui que conhecer se erra na fé ou não.
E se tal caso for que ele se torne à fé, aí fica aos juízes eclesiásticos
darem-lhe as penitências espirituais”.

O Título 94, que trata “dos mouros e judeus que andam sem sinal”, preceitua in verbis:

“Os mouros e judeus que em nossos reinos andarem com nossa licença,
assim livres como cativos, trarão sinal por que sejam conhecidos,
convém a saber, os judeus carapuça ou chapéu amarelo, e os mouros
uma lua de pano vermelho cosida no ombro direito, na capa e no pelote.
E o que não o trouxer ou o trouxer coberto, seja preso e pague pela
primeira vez mil réis da cadeia. E pela segunda vez dois mil réis para o
meirinho que o prender. E pela terceira, seja confiscado, ora seja cativo,
ora liberto”.

O Título 102 estabelecia a aprovação da censura régia e da censura eclesiástica como


indispensáveis para a publicação de qualquer livro no Reino, o qual deveria ser submetido
primeiramente aos desembargadores e, posteriormente, aos oficiais do Santo Ofício da
Inquisição.

Os Títulos 108 a 111 regulamentavam as viagens a “terras de mouros”, estabelecendo


como indispensável à aprovação régia ou dos “capitães de África”, punindo a quem
desobedecesse a esse interdito com o confisco de seus bens e o degredo ao Brasil. A restrição
aplicava-se não apenas aos reinóis, mas também aos estrangeiros residentes no Reino, e que todos
deveriam (Lara, 1999: título 109) obedecer a uma lista de restrição de produtos que não se
13

podiam levar às “terras de mouros”, que incluíam de um modo especial aqueles que pudessem ser
usados em caso de guerra contra reinos cristãos.

Os cristãos-novos e cristãos-mouriscos — mouros que se deixaram batizar e passaram ao


catolicismo — eram expressamente proibidos de viajar a “terras de mouros”, sendo interdito aos
cristãos levá-los a elas, sob pena de confisco de bens e condenação à morte.

Essas eram as disposições que o Livro V das Ordenações Filipinas traziam a respeito dos
hereges, aí compreendidos todos os não-católicos, sendo que o Título 3 era específico contra
adivinhos, feiticeiros e sortílegos e o Título 4 era dirigido especialmente contra aqueles que
benziam animais e lugares sem a permissão eclesiástica, prática bastante comum no Nordeste
colonial, conforme se pode perceber na longa duração, com a manutenção destes costumes e
práticas benzedeiras contemporaneamente, difundidos por todo o Brasil.

Algumas observações e considerações finais


Verifica-se que a ameaça de punição pecuniária ou a promessa de recompensa pecuniária
era amplamente usada nas ordenações Manuelinas quanto nas Filipinas, para dissuadir a
transgressão ou para incentivar a delação dos transgressores. Em várias circunstâncias, metade
dos bens confiscados iriam para o denunciante e a outra metade para o fisco. Esse pode ter se
revelado um eficiente mecanismo de controle social, para mais além de qualquer motivação
religiosa.

Registre-se que as Ordenações Filipinas reconheciam uma situação de facto que não deveria
existir de jure, que era a presença “de mouros e judeus que em nossos reinos andarem com nossa licença”
(Lara, 1999: título 94), o que não deveria ocorrer na Espanha desde 1492 e, em Portugal desde
1497, quando mouros e judeus foram expulsos pelos Éditos de Granada (Espanha, 1492) e da
Vila do Muge (Portugal, 1496), respectivamente. Note-se que o texto não faz referência apenas a
cristãos-novos e a cristãos-mouriscos, mas a judeus e mouros, vale dizer pessoas que se sabia ser
praticantes do judaísmo e do islamismo sem qualquer verniz ou subterfúgio cristão. Esses eram
objeto de especial vigilância das autoridades, principalmente no tocante a seu contato com
mouros ou a possibilidade de que fossem “a terras de mouros”. No caso, trata-se de mouros ou
judeus de passagem pelo reino (a negócios, principalmente), e que precisavam, após
identificarem-se como tais, de autorização legal para o desembarque e entrada no reino, ficando
obrigados a realizar suas andanças sempre acompanhados de um cristão designado pelas
autoridades e proibidos de freqüentar lugares ou comunicar com pessoas além do estritamente
necessário, para evitar que difundissem outra fé no reino que não a cristã. Lembremos ainda que
14

judeus e mouros que chegassem a Portugal não estavam sob a ameaça do braço inquisitorial,
posto que o Santo Ofício somente agia sobre cristãos.

Essa observância quanto ao contato com estrangeiros inseria-se num contexto mais
amplo de preocupação com a defesa e segurança do Reino, o que se evidenciava na proibição
imposta a reinóis e residentes de levar a essas “terras de mouros” quaisquer materiais que
implicassem possibilidade de uso para guerra ou comércio, como cânhamo, pólvora, madeira para
construção naval etc. e também ouro, prata ou metais preciosos do Reino, os quais não se
podiam usar nem mesmo para resgatar mouros (Lara, 1999: título 110).

Por fim, revela-se o interesse em evitar a entrada de idéias estrangeiras no Reino,


determinando-se a dupla censura prévia (civil e eclesiástica) a quaisquer livros que se quisessem
publicar no Reino. Esse duplo Imprimatur potest impossibilitava a edição de livros contendo idéias
reformadas, sendo esse o principal objetivo dessa medida, uma vez que a posse de livros em
hebraico já estava proibida pelas Ordenações Manuelinas, com as exceções aos físicos (médicos)
e boticários, em sua maioria, cristãos-novos ou judeus. Buscava-se, deste modo, e até certo ponto
com sucesso, manter intactos os interesses e ideais do Estado Absolutista português.

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15

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VACA DE OSMA, José Antonio. Los Reyes Católicos. Madrid: Espasa, 2001.
SESMARIAS E O MITO DA PRIMEIRA OCUPAÇÃO*/**
SESMARIAS AND THE MYTH OF THE FIRST OCCUPATION

MÁRCIA MARIA MENENDES MOTTA***

Resumo
Em muitos dos conflitos agrários ocorridos nos oitocentos (e ainda hoje) a
carta de sesmaria foi e tem sido utilizada para construir um ponto zero da
ocupação territorial na área em disputa. O presente artigo analisa a
historicidade dos conflitos agrários no país e procura refletir sobre os
significados da concessão de sesmaria e a legislação subseqüente que buscou
definir os procedimentos para sua regularização. Para tanto, a autora analisa
os litígios de terra ocorridos na Fazenda São Bento, Maricá, Rio de Janeiro.
Ao longo do século XIX, os beneditinos buscaram imprimir sua versão dos
fatos com base em uma carta de sesmaria em contraponto a um grande
fazendeiro que também buscou reconstruir sua história de ocupação,
apoiando-se no mesmo tipo de documento. A utilização da carta revela a
dimensão simbólica do poder dos terratenentes, a despeito das múltiplas
interpretações sobre a história da ocupação do lugar. A vitória de uma das
partes eleva a carta como expressão da “verdade” da ocupação, seu mito
fundante.
Para a autora, os problemas decorrentes da limitação de terras nos dias de
hoje impõem a presença dos historiadores, capazes de desnudar as fontes,
deslegitimando uma única versão, relativizando a utilização de um
documento antigo como “fonte da verdade” ao trazer a nu a história dos
conflitos agrários no país.

Abstract
In many of the agrarian conflicts happened in the eighteenth century (and
still today) the sesmaria letter was and it has been used to build a start point
of the territorial occupation in the area in dispute. The present article
analyzes the historicity of the agrarian conflicts in the Brasil and it tries to
contemplate about the meanings of the sesmaria concession and the

* Artigo recebido em 03.02.2003 e aprovado em 01.03.2004.


** Este artigo foi anteriormente publicado, com pequenas alterações na revista portuguesa: Ler História número

45, em 2003, com o título: Sesmarias no Brasil: história e conflito nos oitocentos. Naquele artigo, expliquei ao leitor
português o que eram as sesmarias, pois as concessões de terra pelo sistema de sesmarias foram aplicadas ao Brasil ao
longo da colonização, mas esteve ausente em Portugal na época moderna.
***Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Departamento de História da
Universidade Federal Fluminense. Coordenadora do Núcleo de Referência Agrária da Universidade Federal Fluminense.
2

subsequent legislation that it looked for to define the procedures to regulate


property. For so much, the author analyzes the litigations about property of
earth happened in Fazenda São Bento, Maricá, Rio de Janeiro. During the
nineteenth century the Benedictine priests looked for to legalize this version
of the facts which base in a sesmaria letter. In the same way a great farmer
also looked for to rebuild his occupation history supported by the same
document type. The use of the letter reveals the symbolic dimension of the
power of the terratenentes, in spite of the multiple interpretations on the
history of the occupation of the place. The victory of one of the parts
elevates the letter as expression of the "truth" of the occupation. It is like a
founder myth.
For the author, the fixation of the limits of lands cause problems that
demand the intervention of the historians, who is able to reveal the sources,
dissolving the exclusiveness of a single version, making relative the use of an
ancient document as if a "source of the truth" when he exposes the agrarian
conflicts in Brasil.

Palavras-chave
Sesmarias - Ocupação – Conflito de Terra – Direito Agrário – Transmissão
de Patrimônio

Keywords
Sesmarias – Transference of Property – Occupation – Agrarian Conflicts –
Agrarian Rights

Ao longo dos últimos anos, tenho procurado analisar litígios de terra e transmissão de
patrimônio em várias regiões do Rio de Janeiro no século XIX. O levantamento e análise de
numerosa documentação revelaram-me um aspecto instigante que deu origem ao presente artigo. Em
muitos dos conflitos fundiários ocorridos nos oitocentos (e ainda hoje), a carta de sesmaria foi e tem
sido utilizada para construir um ponto zero na história da ocupação territorial na área da disputa. Ao
lançar mão de um documento tão antigo, uma das partes (ou as duas) chama à história como
testemunha e consagra - ao menos aos olhos da lei – a legalidade de sua ocupação. O que parece
simples encobre o embate de preceitos jurídicos e disputas sobre o direito à terra que podem ser
enfocados a partir de ao menos três pontos.
3

Em primeiro lugar, sabe-se que a maioria das concessões de sesmarias não foi acompanhada
dos procedimentos para sua regularização. Neste sentido, ao longo dos oitocentos era fato que as
sesmarias estavam majoritariamente em comisso, pois os sesmeiros não haviam cumprido a
determinação legal de medir e demarcar sua terra. Logo, em processos de embargo e despejo (abertos
para expulsar um pretenso invasor) o litigante-sesmeiro usava o documento como marco zero de sua
ocupação, ciente de que ele não cumprira a determinação régia. Em vários processos de medição de
terras, abertos para definir os limites territoriais de uma determinada área, os documentos de
sesmaria eram recorrentemente apresentados como se eles expressassem – sem discussão – a verdade
absoluta da área ocupada.

Em segundo lugar, o aceite da carta como ponto zero e a definição final a favor do sesmeiro,
revelam-nos que não era importante o cumprimento dos procedimentos legais para regularizar a
ocupação, posto que a carta por si só traduzia simbolicamente a expressão do poder do sesmeiro.
Entende-se assim como e porque os fazendeiros continuaram a utilizar o documento de sesmarias
após o fim de sua concessão em 1822, e mesmo após a Lei de Terras de 1850 e seu regulamento, em
1854. Em muitos casos, os fazendeiros utilizaram-se das cartas de sesmarias, ignorando inclusive a
obrigatoriedade do Registro Paroquial de 1854/56, este último documento criado pelo citado
regulamento. A utilização reiterada da carta como prova documental da “verdadeira” história -
expressão de uma ocupação imemorial – é por si só emblemática.

Por último, quando ambos os litigantes constroem o marco zero de sua cadeia sucessória
tendo como base cartas de sesmarias, o jogo de poder entre ambos é também o embate entre
interpretações diversas sobre a ocupação originária de seus ascendentes. Nos dois lados dos
conflitos, é necessária a reconstrução (no tempo) da ocupação territorial empreendida por aqueles
identificados como os primeiros ocupantes, sesmeiros originais da terra em litígio. Nestes casos, é
possível identificar a maneira pela qual são produzidas “verdades” para fundamentar histórias de
ocupação de um lugar, palco territorial de atores sociais diversos. O jogo se instaura pela presença de
não apenas uma carta, mas sim pelo emprego de duas cartas, expressando “verdades” opostas e
revelando disputas para além dos limites territoriais dos litigantes.

Detenhamo-nos no terceiro aspecto acima mencionado. Para que se fundamente a defesa dos
litigantes, é necessária a reconstrução – por cada um – de uma cadeia sucessória que fundamente a
transmissão de patrimônio. Para tanto, é preciso reconstruir todo o processo de ocupação territorial
até o momento do litígio. O recuo no tempo, uma vez que as cartas de sesmarias são entendidas
4

como o ponto zero da ocupação, é entrelaçado com a minuciosa descrição espacial da área ocupada,
exatamente para provar que o outro é o verdadeiro invasor. E por último, a utilização da carta de
sesmaria como ponto inaugural da ocupação territorial reatualiza – em cada litígio – a legitimidade
dessa concessão régia.

No entanto, o recurso a um documento como a carta de sesmaria para fundamentar o direito


a terra em detrimento de outrem, encobre o fato de que a lei de sesmaria e os próprios títulos de
doação omitem a necessidade de “pré-fixar os limites máximos ou mínimos dos terrenos concedidos
pela mão dos Capitães (...)” (Saldanha, 1991: 205). Em suma, “não havia na lei nenhuma fixação
objectiva das extensões das áreas a distribuir, tudo reduzido ao critério, vago, das possibilidades do
aproveitamento (...)”·(Idem). Logo, as disputas pela terra reconstroem – em cada litígio – a expansão
territorial que se quer imprimir, transformando a ocupação territorial num processo marcado por
limites fluidos, operados de formas distintas em cada momento do embate. Neste sentido, uma
mesma carta pode ser utilizada para fundamentar a “verdade” da ocupação em tempos diversos e
com extensões territoriais discordantes.

Assim, a construção de uma data inaugural fundamentada na carta de sesmaria encobre todo
um emaranhado de disputas relativas à definição espacial da área concedida. No levantamento e
cruzamento de fontes que realizei, analisei os documentos de sesmarias presentes no Inventário dos
documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo da Marinha e Ultramar, entre 1756 e 1757 e
organizados por Eduardo de Castro Almeida (Almeida, s/d). Esta documentação – pequeno
fragmento de um universo documental de consideráveis proporções - ajudou-me a entender todo o
procedimento adotado para a concessão das sesmarias e os embates que vem à luz na definição da
área concedida. Apesar das fontes recolhidas por Eduardo Castro de Almeida se referirem ao
período anterior, elas nos mostram que o processo de concessão de sesmarias está baseado em
procedimentos jurídicos construídos desde o surgimento do instituto de sesmarias em fins do século
XIV.

O sistema de sesmarias e a posse


O sistema de sesmarias foi criado, em fins do século XIV em Portugal, com vistas a
solucionar o problema de abastecimento do país, pondo fim à grave crise de gêneros alimentícios. O
objetivo da legislação era o de não permitir que as terras permanecessem incultas, impondo a
obrigatoriedade do aproveitamento do solo. Assim, “Ocorrendo o inaproveitamento o dono do solo
5

deve explorá-lo - diretamente, ou por prepostos - arrendá-lo, se não o puder cultivar, e, em caso
contrário, tê-lo confiscado, para distribuição com quem o queira aproveitar”. A própria definição de
sesmaria revelava a intenção do cultivo: “são propriamente as datas de terras, casais ou pardieiros que
foram ou são de alguns senhorios e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o
não são”. (Porto, s/d: 30).

A história da implantação do instituto jurídico das sesmarias na colônia portuguesa foi objeto
de estudos de importantes advogados, como Ruy Cirne Lima e Costa Porto (Idem e Lima: 1988). No
esforço de compreender as características peculiares do sistema no Brasil, os pesquisadores
ressaltaram que, aqui, a Coroa Portuguesa precisou estabelecer um sistema jurídico capaz de
assegurar a própria colonização. O sistema de sesmarias em terras brasileiras teria se estabelecido não
para resolver a questão do acesso a terra e de seu cultivo, mas para regularizar a própria colonização.
Para tanto, o pedido de sesmaria era feito ao representante do poder central - capitão mor, capitão
geral ou governador da província- identificando o nome do solicitante, o local e área desejada:

“O pedido recebia as informações do provedor da Fazenda Real no


município de situação das terras, e do procurador da coroa, subindo assim
instruído a despacho final. Deferido, lavrava-se na Secretaria de Estado a
carta de sesmaria, como um título provisório, cabendo ao interessado
suplicar ao rei, dentro em três anos, a carta de confirmação, que era o título
definitivo (...) A concessão da carta da sesmaria, se fazia para que o
concessionário usufruísse as terras como suas próprias, para ele e para todos
os seus herdeiros, ascendentes e descendentes(...)” (Junqueira, 1976: 69).

As tentativas da Coroa em regularizar o sistema de sesmarias, principalmente a partir das


últimas décadas do século XVII limitando, por exemplo, a extensão máxima das áreas a serem
concedidas por sesmaria, foi em vão. As disposições acerca da obrigatoriedade do cultivo, um dos
principais itens da Carta Régia de 1695, foram também inócuas. Da mesma forma, os esforços sobre
a fixação dos limites, ou seja, a demarcação das datas concedidas também não pôde deter, à revelia da
lei, o processo de expansão territorial praticado pelos fazendeiros e por uma ampla camada de
posseiros.

Assim, por exemplo, as resoluções de 11 de abril e 2 de agosto de 1753 determinavam que


“as terras dadas de sesmarias em que houvesse colonos cultivando o solo e pagando foro aos
sesmeiros deveriam ser dadas [em sesmaria] aos reais cultivadores”. Da mesma forma, o Alvará de
6

1795 preocupava-se com a necessidade de não doar terras nas áreas já ocupadas por colonos,
desejando com isso que se evitasse conflitos de terras. Segundo o mesmo, as irregularidades e
desordens na doação de sesmarias no Brasil provocaram a necessidade de elaborar um regimento
próprio, capaz de obrigar a regularização e demarcação das sesmarias. O Alvará não deixava de
salientar os abusos e desordens resultantes da ausência de um regimento a ser aplicado em “todo o
Estado do Brasil”. Em 1809, mais um Alvará é promulgado pelo príncipe regente para retornar a
condução da política de terras (Motta, 1998)

Em Nas Fronteiras do Poder argumentei que havia de fato ao menos três problemas a serem
enfrentados pela Coroa:

“O primeiro era que a implantação de um instituto jurídico, criado para


promover o cultivo, era utilizado para assegurar a colonização. Nas terras
coloniais, a questão não se resumia à necessidade de aproveitamento das
terras, mas implicava fundamentalmente ocupar e explorar estas terras,
dominá-las enquanto área colonial. Em segundo lugar, a obrigatoriedade e o
incentivo ao cultivo estimulavam o crescimento de categorias sociais
estranhas aos sesmeiros. Muitos deles, por exemplo, preferiram arrendar
suas terras ou parte delas a arrendatários que, muitas vezes, sublocavam
parcelas de terras a pequenos lavradores. A delegação de poder que
acompanhava a prática dos grandes arrendamentos não só permitia o
surgimento de um nova categoria social - o grande arrendatário - como
colocava obstáculos ao trabalho da Coroa de verificar o cumprimento da
exigência do cultivo e da demarcação de terras. Em terceiro lugar, a
incapacidade da Coroa de efetivamente controlar o cumprimento de suas
exigências estimulava o crescimento da figura do posseiro, ou seja, aquele
que se apossava de terras, pretensa ou realmente devolutas (Idem, 1998:
121/122).

As disputas entre a Coroa e os sesmeiros se expressavam no fato de que ela não podia
ignorar que esses últimos se apossavam de terras limítrofes as suas sesmarias e de que a posse
tornava-se prática recorrente, mas tarde reconhecida pela Lei da Boa Razão de 1769.

Segundo Cirne Lima, o costume da posse preenchia alguns requisitos da Lei da Boa Razão,
como a racionalidade - o cultivo - e a antigüidade. Além disso, o costume da posse encontrava
precedentes na própria legislação portuguesa - o chamado direito de fogo morto - e na tradição
romana. Todavia, ele feria o espírito das leis de Portugal, pois estas dispunham que as terras
deveriam ser adquiridas unicamente por concessões de sesmarias. Para Cirne Lima, no entanto, “a
7

aquisição de terras devolutas pela posse com cultura efetiva se tornou verdadeiro costume jurídico”.
(Lima, 1988: 76) Com isso o costume da posse passou a ter aceitação jurídica, consolidando a
tendência de reconhecer, no texto da lei, a existência daquele que ocupava a terra, já que os vários
decretos, resoluções e alvarás sobre as sesmarias não deixavam, de uma forma ou de outra, de
salvaguardar o interesse daquele que efetivamente cultivava a terra.

Em 1821, a Coroa atendeu aos pedidos feitos por vários posseiros de Pernambuco que
solicitavam serem conservados em suas terras, pois haviam sido de lá expulsos em razão das
sesmarias ali concedidas posteriormente. Para tanto, a Decisão referia-se a Ordens anteriormente
promulgadas pela Coroa Portuguesa acerca do mesmo problema. Um ano depois, uma nova
solicitação, desta vez de posseiros da Vila São João do Príncipe, levou a uma nova Decisão, de 14 de
março de 1822, reafirmando o direito dos posseiros mais antigos sobre as terras que fossem dadas
posteriormente por sesmaria. Finalmente, em 17 de julho de 1822, durante a regência de D. Pedro e
em meio a uma conjuntura extremamente complexa, suspendeu-se à concessão de sesmarias.

No entanto, para se compreender as questões que envolvem o reconhecimento do direito à


posse em sua relação com o sesmeiro (detentor de um documento) é preciso relacionar o
emaranhado processo de concessão de sesmaria e o jogo de interpretações sobre o direito a terra em
fins do século XVIII que virão a sustentar as interpretações “nacionais” ao longo dos oitocentos,
após o fim da concessão. Para tanto, realizei o levantamento e análise de processos de embargo e
despejo presentes no Museu da Justiça do Rio de Janeiro relativos à região de Maricá e os processos
que chegaram à Corte da Apelação do Rio de Janeiro ao longo dos oitocentos, também relativos à
região. Se – como afirmamos – as cartas de sesmarias são entendidas como ponto zero da ocupação
dos litigantes, é preciso compreender a fundo o encaminhamento do processo de concessão até a
portaria final que legaliza a forma de ocupação e as legislações pertinentes que procuraram redefinir e
reorganizar o instituto de sesmarias no Brasil.

Assim, para o que nos interessa os documentos oriundos da concessão de sesmarias


imprimiam uma definição fluida sobre os limites territoriais, posto que toda legislação no sentido de
delimitar e demarcar as terras concedidas continuaram a ser letra-morta, mesmo após o fim do
sistema em 1822. Neste sentido, após essa data, eram poucas as terras de sesmarias que haviam
passado por algum procedimento de medição e demarcação. Como já afirmei em trabalho anterior,
isso revelava a perpetuação do poder dos terratenentes, donos de sesmarias anteriormente
concedidas. As indefinições dos limites permitiam que sesmeiros se transformassem de fato em
8

grande posseiros, ocupando terras devolutas ou – em áreas de conflitos – invadindo terras de


outrem. (Motta, 1998)

De qualquer forma, o simples fato de possuir em suas mãos um documento de sesmarias


trazia vantagens incomensuráveis ao litigante, autor de um processo envolvendo pequenos posseiros.
A carta, ao revelar a dimensão simbólica de seu poder, tornava-se a expressão da verdade que se
queria imprimir. Em muitas ocasiões, os advogados dos réus, esforçavam-se por demonstrar que a
sesmaria estava em comisso, que a extensão territorial alegada não estava de acordo com as
informações presentes na carta e que a primazia do cultivo dos posseiros deveria assegurar o seu
direito a posse, a despeito da existência de um documento de sesmarias do autor. Em longos
processos (alguns com mais de 500 páginas) advogados buscavam fundamentar sua contrariedade
frente à utilização do documento de sesmaria pela outra parte do litígio, baseando-se em toda a
legislação que – como vimos – impunha a delimitação e demarcação de terras.

No entanto, o emaranhado da legislação acerca daquela concessão não havia conseguido


impor a obrigatoriedade de delimitar e demarcar a terra. Os limites continuaram fluidos, as
delimitações territoriais mantiveram-se vagas e operadas pelo sesmeiro a partir de seus interesses
pelas áreas fronteiriças. Não à toa, quando acompanhamos os processos que envolvem disputas de
terras no oitocentos, encontramos reiteradamente a noção de que a concessão de sesmaria configura
o “marco zero” da ocupação do local do litígio, em contraste com as alegações de que aquelas terras
haviam sido ocupadas por sistema de posse, reconhecido a partir da lei da Boa Razão1.

O problema ainda se complica quando nos deparamos com litígios onde há de fato duas
cadeias sucessórias “inauguradas” com cartas de sesmaria. Os desdobramentos disso são por si só
reveladores da dificuldade de se definir quem é de fato o verdadeiro dono daquelas terras, o que em
outras palavras significa dar um grau de veracidade a um documento em detrimento de outrem.

Um caso exemplar: o conflito na Fazenda são Bento

1 Um caso emblemático é o que envolveu o fazendeiro Francisco Antonio da Costa Barradas. Em 1839, ele

abriu um processo de medição de terras. e litigou com vários pequenos posseiros e lavradores discordantes dos limites
territoriais alegados pelo fazendeiro Em 1844, a Corte de Apelação confirmou os limites territoriais pelos quais ele lutou,
com base em sua interpretação da carta de sesmaria. Para tanto, vide: Motta, Márcia. Op. cit, cap.III.
9

Em meus estudos sobre transmissão de patrimônio em área de conflito na região do antigo


município de Maricá2 acompanhei o embate entre visões de ocupação fundamentadas em dois
pontos zeros da disputa: a carta de sesmaria da fazenda dos beneditinos versus a sesmaria concedia a
Francisco Ferreira Drumond. Assim, em 1822 o alferes José Gomes da Cunha Vieira abre um
processo de libelo contra o Mosteiro de São Bento alegando que as terras entre a Serra de
Gururapina até a Ponta Negra eram devolutas e foram concedidas em sesmarias, no ano de 1686 a
Francisco Ferreira Drumond. Por morte de Drumond passaram as ditas terras aos seus herdeiros
sucessivamente até Custódio José Ferreira Guimarães, que também as possuiu por mais de quarenta
anos. Com a morte de Custódio, as terras passaram para José Gomes da Cunha Vieira, na qualidade
de inventariante dos bens de seu sogro, posto que as terras foram herança recebida de sua sogra, neta
ou bisneta de Drumond.

Os beneditinos têm uma outra história de ocupação a defender. Para se contrapor a José
Gomes da Cunha Vieira, eles alegam que a concessão que o Mosteiro obteve em 1635 compreende
as terras alegadas por Viera e de que esta sesmaria foi concedida mais de meio século antes da que foi
concedida a Drumond3.

Para os beneditinos, suas terras em Maricá são originárias de duas sesmarias, a primeira
conhecida pelo nome de Sesmaria de Frei Romano, “cujas terras se estendem até entrevar-se na
extrema do município confinante de Niterói no corredor da costa do mar” Ainda segundo o
mosteiro, o Monge Beneditino foi o primeiro concessionário, sendo então Prelado aos 29 de
setembro de 1635 pelo governador e capitão da capitania Dom Rodrigo Miranda Henriques” 4

A segunda sesmaria é denominada é a dos Mouros,“contíguas a de Frei Romano, e ligando-se


com esta na Barra das Lagoas de Maricá , concedida primitivamente a Duarte Martim Mourão,
primeiro sesmeiro, donde lhe veio o nome, foi adquirida por compra feita a seu herdeiro por

2- Motta, Márcia - Heranças e Disputas (um estudo sobre a transmissão de patrimônio em situação de conflito de terra Maricá,

1859/1917). Bolsa de produtividade em pesquisa. CNPq, 2001-2003. Neste trabalho tenho levantado todos os processos
relativos à Fazenda São Bento e seu principal litigante: José Gomes da Cunha Vieira.
- Os documentos utilizados para a reconstrução da cadeia sucessória de ambos os litigantes são: Arquivo
3

Nacional. Relação do Rio de Janeiro.Auto de Libelo, 1822. Autor: José Gomes da Cunha Vieira; Réu: Mosteiro de São
Bento. Arquivo Nacional. Supremo Tribunal de Justiça. Translado dos autos de execução que promove o Dom Abade do
Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da Cunha Vieira e dona Ana Joaquina Cândida CÓDIGO DO
FUNDO: BU. SEÇÃO DA GUARDA: SDJ.CX 277, N 45, ANO 1866. Arquivo Nacional. Translado dos autos de
execução que promove o Dom Abade do Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da Cunha Vieira e dona
Ana Joaquina Cândida, 1866.
4Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Registro Paroquial de Terras. Município de Maricá. Fazenda de

São Bento. livro, 51, Folhas 42/.43


10

escritura pública de 06 de agosto de 1675 e foi confirmada esta aquisição, entre outros pelo alvará de
16 de setembro de 1817”5

As disputas que envolveram José Gomes da Cunha Viera e os beneditinos tornaram-se mais
interessantes na medida em que o primeiro procurou ao longo dos oitocentos transmitir o seu
patrimônio para sua filha Feliciana Custódia de Castro. Segundo informações que recolhi em vários
processos envolvendo o pai de Feliciana, podemos reconstruir a ocupação territorial da fazenda
denominada Posse, que, segundo José, era originária de uma sesmaria, mas que para os beneditinos
era parte de seu patrimônio, ilegalmente ocupada por José Gomes e sua família. De qualquer forma,
de acordo com as informações fornecidas pelo advogado de José, a fazenda se formou entre o final
do século XVIII a 1814. Pelos dados recolhidos nos processos do Tribunal da Relação do Rio de
Janeiro, podemos assegurar que em 1822, há uma disputa sobre aquela área envolvendo Jose Gomes
da Cunha Vieira e os beneditinos. Essa luta é reinaugurada em 45, quando o marido de Feliciana é
falecido e, em 1851, quando o Mosteiro promove um Auto de Despejo contra José Gomes. Em
1866, o embate dá origem a um novo processo, quando o Mosteiro tenta mais uma vez expulsar José
Gomes daquelas terras.

Esse arrolamento de datas não nos autoriza pensar apenas na formação da estrutura fundiária
da fazenda, mas sim em toda a complexidade da ocupação territorial do país, enquanto um processo
marcado por conflitos bastante antigos, reatualizados em cada momento em que é necessária a
definição mais precisa do limite territorial ocupado. Em todos estes embates, a carta de sesmaria dos
beneditinos é apresentada para confirmar a legalidade de sua ocupação. Como ponto inaugural da
ocupação, ela tem a força de um mito, a “verdade” da ocupação expressa em um documento já
bastante antigo. O que se modifica é o entendimento acerca da extensão territorial, ora reconhecendo
um determinado limite, ora imprimindo uma nova versão espacial.

Importante também são os embates reatualizados pelos esforços de José Gomes da Cunha
Vieira em transmitir o seu patrimônio numa área de conflito. Em 1822, o pai de Feliciana luta num
processo contra o Mosteiro, em 29 José Gomes realiza uma partilha amigável para legar a sua filha e
ao seu genro, a Fazenda da Posse. Em 1845, quando do falecimento de seu marido, Feliciana herda a
fazenda da Posse e mais uma vez precisa provar ser dona daquelas terras. Em 1851, quando o seu pai
perde na Corte de Apelação e será realizado seu despejo, Feliciana precisa mais uma vez provar que
parte das terras havia se tornado suas, por lhe ter sido legada em vida, pela partilha amigável que seu

5 Idem.
11

pai fizera a mais de vinte anos. Em todos os momentos, José Gomes fundamenta sua história tendo
por base o marco inaugural de ocupação daquelas terras: a carta de sesmaria concedida ao
Drummond. Assim, ao menos em tese, tanto ele quanto os beneditinos possuem um mesmo corpus
documental que legitima a sua ocupação.

De qualquer forma, são os beneditinos os vitoriosos na longa luta que travaram contra José
Gomes da Cunha Vieira, rico fazendeiro da região de Maricá, juiz de paz e vereador e em algumas
legislaturas e conhecido com um dos maiores proprietários da região ao longo dos oitocentos. José
Gomes perde a demanda, ainda que consiga transmitir – ao menos por um período – parte do seu
patrimônio para sua filha Feliciana. Mas para o que aqui importa foi a carta de sesmaria dos
beneditinos que conseguiu impor-se como a “verdade”, em detrimento de todos os esforços de José
Gomes de mostrar que ele também era herdeiro de uma concessão régia. E como “verdade”, a carta
chegou aos nossos dias e é sempre lembrada quando se reconstrói a história da ocupação do
município de Maricá.

As disputas entre os beneditinos não são apenas importantes para entendermos os embates
pela posse da terra nos oitocentos. Elas também são importantes por nos revelar a construção do
mito da carta de sesmaria, como fundamento da primazia da primeira ocupação.

Transmissão e propriedade territorial: a historicidade dos conflitos e o mito da carta


Em primeiro lugar, é preciso estar ciente de que os procedimentos relativos à transmissão da
herança nos oitocentos podem revelar disputas latentes pelo direito a terra, transformando muitas
vezes o quinhão herdado, num “legado instável”. Neste sentido, é mister termos claro que os estudos
sobre transmissão de herança no país devem levar em conta a historicidade de conflitos. Reconhecer
a antiguidade dos embates implica escapar de uma determinada visão de que os conflitos de terra são
fenômenos circunscritos aos séculos XX e o atual.(Motta, 2001B) Ao contrário, quando nos
deparamos com os casos envolvendo duas cadeias sucessórias atualizadas/reatualizadas ao “sabor”
dos interesses de cada litigante, podemos vislumbrar uma sociedade escravista, onde a terra já era
alvo de reiteradas disputas e interpretações conflitantes sobre a história da ocupação do lugar.

Em segundo, para que tal pressuposto tenha alguma consistência é preciso entender a
estrutura fundiária brasileira, não como o resultado de um processo linear e a-histórico de ocupação
territorial. E ainda, apreender e refletir sobre os significados das leis que procuraram limitar o poder
dos terratenentes e assegurar o direito à posse, no esforço de uma definição sobre o direito a terra.
12

Ao mesmo tempo, em que se faz necessário se ter em conta que todo o emaranhado de leis, decretos
e alvarás vinham à luz num país que não havia promulgado o seu Código, a despeito dos esforços de
sua consecução pelo principal jurisconsulto do século XIX: Teixeira de Freitas.

Como desdobramento, é indispensável também compreendermos os significados dos


conflitos de outrora em sua relação com as disputas mais atuais. Em outras palavras: reconhecer a
historicidade dos conflitos implica no mais das vezes relativizar os documentos apresentados nos
dias mais recentes, como provas cabais de uma ocupação legítima. Quando se está diante de uma
região historicamente palco de conflitos, é preciso ter ciência de que documentos antigos
apresentados são “produção de verdades” que não resistem ao olhar mais atento do historiador. Mais
uma vez, o caso da fazenda São Bento é emblemático6.

Em tese de doutorado defendida em 1995, o antropólogo Marco Antonio da Silva Mello


realizou uma instigante etnografia sobre o conflito envolvendo os pescadores de Maricá e uma
imobiliária. (Mello, 1995) Segundo informações colhidas por Mello, os conflitos envolvendo os
pescadores e as imobiliárias já teriam começado nos anos de 1950, mas foi somente vinte anos
depois que os pescadores resolveram fazer valer o que acreditavam ser o seu direito: a posse das
terras ali localizadas.

Em maio de 1979, Walmir Luiz da Costa e outros pescadores da região de Maricá e


residentes na Colônia de Pesca Artesanal da Praia de Zacarias, decidiram abrir uma ação de Interdito
Proibitório contra a SEAI, o Serviço de Exploração Agrícola e Industrial. Segundo as informações
dos autores, eles eram legítimos possuidores do lote de terras situados na Praia de Zacarias, alguns
por sucessão há mais de cinqüenta anos. A companhia SEAI tinha outra versão dos fatos. Entre
outras alegações, a mais importante era a defesa de que a SEAI era proprietária da área em disputa,
originária de uma concessão de sesmarias aos beneditinos.

A cadeia sucessória apresentada pelos advogados da SEAI, quando do interdito apresentado


pelos pescadores, parecia confirmar a legalidade da propriedade da companhia em detrimento,
portanto, dos argumentos pautados no direito à posse dos pescadores que ali habitavam. Segundo as
informações da própria SEAI ela era herdeira de um patrimônio oriundo da sesmaria do Mosteiro de
São Bento. O Campo jurídico é, segundo Bourdieu, “o lugar de concorrência pelo monopólio de

6 - O termo “produção de verdades” é utilizado pelo Antropólogo Kant de Lima em seus estudos sobre o

Direito Criminal no país. Tomo de empresto o termo, pois penso que ele nos ajuda a refletir acerca da multiplicidade de
interpretações sobre um conflito.
13

dizer o direito (...) de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpos de textos
que consagram a visão legítima, justa, do mundo social” (Bourdieu, 1989) Neste sentido, é bastante
significativo que em terras brasileiras, a carta de sesmaria tenha se tornado a inscrição de uma
“verdade”, trazendo para os nossos dias a mesma expressão de poder que simbolizava à época que
foi instituído e consolidado o sistema jurídico das sesmarias.

Ao fundamentar sua propriedade num documento tão antigo, os proprietários da imobiliária


procuraram assegurar seu domínio fundamentando-o pela antiguidade da ocupação e reconstituindo
a cadeia ascendente, sem nada dizer acerca da legitimidade da ocupação de tempos tão recuados. O
antigo se confundia com o legal e o velho. E assim, a carta de sesmaria tornava-se suficiente para
construir o ponto zero da história do lugar. Em suma, a propriedade era legal por que era
fundamentada numa ocupação, ao mesmo tempo antiga e documentada. Nas explanações dos
advogados da imobiliária, o documento era urdido como a expressão de uma verdade absoluta.
Assim sendo, tanto nos oitocentos como em 1979, a carta de sesmaria dos beneditinos era a
expressão de um mito inaugural de ocupação.

À Guisa de conclusão
As discussões sobre o direito a terra no Brasil estão cada vez mais presentes nos embates
entre concepções diversas acerca da propriedade em suas múltiplas dimensões. Juristas e advogados
têm se debruçado em refletir sobre a legislação brasileira, com vista a preencher uma das principais
lacunas do país: a democratização do acesso a terra. Como afirma, Sérculo da Cunha: “É sabido
como a desigualdade real das partes reflete-se na decisão final do processo. Mas em nenhum tipo de
processo essa influência é tão flagrante quanto nas ações possessórias” (Cunha, 1993: 128).

Os importantes trabalhos oriundos da sociologia rural têm contribuído para análise dos
problemas relativos à questão agrária no Brasil. As obras de José de Souza Martins e Leonilde
Sérvolo de Medeiros, por exemplo, têm revelado aspectos fundamentais para a análise da
concentração fundiária no Brasil e seus complexos desdobramentos7. No entanto, ainda são raros os

7 - Entre as obras de Martins, podemos citar: Martins, José de Souza.- O Cativeiro da Terra. São Paulo, Ciências

Humanas, 1986; A militarização da questão agrária no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1984; Os camponeses e a política no Brasil.
Petrópolis, Vozes, 1983; Caminhada no chão da noite. São Paulo, Hucitec, 1989. Dos trabalhos de Leonilde Medeiros,
podemos citar: Medeiros, Leonilde Sérvolo. História dos Movimentos Sociais no campo. Rio de Janeiro, FASE, 1989. Medeiros
e outros. Assentamentos rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo, Editora da UNESP, 1994.
14

estudos que enfocam os conflitos de terra nos oitocentos e procuram refletir acerca de concepções
de justiça e leis em períodos anteriores ao século XX8.

Os historiadores são chamados a participar do debate. As inúmeras contribuições sobre o


passado escravista, por exemplo, podem vir a ajudar na elucidação sobre as questões que envolvem o
direito à terra dos remanescentes de quilombo9. Os problemas decorrentes da limitação das terras
indígenas também impõem a presença de historiadores, capazes de desnudar as fontes, encontrando
os fios históricos que legitimam a delimitação territorial alegada pela comunidade indígena10. Ao
mesmo tempo, os problemas decorrentes do processo sucessório (num país onde a cadeia sucessória
de grandes fazendeiros é, muitas vezes, pura “invenção”) podem ser elucidados com o auxílio da
pesquisa em história11. Ademais, nunca é demais lembrar que as discussões que norteiam a reforma
agrária no Brasil atingem diretamente o métier do historiador, ao menos daqueles que afirmar e
reafirmam a legitimidade do engajamento político (Hobsbawm, 1999).

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Cunha Vieira; Réu: Mosteiro de São Bento. Supremo Tribunal de Justiça. Translado dos autos de
execução que promove o Dom Abade do Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da
Cunha Vieira e dona Ana Joaquina Cândida CÓDIGO DO FUNDO: BU. SEÇÃO DA GUARDA:

8 - Para uma reflexão sobre o tema, vide: Motta, Márcia. “Movimentos rurais nos oitocentos: uma história em

(re)construção” in: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro, UFRRJ/ CPDA, número 16, abril de 2001. Um
importante estudo sobre concentração fundiária e crises de subsistência nos séculos XVII/XVIII é a tese de Silva,
Francisco Carlos Teixeira de. A Morfologia da Escassez Crises de subsistência e política econômica no Brasil Colônia. Salvador e Rio de
Janeiro, 1680-1790 Niterói, UFF, Tese de Doutorado em História, 1990.
9- Para tanto, vide Arruti, José Mauricio . “Por uma história à contraluz” as sombras historiográficas, as
paisagens etnográficas e o mocambo” in; Palmares em Revista, Brasília, Fundação Palmares, 1996, pp. 71-96.
10 - O trabalho de discriminação das terras indígenas tem sido feito preferencialmente através dos estudos dos

antropólogos. Um bom exemplo deste estudo é Maldi, Denise (org) . Direitos Indígenas e Antropologia: Laudos Periciais em
Mato Grosso. Cuiabá, Editora Universitária da UFMT, 1994
- Sobre a historicidade do fenômeno da grilagem, vide: Motta, Márcia “A grilagem como loegado”in: Motta,
11

Márcia & Pineiro, Theo Lobarinhas (org.) Voluntariado e Universo Rural. Rio de Janeiro, Vicio de Leitura, 2001,pp.75-99.
15

SDJ.CX 277, N 45, ANO 1866. Translado dos autos de execução que promove o Dom Abade do
Mosteiro de São Bento contra o alferes José Gomes da Cunha Vieira e dona Ana Joaquina Cândida,
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INHERITANCES LUSITANAS: LAW AND SLAVERY IN PORTUGUESE AMERICA

ADRIANA PEREIRA CAMPOS**

Resumo
Neste artigo, apresentamos a tradição jurídica de legislar sobre
escravos na América portuguesa. Parte-se do pressuposto de que
houve diferenças fundamentais entre o tratamento legal dado aos
escravos nas Américas de acordo com a potência colonizadora de cada
parte. A análise relaciona a formação histórica do Estado lusitano à
constituição do Direito sobre escravidão. A trajetória ibérica na
modernidade européia é apontada como o principal elemento
constitutivo da tradição jurisdicionalista que guiou os portugueses na
formatação do edifício jurídico de manutenção dos laços servis em sua
colônia americana.

Abstract
In this paper we present the juridical tradition of legislating on slaves
in Portuguese America. It is assumed the existence of fundamental
differences between the legal treatment given to slaves in the Americas
according to the prevailing colonial power in each region. Our analysis
relates the constitution of the Portuguese Law on slavery to the
historical foundation of the Lusitanian State. The course of Iberia
during the European Modernity is singled out as the main force
behind the growth of the juridical tradition that guided the Portuguese
in their designing of the legal apparatus that regulated servitude in
their American colony.

Palavras-chave
Direito – escravidão – Portugal - colônia americana.

Keywords
Law – slavery – Portugal - american colony

I. Introdução

* Artigo recebido em 15.07.2003 e aprovado em 18.03.2004.


** Doutora em História Social pelo PPGHIS – UFRJ. Professora de História Moderna e História do
Direito do Departamento de História da Universidade Federal do Espírito Santo.
2

Seguindo a recomendação de Richard Morse (2000: 21), iniciaremos nosso trajeto com
uma rápida passagem pela História intelectual da Ibéria, em especial a de Portugal. A temática
proposta encontra alguma luz na clássica diferenciação entre a escravidão desenvolvida nos
Estados Unidos da América e aquela praticada em solo nacional. Joaquim Nabuco (1999a:
173), ainda no século XIX, definia a especificidade da escravidão brasileira nos seguintes
termos:

“Esse ente [o escravo], assim equiparado, quanto à proteção social, a


qualquer outra coisa de domínio particular, é, no dia seguinte à sua
alforria, um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos
políticos, e o mesmo grau de elegibilidade”.

Notou ele, também, o sentido fáustico da liberdade de um ex-escravo que, apesar de seu
passado, poderia até mesmo “comprar escravos, talvez, quem sabe? – algum filho do seu
antigo senhor” (1999a: 173). Nas regiões escravistas dos Estados Unidos, essa hipótese seria
considerada uma aberração, pois a distinção entre homens livres e escravos estava firmemente
ancorada no preconceito racial. Um estudioso da escravidão dos Estados Unidos, Finkelman
(1997: 7), informa que a Alta Corte da Carolina do Sul, em 1832, chegou mesmo a estipular
que, “por lei, todo negro é presumido de ser um escravo”. Nesse sentido, Fredrickson (1988:
24), outro historiador norte-americano, sustenta que preconceito racial não foi apenas um
aspecto incidental da escravidão nos Estados do sul, senão que, verdadeiramente, um elemento
fundamental. Na Carolina do Sul, por exemplo, combinou-se uma concepção racial do negro
como um ser naturalmente vocacionado para a escravidão com uma teoria de sociedade na
qual a presença de um largo número de negros escravos resultaria em algo positivo.

Seguindo outro caminho na diferenciação entre as duas formas modernas de


escravidão, Carvalho (1998) chama atenção sobre a divisão entre as regiões norte e sul nos
Estados Unidos, que intensificava a polarização entre as posições contrárias e favoráveis à
escravidão naquele País, enquanto, no Brasil, essa separação não se reproduziu de maneira tão
marcante. Ainda, prossegue ele, o norte dos Estados Unidos converteu-se num imenso
“quilombo” para onde fugiam milhares de escravos do sul.1 O Brasil, diferentemente, tornou-

1 “O movimento chamado de Underground Railroad (Ferrovia Subterrânea) organizava sistematicamente a


fuga dos escravos. Calcula-se que umas 3.200 pessoas, brancas e negras, se envolveram nesse movimento. Calcula-
3

se uma grande “senzala” de onde o cativo não podia escapar, nem mesmo o quilombola.
Paradoxalmente, a “senzala” brasileira não produziu nenhuma teoria explicitamente racista a
respeito da população negra. Nos Estados Unidos, entretanto, com diversas unidades
federadas livres da escravidão enquanto outras nela se sustentavam, os debates sobre o tema
fizeram necessária uma justificativa teórica do cativeiro, tendo-se produzido formulações tão
estranhas como a de um certo George Fitzhugh, obrigado a defender a instituição como a
“relação própria de todo trabalho com o capital” (Genovese, 1979: 104).

A ausência de teses claramente racistas no Brasil não se deveu a condenações explícitas


à escravidão, uma vez que o País jamais as produziu, ou pelo menos, não experimentou
nenhuma censura séria e fundamentada à escravidão como forma desumana de sujeição. Ao
contrário, é possível encontrar explicações, até mesmo religiosas, para a escravidão, embora
não chegassem a ser tão inusitadas como as teorias de Fitzhugh. 2 Carvalho (1999: 47) oferece
ainda uma sugestiva interpretação sobre o tema, levantando duas questões importantes para a
falta de referências teóricas acerca da escravidão. Primeiramente, diz ele, o catolicismo ibérico
foi uma cultura religiosa incapaz de opor-se abertamente à escravidão, enquanto algumas seitas
reformistas, tais como a dos Quackers, condenaram-na de forma explícita, como um pecado,
por ser o cativo, antes de tudo, um homem e, portanto, irmão. Em segundo lugar, o
abolicionismo norte-americano baseava-se na concepção de liberdade como Direito natural. Já
no Brasil, advogava-se o fim do cativeiro com base em uma “razão nacional”, pois, assim,
livrar-se-ia a nação de uma instituição causadora de degeneração e de heterogeneidade. 3

As tradições ibéricas e anglo-saxônicas trazidas para a América por ocasião da


colonização compõem uma importante matriz do pensamento jurídico sobre a questão dos
cativos e dos homens livres. Ressaltamos também que a organização jurídica na Ibero-América
realizou-se sob uma influência mais estruturada, devido à opção das metrópoles em

se também que, entre 1810 e 1850, uns cem mil escravos foram contrabandeados para o Norte através da
Underground Railroad “ (Carvalho, 1998: p. 70).
2 Conferir ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado: empenhado, sustentado, corrigido, instruído e
libertado. Discurso teológico-jurídico sobre a libertação dos escravos no Brasil de 1758. Petrópolis: Vozes, 1992,
CARVALHO (1998: p. 47): “Assim, o cristianismo em sua versão luso-brasileira, vale dizer, na versão do
catolicismo ibérico, não foi capaz de gerar oposição clara à escravidão como na versão reformada. Ou os autores
não encontravam claras evidências na Bíblia e na teologia para justificar a escravidão, caso especial de D. José
[Joaquim Azeredo Coutinho], ou as indicações sobre a liberdade civil que deduziam não eram suficientemente
fortes para levá-los a uma postura evangélica ou profética contra a escravidão. Acabam apenas por aconselhar aos
senhores o tratamento ‘cristão’ dos escravos, sancionando na prática o escravismo”.
4

administrar suas colônias a partir do transplante direto de suas instituições para as possessões
de além-mar, inclusive no tocante à escravidão. Enquanto isso, a tradição anglo-saxônica
precisou adaptar-se para dar conta das especificidades das novas colônias americanas.4

Nos Estados Unidos, os colonos elaboraram um corpo de precedentes e regras legais


inovador, enquanto nas colônias ibéricas essa tarefa tornou-se dispensável diante da
importação da cultura jurídica das metrópoles. De acordo com José Andrés-Gallego (2000: p.
33), “a compreensão do que foi o Direito e a prática jurídica em cada momento depende de
um universo mental que temos de refazer porque, provavelmente, não é o nosso”. É verdade
que o Direito Português sofreu um processo de reelaboração quando transplantado para a
Colônia, sobretudo após o processo de Independência. Para apreciarmos como isso ocorreu,
precisamos recorrer à análise de outros elementos constituintes da realidade histórica da época.
Nesse esforço, pretendemos conhecer o conjunto de valores, crenças e princípios que
acompanharam o ordenamento jurídico vindo de Portugal. Adotamos assim a perspectiva de
que a criação de um paradigma, em cada época, é fruto de um processo ao mesmo tempo
cumulativo e seletivo.

Tratando-se do desenvolvimento da cultura jurídica romana na Europa durante o


período moderno, precisamos observar a multiplicidade de experiências religiosas vividas
naquele continente. Reboiras (1998)5 observa, com propriedade, que a inclusão da cristandade
de outras áreas nos estudos sobre a cultura européia, além daquelas das regiões centrais,
permite uma visão mais rica do processo histórico do Ocidente. Com referência à Ibéria, mais
especificamente, sua conquista pelos muçulmanos fez por desviá-la dos caminhos seguidos
pela França, Alemanha e Itália durante a época medieval (Lévi-Provençal, 1980: p. 92). Até
algum tempo, a convivência entre a cristandade ibérica e outras religiões, como judeus e
muçulmanos, foi interpretada de forma superficial. Quase sempre as referências eram

3 Conferir em Andrada e Silva (1988), p. , Carvalho (1998: p. 35-64) e SANTOS (1999: p. 288-295).
4 Conferir em Watson (1989: p. 62-82), Morris, (1996: p 37-57) e Feherenbacher, (1981: p.7-40).
5 “Essa necessidade de querer ver a cristandade ocidental como algo compacto e perfeitamente
delimitado já de per si reduz o horizonte de nossa visão da ciência e cultura medievais e impede-nos de ver a
Europa medieval como algo mais complexo e diversificado. No marco de uma visão franco-germânica da cultura
medieval, a área geográfica do Mediterrâneo ocidental desempenha um papel secundário. Nessa visão centro-
européia que pretende ver a cristandade como um todo harmônico, a periferia mediterrânea seria algo que não
atinge o miolo e a essência daquela pretensa unidade de religião e destino” (Reboiras, 1998).
5

posteriores ao propósito de reconquista que animou as realezas ibéricas. Antes disso, porém, a
península teve a chance de experimentar uma convivência religiosa muito diferente da de
intolerância prevalecente nos tempos inquisitoriais. Como se sabe, a partir de 638, os árabes
avançaram sobre a Pérsia, a Palestina e a Síria. Em 642, dominaram o Egito e, antes de 732,
apoderaram-se de parte da Ásia Central, da África Setentrional e da Península Ibérica. Somente
os montes das Astúrias, a Vascônia e alguns vales dos Pirineus, na região sul-européia, não se
deixaram conquistar pelos guerreiros muçulmanos. Esses avanços territoriais, contudo,
resultaram numa ameaça à centralização do poder no Islã. A partir de 750, as forças centrífugas
intensificam-se e os omíadas fundaram, na Ibéria, o emirado de Córdoba, transformando-o
numa das três capitais da grande nação muçulmana.

Embora se tenha verificado a imposição da religião e da língua árabe por meio do


Império Islâmico, as minorias puderam preservar os costumes e crenças próprios. Em
nenhuma outra parte do mundo árabe as relações entre o Islã e o Cristianismo foram tão
necessárias quanto na Península Ibérica. Ocorreu, naturalmente, a islamização de grande parte
da população subjugada. A assimilação, algumas vezes, era parcial, e a religião cristã persistia,
não obstante, como culto preferencial. Enfim, na Península Ibérica floresceu uma convivência
entre os três grupos religiosos mais expressivos do mundo mediterrâneo: cristãos, muçulmanos
e judeus. Lévi-Provençal (1980: p. 95) informa, inclusive, que a diferença de credo não
constituía obstáculo para as alianças matrimoniais e políticas, cujo exemplo significativo foi o
enlace de Egilona, a viúva do rei visigodo Rodrigo, com ‘Abd al-‘Aziz, filho do general
muçulmano Musa Ibn Nusair. Podemos afirmar que a Ibéria foi, por muitos séculos, uma
fronteira na cristandade ocidental, ao manter-se em contato permanente com outras forças
religiosas.

Por necessidades históricas e sociais, portanto, várias formas de convivência foram


experimentadas na Ibéria, tendo resultado disso frutos importantes, tais como a experiência
individual dos cristãos com uma sociedade “plurireligiosa”. Daí que, enquanto o “infiel” se
apresentava como uma figura abstrata aos cristãos da Europa Central, para os ibéricos ele se
constituía numa experiência concreta. Na verdade, quando se realizou o processo de
Reconquista, os reinos cristãos permitiram, por razões de sobrevivência, a convivência pacífica
de judeus e moçárabes com os reinóis, fiéis ao cristianismo. A tolerância ibérica pautava-se pela
necessidade de viabilizar a convivência simultânea das diferentes etnias, com suas respectivas
6

línguas, culturas e religiões.6 Nesse ambiente, assistiu-se então ao desenvolvimento de uma


cristandade distinta daquela vigente no restante da Europa.

Para o que nos interessa aqui, importa salientar a especificidade cultural da sociedade
ibérica, cuja formação transcorreu ao longo da Baixa Idade Média. Evidentemente, durante o
domínio islâmico, os muçulmanos e sua camada dirigente exerceram papel decisivo na
evolução cultural da península. Com a Reconquista, a cristandade entraria em contato com a
rica tradição muçulmana, que havia conservado em parte as culturas dos povos absorvidos por
seu Império.7 Toda a herança helenística, assim como as contribuições da Pérsia, do Egito e da
Índia, traduzidas e enriquecidas pelos árabes, puderam ser estudadas pelos cristãos do
Ocidente graças à sua convivência com judeus e moçárabes. Como descreve Haskins (apud
Nunes, 2001), o século doze testemunharia

“a plenitude da arte românica, os albores do gótico, a difusão das


literaturas vulgares, a redescoberta dos clássicos latinos, do Direito
romano, o estudo da ciência grega com seus apêndices árabes e de boa
parte da filosofia grega”.8

6 “Esta tolerância não comportou mistura ou assimilação das religiões. Os hierarcas das três religiões
lutaram decidia e eficazmente pela manutenção das diferenças. A Igreja nem se preocupou em fundamentar
teoricamente a situação de fato: por um lado tirava todas as vantagens que aquela circunstância singular lhe
oferecia e por outro tratava de criar as condições para sua eliminação. Na formulação de Américo Castro a
tolerante estrutura social medieval na Espanha foi o ‘resultado de um modo de viver e não de uma teologia’. A
Igreja e os representantes dos outros grupos religiosos eram teoricamente contra aquela ordem e não faziam nada
para conservá-la. A Igreja oficial, em simbiose com o poder civil, aceitava esta situação sem canonizá-la”
(Reboiras: 1998).
7 “Aquilo que os Árabes trouxeram aos sábios cristãos foi, principalmente, a bem dizer, a ciência grega,
entesourada nas bibliotecas orientais e reposta em circulação pelos sábios muçulmanos, que a levaram aos confins
do Islão ocidental, a Espanha, onde os clérigos cristãos foram aspirá-la com avidez à medida que se processava a
Reconquista” (Le Goff, 1983: p. 185).
8 “Diante do alto nível cultural dos judeus, constata-se com clareza um alto déficit cultural nas massas
cristãs. A cristandade espanhola era uma sociedade de fronteira, uma sociedade que tinha encontrado sua
identidade na luta contra o infiel. A ideologia da classe dirigente estava ditada pelas armas e não pelas letras. O rol
de virtudes do cristão espanhol correspondia a uma mentalidade militar e a um ideário castrense sem concessões
para manifestações de caráter cultural ou humanístico. Ao final da primeira grande expansão dos reinos cristãos
no fim do século XIII, a cristandade espanhola fez enormes esforços para recuperar a tradição cultural
muçulmana e afirmar sua hegemonia política no campo das letras. Com o apoio de intelectuais judeus procedeu-
se, principalmente sob Alfonso X, o Sábio, a uma tradução e assimilação do acervo cultural árabe. Esta ação não
só proporcionou um enorme impulso para as estruturas jurídicas dos reinos hispânicos, mas também para a
literatura e as artes plásticas. A atividade cultural dos cristãos espanhóis, sobretudo na tradução da ciência árabe,
influiu em toda a Europa e foi, sem dúvida alguma, a maior contribuição da Espanha para a cultura européia”
(Reboiras: 1998).
7

A cristandade ibérica, inseminada pelas culturas muçulmana e judaica, foi distanciando-


se assim do horizonte ontológico do restante da Europa, submetido a uma hegemonia
exclusivamente clerical, oriunda dos ensinamentos teológicos das universidades de Paris e
Bolonha.9 O estranhamento entre esses dois ramos da fé cristã revelou-se inevitável. Reborais
(1998) narra que os juristas da Cúria Romana, a partir de um certo momento, começaram a
desconfiar dos próprios fundamentos da devoção ibérica.10 A reação clerical seria comandada
pelos dominicanos e franciscanos. Obedientes a Roma e isentos da jurisdição territorial dos
bispos11, a formação universitária desses frades era patrocinada pela Santa Sé. Seu único
objetivo reduzia-se a erradicar da península a influência cultural dos infiéis. Para os ibéricos,
contudo, afigurava-se incompreensível serem tratados como cristãos distanciados da fé,
justamente eles, que haviam lutado na vanguarda da guerra santa contra os infiéis. Diante da
ameaça de Roma, passaram a empenhar-se na legitimação de sua “estirpe”, buscando
comprovar a pureza de sua linhagem cristã. Os estatutos de limpeza de sangue foram a
expressão mais extremada desse esforço, obrigando todo aspirante a fidalgo a omitir qualquer
antepassado que oferecesse perigo à sua ascensão social. A identificação com a Europa

9 As universidades eram corporações com forte apoio clerical. Desde o princípio, os clérigos das
universidades se colocam contra o controle episcopal. Entre 1229-1231 a Universidade de Paris foi tirada da
jurisdição do Bispo. Em Oxford, o chanceler, antes indicado pelo bispo, será absorvido pela corporação e eleito
por ela, tornando-se seu membro. Bolonha, um pouco mais tardiamente, em 1219, o arcebispo designado como
chanceler passou a exercer funções mais simbólicas, como presidir formaturas e absolver as ofensas feitas a seus
membros (Le Goff, 1988: p. 60).
10 “A famosa fundação de um colégio para estudantes espanhóis em Bolonha, promovida pelo influente
cardeal Gil de Albornoz, tinha como finalidade primária a formação de juristas segundo o espírito do direito
romano cristão tal como era concebido e praticado nos meios intelectuais da hierarquia eclesiástica. O que se
pretendia era deter o caminho especial e as estruturas originais da sociedade hispana cujo direito estava
influenciado pelas concepções do direito judeu e islâmico, que imperavam ainda em numerosas estruturas vitais da
sociedade hispana. Também as compilações de Raimundo de Peñafort, que tanto êxito tiveram na formação do
Direito eclesiástico, contribuíram para estabelecer as bases jurídicas da sociedade cristã e para criar um corpo
jurídico único e válido para toda a cristandade sob a clara e decidida superioridade do bispo de Roma” (Reborais:
1998).
11 “No seguir ao ano Mil, duas figuras parecem conduzir a Cristandade: o papa e o imperador. O seu
conflito vai ocupar o palco de ilusões atrás do qual vão passar-se as coisas mais importantes” (Le Goff, v 1, 1983:
p. 131). Um dos episódios mais marcantes dessa luta foi a reforma gregoriana, que representou o enorme esforço
da Igreja por sua autonomia e de seus sacerdotes. Esse longo e desgastante conflito encontrou seu zênite com a
Questão das Investiduras, que dizia respeito à autoridade responsável pelo poder de nomeação dos Bispos. Além
disso, a Igreja foi atingida pelo duro golpe desferido pelo fortalecimento do poder das monarquias medievais e o
Papado enfraqueceu ao ponto de ver sua unidade cindida entre Roma e Avignon, cada um com seu próprio
pontífice. As monarquias buscaram potencializar esse enfraquecimento em seus reinos, atuando com mais
determinação sobre a nomeação dos bispos e “nacionalizando” as igrejas em seus territórios. O clero regular,
todavia, respondia diretamente a Roma. Desde o século X, com a fundação do mosteiro de Cluny, a intenção
expressa era manter os monges longe da influência laica. Respondendo diretamente à Santa Sé, os monges
ficavam isentos da jurisdição episcopal sob a influência dos reis (Franco Júnior, 1986: p. 107-124).
8

Setentrional significava, agora, dar as costas à tolerância religiosa, fechando totalmente as


portas às crenças muçulmana e judaica.

A retomada radical dos valores cristãos perante os infiéis acabaria por desviar ainda
mais os povos ibéricos do destino político-cultural do restante da Europa, pois, enquanto a
Ibéria se identificava como parte da comunidade cristã universal, os demais povos cristãos do
continente fechavam-se em torno de seus problemas particulares, adotando programas
estritamente nacionais. No alvorecer da Idade Moderna, os Estados Ibéricos permaneciam
apegados à defesa de valores cristãos já superados nos demais Estados nacionais da Europa
Central. Assim, mais uma vez a Ibéria percorria um trajeto distinto em relação ao
desenvolvimento geral do Ocidente.

II. A importância do Direito na Ibéria


A ascensão do Direito no plano político europeu durante a época moderna, em
especial, na Ibéria, desencadeou uma intensa disputa entre a Igreja e os monarcas. Antes disso,
porém, ao longo da Idade Média, a noção de Justiça sofrera alterações substanciais em face do
processo de mudança de legitimação das monarquias. O poder dos reis, até então,
fundamentava-se em ritos “cristológicos”. Nesse sentido, a sacralidade das realezas envolvia
um conjunto de crenças e de sentimentos. De acordo com Bloch (1993: p. 68), os povos
germânicos já concebiam os reis como “seres divinos ou, pelo menos, originados dos deuses”.
No entanto, ao conquistarem os territórios romanos cristianizados, os reis bárbaros perderam
seu caráter de divindade, restando apenas o “paganismo nacional”. O ressurgimento da antiga
prática dar-se-ia somente no Império Carolíngio, com a retomada de um hábito romano, quase
esquecido, como o novo padrão de sacralidade: a unção régia. Na verdade, a volta do rito
apenas confirmava a crença popular no poder sagrado dos reis, fruto da incorporação de uma
longa tradição germânica. A sagração eclesiástica dos monarcas europeus foi, assim, iniciada
ainda no Reino Visigótico12, na Península Ibérica do século VII. Um pouco mais tarde, os
reinos Franco e Normando adotaram o mesmo procedimento, difundindo-o pela Europa. Para
a compreensão desse processo de sacralização das realezas, Kantarowicz (!998: p.72) elaborou
a clássica tese dos dois corpos do rei: “humano por natureza e divino pela graça”. Em seus

12 Conferir em Bloch (1993: p. 293-4) os primórdios da unção régia e da sagração no reino visigótico da
Espanha.
9

estudos, identificou ele uma tipologia “cristológica” abrangendo dois aspectos fundamentais:
“um ontológico, e o outro, funcional”. O primeiro referia-se à identificação do Rei com o
Cristo, fosse como “Imagem”, fosse como mediador entre Deus e os homens. O segundo
aspecto ligava-se às funções jurídicas e administrativas da realeza, referindo-se àquilo que
Kantarowicz denominou de “Fazer”. Nessa etapa, portanto, a figura do Rei tinha associados a
si os domínios sacro e jurídico.

A concepção “cristológica” entraria em crise a partir do século XI, quando irrompeu o


movimento eclesiástico de afirmação da superioridade do poder espiritual sobre o secular. O
embate mais sério entre essas duas esferas de poder ficaria conhecido como a “Questão das
Investiduras”, envolvendo a nomeação de bispos e abades por príncipes ou imperadores. As
disputas entre os reis e o Papado terminariam por alterar a idéia da realeza centrada em Cristo.
O pensamento filosófico, sobretudo com Agostinho, encontrou no Direito Romano um
vocabulário apropriado para as dissensões em curso. O antigo léxico jurídico identificava a
figura do Imperador com Deus, intitulando-o deus in terris, deus terrenus ou deus praenses.13 Os
juristas consideravam, com base nessas fontes, que a representação de Deus seria pertinente
somente ao Papa, como seu mais alto representante na hierarquia eclesiástica cristã. Com base
nessa premissa, a Igreja, por intermédio da reforma gregoriana, laborou para retirar dos
monarcas medievais importantes poderes temporais, como as nomeações de bispos e o
recolhimento de dízimos. A tensão permanente entre a ordem política e a religiosa, por um
lado, “desmantelava o poder secular da autoridade espiritual, da competência eclesiástica e da
filiação litúrgica e, por outro, imperializava o poder espiritual” (Kantarowicz, 1998: p.74).

O poder real que emerge desse período com um novo perfil passou de uma noção mais
“cristológica” e litúrgica para uma situação fundada num conceito marcadamente teocrático-
jurídico. O argumento de autoridade dos reis não era mais extraído da sagração eclesiástica,
estando apoiado doravante nas noções de Direito e de Justiça. Entretanto, para isso, a ciência
jurídica precisou vencer sua condição de quase inexistência na Alta Idade Média, durante a qual
a legislação escrita possuía uma posição bastante secundária. Em seu novo estágio, mais
sofisticado, encontrou sua base no Direito que prosperara na Antigüidade. Esse
desenvolvimento esteve vinculado ao movimento intelectual de mergulho na cultura antiga,
associado ao Renascimento comercial e urbano do século XII. O acesso ao universo clássico

13 Conferir em Kantarowicz (1998: p. 74).


10

realizou-se por meio do resgate de documentos como, o Organon aristotélico ou o Digesto, livro
jurídico justiniano. O vivo interesse pelos textos antigos relacionava-se à idéia de Roma como
Império universal: “a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e
intemporal da sua própria vida” (Wieacker, 1967: p. 42). Seguindo essa visão na interpretação
dos escritos da Antiguidade, o Corpus Iuris Civilis14 foi analisado como um instrumento de
revelação dos desígnios de Deus no plano do Direito. A convicção da universalidade do
Império romano emprestava inteligibilidade à dedução do “corpus” como um documento não
somente dos romanos, mas também de toda a comunidade jurídica humana.

O processo geral de passagem da realeza calcada na cristologia para uma concepção


teocêntrica do rei, estribada no Direito Romano, assumiu um caminho particular na Península
Ibérica. Não resultou nem na separação da ordem política da religião, como no caso da França,
nem na Reforma, como se realizou em regiões da Europa luterana. Em plena Idade Média, os
reis ibéricos puderam conquistar uma posição central na política, graças à união da idéia de
monarquia como investidura do sacerdotium vigente na Europa medieval, com a longa tradição
visigótica de emprego do Direito Romano. O fortalecimento dos reis ibéricos, portanto,
consolidou-se justamente num processo de recepção do antigo Direito dos romanos.

III. A sociedade corporativa ibérica e a unidade do Direito


Na Baixa Idade Média, a Europa encontrava-se unificada somente pela identidade
cristã (Delumeau, 1984: p. 27). As sociedades ibéricas do período pré-moderno caracterizavam-
se por seu permanente desejo de conquistar novos espaços, tanto internamente, por meio da
Reconquista, quanto externamente, via a aventura ultramarina. Nesse processo, a Europa
haveria de vivenciar constantes deslocamentos de suas fronteiras geográficas. Devido a isso,
converteu-se o territorialismo no elemento primordial de estabilidade e de legitimação das
monarquias. Na Ibéria, o fortalecimento do poder central combinou-se com elementos do
mundo feudal, conservando os poderes locais e as hierarquias sociais sancionadas pela tradição.
Na verdade, em Portugal e Espanha, o “moderno” imiscuiu-se no “medieval”. Os reis

14 Justiniano (527-565 d.C.) fez empreender, por uma missão de dez membros (nomeadamente,
Triboniano e Teófilo), uma vasta compilação de todas as fontes antigas de Direito Romano, harmonizando-as
com o Direito do seu tempo. O conjunto dos documentos recolhidos por Justiniano, ao qual mais tarde, na Idade
Média, se deu o título Corpus Iuris Civilis, compreende quatro partes: o código (as leis imperiais), o Digesto (obras
de jurisconsultos), as instituições (manual de ensino de direito) e as novelas (constituições de Justiniano).
11

católicos puderam ampliar seus poderes, sem provocar grandes alterações nas estruturas
vigentes, graças aos grandes empreendimentos náuticos. Em vista desse avanço que lhes era
exclusivo, os Estados ibéricos não devem ser incluídos na fase inicial da formação do “Estado
Nacional”. Alguns estudiosos15 defendem o processo de centralização de poder e a formação
dos Estados na Ibéria como o desenvolvimento de um percurso particular da política na
Europa. Morse (1988: p. 128) adverte que, “mesmo compartilhando antecedentes gregos,
romanos, cristãos e medievais com o resto do Ocidente, [a Ibéria] tomou caminho que impede
um desenlace do tipo nietzscheano, weberiano ou kafkiano”.16

Ora, se por um lado não é correto supor a Ibéria como o lugar da “pré-História” dos
Estados modernos, por outro, é legítimo falar da precocidade dos Estados ibéricos. Ainda
durante o período medieval, a íntima relação entre a política e a religião abriu uma perspectiva
de legitimação dos poderes centrais nos reinos ibéricos inteiramente desconhecida no restante
da Europa. As guerras de expansão do cristianismo desempenharam um papel relevante nesse
processo. Os ibéricos adquiriram a certeza de serem a comunidade escolhida por Deus,
cabendo aos seus reis estar à frente da guerra contra os infiéis. Os monarcas puderam, desse
modo, assumir um papel central na política, operando, habilmente, a associação do sagrado em
favor da legitimidade e independência de seus reinos diante da Igreja - única força
centralizadora da Europa - com suas ambições imperiais.

As monarquias espanhola e portuguesa não seguiram a organização dos Estados


modernos na Europa dos séculos XVI a XVIII. Na verdade, os reis ibéricos não precisaram
organizar uma burocracia exclusivamente voltada para a Coroa, como fizera a França por
ocasião de convulsões de segmentos sociais tradicionais como a Fronda. Sem destruir a res
publica medieval, Portugal e Espanha instituíram, no seio de suas sociedades tradicionais, uma
esfera pública cuja legitimação advinha da capacidade de os soberanos distribuírem as riquezas
obtidas, primeiramente, durante a Reconquista e, posteriormente, com a aventura ultramarina.
Dessa maneira, essas duas monarquias trocaram o conflito interno pela expansão, presas que

15 Morse (1988) e Hespanha (1993: 1994).

16 “Obcecados e fascinados pela emergência da modernidade capitalista, estas macrovisões se


alimentam de um repertório de categorias cujo resultado final é um só: a constatação do fracasso da
Ibéria em transitar para formas capitalistas de produção ou em adotar a pauta política da modernidade,
com seu estado racional-legal” (Barbosa Filho, 2000: p.69).
12

estavam a um paradigma jurisdicionalista orientado para a conservação de sua estrutura social.


A dinâmica daí resultante transformou a Ibéria num laboratório de doutrinas jurídicas voltadas
à consolidação do poder central, mantendo ao largo as mudanças revolucionárias que
assolavam o restante da Europa.

A ampliação territorial dos reinos ibéricos, trazida com a Reconquista e, após, com os
descobrimentos, não só se revestiu de um profundo simbolismo, ao animar a chama religiosa
da população, como também proporcionou, aos seus reis, a oportunidade de exercitarem seu
poder distributivo. As riquezas extraídas dos novos espaços eram repartidas entre os que
participavam das conquistas, selando uma espécie de contrato entre o rei e a sociedade,
sancionando a expansão como um negócio coletivo. Portanto, a originalidade da realização
ibérica foi a conquista da centralização política sem alteração substantiva de sua estrutura
social. Barbosa Filho (2000: p. 247), ao descrever os eventos da época, explica que, “desse
modo, Espanha e Portugal buscam o movimento e a expansão para se manterem idênticos,
recusando, inibindo e extirpando possíveis elementos de mudança e alteração do quadro geral
da sociedade”. Os territórios ultramarinos transformaram-se em instrumento para a aquisição
de riquezas destinadas à sustentação patrimonial das Coroas. Assim, a rede administrativa
erigida no além-mar fundamentava-se na perspectiva hierárquica e tradicional, estreitando os
laços de compromisso da nobreza e da fidalguia com o rei.

A constituição dos poderes centrais na Europa, principalmente das monarquias


ibéricas, ensejou um intenso debate historiográfico. Em geral, tem-se chamado atenção sobre a
aceitação, sem exame mais apurado, do conceito de Absolutismo como governo livre da
intromissão de outras forças, “nomeadamente de ordem imperial, provincial ou territorial, bem
como das resistências particulares geradas pelo desejo de centralização e de poder dos
principados territoriais [em relação ao Imperador]” (Oestreich, 1984: p. 182). Segundo os
estudiosos,17 os poderes locais insurgiam-se contra a administração absolutista sempre que
estavam em causa os Direitos provinciais ou locais, e o centralismo não se traduzia numa
organização política hierárquica ramificada até os confins dos Estados. A historiografia mudou
completamente esse enfoque e, ao invés de discutir os progressos do processo de
centralização, concentra-se atualmente em investigar a continuidade dos poderes corporativos
e sua integração à administração do Estado.
13

Restaria indagar sobre o papel da administração central nesses Estados emergentes. É


clássica a tese de Anderson (1985: p. 39) a respeito do caráter feudal do Absolutismo, cuja
principal tarefa era garantir a submissão das massas camponesas, ou melhor, a manutenção da
ordem feudal perturbada. Há, em razão desse convencimento, uma grande ênfase não só sobre
o papel da Justiça na legitimação do Estado, como também na importância do ius comune18 em
instrumentar a centralização de poder nas mãos dos monarcas europeus. O Direito Romano –
base do Direito erudito europeu, o ius comune – fornecia os principais elementos intelectuais
que justificavam o enfeixamento de poderes pelo Imperador. Todavia, Hespanha (1993, p.
193-7) afirma que a influência do ius comune sobre a centralização ocorrida em Portugal, por
exemplo, deve ser aceita com reservas, seja por não ter sido ela tão geral e eficaz como se
pensava, seja por não ter reunido, de fato, tantos poderes na pessoa do rei. Em primeiro lugar,
existiu um Direito dos rústicos (ius rusticorum), reconhecido pela própria doutrina baseada no
Digesto,19 compatibilizando o Direito erudito com o Direito das comunas. Em segundo lugar,
na prática, houve uma ampla admissão do costume contra legem, sobretudo no que dizia respeito
às posturas e aos contratos. Assim, podemos concluir, juntamente com Hespanha (1994, p.
355) que “o campo de vigência dos costumes locais, mesmo no plano do direito letrado e
oficial [era] muito vasto”.

O reconhecimento da significativa extensão dos poderes locais durante o Antigo


Regime implica uma compreensão do reino como uma “república de repúblicas”,
caracterizando-se por um policentrismo político. O centro realizava sua estruturação deixando
intocados os poderes locais, tornando o rei uma fonte capaz de realizar a “justiça” baseada na
complacência, a quem se dirigiam os apelos contra os senhores locais. Esses últimos, em
contrapartida, seriam responsáveis pela imposição da coerção violenta e quotidiana. Em
relação à punição dos crimes, o papel do rei, nesse sistema policêntrico, permanecia ligado à
idéia de generosidade e graça, ou seja, a estratégia da Coroa não estava voltada para uma
intervenção punitiva quotidiana. O Direito Penal real não se destinava a ministrar a disciplina

17 Entre outros, Morse (1988) e Hespanha (1993: 1994).


18 O ius comune era a denominação do Direito Erudito comum para todo o ocidente europeu e criado a
partir do Direito Romano, ou Direito “Divil”, e do Direito Canônico. O ius proprium era o oposto do ius comune
por se tratar do dirieto “particular” em vigor nos diversos países, regiões e cidades da Europa, sob a forma de
costumes, ordenações e cartas (Cf. Caenegem, 1995, p. 49).
19 Livro do Corpus Iuris Civilis.
14

social, pois lhe faltavam os meios institucionais adequados para isso. Estava ele voltado, na
verdade, para a afirmação do poder supremo do rei como um árbitro pronto para efetivar a
justiça ou distribuir a graça, atributos reais que lhe permitiam agir contra o próprio Direito
(Hespanha, 2001: p. 176).

Por meio de vasto levantamento das sentenças aplicadas em Portugal entre os séculos
XVII e XVIII, Hespanha (1994: p. 499) aponta dois aspectos relevantes dessas sentenças, que
merecem ser aqui mencionados. O primeiro refere-se à numerosa previsão da pena de morte
na legislação portuguesa, cuja pertinência estendia-se desde os casos de adultério até os de lesa-
majestade. O segundo relaciona-se ao fato de, apesar de sua extensa previsão legal, ter sido a
pena de morte, na realidade, muito pouco executada. Como a situação das outras penas era
análoga, conclui-se que a Justiça Real, no Antigo Regime português, constituía-se num
instrumento de atenuação das penas, ou ainda, do rigor da lei. Além disso, a clemência real
transformou-se num dos fundamentos de legitimação do Rei, pois os súditos deveriam amá-lo,
e não temê-lo. Os poderes infra-estatais – a família, a Igreja e a comunidade local – tinham sob
sua alçada as tarefas mais quotidianas de punição, estando responsáveis, por conseguinte, pela
disciplina social.20

... para manter a carga simbólica necessária à legitimação do seu poder,


o rei dispõe de uma paleta multímoda de mecanismos de intervenção.
Pode, decerto, punir; mas pode também agraciar, assegurar ou livrar
em fiança; como pode, finalmente, mandar prender. Pode optar pelo
meio desgastante da crueza, como pelo meio econômico do perdão
(Hespanha, 1994: p. 250).

O Iluminismo, a partir do século XVIII, alterou profundamente o panorama político


do Absolutismo ibérico, com efeitos concretos sobre o Direito da época. A ação política não
mais se encontrava voltada para a imposição da Justiça, concentrando-se, antes, na eficácia do
controle social. A coroa buscou então efetivar-se como o centro do poder, pondo fim à
monarquia policentrada. O Direito Penal foi colocado a serviço da centralização do poder e do
esvaziamento dos centros políticos periféricos. O caráter simbólico das políticas punitivas foi
substituído pela disciplina e pela garantia da ordem emanada do poder central. As penas
máximas passam a ser mais freqüentemente aplicadas, ampliando-se as cominações da pena de
15

morte. Além disso, houve uma efetiva preocupação com a reforma da Justiça, visando tornar
mais efetiva a execução das penas. Acima de tudo, incomodava à Coroa a tradição do ius
comune, que determinava a precedência da doutrina sobre a lei. Assim, em 1769, criou-se a Lei
da Boa Razão, para consagrar a lei como a principal fonte de Direito, relegando a doutrina, o
costume e o Direito Romano a uma posição secundária. O conjunto de redefinições
provocado pelo despotismo do século XVIII redundou em uma nova definição de delito,
distinguindo-o do pecado e do vício, bem como de todos os atos que, mesmo censuráveis, não
chegavam a perturbar a ordem social. Desde então, o Direito Penal converteu-se num
elemento de coerção social, embora outros fatores concorressem para tanto, como a
propaganda, a educação, entre outros. Esse quadro geral de mudanças no campo do Direito
integrava-se no movimento simultâneo de estruturação do Estado centralizado e de
desmantelamento dos poderes periféricos. O Leviatã, finalmente, conseguia sustentar-se em
pé.

IV. A tradição jurídica portuguesa e a escravidão na América


O Império Português transportou para o além-mar uma sociedade predominantemente
corporativa e, pelo menos até as reformas pombalinas, o poder real partilhava o espaço político
com os poderes infra-estatais. Tal forma de correlação de poderes resultou num policentrismo
político, mesmo nos territórios conquistados fora da Europa. Como ensina Russel-Wood
(1998: p. 202), embora a monarquia portuguesa tivesse obtido mais sucesso na centralização do
poder nas colônias, subsistia nelas um forte ímpeto em prol da descentralização. As diversas
dificuldades de implantação da administração real nas terras de ultramar abriram espaço para a
participação dos colonos na estrutura de governo. A convergência de várias jurisdições e
autoridades em uma única pessoa, juntamente com a parca definição das áreas de jurisdição,
resultava numa diluição da autoridade, causando rivalidades e tensões entre os indivíduos e
estimulando o crescimento dos poderes comunais.

Mais especificamente, no Brasil, os poderes locais tiveram seu raio de ação ampliado
quando a Coroa optou por colocar cargos públicos à venda.21 Na maioria das vezes, os colonos

20 Cf. Hespanha, 1994: p. 499.


21 Segundo Hespanha (2001: p. 183-4), durante os séculos XVI e XVII havia condenação da venda dos
ofícios. A patrimonialização dos ofícios ocorria sob a forma de atribuição de direitos sucessórios aos filhos dos
16

solicitavam postos menores, como o de escrivão em uma Vila. Noutras ocasiões, entretanto,
buscavam cargos mais importantes, como os de Secretário de Estado ou de Provedor da
Fazenda. Procedendo dessa maneira, os brasileiros participavam do governo por intermédio do
Senado da Câmara, como dirigentes locais, pois passavam a ocupar funções ligadas diretamente
ao governo central. Russell-Wood (1998) chamou essa participação dos brasileiros nas
estruturas da administração real de “criolização” do governo, ressaltando as mudanças na relação
entre a metrópole (centro) e a colônia (periferia) como provocadas por esse evento. As
dificuldades de estruturação da administração real nas colônias, conjugadas com a busca de
cargos públicos por parte dos brasileiros, viriam permitir o exercício de uma negociação mais
intensa entre os colonos e as autoridades metropolitanas com a finalidade de evitar, modificar
ou retardar a implementação das políticas provenientes dos altos escalões portugueses.
Quando as negociações não se mostravam suficientes para barrar as medidas contrárias aos
interesses coloniais, eclodiam então formas mais extremadas de pressão, tais como as rebeliões
ou, inclusive, a confrontação física. É mister, portanto, reconhecer a utilidade do conceito de
autoridade negociada na compreensão da relação entre metrópole e colônia, conferindo-se o
papel devido ao elevado potencial de pressão dos colonos sobre as determinações
metropolitanas.22

Embora as fontes doutrinais tragam a Justiça como a atribuição primeira do rei, a


Justiça Real, durante o Antigo Regime, define-se como o esforço da Coroa em garantir os
equilíbrios sociais estabelecidos e tutelados pelo Direito, quer dos corpos, quer dos
particulares.23 Como a concepção jurisdicionalista de poder não se resumia na solução dos
conflitos de interesse, estendendo-se também à administração real nos domínios coloniais, as
atribuições da Justiça Real foram transferidas aos governadores e vice-reis, tendo em vista a
natureza de suas funções. De acordo com a doutrina da época, seus poderes eram
extraordinários. A vice-realeza detinha a capacidade, inclusive, de distribuir atos de graça, tais
como perdão de crimes, concessão de mercês, outorga de ofícios e de rendas, entre outros. Os
governadores podiam fazer uso dessa mesma prerrogativa, porém, em escala menor. Embora,
no domínio da justiça, fosse central o papel dos governadores e vice-reis, suas ações eram

oficiais. No século XVIII, um decreto real estabeleceu que os novos ofícios seriam oferecidos a quem fizesse um
donativo à Fazenda.
22 Cf. Russell-Wood, 2001: p. 11-19.
23 Cf Hespanha,1994: p. 488.
17

prenhes de incoerências, originadas das limitações de um Direito entregue a homens simples,


ignorantes mesmo, sob a constante pressão dos poderosos que os rodeavam. Os próprios
desembargadores das Relações, ainda que fossem homens letrados, mantinham relações de
favorecimento para com as elites das possessões ultramarinas, situação que se repetia nos
segmentos inferiores do Judiciário. Além de os interesses coloniais prevalecerem nos tribunais
por conta do envolvimento dos magistrados com os homens de posses do local, muitas vezes
as especificidades das regiões remotas exigiam a criação de leis regulamentando e,
conseqüentemente, legitimando os usos e os costumes das comunidades ali radicadas.

Do ponto de vista da escravidão, a relação centro-periferia ocorreu dentro de um


quadro de relativa autonomia. A expansão do ordenamento jurídico de Portugal por meio de
seu Império de além mar carregou consigo as relações costumeiras de poder, entre as quais
inseria-se o escravismo. Hebe Maria Mattos (2000) lembra que a escravidão foi incorporada e
naturalizada pela sociedade corporativa portuguesa durante a conquista da África. Não havia
legislação que instituísse a condição de cativo em Portugal, mas sua existência possibilitava o
uso de vários dispositivos lusitanos, como a alforria, as punições de crimes de escravos, entre
outros. No Brasil, o estatuto do escravo foi sendo construído, ao longo do tempo, sob a
influência não somente das categorias jurídicas oriundas em Portugal, mas também daquelas
vigentes na África pré-colonial, mediante as pressões dos forros e dos descendentes das
sociedades escravistas. O estudo clássico de Sidney Chalhoub (1990) sobre as alforrias, por
exemplo, demonstra como a lei do pecúlio nasceu do reconhecimento, pelo Judiciário, da luta
dos escravos por tal Direito. Todo esse conjunto de matrizes não só conformaria uma
sociedade escravista de novo tipo, como também produziria uma tradição jurídica específica às
terras brasileiras.

V. O Direito e a escravidão na América portuguesa


Como a sociedade corporativa portuguesa projetou seus valores para os domínios
americanos, fez-se necessário o desenvolvimento de categorias jurídicas apropriadas para a
assimilação de elementos “estranhos”, como os africanos e os índigenas. Legitimando as
desigualdades e as hierarquias sociais, corpos legislativos variados definiam a função e o lugar
desses “estrangeiros” na colônia, incorporando-os, dessa forma, ao Império lusitano. A
categoria “parda”, para ficarmos num único caso, ligava a pessoa não somente à sua
18

ascendência africana, mas também ao seu passado de cativeiro. Mesmo após a passagem de
algumas gerações, reforçava-se assim, na memória dessas pessoas, as restrições civis advindas
de sua posição na hierarquia social. Embora a cor e os aspectos étnicos marcassem o lugar
reservado aos cativos na sociedade, essas características não serviram como justificativa
suficiente para a existência de uma legislação específica para escravos, tal qual um Code Noir.
Houve negros que, em retribuição aos serviços prestados à Coroa, receberam cargos
honoríficos, contrariando a regra de pureza de sangue.24 A concepção jurisdicionalista aplicava-
se também ao lugar social reservado aos africanos e afro-descendentes no Brasil, normatizada e
legislada segundo as leis do Reino ou dos costumes locais. Assim, a larga e diversificada escala
social desenvolvida no Brasil comportava os escravos, as escravas, os escravos de eito, os
escravos de ganho, os africanos livres, os pardos, os pretos, entre outros.

Silvia H. Lara (2000: p. 11-47) informa que as leis escravistas na América portuguesa
eram essencialmente práticas, voltadas, principalmente, para a regulamentação do tráfico,
deixando pouco espaço para a legitimação da escravidão. Em que pese essa orientação,
algumas vozes, no período, manifestaram-se sobre o assunto, como a de Manoel Ribeiro
Rocha. Em 1759, o sacerdote português, com formação jurídica, tomou a si a tarefa pouco
usual de redigir um tratado teológico e jurídico acerca da escravidão, oferecendo uma
interessante exposição de motivos sobre a legitimidade do cativeiro como instrumento de
“resgate” do africano de seu paganismo. Na opinião de Rocha (1992, p. 73), existiria, inclusive,
uma base jurídica para tal procedimento, porquanto “o Direito não proíbe, nem resiste aos
atos, e contratos de redenção de cativos, antes permite este comércio, e favorece a sua
continuação”. Impunha-se, no entanto, que a escravidão dos africanos se realizasse de modo
”justo”:

Que o ato, ou contrato da redenção dos cativos se inclui no ato, ou


contrato da sua compra, igualmente se mostra; porque a redenção
também é espécie de compra; (...); e a sua diferença consiste, em que a
compra se dirige a adquirir domínio, no qual se inclui posse, uso, e
livre arbítrio de poder perpetuamente usar da cousa comprada para
todos, e quaisquer efeitos; e a redenção se dirige a adquirir somente

24 Hebe de Mattos (2000: p. 149) cita o caso do negro Henrique Dias que, comandando um exército de
escravos e forros, participou de forma decisiva nas lutas contra os holandeses, contribuindo para a vitória
portuguesa em 1654.
19

parte desta posse, uso, e retenção interina, até ser pago da importância
e gastos do resgate (Rocha: 1992, p. 72).

O trabalho de Ribeiro Rocha, publicado no decorrer do século XVIII, quando a


escravidão já adquirira proporções endêmicas na Colônia, não encontrava muitos pares entre
os intelectuais reinóis. Tal obra aponta indicam a escravidão portuguesa sendo pensada
segundo conceitos de justiça e fé cristã. De acordo com o sacerdote, as justificativas para o
“resgate” dos africanos são retiradas da Bíblia, das Ordenações e do Direito Romano, fontes
comumente aceitas como subsidiárias do Direito Português. Entretanto, ao homem dos dias
atuais, parece uma absoluta incongruência a aplicação dessas noções.

Contrastando com a escassez de obras jurídicas sobre a escravidão, a legislação possuía


um espectro amplo. Nunca, porém, chegou a tomar forma, no Brasil, um Código Negro ou
qualquer outro livro de leis versando sobre a matéria. A despeito disso, Silvia H. Lara (2000: p.
36-8) detectou, nas várias disposições régias, a existência de uma tradição no tocante à
escravização dos africanos e de seus descendentes. Consoante a historiadora paulista, o exame
das Ordenações mostra uma diferença entre o tratamento dispensado ao mouro cativo e aquele
reservado ao africano escravizado. Em relação ao primeiro, prevaleciam os conceitos extraídos
da religião, enquanto para o segundo, aplicavam-se as regras do comércio e do controle
punitivo. Destacava-se, porém, dentre as diferentes disposições relativas à escravidão, o
princípio comum de não interferência no poder senhorial e em seu Direito de propriedade
sobre o cativo. Enfim, conclui ela, existia na colônia portuguesa uma longa tradição jurídica
que regulava as relações entre senhores e escravos, a qual seria preservada mesmo após a
proclamação da Independência.

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22
POLÍTICA, POLÍCIA E MEMÓRIA: A ATUAÇÃO DO CHEFE DE POLÍCIA JERÔNIMO
MARTINIANO FIGUEIRA DE MELO NA REVOLUÇÃO PRAIEIRA*/**
POLITICS, POLICE AND MEMORY: THE ROLE OF THE POLICE CHIEF JERÔNIMO
MARTINIANO FIGUEIRA DE MELO IN THE PRAIEIRA REVOLUTION

IZABEL ANDRADE MARSON***

Resumo
A Lei de Interpretação do Ato Adicional e a Reforma do Código do
Processo foram medidas essenciais na repressão às revoltas ocorridas
no Império Brasileiro entre 1841 e 1850. Este artigo demonstra uma
circunstância em que podemos visualizar o alcance do poder por elas
atribuído aos Chefes de Polícia na manutenção da ordem pública
durante o Segundo Reinado. Ele acompanha a atuação do juiz
Jerônimo Martiniano Figueira de Mello como Chefe de Polícia da
Província de Pernambuco - no período de 1849-1850 – momento em
que comandou a repressão à Revolta Praieira, conflito no qual liberais
e conservadores pernambucanos se defrontaram na disputa pelo
controle dos cargos políticos, policiais e judiciais da província.

Abstract
The Law of interpretation of the Additional Act and the Reform of
the Code of Process were essential for the repression of the revolts in
the Brazilian Empire between 1841 and 1850. This article
demonstrates the circumstance in which it is possible to visualize the
range of the power given to the Police Chiefs for the maintenance of
the public order during the Second Reign. It concerns the monitoring
of the role of the Judge Jerônimo Martiniano Figueira de Mello as
Police Chief of the Pernambuco Province – in the period of 1849-
1850 – when he commanded the repression of the Praieira
Revolution, conflict in which liberals and conservatives of
Pernambuco faced each other in the dispute for the control of
political, police and judicial posts of the province.

Palavras-chave

*Artigo recebido em 15.01.2004 e aprovado em 19.04.2004.


**Este texto integra o Projeto de pesquisa “Política e método em Um Estadista do Império – a tessitura da

Política de Conciliação, financiado pelo CNPq.


*** Profª. Dra. do Departamento de História - IFCH –Unicamp.
2

Revolução – memória – império – política - revoltas liberais

Key words
Revolution – memory – empire – politics - liberals revolts

“Pelos fatos, que até aqui temos realmente narrado, achamo-nos sem
dúvida habilitados para emitir franca e conscienciosamente o nosso
juízo sobre a revolta praieira (...).A razão demonstra-nos que sem
darem-se motivos tão poderosos, não se pode consentir nunca que se
desrespeitem as Autoridades e as Leis, que se derrame o sangue dos
cidadãos, e que entre eles se proclame uma revolução, ou se ateie a
guerra civil, que é uma e a mesma cousa” (Figueira de Melo, 1979:
247)1

A importância política das reformas realizadas nos últimos meses de 1841 pelo
Parlamento do Império nos textos do Ato Adicional de 1834 (a Lei de Interpretação) e no
Código do Processo, é sobejamente conhecida e já foi demonstrada tanto pelos escritores
contemporâneos àqueles eventos – a exemplo de Justiniano José da Rocha, Francisco Sales
Torres Homem e Teófilo Otoni – quanto por vários estudiosos que no século XX retomaram
a história política do Império Brasileiro, e reiteraram depoimentos de políticos envolvidos
naqueles acontecimentos2. Exemplificando a opinião destes historiadores, Paulo Pereira de
Castro afirma que “em torno dessas reformas é que se definiu a divisão partidária no final do período
regencial”, mais precisamente os adeptos do partido conservador se colocaram a favor delas e os
do liberal as condenaram. Para este autor, as alterações promovidas pela Lei de Interpretação
resultaram numa transferência de atribuições políticas locais para a Corte, pois retiravam “às
Assembléias Provinciais o poder de definir atribuições aos agentes policiais e subordinava a política judiciária ao
governo geral. O efeito dessas alterações foi fundamentalmente transferir para o governo central todo o sistema
judicial e policial” (Castro, 1967: 57).

Por outro lado, ainda segundo Castro, ao deslocar as competências das autoridades
locais (do juiz de paz e do júri popular) para a magistratura (para o chefe de polícia, os juízes

1 A primeira edição deste texto, a Crônica da Rebelião Praieira, é de 1850.


2 Além dos autores que aqui mencionamos diretamente, destacam-se dentre estes estudiosos os

historiadores Paula Beiguelman, José Murilo de Carvalho e Ilmar R. Mattos.


3

municipais e os promotores), a Reforma do Código do Processo completava esta (re)alocação


de poderes e realizava uma decisiva intervenção nas práticas políticas vigentes. Ao anular “o
princípio eletivo no sistema judicial, subordinando-o inteiramente à magistratura togada” intervinha em
medidas vigorosamente defendidas pelos liberais durante o período regencial. Para Castro, esta
Reforma:

“Despojou o juiz de paz da maior parte de suas funções, reduzindo-o


praticamente a suas atribuições notariais. Suas funções policiais mais
importantes foram transferidas para os chefes de polícia e para os
delegados que eram os agentes locais destes. As atribuições judiciais e
criminais do juiz de paz passaram para os juízes municipais. As
atribuições do júri foram consideravelmente reduzidas e esse tribunal
popular ficou praticamente sob a tutela do juiz de direito. Os juízes
municipais e promotores passaram a ser de nomeação direta do
governo central.” (Castro, 1967: 164).

As conclusões de Castro corroboraram a leitura de Raymundo Faoro sobre o


significado político destes eventos, pois, alguns anos antes, este historiador já havia
considerado o forte vínculo estabelecido pela Reforma entre as autoridades locais - afinadas
com o partido assentado no governo - o chefe de polícia e o poder central; e ressaltado sua
importância na desarticulação das “influências”, sobretudo liberais, que se rebelaram contra
estas intervenções:

“O poder central atrela as influências locais, armadas, com a polícia e a


justiça, ao comando de seus agentes. Criou no município da corte e
em cada província, um chefe de polícia, com delegados e subdelegados
a ele subordinados, nomeados pelo imperador e pelos presidentes. O
juiz de paz despede-se da majestade rural, jugulado pela autoridade
policial, que assume funções policiais e judiciárias. Os juízes
municipais e os promotores perdem o vínculo com as câmaras. O júri
desce de sua dignidade de justiça popular (...) As autoridades locais
não desaparecem, senão se atrelam ao poder central, isto é, ao partido
que ocupa o ministério. (...) Os poderes privados, emergentes nas
fazendas, são eliminados, confundidos com a anarquia”. (Faoro, 1979:
333)3

3 A primeira edição da obra de Faoro Os donos do poder é de 1958.


4

Nesse sentido, podemos considerar que as determinações da Lei de Interpretação do


Ato Adicional e da Reforma do Código do Processo foram, dentre outras decorrências,
recursos importantes no debelamento das revoltas provinciais ocorridas entre 1841 e 1850, a
exemplo da Revolução Paulista de 1842 e da Praieira de 1848. Este artigo tem por objetivo
demonstrar uma circunstância em que o poder concentrado nas mãos do chefe de polícia e das
autoridades policiais por ele nomeadas, foi instrumentalizado a serviço do partido então
instalado no governo central para coibir a resistência das “influências locais”, ainda signatárias
de alguns direitos atribuídos pela Constituição à Guarda Nacional. Vamos esclarecer o
desempenho do juiz Jerônimo Martiniano Figueira de Mello como Chefe de Polícia da
Província de Pernambuco - no período de 1849-1850 - momento em que, sob as ordens do
Partido Conservador, organizou a repressão à Revolta do Partido da Praia, uma guerra civil em
que liberais e conservadores pernambucanos se defrontaram disputando o controle dos cargos
políticos, policiais e judiciais da província.

Bacharel da primeira turma formada pela Faculdade de Direito de Olinda em 1832,


Figueira de Melo realizou uma bem sucedida carreira na magistratura e na política imperial,
respaldada justamente pelas determinações estabelecidas naquelas Reformas de 1841 . Entre
1838 e 1870, foi juiz da fazenda, deputado provincial, chefe de polícia, juiz de direito,
promotor, deputado geral, presidente de província, desembargador e senador. Neste texto
vamos destacar o momento em que este magistrado - exercitando as atribuições conferidas
pelas reformas aos chefes de polícia das províncias do Império - dirigiu a Guarda Nacional e as
autoridades policiais designadas por ele e avalizadas pelo partido conservador, na guerra contra
os liberais praieiros. Ainda, instruiu o processo que, surpreendendo os contemporâneos,
enquadrou os resistentes no crime de rebelião, a mais severa punição política inscrita no
Código Civil do Império. E, coroando este processo repressivo, numa rara demonstração do
poder concentrado nas mãos dos bacharéis magistrados, construiu a interpretação hegemônica
sobre a memória daqueles acontecimentos tornando, conforme veremos, o ato de historiar, a
última batalha vencida pelos conservadores na guerra civil pernambucana de 1848-9.

1. Figueira de Melo e a Revolta do Partido da Praia


A ascensão, a 29 de setembro de 1848, do gabinete presidido pelo político
pernambucano e ex-regente do Império Araújo Lima, oficializando a ascensão política dos
5

conservadores e a finalização de um período no qual os liberais haviam atuado com destaque


na Corte; a suspensão dos trabalhos da Câmara dos Deputados a 5 de outubro encerrando as
atividades parlamentares daquele ano e indicando uma próxima dissolução; e a designação do
político conservador Herculano Ferreira Pena para presidir Pernambuco, foram eventos que
sinalizaram uma inversão política no Império em geral e na Província em particular, e a eclosão
da guerra civil na qual se hostilizaram conservadores (guabirus) e liberais (praieiros).4 Assentados
nos cargos de poder em 1845 e organizados, desde maio de 1848, pela Sociedade Imperial, os
liberais praieiros haviam se preparado militarmente nas vilas mais importantes para enfrentar
uma revanche conservadora e suas indeclináveis demissões, justificadas justamente na referida
Lei de Interpretação do Ato Adicional e Reforma do Código do Processo, das quais os
próprios praieiros haviam se beneficiado de 1845 até aquele momento.

Portanto, desde maio de 1848, quando o predomínio liberal na Corte começara a


declinar e o partido perdera o controle sobre a administração provincial, os praieiros haviam
mobilizado forças policiais a ele relacionadas (delegados, subdelegados e contingentes de
polícia), coronéis da Guarda Nacional e seus batalhões (inclusive rendeiros e moradores de
engenhos), acantonando-os nas propriedades de membros importantes do partido, em geral os
próprios comandantes das tropas arregimentadas; estocado armas e munição, e se preparado
para resistir às previsíveis demissões, impedindo a posse das autoridades recém-nomeadas pela
nova administração provincial. O objetivo imediato deste procedimento era preservar os
comandos de policia e da Guarda Nacional nas vilas, de forma a garantir a vitória nas eleições
para vereadores e juízes de paz que realizar-se-iam a 19 de novembro de 1848 e, com ela, o
controle sobre o processo de qualificação dos eleitores que escolheriam os deputados nas
próximas eleições para a Câmara, cuja dissolução era tida como certa; e, escolheriam também,
os novos representantes da Província para o Senado. Tratava-se de uma derradeira ocasião
para que o Partido Nacional de Pernambuco, vulgarmente denominado Partido da Praia ou
Praieiro, insistisse na colocação de representantes seus naquela casa vitalícia.5

4 Guabirus e Praieiros foram designações jocosas que os membros dos partidos conservador e liberal,
respectivamente, receberam na disputa político-partidária em Pernambuco. Segundo elas, os conservadores se
assemelhavam a grandes ratos que roubavam sorrateiramente os cidadãos honestos da província; e os liberais são
confundidos com comerciantes inescrupulosos nos negócios e na política, proprietários de fortunas recentemente
amealhadas e de casas comerciais situadas na Rua da Praia, tradicional centro do comércio a retalho do Recife e
endereço da tipografia que imprimia o jornal do partido, o Diário Novo.
5 Em eleições para o Senado realizadas em 1846 e 1847 os praieiros tentaram, por duas vezes, assentar

seus representantes – Ernesto Ferreira França e Antonio Pinto Chichorro da Gama - naquela casa vitalícia.
6

O desafio dos liberais praieiros levou o presidente recém-empossado Herculano Pena a


transferir o esperado escrutínio para 17 de dezembro e a colocar em prática um plano para
debelar rápida e vigorosamente as oposições associando a tropa de linha (requisitada com
antecedência nas províncias vizinhas), os efetivos da Guarda Nacional fiéis à nova
administração, além de forças particulares, medida que resultou em alguns combates violentos.
Acuados pelas novas circunstâncias, os desafiantes ampliaram seus objetivos e transformaram
as resistências isoladas em guerra aberta. No final de novembro, os deputados do Partido
hipotecaram publicamente seu apoio aos correligionários; os grupos combatentes se reuniram
para formar colunas mais numerosas e organizadas; e o “movimento” divulgou um programa de
reformas políticas afinadas com “as luzes do século”, a serem promulgadas por uma Assembléia
Constituinte, visando um alargamento da representação parlamentar, em especial no Senado,
assim como garantias de sua efetivação.

O adiamento sine die das eleições provinciais determinado a 9 de dezembro; o


crescimento das forças do governo com a chegada de tropas da Bahia e de Alagoas; a vitória
dos resistentes ante os efetivos governamentais no combate de Cruangi (a 20 de dezembro) e a
queda do presidente Pena, cobraram a reorganização das forças praieiras num exército capaz
de sustentar uma luta de maiores proporções, uma alternativa não considerada no início das
hostilidades. Exigiu, também, o envolvimento dos deputados no comando desta guerra, de
maneira a conferir “uma direção conveniente a ela”, evitando possíveis radicalizações defendidas
por um pequeno contingente de republicanos agregados às tropas do norte, liderados por
Borges da Fonseca. As divergências internas aos resistentes se exteriorizaram claramente no
final de dezembro, quando dois documentos vieram a público divulgando suas proposições.
Enquanto o jornal oficial do partido, o Diário Novo, propunha como “Bandeira do Movimento
Liberal” reformas para a “regeneração da Província e do Império”, destacando as práticas
administrativas descentralizadoras (retomadas do texto do Ato Adicional) e ampliadoras da
representação política, um Manifesto da coluna do norte, reivindicava medidas mais
contundentes, o “voto universal, a extinção do Poder Moderador e do direito de agraciar”, ou seja,
significativa intervenção no regime monárquico, no sentido de sua “republicanização”.6

Porém, em ambas as ocasiões e apesar do apoio imperial, as escolhas foram anuladas no Senado por ágil manobra
dos conservadores então chefiados por Araújo Lima, então visconde de Olinda.
6 A expressão foi utilizada por Teóphilo Ottoni no texto Circular dedicada aos senhores eleitores de senadores

pela província de Minas Gerais, publicado em 1860, momento em que rememorou os acontecimentos políticos
vividos entre 1831 e 1848.
7

A organização e determinação da resistência praieira puseram o governo num impasse


e cindiram-no em duas facções. Os moderados, nos quais se achava o próprio Pena,
recusavam-se a prosseguir com medidas de exceção como a prisão dos deputados e o
empastelamento de jornais que apoiavam a Praia. Por isso mesmo, eram criticados pelo outro
grupo, mais inflexível, onde figuravam não só aqueles senhores de engenho comprometidos
diretamente com a guerra e com o partido conservador, mas também os principais
organizadores da imprensa governista, o juiz da fazenda José Martiniano Figueira de Melo, o
juiz de direito José Thomaz Nabuco de Araújo, o promotor Francisco Paes Barreto e o
deputado Antonio Peregrino Maciel Monteiro. Desde há algum tempo, esse grupo vinha
solicitando expedientes mais drásticos e eficazes de repressão, mas esbarrava na recusa do
presidente Pena em implantá-los. Todavia, os êxitos dos praieiros e a radicalização de seus
deputados serviram para fortalecer os partidários de Figueira de Melo.

A saída de Herculano Ferreira Pena era indício de que o governo conservador não
estava inclinado a ceder ou negociar; muito ao contrário, permanecia o objetivo de submeter
completamente o adversário e assumir irrestritamente o poder, para o que se empenhava em
vencer aquela guerra a qualquer preço. As medidas que vieram em seguida não deixaram a
menor dúvida a esse respeito. Pena foi substituído por um dos mais destacados inimigos da
bancada praieira na Corte, o deputado conservador Manoel Vieira Tosta, posteriormente
recompensado com o título de Barão de Muritiba, que determinou a prisão dos deputados -
única maneira de cortar as ligações entre as lideranças políticas do Recife e os resistentes do
interior; e a demissão de todas as autoridades policiais que tivessem alguma ligação ou simpatia
com os praieiros, evitando-se atraso na ação do governo, pois muitas vezes aquelas
autoridades, alegando falta de recursos, demoravam a cumprir as ordens recebidas.

As medidas mais drásticas, todavia, foram tomadas no início de janeiro: a demissão do


Chefe de Polícia remanescente do governo Pena, a ordem de prisão contra os deputados e um
rígido controle sobre Recife, centro nevrálgico de abastecimento de munições e notícias sobre
o andamento da guerra. O novo titular da Chefia de Polícia, Figueira de Melo, mentor destas
últimas providências, passou a executá-las imediatamente à sua posse, em 9 de janeiro. Foram
presos vários expoentes e simpatizantes do Partido da Praia. Os tipógrafos-compositores do
Diário Novo foram chamados para o recrutamento do exército e o seu diretor, o general Abreu
e Lima, intimado a suspender a publicação de notícias da guerra. Assim, o governo suprimia o
8

maior vínculo de comunicação entre os resistentes da capital e do interior, e a mais eficiente


fonte de informação sobre o movimento das tropas do governo. A censura da imprensa
provocaria pânico e insegurança, pelo que se constata em várias cartas recolhidas nos Autos,
lamentando a falta de notícias (Autos, 1979: 38-40) 7. O controle do abastecimento de armas e
munições aos rebeldes foi realizado através da vigilância da polícia sobre a circulação de
pessoas e comboios pela cidade, impondo-se o salvo-conduto, fiscalização de cargas e
recolhimento de toda a munição existente para o Arsenal de Guerra. Os contatos entre a
capital e os núcleos de resistência do interior foram praticamente cortados. Mesmo o porto de
Gamela (Alagoas), ponto vital de desembarque dos recursos, passou a ser vigiado atentamente,
graças à conexão com as autoridades alagoanas. Como confessaria em sua Crônica (p. 139),
Figueira de Melo punha em prática métodos dos “países mais civilizados” do tempo, no caso
espelhando-se nas providências francesas estabelecidas na repressão às insurreições parisienses
desde a década de 1830.

No início de janeiro 1849, o grosso das tropas praieiras se aglutinou no sul da Província
-- embora preservasse alguns grupos em outras regiões para despistar as forças do governo --
onde poderia buscar refúgio mais seguro nas matas da região, e se organizar como um exército
sob um único comando. No final do mês de dezembro de 1848, foi escolhido um Diretório
Liberal, que reuniu membros de tendência moderada, o deputado Peixoto de Brito e Antonio
Afonso Ferreira e os republicanos, Manoel Pereira de Moraes e Antonio Borges da Fonseca. A
junção dos combatentes praieiros não passou desapercebida ao governo, que embora
desconhecesse as proporções exatas destas forças, decidiu deslocar seus contingentes para
aquela área na esperança de cercar e vencer definitivamente o inimigo. Ao mesmo tempo, na
capital, a Chefia de Polícia desenvolvia acurado controle sobre a população para cortar
prováveis remessas de munições e suprimentos.

Informado sobre estas determinações, o comando praieiro decidiu, a 26 de janeiro, por


uma marcha rápida em direção ao norte para ocupar Recife, quase desguarnecida de tropas, e
marcar uma vitória política sobre o governo, obrigando-o a negociar. Um contingente de 1.200
homens atacou a cidade a 2 de fevereiro de 1849, dividido em duas colunas, uma que avançou
pelo sul e, com êxito, chegou às portas do Palácio da Presidência e do Arsenal de Guerra; e
outra pelo norte que, não conseguindo vencer a barreira que se lhe opôs naquela região,

7 Os Autos do Processo da Rebelião Praieira foram publicados em 1979 pelo Senado Federal.
9

frustrou o plano de ocupação da cidade. Sem recursos para preservar sua posição, uma vez que
não recebeu maior respaldo da população e não conseguiu vencer as forças que defendiam a
capital, o partido praieiro não pode enfrentar o exército do governo sob a chefia do General
Coelho que, rapidamente, retornara ao Recife. Diante deste quadro, só restou a retirada.

Desfalcado em 500 combatentes, e deixando para trás, aprisionados pelo chefe de


polícia, refugiados ou mortos (caso do deputado Nunes Machado), alguns de seus
comandantes mais importantes, o exército liberal abandonou o campo de batalha dividindo-se
em dois grupos. O primeiro deles, liderado por Peixoto de Brito, Morais, Roma e Borges da
Fonseca, se deslocou em direção à Paraíba em busca de reforços, mas, perseguido pela forças
do governo, após sucessivas derrotas, acabou por se dissolver no início de março, com um
chefe morto (Roma), um preso (Borges), dois exilados (Morais e Peixoto de Brito) e vários
anistiados; e seus soldados em parte detidos ou, em outros casos, liberados para retornar a seus
engenhos. O segundo, que reuniu os combatentes do capitão Pedro Ivo e dos ex-delegados e
senhores de engenho do sul da Província, retornou a seu território de origem, onde, refugiado
nas matas, resistiu até o início de 1850, quando seu comandante os dispensou.8

A concessão da anistia ou do exílio a alguns comandantes foi um artifício para apressar


a desmobilização do exército liberal, a finalização da guerra e do processo que vinha sendo
instruído em segredo por Figueira de Melo contra os chefes aprisionados, de forma a
possibilitar o julgamento que, a 17 de agosto de 1849, os condenaria à pena exemplar – prisão
perpétua com trabalhos forçados no presídio de Fernando de Noronha – pelo crime de rebelião.
Tal desfecho, que surpreendeu os contemporâneos por sua rapidez e rigor, uma vez que a
Província ainda estava conflagrada e não fora possível uma avaliação mais precisa dos
acontecimentos, seria o ponto de partida para um outro confronto, de termos, acusações e
textos. Esta outra guerra contrapôs, num primeiro momento, personagens envolvidos
diretamente no conflito – os deputados Urbano Sabino, Peregrino Monteiro, Torres Homem e
o Chefe de Polícia – e, posteriormente, historiadores que os rememoraram, todos disputando a
primazia de conceituar com objetividade o conjunto de ocorrências que haviam conformado a

8 O capitão Pedro Ivo Veloso da Silveira foi atraído por uma promessa de anistia que, todavia, nunca foi

concedida. Preso no Rio de Janeiro, acabou recebendo o direito de exilar-se, medida que relutou muito em aceitar.
Faleceu a caminho da Europa. Os episódios aqui referidos foram pesquisados nos Autos do Inquérito da Revolução
Praieira. Brasília, Senado Federal, 1979; “Relatórios do Comando de Armas, 1849”. Revista do Arquivo Público.
Recife, Imprensa Oficial, 3(5): 307-700, 1º e 2º sem de 1948. MELO, J.M. Figueira de – Crônica da Rebelião Praieira
10

guerra civil pernambucana. Tratava-se de uma sedição, um movimento, uma insurreição, uma revolta,
uma rebelião, ou uma revolução? Nesta outra guerra de textos e conceitos o chefe de polícia que
dirigiu a repressão e instruiu o processo exemplar continuaria a ter um importante
desempenho: tornar-se-ia também historiador e criaria a versão que imperou sobre a memória
dos acontecimentos.

2. Figueira de Melo e a memória da revolta/rebelião/revolução Praieira


A pluralidade de termos aventados para designar o embate pernambucano ocorrido
entre novembro de 1848 e abril de 1849 pode ser compreendida, numa primeira aproximação,
a partir de duas ordens de evidências. Por um lado, em razão do sinuoso percurso das
operações de guerra – desde o simples acantonamento de forças particulares nos engenhos,
passando pelas escaramuças com tropas governistas até a formação de um “exército”
organizado que esteve perto de tomar a sede do governo; e dos diferentes objetivos dos
resistentes ao longo do conflito – desde a intenção de vencer as eleições simplesmente, até a
configuração de uma guerra civil cobrando a convocação de uma Assembléia Constituinte que
efetuasse reformas constitucionais. E, por outro lado, devido à preocupação dos combatentes
e, posteriormente, dos memorialistas, em recorrer a diferentes expressões – movimento, sedição,
revolta, rebelião revolução – afinadas com os objetivos mais imediatos dos personagens que
viveram a guerra ou dos intérpretes daqueles acontecimentos – se incriminar ou defender os
rebelados. Dessa forma, as referências inscritas nos documentos criados pelos praieiros
durante o desenrolar da guerra – pronunciamentos dos deputados, matérias do Diário Novo,
registros do arquivo do exército liberal, cartas e interrogatórios – são muito cuidadosas no
sentido de não utilizar palavras comprometedoras. Assim, a atuação dos combatentes aparece
sempre designada pela expressão movimento, exceção feita a uma carta de Borges da Fonseca a
sua esposa, datada de 20 de dezembro de 1848, na qual ele menciona “nossa revolução”. (Autos,
1979: 46-7) Enquanto isso, nos registros do governo, até 2 de fevereiro de 1849, dia do ataque
praieiro à capital – relatórios militares, textos de jornais, comunicados das autoridades – a
resistência é designada por sedição ou revolta e os envolvidos por sediciosos ou rebeldes, termos com
expressiva conotação criminal embora ainda despojados da contundência que assumiriam
posteriormente.

(1848-1849).2ª ed. Brasília Senado Federal, 1978. MARSON. I. A .- O Império do Progresso. A Revolução Praieira em
11

Porém, tendo como referência o desempenho do exército praieiro na invasão do


Recife, os termos dos interrogatórios dos réus já capturados (em especial Borges da Fonseca) e,
sobretudo, os documentos do arquivo apreendido às forças liberais (particularmente aqueles
referentes à organização militar), após o 2 de fevereiro, o chefe de polícia Jerônimo
Martininiano Figueira de Melo passou a instruir sigilosamente, para não prejudicar a
desmobilização das tropas praieiras, um processo denunciando os prisioneiros pelo crime de
rebelião, infração que nos termos da lei pressupunha os atos de: “reunir povoações compreendendo
mais de vinte mil pessoas para perpetrar os crimes de destruição da independência e integridade do Império, da
sua Constituição e da sua forma de governo, destituição do Imperador ou privação de sua autoridade
constitucional”(Autos, 1979: 426-30).9

Algum tempo depois, as falas do governo, públicas ou confidenciais – especialmente na


voz do Chefe de Polícia – avaliando o desempenho da Praia no presente (1848-1849) e no
passado (1842-1848), associariam as conotações dos termos revolta/rebelião/revolução. No
discurso proferido a 10 de abril na Assembléia Provincial o deputado conservador Antonio
Peregrino Maciel Monteiro oficializou aquela designação. Então, para configurar um crime
político longamente premeditado, sinônimo de convulsão da ordem e ameaça da propriedade
pois “era fruto de um plano concertado e executado pelo partido praieiro e levado do Rio de Janeiro para
Pernambuco pelos ex-deputados da Assembléia Geral”, a imagem da resistência praieira extrapolou os
episódios da guerra recentemente vivida e incorporou todo o tempo de atuação do partido na
política pernambucana. Nessa versão, a resistência também incluía uma etapa de “preparação
moral” desenvolvida nos anos precedentes à guerra civil, na qual a revolta tinha sido organizada
“excitando as paixões da plebe, até pregando o comunismo, a lei agrária, o que significava a pregação do roubo
dos bens alheios”. Os praieiros teriam infiltrado “nas massas incultas preconceitos funestos, por meio da
calúnia contra homens distintos” e, além disso, a revolta teria apresentado uma “preparação bélica
durante a administração praieira na Província de Pernambuco, quando foram distribuídas armas e munições à
polícia e à Guarda Nacional” (Marson, 1987: 23).

Os contornos da rebelião se fundamentaram, portanto, no desempenho da Praia antes e


durante a revolta e no veredicto do tumultuado julgamento irregularmente comandado –
segundo os termos do próprio Código do Processo – pelo juiz Nabuco de Araújo, um

Pernambuco (1842-1855). S. Paulo, Brasiliense, 1987.


12

adversário político público e notório dos réus; e realizado no Recife, cidade que fora palco da
guerra. Por sua vez, a condenação à pena máxima (a prisão perpétua com trabalhos forçados)
só foi possível mediante a adaptação de inúmeros procedimentos jurídicos relativos a esse tipo
de processo, e a interpretações inusitadas dos termos da lei que normatizava os julgamentos de
sedições e conceituava rebelião. Ao decidir pelo crime de rebelião, o julgamento pretendeu ajuizar
não apenas os acontecimentos de 1848-49, mas a conduta do partido praieiro em toda sua
história.

Inconformado com a condenação, o líder da deputação praieira na última legislatura


(1845-1848) Urbano Sabino Pessoa de Melo, escreveu a Apreciação da Revolta Praieira em
Pernambuco10 no intuito de negar a idéia de premeditação e o crime de rebelião. Denunciando as
manobras operadas no julgamento, já apontadas no libelo de defesa pelo advogado-réu Felipe
Lopes Neto, e repelindo a imagem do “plano concertado” ou da existência de “uma conspiração do
Partido da Praia”, Sabino fundou uma segunda interpretação para as ocorrências de
Pernambuco, concebendo-as como ato espontâneo de “legítima defesa das vidas e propriedades” dos
resistentes. A “insurreição”, depois transformada em “revolta” teria sido um expediente
extraordinário, porém legítimo, avalizado pelo apoio popular (de cidadãos proprietários), e
signatário das “luzes do século”, para enfrentar uma “conspiração/provocação” conservadora,
deliberadamente urdida com o intuito de arrebanhar o poder dos praieiros na Província. Por
sua vez, tal “conspiração” constituía um procedimento afinado com a política do novo gabinete
conservador que ascendera, por meio de um golpe e não de um revezamento natural dos
partidos, a 29 de setembro de 1848. Aos praieiros, naquele momento, não interessava uma
“revolta”, pois tinham o domínio do poder político em Pernambuco, respaldado no apoio da
maioria da população e na certeza de vencer as próximas eleições. E apontou os responsáveis
por esse plano provocador: os presidentes Pena e Tosta, e o chefe de polícia da última
administração, Figueira de Melo:

“Um partido político não recorre às armas, senão, perdidas as


esperanças de triunfo legal e pacífico, ou porque se ache em minoria
insignificante, ou porque a compressão do poder lhe tire todos os

9 A denúncia sobre o encaminhamento sigiloso foi feita pelo deputado Urbano Sabino Pessoa de Melo

no livro– Apreciação da Revolta Praieira em Pernambuco. R. de Janeiro, Typographia do Correio Mercantil, 1849.
10 A 2ª ed. foi publicada pelo Senado Federal em 1978.
13

meios e recursos constitucionais. O partido praieiro, porém, tem dado


provas estrondosas de sua imensa maioria; da força e energia, que lhe
resulta da dedicação e valor de seus partidários, e do apoio e simpatias
de quase toda a população.
Em 1844 venceu quase completamente a eleição de deputados; em
1845 venceu a eleição de senador...Os deputados tinham consciência
da força invencível do partido; ia abrir-se a campanha eleitoral, e eles
contavam com a certeza da vitória; em tais circunstâncias recorrer às
armas era suicídio...A revolta era o terror dos deputados e anelo dos
que a provocaram..
A liberdade e a vida são direitos naturais do homem, e foi para os
garantir que ele se reuniu em sociedade e criou o poder público. A
defesa natural é um dever sagrado, pois que o suicídio é um crime. Os
homens mais gravemente ameaçados em suas vidas, alguns já tinham
sido procurados em suas casas, tomaram armas, não para agredirem o
governo, e sim para se defenderem. Que outro recurso lhes restava?
Representarem ao governo? Já o tinham feito, era o mesmo governo
que armava e municiava seus inimigos mais rancorosos para os
exterminar. Emigrar? Mas tinham uma obrigação santa de protegerem
suas famílias e propriedades.
Nunca aprovamos, nem aprovaremos a revolta como princípio, mas se
há alguma justificável, é a de Pernambuco, que teve por base o dogma
da defesa natural...” (Pessoa de Melo, 1978: 39-42, 68).

Também invocando procedimentos dos conservadores num passado mais longínquo,


devolveu a acusação: provocadores de revoltas e agitadores tinham sido os guabirus durante o
período da administração praieira, quando recorreram a todos os meios para atrapalhar o curso
pacífico do trabalho do presidente Chichorro da Gama: agitação popular nos comícios
(meetings); ataque violento da imprensa denegrindo a atuação da Praia; anulação, por duas vezes,
pelo Senado, da escolha imperial que recaíra sobre dois nomes praieiros mais votados na
Província, Chichorro da Gama e Ernesto Ferreira França; e resistência armada. Para Sabino, a
anulação das eleições, particularmente as de 1847, fazia parte de um premeditado plano
conservador para derrubar o gabinete liberal, pois a elas se seguiu uma revolta armada em
Pernambuco, a Sedição de Lages, levada a cabo entre janeiro e abril de 1848 e debelada pelo
governo praieiro. Portanto, seu depoimento vai assim desvendando a ascensão guabiru ao poder
como um golpe articulado no qual foram utilizados os mesmos instrumentos e as mesmas
práticas agora apontadas para inscrever os praieiros na acusação de rebelião e ameaça à
14

integridade do Império: agitação popular, uso da resistência armada, enfrentamento da


autoridade pública (Pessoa de Melo, 1978: 39-40).

Porém, o texto de Sabino não vinha responder apenas à acusação formulada pelos
conservadores. Sua versão dos fatos, insistindo na tese da revolta espontânea em legítima defesa,
11
problematizou outra leitura liberal, a interpretação que os luzias divulgaram na Corte, ainda
em 1849, num panfleto de grande repercussão, O Libelo do Povo, de autoria do deputado Torres
Homem.12 Com argumentos diferentes dos de Sabino, Timandro justificou a Revolução Praieira,
instrumentalizando-a na campanha do Partido Liberal (liderado pelos luzias) contra o ato de
dissolução da Câmara ocorrido a 19 de fevereiro. Inscrevendo-a num longo processo de luta da
nação (iniciado em 1822) contra a tirania, no sentido de consolidar sua independência, o
movimento se tornou parte do percurso de um genérico Partido Liberal, símbolo de ideal
plenamente associado a anseios populares e democráticos, e legitimado por ser um sucedâneo das
revoluções liberais contra o absolutismo na Europa. Timandro exacerbou a crítica à monarquia
absoluta européia, com seu direito divino dos reis e suas cortes artificiais, reconstituindo
particularmente a história (em tom de farsa) da Casa de Bragança, para demonstrar que o
período regencial, especialmente o governo Feijó, fora o ápice da liberdade e democracia.
Nesse fundo histórico, a resistência da Praia seria, então, uma revolução liberal latu sensu,
própria das aspirações do tempo, uma resposta ao abuso do poder imperial e da Corte
manietados pelos defensores do absolutismo. Ainda, uma tentativa de desmascaramento da
monarquia constitucional praticada no Império, pois ela se constituía ora, numa “comédia de mau
gosto”, quando o poder moderador intervinha nos ministérios e no desempenho da Câmara; ora
num “drama sanguinolento”, quando os cidadãos, reagindo às interferências inconstitucionais dos
Príncipes, recorriam às armas e eram violentamente reprimidos. Com esse objetivo, o
movimento da Praia, ao tornar-se um dos episódios do embate entre a prerrogativa real e a
soberania popular que vinha se desenrolando desde a independência (ocorrera em 1822, 1824,
1831, 1837, 1842), se mesclou a todas as lutas liberais do passado, suas reivindicações se
confundiram com os ítens do programa liberal e sua estratégia de luta armada se igualou à

11 Alcunha dos liberais no sul, particularmente referente a paulistas e mineiros.


12 No texto, o autor se ocultou sob o pseudônimo Timandro. Ver também Marson, I. A. - “O Império da
Revolução: matrizes interpretativas dos conflitos da sociedade monárquica” IN: FREITAS, Marcos C. (org.).-
Historiografia Brasileira em Perspectiva. S. Paulo, USF/Contexto, 1998.
15

rebelião de S. Paulo e Minas Gerais ocorrida em 1842, entendimentos que Urbano Sabino
procurava, justamente, neutralizar.

Diante do impacto da dissolução da Câmara, da exclusão dos liberais nas eleições de


1849 e dos escritos de Sabino e Timandro, os conservadores se viram na contingência de expor
a sua versão da revolta/rebelião/revolução, missão avocada pelo agora ex-Chefe de Polícia Figueira
de Melo que, em 1850, apresentaria a interpretação mais detalhada sobre a guerra civil, A
Crônica da Rebelião Praieira em 1848 e 1849.13 Valendo-se da farta documentação que reunira no
processo, o autor reconstituiu minuciosamente a história do conflito armado, para tecer um
libelo em sua defesa e de seus correligionários, procurando divulgar e legitimar as razões da
condenação dos acusados e as medidas que a administração conservadora empregara para
debelar a “rebelião/revolução de caráter popular” (entendida negativamente), enquadrando no
Código Penal a acusação insinuada anteriormente por Maciel Monteiro.

Num recado prévio ao leitor, o ex-Chefe de Polícia explica os motivos que o levaram a
escrever a Crônica: rebater e destruir as acusações de usurpação atiradas por Urbano Sabino
contra ele e seu partido. Para fundamentar a legitimidade de sua narrativa, valer-se-ia de
procedimentos “científicos”, destacadamente a “recuperação da história” (através da cronologia e
dos documentos) e o “bom senso dos leitores” na interpretação das provas oferecidas. Ambos
seriam capazes de projetar um relato “imparcial e fiel” dos acontecimentos, posto que isento de
compromissos partidários. Desse relato, a rebelião deveria sair “desmascarada” em seus
propósitos anárquicos e revolucionários, derrubando todos os argumentos de Sabino e as
alegações dos rebeldes. Método e política foram imbricados, para isentar o autor e construir
uma obra ao mesmo tempo acusadora e relato “fiel e imparcial dos fatos”:

“Procuramos contar nela os fatos da rebelião pela ordem cronológica,


tanto quanto isso era compatível com a clareza, que julgamos
indispensável em tais assuntos (...)Finalmente entendemos, que
devíamos ser curtos em reflexões sobre os fatos da rebelião, ou
porque o bom senso dos leitores as supriria facilmente, ou porque os
mesmos fatos, apresentados em sua ordem histórica, mostrariam o
nenhum fundamento da revolta em seus princípios, a fraqueza de seus
meios, o perigo de suas aspirações, e os incalculáveis males que traria
ao Império, se o espírito revolucionário triunfasse.(...)

13 A 2ª edição foi publicada pelo Senado Federal em 1978.


16

Expor fielmente o que se fez, de uma parte para acoroçoar, armar e


justificar a revolta praieira, e da outra para a desmascarar nos seus
motivos, vencer, aniquilar nos seus meios, e mostrar a inexequibilidade
de seus fins será o objeto desta história, que nos propomos a escrever
sem o menor espírito de partido, com os olhos fitos somente na
verdade, fundado nos fatos de que fomos testemunhas, e nos
inúmeros documentos impressos ou manuscritos extraídos das fontes
particulares e dos arquivos públicos.(...)” (Figueira de Melo, 1978:
xxxi-xxxii, 12-13).

A própria disposição do relato quer demonstrar (“desmascarar”) não somente que


aconteceu uma rebelião, mas também que esta se confunde com revolta e revolução, não mais
pensada como recurso político das classes proprietárias para a obtenção de reformas
constitucionais, conforme pensavam Sabino e Timandro, e sim um movimento destruidor da
riqueza, da propriedade e da prosperidade, comprometido com os interesses das classes
desprovidas de ilustração e riqueza. Para isso, o autor também retomou a história do Partido
da Praia desde sua origem, de forma a apresentar os “rebeldes” como homens apegados ao
poder, – seu único cabedal – incapazes de realizar o jogo partidário de revezamento dos
partidos e de assumir uma derrota política cedendo “naturalmente” o lugar aos novos
vencedores e, principalmente, membros de um grupo que desenvolvia como prática
costumeira uma política sistemática de resistência à autoridade, às leis, às instituições. Figueira
de Melo (associando com astúcia as falas originalmente dissonantes da acusação no
julgamento, e o discurso de Maciel Monteiro) recuperou no passado o comportamento de um
partido sempre o mesmo, composto de aliados dos rebeldes de Minas Gerais, defensores da
anistia e, com ela, da rebeldia, conspiradores, agitadores, revolucionários e subversores da
hierarquia instigadores das “classes baixas da sociedade”, cujas reivindicações haviam encampado e
cujos procedimentos haviam instigado e incorporado. Além do liame com as “classes inferiores e a
desordem” como procedimento político, a resistência e a instigação praieira poderiam ser
reconhecidas ainda com maior intensidade na “política de facção” que a administração do partido
concretizara na Província. A Praia havia se apossado de forma absoluta dos cargos políticos,
militares e policiais e se recusado a entregá-los aos novos titulares conservadores, impedindo-
os de governar e criando uma situação de caos só comparável ao momento da Revolução
Francesa. Sendo a resistência um traço característico da atuação praieira, a rebelião foi uma
decorrência “natural”, prevista, planejada, para enfrentar as transformações que fatalmente
17

ocorreriam com a ascensão dos conservadores ao poder em setembro de 1848, e uma ação
política montada para impedi-los de exercerem este poder legitimamente conquistado e a que
tinham direito, pelo movimento “natural da alternância de partidos”. O empenho de remontar o
nascimento do Partido da Praia, destacou o compromisso deste com essas classes identificadas
com um conceito da revolução que remetia à “anarquia e desintegração do Império”. Assim, recursos
formais e a projeção de uma origem idealizada para a Praia, executaram a destruição da obra de
Sabino:

“(...) A leitura atenta, que fizemos dessa produção, convenceu-nos que


ela não é mais do que o espelho, em que se reflete os violentos e
apaixonados artigos dos jornais oposicionistas publicados durante essa
fatal luta(...) essa produção não respeita a verdade dos fatos, inverte
datas e faz juízos inteiramente parciais(...)” (Figueira de Melo,
1978:xxix)

Por ser parcial, e inverídico, sob argumentos falsos e explicações que mascaravam o
projeto de seu partido, o texto de Sabino não merecia respeito. O êxito da crítica de Figueira
de Melo pegou o ponto falho da outra interpretação, a falta de fundamentação de uma tese que
não convencia porque eivada de erros cronológicos e juízos explícitos. Daí a oportunidade de
ensinar um exemplo de como construir um texto político sem demonstrá-lo, pela obediência à
cronologia ordenadora dos acontecimentos, porém, uma cronologia inventada, na medida em
que, longe de recuperar o movimento ágil e contraditório dos acontecimentos, alinhou
formalmente, num primeiro momento, todos os episódios comprovadores da agressão do
opositor e, em seguida, os procedimentos de defesa do escritor; pela comprovação em
documentos escolhidos a dedo, e a inserção de poucos, porém estratégicos, comentários.
Alicerçada em tais recursos, a acusação passada no relato ganhava uma autenticidade e
capacidade de convencimento cujo trunfo decisivo era a prova, a documentação de que
Urbano não dispunha em abundância. Efetivamente, a propalada objetividade do historiador
era a transposição de normas e procedimentos do Chefe de Polícia na armação do processo-
crime, dois papéis desempenhados bem à vontade.

As imagens da rebelião/revolução projetadas por Figueira de Melo sobre a atuação praieira


em Pernambuco seriam retomadas e (re)elaboradas com mais sofisticação, em 1855, no
18

opúsculo Ação, Reação, Transação, duas palavras acerca da atualidade política do Brasil, obra que
sistematiza a história do Império desde a Independência até o gabinete da “conciliação”
presidido pelo marquês de Paraná (1853-56), escrita pelo jornalista e deputado conservador
Justiniano José da Rocha. Para esclarecer os leitores em geral e os políticos em particular sobre
o conteúdo, o significado, a conveniência e a possibilidade da “verdadeira transação” como
estratégia política, ou em outros termos da “verdadeira política de conciliação”, Rocha, inspirando-se
e respondendo ao texto de Timandro, faz uma reconstituição da história política Império até
aquele momento enquanto “um estudo refletido da história,[fundamentado] na ciência do político
demonstrada”. Nesse sentido, disciplinou e periodizou os acontecimentos submetendo-os a duas
leis – uma de “ação-reação”, que tornava esta história resultado de um processo cíclico e
inevitável de luta “instintiva e eterna” entre os princípios da “ação democrática e da reação monárquica,
ou entre a autoridade e a liberdade”; e outra do “progresso” que imprimiria a este ritmo a
possibilidade de algum avanço, quando a luta ação-reação fosse substituída pela “moderação e
racionalidade” da transação.

Tal processo já havia concretizado, entre 1822 e 1855, três períodos: um de “luta e
triunfo da ação democrática” (1822-1836), ou do predomínio da “revolução/anarquia – do qual
haviam resultado a independência, a Constituinte, a revolta de Pernambuco de 1824, a
revolução de 7 de abril e as rebeliões regenciais. Outro, de hegemonia da “reação monárquica” e
debelamento da “revolução/anarquia”(1837-1851) quando se desconstruiu a obra da democracia
consubstanciada nos termos do Ato Adicional de 1834. Participaram dessa desconstrução: a
Maioridade, a lei de interpretação do Ato Adicional; a reconstituição do Conselho de Estado; a
reativação do poder Moderador; a reforma do Código do Processo, da Guarda Nacional e a
compressão das revoluções liberais de 1842 e 1848. E um terceiro no qual abria-se a
possibilidade de transação (1852-1856), sinal de maturidade, ou de superação do predomínio
das paixões na política e do círculo vicioso da luta ação/reação.

Para Rocha, o período de hegemonia da reação se completou apenas em 1851, pois o


“poder estava muito forte para aceitar imposições da democracia”. A inexperiência política e falta de
conhecimento para perceber esta exigência histórica explica o insucesso das tentativas de
reformas liberais visando o equilíbrio entre ação e transação tentadas pelo gabinete Paula Souza, e
das rebeliões de 1842 e 1848. Impulsionados pela “vertigem revolucionária” dos movimentos
europeus, pela impaciência das paixões típicas da imaturidade política, os liberais praieiros
19

ignoraram a negociação, a razão pública e os recursos da Constituição “que não fora feita para ser
eterna” e estava preparada para acolher a lição da experiência e a lei do progresso. Preferiram
recorrer às armas para atingir seus objetivos:

“(...) O partido liberal não teve fé em si, nem confiou no futuro; quis
tudo apressar, e tudo comprometeu; quis evocar as paixões da revolta,
e teve de exagerar suas pretensões, a fim de dar arras a essas paixões
(...)” (Rocha, 1956:205).

Com esta consideração, Justiniano reiterou um conceito de revolução que já


apresentara nos comentários sobre a Confederação do Equador (revolta de 1824) sobre a
abdicação de Pedro I em 7 de abril de 1831. A revolução é sinônimo de violência, despotismo,
predomínio da paixão sobre a razão, ignorância da “ciência do político” demonstrada pela história;
ato ameaçador da nação, próprio de homens despreparados para o exercício do poder. Diante
dela, qualquer procedimento de contenção se justificaria, mesmo as mais drásticas medidas
tomadas pela reação monárquica contra os liberais em 1842 e 1848.

Mas, a interpretação mais recorrente na historiografia sobre a “revolta, insurreição, rebelião,


revolução” do Partido da Praia seria divulgada no final do século por Joaquim Nabuco na obra
Um Estadista do Império,14 versão que conciliaria todos os procedimentos, atributos e
denominações aventados anteriormente, e consagraria as leituras conservadoras de Figueira de
Melo e Justiniano José da Rocha, para caracterizar as ocorrências que conformaram a guerra
civil pernambucana. O texto de Um Estadista, no interior do qual o evento “Revolução Praieira”
resulta num capítulo importante15, teceu, conjuntamente, a biografia do pai do autor, o
ministro, senador e conselheiro José Thomaz Nabuco de Araújo (o juiz que presidiu o
julgamento dos praieiros), e a história da monarquia no Brasil até 1878. Homenagear a
memória deste personagem e demonstrar a superioridade da monarquia sobre a república

14 A 1ª edição foi publicada entre 1897 e 1899; a 5 ª e última é de 1997. A leitura feita por Nabuco seria

retomada em outras interpretações nas quais o embate sobre o significado da revolução teve continuidade, a
exemplo de: PRADO JÚNIOR, Caio – Evolução Política do Brasil e outros Estudos. S. Paulo, Brasiliense, 1933;
QUINTAS, Amaro – O Sentido Social da Revolução Praieira. R. de Janeiro, Civilização Brasileira, 1967; CHACON,
Vamireh – História das Idéias Socialistas no Brasil. R. de Janeiro, Civilização Brasileira, 1964; CARNEIRO, E. – A
insurreição Praieira. (1848-1849). Rio de Janeiro, Conquista, 1960.
20

foram as razões mais evidentes do livro. Dessa forma, Nabuco retomou o passado para
destacar a contribuição do regime monárquico parlamentar inscrito da Constituição de 1824 na
construção, sobrevivência e progresso da nação; no exercício do verdadeiro liberalismo, aquele
que permitia a prática da política civilizada; além de comprovar sua adequação as condições
históricas e físicas do país. Para ele, a república de inspiração girondina ou jacobina, sinônimo
de revoluções, anarquia, despotismo e risco à integridade do Império, constituía a negação da
obra monárquica e já tivera, sem sucesso, sua chance histórica na regência, período que
considera o momento da experiência republicana no Brasil. Nesse sentido, a narrativa, projetou
“a Praieira” como episódio exemplar das revoluções de inspiração republicana e jacobina
vivenciadas no período de afirmação do regime monárquico (1822-1848), e testemunho
cristalino da inadequação do regime republicano ao Brasil.

Fundamentando-se especialmente nos escritos do pai,16 de Figueira de Melo e de


Rocha, a narrativa priorizou, quase que exclusivamente, a atuação praieira no período que
antecedeu a guerra civil de 1848. Para ele, a “revolução” – inscrita no “movimento praieiro” – se
definia pela presença de “alguns atributos próprios da democracia: a força de um turbilhão popular”
(violência, indiferença a leis e princípios); “despotismo” (incapacidade de conviver com a
diferença e empregar meios muito mais enérgicos do que as resistências exigiam; embriaguez
pelo excesso de autoridade, todas características do jacobinismo); uma “reação instintiva” contra
a triste condição originada nos abusos praticados por indivíduos privilegiados em seus direitos.
Nesse sentido, a revolução da Praia seria um “movimento político e, principalmente, social” –
originara-se nas paixões e instintos constitutivos do comportamento das massas (no caso a
população de Pernambuco) instigadas por demagogos – as lideranças praieiras; e nos excessos
das classes “que se servem das delongas da lei para preservarem seus privilégios... os portugueses que
monopolizaram o comércio nas cidades e os senhores de engenho que monopolizavam a terra no interior”,
abusos habilmente explorados pelos políticos praieiros.

A “revolução” progredira, por um lado, devido aos “erros” do Partido Praieiro na


orientação do movimento: ele “não tinha disciplina” – congregava monarquistas e republicanos e

Denominado “A luta da Praia”. Nele os acontecimentos recebem várias denominações entendidas


15

como sinônimas: revolta praieira, revolução de 1848, revolução de Pernambuco, revolução pernambucana e
revolução praieira”.
16Particularmente ARAUJO, José T. Nabuco de – Artigos d ‘O Lidador. Recife, Typographia de M.
Figueiroa de Faria, 1845-1848. As eleições para senadores em Pernambuco; e Justa apreciação do partido praieiro ou história da
dominação da Praia. Recife, Typ. União, 1847.
21

seus chefes não dominavam seus correligionários, tanto que os deputados tiveram que
“promover uma guerra que não desejavam e não controlavam”; por outro, devido à “moderação” com que
o gabinete Olinda administrou, de início, a revolta. Errara o ministério de 29 de setembro que,
“por medo e finura” não enviara para a Província, logo no início do rompimento, um homem
forte e de “prestígio nacional” (como Honório Hermeto ou Caxias) e só dissolvera a Câmara dos
Deputados em fevereiro de 1849, quando poderia tê-lo feito em setembro de 1848. Ou seja,
nesta avaliação, Nabuco incorpora as críticas e sugestões do grupo político conservador
liderado na província de Pernambuco em 1848, por Nabuco de Araújo, Figueira de Melo, Paes
Barreto e Maciel Monteiro defensores, conforme vimos, de uma atuação mais drástica contra
os rebeldes praieiros.

Arrolando as razões do insucesso da revolução da Praia, Nabuco aponta: a ausência de


ajuda de outras províncias; o apoio “nos equívocos da prática liberal jacobina” – a impaciência em
aguardar a sua vez na seqüência dos partidos prevista no jogo parlamentar; a facilidade com
que, quando alijados do poder recorriam às revoluções; ao hábito de copiar as experiências
estrangeiras, inspirando-se, neste caso, na proclamação da República na França e no “fermento
socialista”; à “falta de um pretexto ou de um princípio por causa do qual fosse legítimo ensangüentar a
província”; até porque “o efeito da revolução de fevereiro na França estava gasto”; e à ausência de coesão
das lideranças do partido liberal (não se entendiam) razão porque o partido se esfacelou e não
conseguiu impedir, em setembro de 1848, a queda do gabinete Paula Souza e “fazer frente à
cerrada falange conservadora”. E à “inexperiência política e o radicalismo” dos praieiros, procedimentos
resultantes de sua origem e trajetória singular.

Buscando as razões deste comportamento, Nabuco reprisa procedimentos já realizados


por Nabuco de Araújo, Figueira de Melo e Maciel Monteiro, ou seja, avalia o desempenho
praieiro em 1848 a partir da história pregressa do partido na política provincial e geral. Dessa
forma, a Praia nascera de uma cisão interna ao partido liberal pernambucano e, por seu
jacobinismo político e falta de identidade com os liberais históricos de Pernambuco, Minas e S.
Paulo, nunca conseguira participar dos ministérios liberais. Chegara à presidência de
Pernambuco pela intermediação da facção áulica e ali fizera uma administração truculenta que
revolvera a província colocando-a num estado revolucionário. Na gestão Chichorro da Gama
(1845-48), para consolidar seu poder, fizera uma completa inversão administrativa e, pela
violência, alterara os costumes obrigando rendeiros e moradores a votarem contra seus
22

senhores tradicionais com quem tinham uma relação antiga e justa. Ainda, embora fizessem
proclamações monarquistas, aliaram-se a conhecidos políticos republicanos (Borges da
Fonseca, por exemplo) e adotaram um programa impraticável, que conciliava “o preconceito vulgar
e retrógrado da nacionalização do comércio a retalho, com a republicana e socialista reivindicação do trabalho
como garantia de vida para os cidadãos brasileiros”.

O fracasso da revolução deveria ser creditado também a três outras razões: a atuação
enérgica e oportuna de três administradores da Província – o presidente Tosta, o chefe de
polícia Figueira de Melo e o juiz Nabuco de Araújo; à experiência adquirida pelo partido liberal
para “resignar-se à vez do adversário”, e ao fato de o tempo das revoluções ter se esgotado, pois “o
organismo precisava de repouso”. Os argumentos se complementam: a atuação providencial dos
estadistas revela a ciência dos meios adequados para lograr a reeducação dos políticos
inexperientes e à percepção do percurso natural da história. Nesse sentido, eles foram também
responsáveis pela superação dos obstáculos que impediam o pleno exercício do sistema
parlamentar e, portanto, pelo ingresso do país em sua “grande era”, aquela das “lutas pacíficas”, e
do “verdadeiro liberalismo”. Esclarecem-se outros objetivos de Nabuco em privilegiar a análise da
“revolução praieira”. Além de torná-la um episódio sob medida para a crítica das revoluções de
caráter republicano jacobino, justificou a participação de Nabuco de Araújo no episódio,
particularmente sua cerrada oposição à Praia e a rigorosa sentença que aplicou aos rebeldes.
Tratava-se de uma grande causa. Seria uma punição exemplar e necessária, com o intuito de
por fim às revoluções, corrigindo a atuação dos liberais no jogo parlamentar, dispositivo que o
experiente e arguto juiz sabia ter duração limitada:

“Sabia que a pena de prisão perpétua durava apenas o tempo de se


acalmarem os ânimos e de deixar de ser perigoso para a ordem pública
a liberdade dos chefes praieiros... tinha certeza que a condenação seria
em pouco tempo nulificada pela anistia..” (Nabuco, 1936: 80, v. 1).

A versão “conciliadora” de Nabuco criou uma argumentação na qual todos os termos


referentes à guerra civil foram contemplados, mas sob a hegemonia da leitura e dos
significados a eles conferidos pelos repressores diretos da revolta – o Chefe de Polícia Figueira
de Melo e o juiz Nabuco de Araújo. Dada sua divulgação e domínio sobre o tempo, esta versão
acabou por fundar o fato “Revolução Praieira” e por imperar soberanamente sobre sua memória
23

impondo, a historiadores de tendências divergentes, senão opostas, a interpretação


conservadora sobre os acontecimentos. Conforme vimos, tal interpretação reproduziu
argumentos que, em sua origem, haviam sido uma acusação tecida nos Autos do Processo da
Rebelião, oficializada nos termos do julgamento presidido pelo juiz Nabuco de Araújo e gravada
na Crônica escrita pelo ex-Chefe de Polícia e historiador Figueira de Melo, registros
engendrados pelo sólido poder de intervenção que a Lei de Interpretação do Ato Adicional e a
Reforma do Código do Processo propiciaram à polícia e aos magistrados na política imperial.
Tal aparato franquearia os meios para um debelamento sumário das revoltas liberais ocorridas
na década de 1850 e tornaria estes magistrados, ao mesmo tempo, artífices e guardiães da
autoridade que, sem sombra de dúvida, resguardou, a duras penas, a “unidade política” do
Império Brasileiro.

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Typographia União, 1847.
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MARSON, Izabel Andrade - O Império do Progresso. A Revolução Praieira em Pernambuco (1842-
1855). São Paulo, Brasiliense, 1987
24

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ROCHA, Justiniano José da – “Ação Reação, Transação: duas palavras acerca da atualidade
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Paulo, Ed. Nacional, 1956 p. 163-218.
CRIMINALIDADE NO TRIÂNGULO MINEIRO: CRIMES E CRIMINOSOS NA COMARCA DE
UBERABA/MG (1890-1920)*
CRIMINALITY ON TRIÂNGULO MINEIRO: CRIMES AND CRIMINALS IN JUDICIAL DISTRICT OF
UBERABA, MINAS GERAIS, BRAZIL, 1890-1920.

MARCELO DE SOUZA SILVA**

Resumo
O início da república no Brasil é um momento privilegiado para se
estudar a atuação do Judiciário enquanto uma forma de efetivação de
projetos de transformação social. Este artigo é uma adaptação de parte
da dissertação de mestrado, defendida na Unesp, campus Franca, sob o
título “A lei e a (des)ordem: criminalidade e práticas da justiça na
Comarca de Uberaba, 1890-1920”. Aqui, são apresentados os resultados
da pesquisa realizada no Arquivo Público de Uberaba, no que diz
respeito à quantificação dos processos criminais lá encontrados.
Constatou-se uma predominância dos crimes contra a pessoa em todo o
período estudado e pôde-se, ainda, inferir aspectos acerca do
funcionamento da justiça na comarca uberabense, a qual, contrariando
visões do senso comum – segundo as quais este poder seria deficitário
em sua atuação repressora – mostrou haver uma preocupação em auferir
legitimidade da sociedade local através de uma atuação cotidiana que
parecesse a mais idônea possível. Por outro lado, enfrentava-se
problemas como o da grande extensão territorial da comarca, o que fazia
com que os crimes apreciados pelo Judiciário nos locais mais afastados
da cidade de Uberaba fossem aqueles cuja repressão era considerada
mais premente. Por fim, pôde-se traçar o perfil do criminoso que era
julgado na comarca, entendendo, dessa forma, um pouco mais da
dinâmica social local e suas relações com o cenário nacional.

Abstract
The onset of republic in Brazil is a privileged moment to study the action
of Judiciary like a mean to perform projects for social transformations.
This article is an adaptation from the master dissertation, defended in
UNESP/Franca, under the title “The Law and the (dis)order: criminality
and justice practices in the Judicial District of Uberaba-MG 1890-1920”.
Here, are presented the research conclusions from the executed work in
the Public Archive of Uberaba, concerning the quantification of the
criminal lawsuits there found. We confirmed a predominance of the
crimes against person in the studied period as a whole, and we could
deduce aspects concerning the justice functioning in the Judicial District
of Uberaba which, counteracting common sense visions – that this

* Artigo recebido em 15.01.2004 e aprovado em 29.03.2004.


** Mestre em História pela Unesp, campus de Franca/SP.
2

power would be deficient in your repressive action – showed that there


was a preoccupation in receive legitimacy from the local society by
means of a quotidian action that had seemed as soundness as possible.
On the other hand, there’d be problems like the Judicial District large
territorial extension, what resulted that the crimes that were appreciated
by the Judiciary, in the most asunder places from Uberaba, were the
crimes whose the repression were considered urgent. At last, we could
describe the outlaw profile that was sentenced in the Judicial District,
understanding, so, a little more the local social dynamics and its relations
with the national scenery.

Palavras-chave
Criminalidade – História - Uberaba/MG – Judiciário - República

Key words
Criminality – History - Uberaba-MG/Brazil – Judiciary - Republic

A progressão normal dos crimes acompanha o crescimento da


população, proveniente dos nascimentos e do concurso de forasteiros
estabelecidos aqui, centro comercial, intermediário de extensa zona do
interior. [...] Demais, a posição geográfica desta comarca, situada em
limites de vários Estados, concorre para a aglomeração desses elementos
perniciosos que se vão denunciando pela media crescente da atividade
criminosa.
Felício Buarque

O trecho acima pode não despertar a atenção do leitor, principalmente, devido à sua
aparente obviedade: bem sabemos que o índice de criminalidade está ligado diretamente ao
aumento populacional e ao crescimento urbano em geral (Fausto, 1984). Contudo, quando estes
argumentos são tomados em seu contexto histórico original – a cidade de Uberaba, em 1904,
dentro dos momentos iniciais da república – revela-se um cenário no qual a preocupação com o
aumento da prática criminosa é significativamente relevante; isto vem ao encontro daquilo que os
historiadores desenharam para este período, ou seja, a busca por mecanismos que garantissem a
ordem pública e, dessa forma, adequassem ou, em outra palavra, disciplinassem a gama de novos
personagens sociais – ex-escravizados, imigrantes – que, então, buscavam inserção. Desde o
início da república brasileira, os conflitos e as condutas anti-sociais eram considerados como
casos de polícia, logo, eram “espaço próprio onde a lógica da repressão se articulava às outras
3

práticas de controle com o objetivo de manter a ordem pública e o disciplinamento social”.


(Alves, 1990, p. 4)

O formato que adquiriu a prática dos crimes – sua distribuição geográfica, as


características dos criminosos – é o tema deste artigo. Discutir-se-ão os dados levantados na
pesquisa realizada no Arquivo Público de Uberaba (doravante, APU), obtidos por meio da
quantificação dos documentos judiciais. Os números encontrados na pesquisa foram relacionados
entre si com a ajuda de um programa de computador (o SPSS) e formaram as estatísticas sobre o
cenário criminal da comarca de Uberaba entre os anos de 1890 e 1920.1 Assim sendo, muito mais
que os números sobre a criminalidade regional, pretende-se observar a prática da justiça sob um
ponto de vista mais amplo, isto é, procurando identificar quais suas principais preocupações –
quem deveria repreender e em que circunstâncias de operação o faria – e, ainda, por conseguinte,
desenhar o mapa da criminalidade, cenário sobre o qual atuava o poder de justiça.

As estatísticas na história têm função complementar para a compreensão de determinados


fatos e processos; no caso da criminalidade, este recurso se mostra assaz importante para
traçarmos o mapa da conduta social do universo considerado (ou pretendido como) marginal,
isto é, com as estatísticas podemos compreender melhor a dimensão daquilo que escapava das
normas de comportamento social e, com isso, revelar os padrões e valores morais de um período.
A utilização deste recurso está cercada de controvérsias, as quais são constantes alvos de críticas
por parte dos historiadores e que, aqui, foram levadas em conta tanto na elaboração quanto na
análise dos dados levantados.

1. As estatísticas criminais: história


Em 1902, o presidente do Estado de Minas Gerais, Joaquim Cândido da Costa Sena,
escreveu que a estatística era “elemento indispensável à boa orientação das administrações”
(Sena, 1902: 25). A busca por uma orientação para a administração estadual levou o governo a
criar um serviço de estatística em 1894. Eram coletados dados com indicadores econômicos (da
produção e dos gastos), do crescimento populacional, da criminalidade, enfim, de todos os ramos

1 Este período foi escolhido com base em, principalmente, dois pontos: em primeiro lugar, está o início da

vigência do Código Penal da República, em 1890, já que, com este código, iniciou-se a estruturação das dinâmicas
sociais que se pretendia instalar no país. Em segundo, temos o fato de que neste período, a região correspondente à
comarca de Uberaba, passava pelas transformações características do final do Império e início da República, comuns
aos locais nos quais a historiografia, genericamente, passou considerar inseridos em um processo de efetivação do
sistema capitalista. Em outras palavras, a linha da ferrovia foi ali inaugurada (1889), chegaram expressivos
contingentes de imigrantes, começou a se delinear um centro urbano mais desenvolvido, ocorreu o início do
desenvolvimento da pecuária como principal atividade econômica, enfim, houve relevantes mudanças na dinâmica
política, econômica e social, as quais levaram à uma conseqüente transformação de todo os sistema de convivialidade
local. O final do período de estudo, 1920, é justamente o momento em que há a acomodação de todos esses fatores.
4

que os administradores achassem necessários para a melhor adequação das políticas públicas. No
caso da criminalidade, os resultados numéricos teriam por fim planejar as estratégias de atuação
da polícia e da justiça. Pretendemos, aqui, entender um pouco como era tratada esta questão na
visão, principalmente, dos presidentes do Estado de Minas Gerais e de um dos jurisconsultos de
Uberaba – o qual citamos no início do artigo – Felício Buarque.

Os relatórios dos presidentes trazem muitas informações sobre o ano anterior à sua
redação: o responsável pela administração estadual dissertava acerca da produção e do
desenvolvimento econômico, passando pelo funcionamento das repartições públicas,
descrevendo as circunstâncias da saúde pública à época e também trazia algumas considerações a
respeito do funcionamento da justiça e da polícia. Os relatórios eram, pois, divididos em tópicos,
sendo que nos interessam, para este capítulo, aqueles que tratam do “gabinete de identificação e
estatística criminal”.

No mais das vezes, os presidentes relatavam que os serviços de estatística funcionavam


bem, apesar da falta de conhecimento técnico dos agentes encarregados de levantar os dados.
Nada obstante, a inoperância do sistema de estatística criminal foi alvo de inúmeras críticas por
parte de quem observava essa situação naquele momento. Até mesmo o governo via dificuldades
em organizar tais dados e suas ações esbarravam, quase sempre, segundo o presidente mineiro
Francisco Antônio de Salles, na falta de recursos.

O levantamento da estatística criminal com dificuldades vai sendo feito,


tendo sido improfícuos os esforços empregados para se obterem dados
precisos de todos os municípios do Estado. Só de 58 municípios se
conseguiram mapas completos de estatística criminal nas prisões (Silva,
1906: 46).

Uberaba não era uma dessas cidades, segundo Felício Buarque, autor do artigo “A
criminalidade em Uberaba: ensaio de criminologia local”. Este texto é muito importante para este
trabalho, pois traz informações valiosíssimas quanto à organização da justiça em Uberaba. Seu
autor era promotor da cidade, cargo que deixava quando escreveu o artigo. Formado na escola do
Recife, ele realizou diversos trabalhos antes de aportar na cidade em 1900. Suas principais
preocupações repousavam no bom funcionamento da justiça, o que, na sua visão, aconteceria
quando houvesse a quebra da interferência política sobre a ação dos juízes e promotores. No
artigo estudado para este trabalho, Buarque trata da questão criminal local, revelando o cenário
em que vinha funcionando a justiça. As principais notas que faz são quanto à inadequação do
5

sistema judiciário à conjuntura criminal de Uberaba – cidade importante da região que, segundo
este autor, vinha experimentando crescentes índices de criminalidade. Ele alega que somente por
meio das estatísticas se podia estudar e comparar os fatos políticos, econômicos, sociais e naturais
através do tempo e do espaço. Na sua visão, o serviço de estatísticas no Brasil era imperfeito e
deficiente, pois não estaria presente nas manifestações da vida ativa, isto é, não era utilizado
adequadamente para a implementação de políticas públicas. A situação deste serviço, no que se
refere aos números criminais em Minas Gerais, também é criticada por Buarque que diz ser sua
organização precária e simples, agravada pela relutância dos responsáveis pelo policiamento local
em remeter ao chefe de polícia estadual os mapas de dados, o que estaria acarretando uma série
de embaraços à administração policial do Estado.

Ainda segundo aquele autor, os servidores públicos seriam, em geral, muito mal
remunerados e, no caso específico da administração da justiça, isso teria conseqüências nefastas.
Os funcionários do Judiciário, sem salários expressivos, estariam presos à “partidarismos”,
atendendo aos desígnios das elites locais em troca de favores financeiros. Essa constatação era
fruto, talvez, da experiência de Buarque, o qual já havia sido promotor em outras cidades e
sofrera com as tentativas de manipulação por parte dos “comandantes” locais. No relatório 1906,
o presidente estadual Francisco Antônio de Salles chega a admitir a necessidade de remuneração e
militarização da força policial, mas alega total falta de recursos para isso.

Dessa forma, o cenário que se desenha é de um grande desencontro ao que se pretendia e


o que era possível realizar. Vale lembrar que o discurso de Felício Buarque no ponto referente à
remuneração vem no sentido não só de levantar um problema do aparelho judiciário, mas
também de fazer uma defesa dos funcionários públicos – categoria à qual ele pertencia – por isso,
devemos ter a clareza de que sua postura crítica nem sempre pode significar uma real falta de
operacionalidade da prática judicial. Da mesma forma, não podemos tomar como certas as
afirmações dos presidentes mineiros, para quem quase tudo corria perfeitamente sob seu
controle, visto que não apontavam os problemas comprometedores do sistema. Acreditamos que
a síntese deste embate esteja no que pretendemos mostrar a seguir: não obstante os problemas
organizacionais, o Poder Judiciário funcionava e havia pessoas interessadas em que isso ocorresse
da maneira mais correta possível. As reflexões de E. P. Thompson, em sua obra Senhores e
Caçadores – sobre as origens e a implantação da Lei Negra na Inglaterra – podem ser utilizadas
para que entendamos essa questão. Segundo este historiador, a lei deve ser entendida não apenas
como um mecanismo de repressão de uma classe, mas também como um conjunto de normas
que, para alcançar a legitimidade perante a sociedade, deveriam parecer efetivamente justas (Cf.
6

Thompson, 1987). No caso do Judiciário é a mesma coisa: para obter o respeito e a confiança de
todos, a dinâmica deste poder deveria ser (ou parecer) a mais reta possível.

Continuando suas críticas, Felício Buarque procede a uma pesquisa junto aos autos – já
que o Estado não realizava o serviço adequadamente na sua visão – para “conhecer a
administração da justiça, a ordem e a segurança pública, o número, a qualidade e o julgamento
dos crimes” (Buarque, 1904: 139). Ele faz uma distinção entre a estatística policial e a criminal,
sendo esta última relativa aos julgamentos e condenações; estas duas se completariam, segundo
suas palavras,

[...] por seus objetivos e fins [...]: enquanto uma relata ocorrências,
deliberações e diligências mais importantes da polícia a bem da ordem e
da segurança pública, a outra faz conhecer a qualidade e número dos
crimes, seu julgamento em lugar e tempo determinados, a administração
da justiça, a forma do desempenho de seus deveres e as condições
morais e intelectuais dos réus. (Buarque, 1904: 116)

Buarque fez este levantamento na Comarca elaborando uma tabela sobre a movimentação
do fórum local desde 1901 até setembro de 1904. Seu trabalho consistiu em analisar cada auto
processual, tarefa que declarou haver sido penosa, admitindo, também, o fato de que seus dados,
provavelmente, estariam “incompletos em relação ao número de processos apresentados a
julgamento” (Buarque, 1904: 166)

Buarque mostrou, de acordo com o movimento do fórum, que, quanto ao número de


processos em julgamento, havia uma tendência de crescimento e, principalmente, que havia um
grande número de absolvições. Neste ponto ele aproveita para fazer duas críticas: a primeira é
contra o tribunal do júri, o qual absolveria a maioria dos criminosos. Esta crítica era feita por
muitos juristas da época, os quais consideravam absurda a atuação de jurados leigos na prática de
uma ciência que, na visão de seus estudiosos, tornava-se, tecnicamente, cada vez mais apurada. A
segunda crítica era contra a polícia, por esta não ser capaz de satisfazer as necessidades da justiça
– capturando os criminosos e procedendo a boas investigações. Foi feito pelo autor o cálculo de
que mais de 50% dos réus escapavam do julgamento por falta de provas, ou seja, por uma
investigação mal conduzida. A ação da justiça, segundo Buarque, começaria onde termina ação da
polícia e, dessa forma, conclui que não estaria sendo positiva – no sentido da repressão ao crime
– a ação judicial na comarca de Uberaba.
7

Ainda é oportuno lembrar que, entre os motivos que levaram Felício Buarque a escrever
este artigo, além da clara preocupação com o bom funcionamento da justiça, está a defesa de sua
classe – funcionário público – e, ainda, tantas outras motivações que não podemos identificar
com precisão. Ainda assim, tanto os dados levantados por este promotor quanto as análises por
ele empreendidas, mesmo ao tratarem de poucos anos em relação aos que pesquisamos aqui,
fornecem bases para uma melhor compreensão das estatísticas criminais aqui apresentadas, bem
como para o conhecimento da dinâmica cotidiana do trabalho do Judiciário na Comarca de
Uberaba.

2. As estatísticas criminais: os crimes e os criminosos


2.1. Os crimes...
O levantamento dos dados relativos à criminalidade, feitos por meio dos processos
criminais, tem caráter de “aproximação geral”, principalmente, por não refletirem o que, segundo
Fausto, seria uma expressão um pouco mais realista do cenário criminal, devido ao fato de se
tratarem de julgamentos, ou seja, a maior conseqüência de uma ação criminosa. Isto faz com que
os crimes que mais aparecem não sejam, talvez, os mais praticados e, sim, aqueles cuja
preocupação em julgar era maior.

Os crimes que passaram pela justiça na Comarca de Uberaba são, em sua maioria, contra
a pessoa. Os homicídios, tentativas de homicídios e agressões figuram com 74,2%,
aproximadamente, do total de crimes. A tabela 1 mostra a distribuição percentual deste e de
outros dos tipos delitos julgados.

TABELA 1
TIPOS DE CRIMES JULGADOS NA COMARCA DE UBERABA/MG 1890-1920
Tipo de Crime Quantidade %
Crimes contra a pessoa 915 74,2
Crimes contra a propriedade 181 14,6
Crimes contra a honra e honestidade das famílias e ultraje ao pudor 36 3,0
Crimes contra a boa ordem e administração pública 30 2,4
Contravenções 28 2,3
Crimes contra a honra e a boa fama 17 1,4
Crimes contra a segurança interna da república 11 0,9
Crimes contra a Fé Pública 7 0,6
Crimes contra a tranqüilidade pública 6 0,5
Crimes contra a segurança do estado civil 2 0,1
Total 1233 100
Fonte: APU
8

A separação dos tipos de crime e contravenções foi feita com base no Código Penal de
1890. Para fins de quantificação foram arrolados todos os crimes separadamente e,
posteriormente, agrupados de acordo com o que dispõe aquele código de leis com relação aos
crimes e contravenções. Porém, para efeitos de melhor visualização e análise, foi feita uma
alteração nesta divisão. Nos casos de crimes contra a propriedade, estão juntos dois tipos de
crimes que o código classifica separadamente, quais sejam, os furtos e os roubos. O primeiro é
classificado como “crime contra a propriedade pública e particular” e figura neste título junto
com outros crimes como o dano material, a falência, o estelionato e as fraudes. Aí estão os crimes
que não envolvem ameaça nem qualquer tipo de contato com a vítima. Já os roubos estão em
outro título devido, justamente, a essa questão da ameaça de ofensa à vítima para a obtenção de
qualquer de seus bens por parte do criminoso. No título “crimes contra a pessoa e a propriedade”
está, além do roubo, o crime de extorsão. Esta junção se deu pelo fato de que, dessa forma, pode-
se realizar melhor análise, já que estes crimes, em essência, são criminalizadas pelo mesmo
motivo, qual seja, a defesa da propriedade privada.

Para os demais crimes foi mantida a classificação feita pelo Código Penal de 1890.
Vamos, então, a partir de agora, analisar estes dados em seus aspectos mais relevantes e de
acordo com o grau de incidência ou, melhor dizendo, a eficiência da justiça no julgamento de
delitos, em busca de entender quais seriam os delitos cuja criminalização mais interessava à
justiça, porquê e algumas das implicações disso na sociedade local.

Claramente percebemos, então, a grande incidência de crimes contra a pessoa na Comarca


de Uberaba. Antes de nos determos sobre estes dados, vejamos um outro tipo de delito que é
muito recorrentemente estudado pela historiografia: as contravenções penais. Figurando dentre
os crimes menos julgados, estes são alguns dos delitos mais perseguidos pela polícia, incluindo aí
a prática e venda de jogo de azar, jogo do bicho, porte ilegal de arma, entre outros que tinham
uma menor proporção de julgamentos como a vadiagem, manutenção de casa de tolerância e
prostituição. A polícia tinha um caráter disciplinador um tanto diferenciado do Judiciário. Ela
lidava, no seu cotidiano, com a normatização dos comportamentos desviantes daquilo que se
exigia como padrão para uma sociedade que pretendia se modernizar. Em suas mãos – da polícia
– repousavam os instrumentos de demarcação dos comportamentos dos grupos sociais (Cf.
Bretas, 1997).

Os dados nos levam a crer, pois, que a ação da justiça era mesmo diferente, o que não
quer dizer que a polícia não se preocupava com os delitos contra a pessoa, sendo, na verdade, o
contrário. A repressão às contravenções penais – efetuada pela polícia por meio de prisões as
quais nem sempre eram acompanhadas de um processo – tinha o caráter de evitar que qualquer
9

ofensa às pessoas pudesse tomar lugar. O conceito de contravenção trata de um tipo de delito
com grau de importância menor que simbolizaria “um passo para o crime”, tendo em vista os
locais onde se praticariam tais delitos, como as casas de prostituição, de tavolagem (jogos), bares,
etc., e, ainda, pela falta de ocupação dos delinqüentes, no caso da repressão à vadiagem e
capoeiragem (Cf. Salvadori, 1990: 47). Quando se faz a análise da criminalidade com base nos
dados da polícia, principalmente o número de prisões, notamos uma maior relevância das
contravenções, então, devido a esta sua característica.

Como dissemos acima, a repressão às contravenções era um meio de fazer com que os
indivíduos com tendências criminais e os locais “devassáveis” deixassem de representar perigo de
aumento da criminalidade. No que se refere, porém, à criminalização por parte da justiça, ela
podia apresentar-se em menor escala devido à ineficácia de aplicação prática destas leis. Por
exemplo, Felício Buarque afirma que as leis contra a vadiagem não tinham como concorrerem
para a diminuição da criminalidade, posto que eram pouco eficientes no combate à vadiagem e ao
ócio, delitos os quais, segundo ele, eram as causas do aumento da criminalidade na comarca
uberabense.

Ainda assim, cremos que a justiça em Uberaba, segundo a tabela 1, preocupava-se em –


mais do que encontrava melhores condições para – julgar aqueles crimes que, na sua visão,
traziam prejuízos maiores para a sociedade: os crimes contra a propriedade – furtos e roubos – e
contra a pessoa. Não querendo isso significar que a criminalização dos demais crimes não fosse
importante, ou mesmo que houvesse uma ação deliberadamente racional por parte dos agentes
do Judiciário neste sentido. O que podemos inferir, sempre lembrando que as bases para essas
afirmações são os dados levantados, é que havia a tendência a um maior número de julgamentos
deste tipo de crime e que estes crimes tinham uma incidência preocupante aos olhos dos
membros do Judiciário.

No caso dos crimes contra a propriedade a intenção da instituição judiciária era,


provavelmente, reforçar o caráter criminal da apropriação indébita dos bens alheios,
contribuindo, dessa forma, com a disciplinarização daqueles que não se adequavam ao estilo de
vida que então se impunha, qual seja, o de que somente o fruto do trabalho tido como honesto
poderia ser utilizado como forma de garantia material da subsistência. Levado-se o contexto local
em consideração, centrando-se a atenção no centro urbano uberabense, essa tendência vem no
sentido da discussão feita pelos contemporâneos, os quais viam no aumento da criminalidade
uma ameaça ao desenvolvimento da região. O desenvolvimento comercial da região com certeza
influenciava a criminalização deste tipo de delito, o qual atentava contra os princípios do ganho e
da vida honestas. Assim como os vadios, pedintes e outros “desocupados”, os ladrões eram
10

aqueles cuja disciplinarização era premente para a nova lógica sócio-econômica do trabalho que
ora se implantava.

O grande número de crimes contra a pessoa traz para Uberaba uma característica comum
às cidades do interior, marcadas pelo que Maria Sylvia de Carvalho Franco chamou de “código do
sertão”. Em situações de desavenças pequenas, ela constatou que grande número dos casos
mostrava uma regularidade no traço do desfecho violento. Por motivos quase banais aos nossos
olhos, homens se matavam e, ainda assim, dificilmente gozavam de desprestígio junto à
comunidade, a qual encarava essa atitude como um modo de defesa da honra.

[...] os ajustes violentos não são esporádicos, nem relacionados a


situações cujo caráter excepcional ou ligação expressa a valores altamente
prezados os sancione. Pelo contrário, eles aparecem associados a
circunstâncias banais, imersas na corrente do cotidiano. (Franco, 1983:
28)

A discussão a respeito das causas das rixas e brigas na resolução de conflitos cotidianos é
bastante interessante e as cidades mais fortemente ligadas ao ambiente rural pouco foram
estudadas pela historiografia. Sidney Chalhoub faz uso de processos criminais para resgatar o
cotidiano das classes trabalhadoras no Brasil do início do século XX, no Rio de Janeiro.
(Chalhoub, 2001) Ele mostra que havia uma preocupação grande com a imposição de uma
disciplina do trabalho e os crimes explicitariam a resistência das classes trabalhadoras em se
adequarem ao novo modelo econômico social, cujo processo de instalação veio junto com a
República. Para ele, a rixa era um processo no tempo que vinha moldando a já existente
indisposição entre dois indivíduos – preenchendo-a de motivações de ambas as partes envolvidas
– e que culminava no momento do desafio, cujo desfecho era o conflito violento; ou seja, no
estudo de seus casos, Chalhoub constatou que a rixa era fruto da dinâmica “de funcionamento e
ajuste das tensões dentro do microgrupo sociocultural estudado”. (Chalhoub, 2001: 310) Ele
considera, pois, que o uso da violência não seria gerado por motivos frívolos e, ao contrário, seria
“o resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros de uma cultura ou
sociedade”. (Chalhoub, 2001: 310) O uso da violência seria, então, socialmente aceito como meio
de resolução de conflitos, mas um meio normatizado, visto ser parte de um processo cognoscível
pelos indivíduos envolvidos, onde cada papel teria um desempenho previsível. Não cabe aqui
uma busca por respostas quanto a questão das causas deste tipo de criminalidade, até porque,
dessa maneira, estar-se-ia enveredando pelos caminhos complexos da interdisciplinaridade com a
antropologia e a psicologia. Contudo, vale a pena deixar registrado que este grande número
11

crimes, ou pelo menos a sensação de uma crescente criminalidade, estava presente nas
preocupações dos contemporâneos.

A característica segundo a qual a violência seria, até certo ponto, socialmente aceita,
também é levantada por Felício Buarque quando este argumenta sobre a falta de comoção
pública para com os crimes em Uberaba. Ele explica que o grande número de brutalidades contra
as pessoas seria fruto do pouco prestígio das instituições garantidoras da ordem social. Felício
Buarque acreditava, ainda, que a alta criminalidade seria uma conseqüência de múltiplas causas de
ordem moral, social e política. Aliada à falta de civismo por parte da população e de altruísmo
para com os interesses públicos por parte dos funcionários da justiça, a ação contra os crimes não
tinha oposição. (Cf. Buarque, 1904) Ele escreveu:

Acresce, além de tudo, a circunstância de os grandes crimes não


comoverem quase o espírito público, já afeito a presencia-lo com
indiferença, como se não lhe interessasse a prática desses atentados que
se reproduzem, no correr dos tempos, em progressão crescente. (Cf.
Buarque, 1904: 37)

O aumento dos índices de criminalidade, durante o período estudado, era explicado pelos
contemporâneos em função do argumento do crescimento das cidades. Uberaba, principalmente
depois da chegada da ferrovia, em 1889, tornara-se um importante centro regional, atraindo um
contingente populacional expressivo, inclusive de imigrantes estrangeiros, apesar de esta não ser
uma região preferencial na introdução destas pessoas devido a escolhas feitas pelo governo
estadual.(Cf. Silva, 1998) A população, em meados do período estudado, segundo o
recenseamento de 1909, era de 35 mil pessoas (recenseamento encontrado no Almanack
Uberabense, realizado nos dias 13, 14 e 15 de julho de 1909. Biblioteca do Arquivo Público de
Uberaba, caixa 17). Este era o contingente de pessoas que concorreu, segundo contemporâneos,
como Felício Buarque, para um aumento da ineficiência da justiça.

Apesar da população não ser muito expressiva quando comparada aos grandes centros,
principalmente em relação às capitais, cabe ressaltar que Uberaba era uma dentre as principais
cidades de Minas, figurando juntamente – em importância política e econômica – com Juiz de
Fora e Ouro Preto, por exemplo.2 Outrossim, Uberaba era a sede de uma comarca de proporções

2 Segundo as análises feitas nos relatórios dos presidentes do estado mineiro, os quais apresentavam a região

como preferencial para a instalação de prédios com repartições públicas estaduais. Esta aparente relevância dava-se,
eminentemente, também devido à necessidade de integração do Triângulo ao resto de Minas Gerais, tendo em vista o
12

geográficas bastantes expressivas; pensando nisso, Felício Buarque alerta para o fato de que para
uma boa administração da justiça seria necessária uma adequação da estrutura de funcionamento
judicial ao tamanho da área por ela abrangida. A comarca de Uberaba, segundo ele, era muito
grande e incorporava, além de seus distritos – Conceição das Alagoas, Dores do Campo Formoso
(atualmente chamada de Campo Florido), Veríssimo, Água Comprida e Ponte Alta – também
outras cidades circunvizinhas do Triângulo Mineiro.3 A tabela 2 traz a distribuição dos
julgamentos dos crimes segundo os distritos em que foram praticados.

TABELA 2
NÚMERO DE PROCESSOS EM CADA DISTRITO E CIDADES QUE COMPUNHAM A COMARCA DE
UBERABA - 1890-1920
Distrito Quantidade %
Uberaba 1025 83,2
Conceição das Alagoas 82 6,6
Veríssimo 68 5,5
Dores do Campo Formoso 25 2,0
Ponte Alta 15 1,2
Uberabinha 5 0,4
Água Comprida 4 0,3
Frutal 2 0,2
Sacramento 2 0,2
Araguari 2 0,2
Bagagem 1 0,1
Delta 1 0,1
Conquista 1 0,1
Total 1233 100,0
Fonte: APU

Como se pode notar, a maioria dos crimes ocorriam em Uberaba e, por se tratar de uma
estatística elaborada com base em processos, não se deve esquecer de mencionar o fato de que
talvez o mais óbvio a se concluir pode não ser o mais correto. O mais óbvio seria de que
Uberaba, por ser a maior cidade, centro comercial, teria um contingente maior de incidência
criminal ou mesmo de criminosos em meio à sua população. Mas, por outro lado, o próprio
Felício Buarque já alertava que as distâncias impediam o funcionamento correto da justiça,
fazendo com que os crimes de menor gravidade quase nunca chegassem ao conhecimento do
Judiciário.

fato de esta região estar muito mais ligada, econômica, social e culturalmente ao estado de São Paulo. (Cf. SILVA,
1998, passim).
3 Estas cidades são: Uberabinha (atual Uberlândia), Frutal, Sacramento, Conquista e Araguari.
13

Nos distritos do interior fica impune grande parte dos crimes por
condescendências pessoais ou partidárias. E, algumas vezes, acontece
que as autoridades, julgando-se fracas para o desempenho de seus
deveres, não procedem às diligências preparatórias para a instauração de
processo, não chegando, assim, o fato criminoso ao conhecimento dos
poderes competentes. (Buarque, 1904: 68)

Isto, refletido em números, tem o seguinte aspecto: por exemplo, dos 82 processos que
constam como crimes ocorridos em Conceição das Alagoas, 29 são por homicídio e 25 por
tentativa de homicídio; isto significa que, 54 processos, ou 65%, aproximadamente, dos casos
analisados pela justiça são de crimes de maior gravidade dentro dos valores e da compreensão
moral vigente até os dias de hoje. Em outras palavras, a quantidade inexpressiva de casos de
julgamentos de outros tipos de crimes se deve não à inexistência destes nos distritos da cidade e,
sim, pelo fato de que problemas como a distância – que dificultava a comunicação dos agentes
policiais locais e judiciais da comarca – praticamente tornavam inviável uma ação penal contra
outros alvos tradicionais da repressão do início da república, como a vadiagem, o jogo, a
prostituição, entre outros. Isto também pode nos levar a crer que a justiça nestes locais talvez
fosse menos presente, prevalecendo as resoluções tomadas pelos líderes da comunidade –
representados pela figura do delegado ou do padre, por exemplo. Este argumento poderia se
tornar inválido à medida que se observa o fato de, em Uberaba, os processos de homicídios e
tentativas de homicídio representam mais de 70% dos casos. Contudo, os casos de crimes com
menor contingência no total e as contravenções, como aquelas citadas acima, estão presentes,
quase que exclusivamente, em Uberaba. Isto indica, possivelmente, uma dinâmica na qual
somente os crimes de maior impacto seriam resolvidos na instância da Justiça Penal. Em outras
palavras, caso ocorressem faltas delituosas menos graves, na visão dos contemporâneos, estas
eram, provavelmente, resolvidas pelas autoridades locais sem a recorrência ao sistema judicial.
Reforça-se, assim, a idéia de que a distância tinha peso para o bom funcionamento da justiça. 4

Felício Buarque indicou um aumento da criminalidade que ele classificou como


progressivo por meio da análise do movimento do fórum. Segundo o promotor, isso seria fruto
da inoperância da justiça e da falta de senso moral da população. No entanto, devemos lembrar
que Buarque também queria apresentar um cenário de aumento dos delitos. A observação do
gráfico 1 dá uma idéia da linha de progressão da criminalidade.

4 Sendo este “bom” entendido, aqui, como passível de ser acionada em qualquer situação de transgressão da
lei.
14

GRÁFICO 1
DISTRIBUIÇÃO DAS OCORRÊNCIAS NO PERÍODO DE 1890-1920, COMARCA DE UBERABA/MG.
70

60

50

40
Número de Casos

30

20

10
1890 1894 1898 1902 1906 1910 1914 1918
1892 1896 1900 1904 1908 1912 1916 1920

Anos

Fonte: APU

A incidência de delitos que chegam ao tribunal tem um comportamento muito instável


durante o período estudado, alternando momentos de crescimento e queda, mas os dados do
gráfico 1, ilustram, a partir de 1890, um movimento de ascendência que parece se estabilizar nos
primeiro anos do século XX. Esta constatação se torna mais visível quando se separam as
ocorrências em períodos de cinco anos, conforme exposto na Tabela 3.

TABELA 3
NÚMERO DE CASOS JULGADOS EM PERÍODOS DE CINCO ANOS – COMARCA DE UBERABA, 1890-
1920
Períodos Número de casos %
1890-1895 120 9,8
1996-1900 192 15,6
1901-1905 216 17,5
1906-1910 238 19,3
1911-1915 237 19,2
1916-1920 230 18,6
Total 1233 100
Fonte: APU
15

Como foi dito, há um movimento de ascensão, quando o número de casos aumenta cerca
de 60% (entre 1890 e 1900), e depois de estabilização, quando a variação média é de algo em
torno de 4%. Esse aumento tem, certamente, causas repousadas no incremento da população
com a introdução do imigrante, mas podem também refletir uma acomodação da instituição
judiciária a uma dinâmica de trabalho mais intensa, já que (não devemos esquecer), antes de um
trato da criminalidade, estes números revelam a eficiência do serviço judicial. Isto nos leva a
pensar, pois, em uma dinamização das atividades judiciais em virtude de um possível
desenvolvimento dos aparelhos de funcionamento da justiça em Uberaba. Uma outra observação
a se fazer é a respeito da brusca queda ocorrida nos julgamentos, no ano de 1920: ela se deu,
provavelmente, devido ao problema do sub-registro, visto ser pouco provável que a justiça
diminuísse tão bruscamente sua eficiência e na proporção como a demonstrada no gráfico.5 No
início de 1890, também há um número muito pequeno de crimes julgados – coincidentemente o
mesmo número encontrado para o ano de 1920 – porém temos motivos para acreditar que estes
dados tenham explicações diferentes, principalmente porque tratam de períodos distintos. No
início da República a adaptação ao novo regime decididamente teve alguma influência na pouca
atuação judicial. No entanto, há bem menos motivos para se acreditar que essa situação pudesse
ser semelhante em 1920, até porque é este período muito peculiar na história uberabense, pois a
cidade começa a experimentar os frutos do desenvolvimento da economia pecuária – que
mudaria a face da região a partir de então – e, por isso, a criminalidade “real”, assim como o
movimento judicial, não teriam motivos para diminuírem.

Segundo Antônio Luiz Paixão – em texto escrito em um momento no qual se dava


prioridade à observação de outras estruturas para a análise da incidência criminal, no caso, a
distribuição material dos bens gerados pelo desenvolvimento do centro urbano – o aumento da
criminalidade relacionada ao crescimento urbano poderia ser explicado de duas maneiras: em
primeiro lugar, por meio da teoria de que o crescimento urbano criava barreiras de acesso às
benfeitorias e produtos da cidade, levando, dessa maneira, as classes subalternas ao crime.
(Paixão, 1983) A outra teoria diz que o aumento da criminalidade entre os subalternos seria uma
estratégia de revolta por sua parte diante da acentuação das contradições do sistema. Ambas as
visões imprimem um caráter utilitarista ao crime, associam-no à pobreza e, também, parecem não
ser explicações válidas para o contexto de Uberaba, principalmente quando se trata de observar a

5 Em 1919 o número de crimes julgados foi de 49, dentro da média dos outros anos anteriores; já em 1920,

o número de processos caiu para apenas 13.


16

ação judicial, como é o caso deste trabalho. 6 Isto não se encaixa na comarca estudada devido ao
fato de haver um maior número de crimes contra a pessoa, os quais poderiam até ter um caráter
utilitarista, mas não no sentido teorizado por Paixão.7 O gráfico 2 mostra que os crimes contra a
pessoa cresceram na mesma proporção, ou até mais, do que os crimes contra a propriedade.

GRÁFICO 2
VARIAÇÃO NO NÚMERO DE OCORRÊNCIAS DE CRIMES CONTRA A PESSOA E CRIMES CONTRA A
PROPRIEDADE NA COMARCA DE UBERABA
1890-1920
Crimes contra a pessoa Crimes contra a propriedade

50
45
40
Número de ocorrências

35
30
25
20
15
10
5
0
90

92

94

96

98

00

02

04

06

08

10

12

14

16

18

20
18

18

18

18

18

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19

19
Anos

Fonte: APU

O que se percebe pela observação do gráfico é que, em primeiro lugar, Uberaba tinha um
grau de variação diferente entre os crimes contra a pessoa e contra a propriedade; além disso,
nota-se que, somente por um breve período, no final do século XIX, os crimes contra a
propriedade estiveram, quantitativamente, próximos aos contra a pessoa. As variações de
crescimento possuem, ainda, outra diferença importante: no caso dos crimes contra a
propriedade, as variações bruscas são menos freqüentes, o que, em certa medida, mostra que este
tipo de crime tinha uma presença constante na sociedade local, apesar de em um dos anos

6 Posto que o Judiciário não tinha o mesmo caráter da polícia, ou seja, pouco tinha que reprimir as

“estratégias de sobrevivência” cotidianas das classes que enfrentavam as barreiras às benfeitorias e produtos urbanos.
(Cf. Fausto, 1984, passim).
7 Um crime contra a pessoa, por exemplo, homicídio, poderia ser praticado com vistas a lograr algum

benefício, material ou não, como a defesa da honra. Entretanto, isso não significaria que fora praticado pelos
17

analisados não haver chegado aos tribunais nenhum crime contra a propriedade (pelo menos
segundo as fontes consultadas), mostrando tanto que estes tipos de crimes pouco ocorriam
como, também, que a polícia e a justiça não conseguiam ser eficientes no seu combate.

A linha de desenvolvimento dos crimes contra a pessoa é muito parecida com a linha
geral da criminalidade apresentada no gráfico 1; isto se explica pelo fato de que este tipo de crime
representava a maior quantidade de crimes julgados, mais de 74%, e, assim, é o seu crescimento
que alavanca a linha do primeiro gráfico. Então, os crimes contra a propriedade, mesmo que
estivesse a região da comarca de Uberaba passando por diversas transformações econômicas e
sociais naquele período – incluindo o desenvolvimento da área urbana – não teve a tendência de
aumento. Contudo, é notável o fato de que no texto de Felício Buarque o crescimento da cidade
seja apontado como uma causa do aumento da insegurança local; isto nos leva a crer, pois, que
além dos possíveis efeitos maléficos do desenvolvimento urbano à propriedade privada não
superaram, na visão de Buarque, a falta de senso moral que carregavam as pessoas que chegavam
intensamente à região, fazendo com que os índices de criminalidade crescessem além do que
considerava normal.

A pergunta a se fazer agora seria a respeito do impacto desta incidência criminal na


sociedade, na sociedade local, como ela fora sentida pelos contemporâneos. Como já foi dito,
Felício Buarque chamou a atenção para a falta de comoção pública diante das barbaridades
cometidas.

O temor geral que às sociedades medianamente organizadas infundem os


bárbaros crimes, é raro observar-se aqui, salvo a circunstância de gozar a
vítima de grandes simpatias de seus concidadãos. (Buarque, 1904: 37).

O surgimento de uma imprensa sensacionalista é apontado como a causa para o aumento


do interesse geral pelo tema da criminalidade. Segundo Boris Fausto, este fato elevou a
importância da crescente criminalidade, levando as autoridades a atuarem com mais ênfase e a
população – aqueles que liam jornais – a acompanharem estas ações.

Uberaba contava com, pelo menos, dois jornais importantes no período estudado: a
Gazeta de Uberaba, fundado em 1876, e o Lavoura e Comércio, fundado em 1899 e que circulou até o

motivos expostos por Paixão, que atrela a prática criminosa a fatores externos – de natureza econômica muitas das
vezes – ao indivíduo.
18

outubro de 2003;8 eles tinham uma periodicidade diária e trissemanal, respectivamente. A


9
amostragem de exemplares que foi analisada indica que havia, antes de um sensacionalismo,
uma preocupação com as questões de policiamento e funcionamento do Judiciário. Isso é dito
porque, ao analisar os artigos relativos ao período estudado, foi encontrado somente um que
contava com detalhes a cena de um crime relatado de forma sensacionalista. Há muitas notas da
polícia, trazendo informações sobre prisões e julgamentos e um artigo sobre a prática de jogo. Os
grandes debates que se travavam naquele período nos jornais eram políticos.10

As notícias tinham um caráter, geralmente, claro, no sentido de formação de opiniões,


sendo carregadas de parcialidade por seus autores. No caso noticiado de um homicídio na rua
São Miguel – conhecida como Baco-Lerê – um dos redatores da Gazeta de Uberaba, assim
escreveu:

Desempenhando-nos de um dever, lembramos aos moços que precisam


sempre ter presente a cena tenebrosa de ontem evitando-se sua
repetição. [...] A juventude vigorosa e cheia de esperanças dessa cidade
não pode sujeitar-se ao sacrifício inglório de uma noite no Baco-Lerê
quando é nela que reside o galhardo porvir desta terra de trabalho e
progresso. (GAZETA DE UBERABA, n. 3457, 29/1/1909, p. 1, coluna
3)

A preocupação com o aumento da criminalidade pode ser atestada em um pedido, feito


em um artigo da Gazeta de Uberaba, para que um batalhão da polícia fosse instalado na cidade.

O noticiário das folhas desta zona dispensa a intervenção nossa e a de


nossos confrades, perante a alta administração do Estado, com o fim de
fazer-lhe sentir a necessidade de reforma da Brigada Policial e
conseqüente designação desta cidade para sede de um batalhão. Esse
noticiário freqüentemente apresenta ao público assassínios e roubos,
raptos e toda sorte de atentados contra as pessoas e a propriedade, que
põem as populações em contínuo estado de susto. [...] Sem negar isso,
vemos todos, porém, que, por toda parte onde os elementos ruins
desconfiam de que a ação repressiva dos poderes públicos só tardia e

8 Este jornal, infelizmente, não pôde ser consultado na íntegra de sua coleção, disposta no então prédio sede

do periódico, devido às precárias condições em que se encontram os materiais, resultado da ação do tempo.
Restando-nos analisar alguns exemplares encontrados no Arquivo Público de Uberaba.
9 Os jornais analisados são em número de 60 exemplares, dos anos de 1893, 1909 a 1916.
10 Mais uma vez me refiro, aqui, ao conjunto dos artigos analisados por amostragem. Escrevia-se muito a
respeito das posições da política local em relação ao resto da nação, com altercações acerca de temas como o apoio
determinada candidatura, ou os trabalhos legislativos tanto no plano estadual quanto nacional.
19

imperfeitamente chega, esses elementos de desordem se agrupam e


desatam a sua atividade má, desafiando depois, nas brenhas, nas solitárias
vastidões, ou nos povoados quase ignorados, uma pequena força
disponível em meio de desmesurada extensão. (GAZETA DE
UBERABA, n. 3454, 26/1/1909, p. 1)
A preocupação com a segurança pública foi uma constante em várias partes do país, não
só em Uberaba. (Cf. Fausto, 1984; Chalhoub, 1986; Alves, 1990 e outros) O crescimento urbano,
a introdução de imigrantes, a inoperância de alguns serviços prestados pela justiça e a falta de
políticas públicas de segurança deixavam impressas na sociedade de Uberaba e região um
sentimento de que a criminalidade estivesse crescendo progressivamente sem um aparelho
adequado que a reprimisse. É isso, basicamente, que se pode concluir a respeito do cenário
criminal em Uberaba: a busca pela ordem o progresso parecia carecer de um respaldo, por parte
dos agentes de controle social, que fosse substancialmente superior, em termos qualitativos, ao
que era oferecido. Aliada a isso, vem a questão de que as fontes utilizadas para chegarmos à
formulação desta assertiva – jornais e revistas – são expressões muito específicas da sociedade, e,
ainda, tinham estes textos um impacto restrito, de mais a mais, a, predominantemente, certos
grupos sociais. Não obstante, as críticas ao funcionamento da justiça sempre vinham
acompanhadas de sinais de temeridade e obediência aos “nobres” serviços por ela prestados, em
nome dos quais eram justificadas as observações expostas nos artigos de jornal ou revista.
Acreditamos, pois, que a Justiça, assim como a lei, deve, primordialmente, parecer justa aos olhos
da sociedade. (Cf. Thompson, 1987, p. 356 et seq).

2.2. ... e os criminosos


Neste ponto, buscar-se-á fazer uma tipologia do criminoso que atuava na comarca de
Uberaba. Para tanto, se procedeu ao levantamento dos dados por meio dos autos de qualificação
do réu. Buscaram-se as informações sobre sexo, idade, nacionalidade e naturalidade, ocupação e
nível de instrução. Cada um desses tópicos será tratado separadamente. O conhecimento destas
características do réu nos levará a formar melhor percepção a respeito do tipo de pessoas que
eram criminalizadas nos processos de repressão do aparelho judicial. Muito mais que tentar
explicar o porquê dos números, far-se-á uso deles para desenhar o perfil dos indivíduos
criminalizados na Comarca de Uberaba.

2.2.1. O sexo dos réus


Não será surpresa a constatação de que a maioria dos réus era do sexo masculino. A
questão, então, deve ser invertida para que se possa começar entendendo porque, aparentemente,
20

as mulheres pouco figuravam como rés nos processos. Conforme a tabela 5, elas representam
uma quantidade bastante inferior em relação ao número de homens.

TABELA 4
SEXO DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA
1890-1920
Sexo Quantidade %
Masculino 1431 93,6
Feminino 97 6,4
Total 1528 100,0
Fonte: APU

Segundo Boris Fausto, (Fausto, 1984) o aparelho de repressão policial não representava
um instrumento básico para o controle social da mulher; este era realizado por meio da família,
da escola, da igreja, enfim, de outros segmentos que cuidavam de veicular a ideologia masculina
dominante. Os baixos índices de criminalidade feminina vêm sendo explicados já há algum
tempo pela historiografia mostrando que, no período em questão, a mulher tinha um estatuto
similar aos das crianças e loucos, isto é, era inimputável. Isto quer dizer que não eram
consideradas, pelos juristas, como capazes de responder por seus crimes.(Cf. 1996: 180, et seq.) O
lema dos juristas da época analisada neste estudo – “tratar desigualmente os desiguais” – vinha
carregado do pensamento penalista de então. A mulher, segundo a visão de alguns juristas, como
Tobias Barreto, era considerada como um dos alvos da política de “defesa social”, isto é, devia
fazer parte do grupo de pessoas que deveriam ser protegidas para evitar que incorressem no
crime – juntamente com as crianças e os loucos – não merecendo, dessa maneira, o mesmo
tratamento recebido pelos homens.11

Dessa forma, tendo em vista este fato de que a mulher vinha sendo considerada, por
alguns juristas adeptos da nova escola penal,12 como inimputável, temos melhor subsídio para
entender o porquê do número tão reduzido de mulheres nos dados expostos na tabela 5. Porém,

11 Segundo Tobias Barreto, “o sexo feminino deve formar, por si só, uma circunstância ponderável na

apreciação do crime. A má fé criminosa pressupõe a consciência da lei; mas esta consciência nunca se encontra nas
mulheres no mesmo grau em que se encontra nos homens. Já tem sido mesmo por vezes indicado como um traço
característico da mulher o mostrar ela pouco interesse pelos negócios públicos; ao que acresce que, por sua educação,
pela exclusão de toda e qualquer ingerência na política, ela tem sido proibida de chegar a um determinado
conhecimento do direito [...]” (Tobias Barreto, Menores e Loucos e fundamentos do direito de punir, 1926, p. 31 apud
Alvarez, 1996: 181).
12 Nova Escola Penal é o título de uma das principais obras de divulgação do pensamento criminológico no

Brasil, escrito por Viveiros de Castro, lançado em 1894. O sociólogo Marcos César Alvarez caracteriza esta escola
diferenciando-a do pensamento penalista que ela combatia: “Enquanto a antiga escola estudava o crime, a nova
escola penal se propõe a estudar o criminoso, punindo os indivíduos não de maneira uniforme, mas segundo as
necessidades da defesa social” (Alvarez, 1996: 90), isto é, “tratando desigualmente os desiguais”, buscando formas de
controle social segmentando a sociedade e adotando profilaxias distintas a cada caso. (Cf. Alvarez, 1996: 86 et seq).
21

há ainda outra questão pertinente quanto à participação feminina no cenário criminal, que é a
discussão quanto ao tipo de crimes por elas praticados e que mereciam a apreciação do Judiciário.
A tabela seguinte revela os traços do movimento das mulheres enquanto rés na comarca
uberabense.

TABELA 5
CRIMES PRATICADOS POR MULHERES JULGADOS NA COMARCA DE UBERABA/MG
1890-1920
Crime Quantidade %
Agressão Física 64 66,2
Tentativa de Homicídio 13 13,4
Homicídio 8 8,2
Roubo 3 3,1
Danos materiais 3 3,1
Ofensas verbais 2 2,0
Briga 1 1,0
Rapto 1 1,0
Incêndio 1 1,0
Adultério 1 1,0
Total 97 100
Fonte: APU

De acordo como estes dados, vemos que os julgamentos de mulheres davam-se,


eminentemente, por motivos de crimes contra a pessoa. Esta situação pode ser explicada em
função do argumento de que as mulheres viviam, no mais das vezes, restritas ao ambiente do lar e
suas circunvizinhanças, fazendo com que fosse pouco freqüente a apreciação judicial de
criminosas de outra variedade que não aquelas cujas ações delituosas advinham dos conflitos
cotidianos. Regina Célia L. Caleiro, em seu estudo sobre as rés de Franca, São Paulo, entre os
anos de 1890-1940, traz o argumento de que as mulheres daquela cidade – cujo nível de
desenvolvimento econômico-social era muito similar ao de Uberaba – pouco recorriam à
instituição judicial, pois, do contrário, poderiam danificar a rede social na qual estavam envolvidas
já que “a inimizade gerada pela denúncia formal poderia romper essa rede de solidariedade tão
necessária entre as camadas mais destituídas da população”. (Caleiro, 1998: 64) Dessa forma, mais
uma vez, deparamo-nos com o fenômeno do sub-registro, restando-nos conjeturar que as
mulheres, provavelmente, praticavam mais delitos que o registrado, mas que suas respectivas
resoluções se davam no âmbito desta “rede social” a que se refere Regina Caleiro.

Verificamos, na nossa pesquisa, que o número de agressões físicas é superior à soma de


todos os outros crimes julgados em que a mulher era a ré. Temos, também, a indicação, segundo
a qual, no período pesquisado, as mulheres foram vítimas em pouco mais de 20% dos registros,
22

sofrendo dos mais variados crimes. Ante a estas constatações, acreditamos que, possivelmente, o
delito feminino representasse, em algum nível, uma resposta à ação masculina. Nas palavras de
Regina Caleiro,

Apesar da solidariedade e da cumplicidade deve-se levar em conta a


violência a que elas estavam submetidas. [...] Seria ingenuidade imaginar
que estas mulheres quase nunca revidaram à estas agressões. Do mesmo
modo, é evidente que um número considerável de agressões corporais
praticados por elas contra maridos, filhos, parentes e vizinhos nunca
chegaram ao conhecimento da justiça institucionalizada. (Caleiro, 1998:
65)

Há, ainda, outra interpretação deste cenário, que pode ser feita tendo-se por base os
estudos como o de Mariza Corrêa sobre a invenção e reinvenção dos papéis sexuais nos
julgamentos de crimes envolvendo mulheres e homens. (Corrêa, 1983). Poderíamos, seguindo a
linha de pensamento geral de Corrêa, crer que os julgamentos de mulheres tivessem um caráter
de afirmação dos padrões de comportamento esperados desse gênero. A despeito do número
bastante superior de agressões e tentativas de homicídio, encontramos, ainda, julgamentos cujas
existências estão diretamente ligadas a esta questão da normatização da conduta feminina – como
as ofensas verbais, as brigas e, principalmente, o adultério que, não obstante o fato de se
encontrarem em número reduzido, são representativos de uma ação judicial que buscava trazer à
sociedade uberabense os exemplos de como não se deveria portar a mulher. Entretanto, bem
sabemos que a validação destas afirmações carece, por certo, de uma análise aprofundada dos
processos em questão, o que, especificamente aqui, não interessa a este trabalho.

2.2.2. A idade dos réus


A quantificação das idades dos réus foi feita mediante uma classificação etária que
obedeceu aos critérios de menoridade e maioridade penais, isto é, em faixas de aproximadamente
dez anos nas quais se enquadraram os réus, de acordo com a idade declarada nos autos. A tabela
7 traz os dados coletados:

TABELA 6
FAIXA ETÁRIA DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA
1890 - 1920
Faixa Etária Número %
até 10 anos 3 0,3
23

11 a 21 anos 251 22,2


22 a 30 anos 463 41,0
31 a 40 anos 246 21,8
41 a 50 anos 110 9,7
51 a 60 anos 42 3,7
60 anos ou mais 14 1,2
Total 1129 100,0
Fonte: APU

A análise destes dados seguirá, aqui, duas linhas principais. Em primeiro lugar, devemos
atentar para o grande número de jovens que figuram no rol dos julgados na comarca de
Uberaba.13 Estes representavam mais de 60% dos réus, o que nos leva a fazer considerações no
mesmo sentido do que Eric Hobsbawm escreveu. Ao tratar do banditismo social, este historiador
faz uma tipologia do bandido, dizendo que os mais jovens teriam uma predisposição maior a este
tipo de atividade. Afirma, ademais, que neste grupo de jovens estão aqueles que não possuem
família, nem nenhum tipo de vínculo com propriedades ou quaisquer outras responsabilidades
em geral.(Hobsbawm, 1979) Seria possível, então, concluir que, no caso estudado neste trabalho,
também é válida essa explicação. Por dedução, acreditamos que isso até poderia ter alguma
influência – afinal, é inegável o fato de que realmente o número de pessoas jovens é maior em
relação aos de demais idades. Entretanto, os números da tabela 7 associados aos dados sobre o
estado civil dos réus mostram que a argumentação de Hobsbawm pode não ser totalmente
aplicável à comarca de Uberaba. O número de solteiros (47,5%) é muito similar ao de casados –
os quais figuram com um pouco menos (46,8%) – levando-nos à crença de que, provavelmente,
quase não havia impedimentos, quanto ao estado civil, para que se cometesse um crime; isto vem
de encontro ao que Hobsbawm diz uma vez que ele supõe que os casados já possuíam algumas
responsabilidades as quais os poderiam afastar do crime. Mas não podemos, de mais a mais, ir
muito longe com esta comparação posto que Hobsbawm, ao tratar do banditismo social, está
escrevendo a respeito de um fenômeno substancialmente diferente do que é pesquisado neste
trabalho.

A segunda linha de interpretação dos dados constantes à tabela 7 diz respeito à questão
do número de indivíduos menores de idade que foram processados – aqueles que tinham até 21
anos representavam 22,5% dos criminosos. Segundo Alvarez, os menores, no pensamento dos
juristas influenciados pela nova escola penal, deveriam ser o alvo das estratégias de defesa social –
noção muito utilizada como objetivo (prevenção dos crimes) e como justificativa das práticas
penais (criação de locais próprios para detentos especiais, como os loucos e menores) – sendo

13 O termo “jovem”, aqui, designa as pessoas que estão na faixa dos 11 aos 30 anos de idade.
24

que sua criminalização era vista como uma maneira de incentivar à não reincidência. (Alvarez,
1996: 172 et seq). Por todo o país, exigia-se a construção de colônias correcionais para os jovens
com o fim de discipliná-los para prevenir o aumento da criminalidade e, ainda, livrá-los um pouco
das amarras estabelecidas pelo Código Penal de 1890, segundo o qual “o menor deveria cumprir
pena, definida como pena disciplinar, em estabelecimentos industriais especiais, correndo o risco
de aí ficar até os 21 anos, quando considerado vadio”.(Fausto, 1984: 81). A responsabilização
penal do menor passava por outras questões adjacentes como a da sua inserção no trabalho versus
sua educação. A pressão dos industriais contra os projetos de criação de colônias correcionais
para os jovens delinqüentes era bastante grande, o que fez prolongar a discussão deste tema no
início do século XX. (Fausto, 1984: 82 et. seq) Como foi dito acima, as teorias da nova escola
penal priorizavam a questão da prevenção dos crimes por meio da educação, coisa até então rara
entre as crianças pobres, as quais, desde fins do século XIX, tinham sua responsabilidade penal
atrelada ao fato de trabalharem desde cedo.

No caso estudado neste trabalho, o índice de réus menores processados (22,5%) atesta
que as determinações estabelecidas no Código Penal de 1890 eram cumpridas, isto é, apesar de a
consulta a outras fontes poder esclarecer melhor a questão, acreditamos que, talvez, a
preocupação com a não criminalização do menor não suplantasse a preocupação em respeitar a
lei e impedir a impunidade;14 isto vem corroborar uma das idéias centrais deste trabalho: a justiça
enfrentava, no seu cotidiano, desafios que iam além do que era discutido pelos penalistas
nacionais do início da República, e adotava medidas eminentemente funcionais, no sentido de
melhor resguardar a ordem pública.

2.2.3. Ocupação e nível de instrução dos réus.


A determinação da ocupação e nível de instrução dos réus visa, além de conhecer mais
essas facetas dos réus da comarca de Uberaba, determinar a sua origem social. Fausto já alertou
para a controvérsia deste tipo de busca, principalmente, quando se trata do nível de instrução, o
qual adquiria significado variado (alguém que sabia assinar o nome podia ser considerado
alfabetizado ou não, de acordo com a interpretação do delegado ou mesmo de acordo com a
compreensão que o réu fazia de sua capacidade). De mais a mais, em uma época em que a
instrução pública era rara, havia muitas pessoas com um nível sócio-econômico alto que não

14 Sempre é bom lembrar que, aqui, não estamos tratando, ainda, do discurso criminalizador empregado
pelos agentes da justiça, tampouco nos aludimos às absolvições ou condenações, as quais, caso fossem tomadas em
conta, somariam várias outras nuances à problematização que vem sendo exposta, mas também nos desviaria de
nossos objetivos neste artigo.
25

sabiam ler nem escrever.(Fausto, 1984: 86 et seq) Destarte, discutir-se-á alguns dos números
encontrados sobre a comarca de Uberaba, tendo em mente que muito pouco se poderá ir além
das constatações que dizem respeito à predominância de uma ocupação e de um nível de
instrução em relação aos outros.

O procedimento quanto à classificação das profissões levou em conta os objetivos desta


pesquisa, ou seja, determinar o perfil do criminoso e sua condição social. As ocupações foram
classificadas de acordo com o que o réu declarava, resultando na classificação de 107 ocupações
diferentes. Alguns dos ofícios declarados possuíam, em essência, as mesmas atribuições entre si e,
então, optou-se por classificá-los sob um só código. Para efeitos de análise, levando em conta
critérios de necessidade e suficiência e, ainda, de acordo com os objetivos do trabalho, tomamos
apenas aquelas ocupações que mais se destacaram no conjunto pesquisado. E assim foi formada a
tabela a seguir.

TABELA 7
PRINCIPAIS OCUPAÇÕES DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA, 1890-1920
Ocupação Quantidade %
Lavrador 389 34,6
Outras 230 20,3
Negociante 75 6,7
Pedreiro 72 6,3
Jornaleiro 67 5,9
Soldado/policial/militar 67 5,9
Serviços domésticos 49 4,5
Carpinteiro 32 2,8
Sapateiro 26 2,3
Empregado do comércio 20 1,7
Ferreiro 16 1,4
Carroceiro 16 1,4
Alfaiate 13 1,1
Boiadeiro 13 1,1
Viajante 12 1,0
Agenciador 12 1,0
Cozinheiro 11 1,0
Cocheiro 10 1,0
Total 1130 100
Fonte: APU

Temos, pois, que o número de réus que se declararam lavradores é muito superior aos
demais. No caso estudado por Maria Aparecida de S. Lopes, o estado de Chihuahua, no México,
as transformações por que passava a região, ligadas diretamente a um cenário de
desenvolvimento econômico, traziam a oportunidade para os indivíduos de praticarem maior
26

gama de atividades. (Cf. Lopes, 1999: 78, et. seq.) Em seu caso, Lopes também se defrontou com
um cenário em que o número de lavradores era superior e, diante disso, argumentou que isso
seria sinal de que os réus pertenciam a uma categoria de trabalhadores bastante ampla. A resposta
à variedade de ocupações encontradas nas qualificações dos réus da comarca de Uberaba pode,
também, a exemplo do que ocorria no México, ser um reflexo das transformações que a cidade
vivia à época focalizada por este estudo. Com a chegada da ferrovia, em 1889, a cidade fortaleceu
seu tino comercial, atraiu imigrantes, estrangeiros e de outros estados, e experimentou, por algum
tempo, um momento de prosperidade econômica.15 As mudanças desse período seriam também a
explicação para o grande número de casos de réus que se declaram profissionais em ramos de
atividades tipicamente urbanos. Era um contingente bastante expressivo, superando, quando
somados, inclusive, o número de lavradores.

Não devemos nos esquecer também de que há a possibilidade de “lavrador” ser a


ocupação mais comum, envolvendo uma ampla gama de atividades, sendo, dessa forma,
explicada em parte sua supremacia em relação às outras atividades econômicas. Na comarca de
Uberaba, a atividade de lavrador podia ser facilmente relacionada com o contexto local, no qual
as atividades deste tipo teriam predominância absoluta. Junte-se a isto o fato de que o número de
pessoas que se declararam jornaleiros também é expressivo, indicando, pois, que havia, na região,
um cenário de amplas possibilidades de atuação ocupacional. Atestando isso, observamos, além
dos jornaleiros, também a ocorrência de expressivo número de réus que se declararam
agenciadores, viajantes, boiadeiros, entre outras ocupações que, a exemplo dos lavradores e
jornaleiros, tinham uma característica de esporadicidade.

Este mesmo argumento – que liga as características econômicas da região à principal


atividade econômica praticada – também pode ser utilizado se pensarmos que o número de
pessoas que se declararam lavradores pode advir, em parte, do fato de que esta era a alegação
padrão daqueles que não possuíam ocupação, para fugirem da estigmatização do “desocupado”,
que os poderia levar a uma condenação moral cujas conseqüências seriam sentidas no julgamento.

Outro ponto interessante a se notar da observação da tabela 7 é o grande número de


policiais e militares (67) que foram julgados. A polícia tinha, como já foi ressaltado aqui, um
caráter disciplinador dos comportamentos considerados perigosos à ordem pública e, para
exercer essa função, gozava, na prática, de plenos poderes. Não podemos deixar de pensar nas

15 Esta prosperidade durou pouco tempo, pois, ainda nos anos 1890, foi terminada a extensão da linha
ferroviária de Uberaba até Araguari, passando por Uberabinha (atual Uberlândia), dividindo com estas cidades o
movimento comercial. Este fato contribuiu, ainda, para o progressivo enfraquecimento econômico-comercial da
cidade a inauguração da estrada de ferro entre Bauru e Campo Grande. (Cf. Rezende, 1991).
27

possíveis desavenças entre os agentes da polícia e da justiça em Uberaba. No estudo de Bretas


(1997) sobre a polícia no Rio de Janeiro, o autor constatou que as atribuições de uma e outra
instituição, em certos casos, confundiam-se, pois a polícia utilizava o expediente de prisões ilegais
e condenações antes mesmo de se instaurar o inquérito. A briga por funções de controle social
fazia com que, mesmo quando atuavam no mesmo sentido, polícia e justiça não tinham relações
amistosas e, ainda, culpavam-se mutuamente pelos insucessos das estratégias de controle da
criminalidade. Contudo, os dados referentes ao caso estudado nesta pesquisa revelam-nos que
haveria um limite à ação policial. Muitos dos processos contra estes indivíduos dizem respeito à
improbidade na realização de seus serviços – espancamento de presos e invasão dos domicílios,
principalmente. Seu indiciamento e posterior julgamento nos faz pensar novamente que a justiça,
não obstante os problemas que encarava quanto a sua operacionalidade, procurava mostrar-se
idônea e acima de qualquer corporativismo ou conivência com o que fosse feito fora da lei.

Podemos, por fim, argumentar, a exemplo do que ocorreu no caso estudado por Lopes,
que o réu não era um marginal. Ao declarar uma ocupação, por mais que isso pudesse não ser
verídico, este demonstra ter inserção na dinâmica social.

Conhecer o nível de instrução dos criminosos é tarefa das mais difíceis, principalmente
quando se está tratando com dados judiciais, pois esbarramos nos problemas mencionados acima,
quanto à forma de classificação. Nos casos estudados, o auto de qualificação do réu quase sempre
trouxe resposta a esses problemas. Nas respostas dos réus, a instrução consistia em quatro graus
que, por sua vez, foram utilizados para a quantificação. Os graus eram os seguintes: saber ler e
escrever; não saber ler e escrever; saber assinar o nome e mal saber assinar o nome e ler e/ou
escrever. Em uma época em que a instrução pública engatinhava, o número de pessoas que
diziam saber ler e escrever é surpreendente. A tabela 8 vai lançar um pouco de luz sobre esta
questão.

TABELA 8
NÍVEL DE INSTRUÇÃO DOS RÉUS NA COMARCA DE UBERABA
1890-1920
Nível de Instrução Quantidade %
Sabe ler/escrever 623 56,4
Não sabe ler/escrever 394 35,7
Sabe assinar o nome 66 6,0
Mal sabe assinar o nome e/ou ler/escrever 21 1,9
Total 1104 100,0
Fonte: APU
28

Mais da metade dos réus julgados na comarca de Uberaba declararam saber ler e escrever.
Desse modo, não há como fazer uma tipologia do criminoso quanto à sua condição social por
meio destes dados. Para isso, teremos que recorrer ao cruzamento dos dados relativos também à
ocupação. Como dissemos acima, existia um grande contingente de réus que declararam
profissões típicas da cidade, figurando entre as 107 ocupações catalogadas todo o tipo de
atividade, inclusive, a dos profissionais liberais, funcionários públicos de importância municipal e
estadual, prestadores dos mais variados serviços entre outros. A observação da próxima tabela
pode nos fazer enxergar melhor quais seriam as implicações deste cenário inusitado no que se
refere ao grau de instrução apresentado pelos réus.

Como podemos observar na tabela 9, a redação de considerações a respeito da classe


social atingida pela ação judicial, além das dificuldades expostas acima, agora encontra mais um
complicador: os réus que se declararam capazes de ler/escrever em sua maioria, mais uma vez,
são da ocupação lavrador. A questão desta ocupação vem tomando lugar de destaque neste
trabalho à medida que tomamos contato com este tipo de dado, o qual traz para a região
características, até certo ponto, pouco esperadas.

TABELA 9
CRUZAMENTO ENTRE DADOS DA OCUPAÇÃO E DE RÉUS QUE SABIAM LER /ESCREVER NA
COMARCA DE UBERABA
1890 – 1920
Sabe ler/escrever %
Outros 198 32,6
Lavrador 160 26,5
Negociante 56 9,2
Pedreiro 39 6,6
Soldado/policial 26 4,2
Sapateiro 22 3,6
Jornaleiro 21 3,4
Carpinteiro 20 3,2
Empregado do comércio 18 2,9
Ferreiro 13 2,1
Alfaiate 13 2,1
Serviços domésticos 12 1,9
Agenciador 10 1,7
Total 608 100
Fonte: APU 16

16 As diferenças entre os números desta tabela e a tabela de ocupações (7) se devem ao fato de que nem

todos os réus declararam ao mesmo tempo sua ocupação e seu grau de instrução, havendo casos em que nenhuma
das duas questões foi respondida pelo réu.
29

Onde tantos lavradores aprenderam a ler? E porque isso ocorria, já que se trata de uma
época em que a instrução pública apenas se esboçava? Essas e outras questões saltam das tabelas
e vêm tornar cada vez mais intrigante esta questão da ocupação e instrução dos réus na comarca
de Uberaba. Infelizmente, não nos é possível responde-las com a precisão pretendida, mas
podemos problematiza-las ainda mais. Certo é que a justiça em Uberaba estava tratando com
pessoas as quais podiam discernir, no mínimo, a importância que o conhecimento da escrita
podia lhes render, mesmo que não a soubessem. Portanto, para além da simples dedução de que
se trataria de mera coincidência o quadro revelado acima, devemos pensar em, basicamente, duas
questões: procurar entender como se mostrava o quadro educacional de Uberaba no período e,
em segundo lugar, em conseqüência da primeira, perguntarmo-nos a respeito da plausibilidade
das declarações dos réus.

O quadro educacional em Uberaba não parecia ser muito desenvolvido no início do


século XX, apesar de já haver existido uma escola superior na cidade em fins do século XIX (Cf.
Silva, 1998), mas que formou apenas uma turma. Em termos de ensino público, somente em
1909 surgira o grupo escolar para atender àquelas crianças que iriam entrar em contato com as
primeiras letras. Em seu artigo de 1904, Felício Buarque reclama da falta de ensino público para a
promoção de ensinamentos morais às crianças, como forma de diminuição da criminalidade no
futuro. Portanto, a consideração de que o número de alfabetizados fosse expressivo na comarca
não encontra muitos subsídios para se sustentar. Vejamos, para corroborar isso, um trecho de um
artigo da Gazeta de Uberaba, escrito por Silvio Camara, sobre a situação pela qual passava Uberaba
quanto a seus níveis de instrução pública.

Quando para nada servisse a estatística, a célebre estatística municipal, ao


menos fez certas revelações interessantes. O município de Uberaba
conta atualmente com população de cerca 33.500 habitantes. São 23.500
brancos, 6.500 pardos, 3.500 negros. Dos 33.500 habitantes subtraindo
7.000 crianças de menos de 6 anos, sobra uma população de 26.500
pessoas. Destes 18.000 não sabem ler, restando 8.500 que gozam deste
benefício. No município de Uberaba pois 70% de sua população é
analfabeta. Em se tratando da principal cidade do triangulo mineiro esta
cifra é desalentadora. Pode-se objetar que aqui, como nos Estados
Unidos, a população negra, que não freqüentou ou pouco freqüenta a
escola, avulta bastante a porcentagem dos analfabetos. (Camara, Silvio.
“Analphabetismo”, In: Gazeta de Uberaba, 28/11/1909, n. 3720, p. 1)

Caso os dados de Silvio Camara estejam corretos, mesmo próximos a isso, configura-se
uma situação extremamente intrigante neste ponto do trabalho. Como poderia, em 1909, haver
30

70% de analfabetos e tantos criminosos que alegavam saber ler e escrever? A hipótese de que
ocorreu uma coincidência não pode ser aceita, principalmente, depois que cruzamos os dados da
ocupação com os da instrução.

A segunda questão a ser analisada na tentativa de explicar o que acontecia é que talvez
fosse comum se declarar alfabetizado, mesmo mal sabendo ler ou assinar o nome, sendo que esta
parece ser a opção mais aceitável para este caso, tendo em vista a discrepância entre os dados
apresentados por Silvio Camara e aqueles coletados nesta pesquisa. Ante todas essas
possibilidades, o mais certo é que havia uma confusão entre os conceitos de quem era ou não era
alfabetizado, sendo que os indivíduos julgados se auferiam a capacidade de ler e escrever, mas, ao
que parece, isso não era considerado alfabetização por alguns como o autor do trecho acima. Em
outras palavras, saber ler e escrever era diferente de ser alfabetizado. Tanto isto pode ser verdade
que já em meados dos anos dez do século passado, de acordo como a análise de alguns dos
processos criminais, constatou-se que a justiça começou a utilizar os termos “alfabetizado” e
“analfabeto” para qualificar os réus.

Por fim, pouco se pode ter como certo no tipo social do criminoso julgado na comarca de
Uberaba. Percebemos que havia um reconhecimento por parte dessas pessoas com relação ao
valor da educação básica para sua própria valorização junto aos seus pares, o que pode nos levar a
crer em um cenário no qual a afirmação perante a sociedade, em um meio eminentemente rural
que se urbanizava, passava a ser contada pela capacidade de ler/escrever. Ligado a isto, deve-se
ressaltar o papel do Judiciário neste processo, qual seja, a confiabilidade que ele detinha junto
àqueles com quem lidava. O fato de os indiciados utilizarem-se do sistema judicial para
afirmarem-se socialmente é marca de que a justiça exercia no cotidiano local um papel de
respeitabilidade considerável, sendo um local onde não se permitiria adotar ou mesmo ser algo
diferente daquilo considerado ideal, neste caso, alfabetizado.

2.2.4. Criminalidade e nacionalidade


A presença do imigrante é marcante em muitas regiões do Brasil ao final do século XIX.
Em Uberaba, isso não foi diferente. Mesmo não sendo uma região preferencial do governo para
o envio de imigrantes, a cidade recebeu um grande contingente deles, principalmente italianos –
muitos dos quais transmigraram de São Paulo após a chegada da ferrovia. (Cf. Silva, 1998) Eles
traziam um cabedal cultural diferente do reinante e, por isso, foram muito vigiados pelos
aparelhos de repressão; esta tendência parece ter se verificado em Uberaba também.
31

Os imigrantes que vieram para a região de Uberaba, em sua maioria, eram transmigrados
do interior de São Paulo. Alguns vinham em busca de melhores condições de trabalho na lavoura,
mas muitos traziam suas reservas econômicas, auferidas no trabalho braçal no estado vizinho e
assumiam em Uberaba postos de comerciantes, vendedores entre outros. (Cf. Silva, 1998)
Portanto, o imigrante que veio para a região seria, teoricamente, menos propenso, segundo o
pensamento da época, à prática de crimes.

Segundo o recenseamento de 1909, havia, na cidade de Uberaba, cerca de 870


estrangeiros. Estes representavam, então, segundo os dados daquele censo, cerca de 9% da
população. No que tange à criminalidade, os estrangeiros, alvos certos da política de repressão da
polícia, por serem introdutores de modos de vida e de comportamento diferentes, representam
15,7% do total de criminosos. Esta comparação guarda ressalvas por se tratar de períodos
diferentes os do censo e das estatísticas criminais, mas nos leva a crer que a disciplinarização
sobre os estrangeiros seria, a exemplo do que ocorria em outros lugares – nos quais a figura do
imigrante fora, inicialmente, incluída no setor das chamadas “classes perigosas” – de certa
maneira priorizada. Agora, vejamos a próxima tabela, que apresenta a participação de cada
segmento estrangeiro na ação judicial na Comarca de Uberaba.

TABELA 10
QUANTIDADE DE CRIMES PRATICADOS POR ESTRANGEIROS JULGADOS NA COMARCA DE UBERABA
1890 - 1920
Nacionalidade Quantidade %
Italiano 58 33,0
Espanhol 35 19,9
Turco 29 16,5
Português 22 12,5
Sírio 21 11,9
Inglês 4 2,3
Argentino 2 1,1
Austríaco 2 1,1
Alemão 1 0,6
Paraguaio 1 0,6
Belga 1 0,6
Total 176 100,0
Fonte: APU

Estes dados mostram que, ante o pequeno contingente de imigrantes da região, houve
uma repressão equivalente, em quantidade, às suas atividades cotidianas. Isto é, como não havia
tantos estrangeiros vivendo em Uberaba, poucos também foram os que tiveram apreciações
judiciais de seus atos delituosos. Os crimes mais praticados pelos estrangeiros foram, seguindo os
padrões dos demais julgamentos, as agressões físicas. Os números apresentados são
32

proporcionais à população estrangeira existente, ou seja, sendo os italianos a maioria, seguidos


pelos espanhóis, explicar-se-ia, provavelmente, a predominância daqueles nas estatísticas ora
apresentadas.

Há que se considerar, quanto à criminalidade no interior das comunidades imigrantes, no


que tange a seu comportamento, a observação feita por Fausto, na qual revela que entre os
imigrantes existia uma forte coesão, que os fazia resolverem seus problemas internamente, em
sua comunidade. Dessa maneira, a ação da justiça sobre o imigrante, principalmente nos
primeiros momentos posteriores à sua chegada,17 representava, provavelmente, o controle da
variedade de pessoas que chegavam na cidade, pois, como se pode notar na tabela 10, o número
de imigrantes podia não ser grande, mas eles tinham origens bastante diversificadas.

Encontramos nos dados levantados que a ocupação mais declarada pelos estrangeiros foi
a de negociante, com aproximadamente 16%, seguida pela de pedreiro, com 13% ficando a de
lavrador com apenas 7% do total. Isso mostra, pois, que o imigrante que vinha para Uberaba era
realmente mais bem estruturado financeiramente e, por isso, possuía meios para exercer
atividades mais lucrativas e urbanas, mas isso não os tornava menos propensos a cometerem
delitos, porquanto o fato de que aqueles os quais, provavelmente, teriam mais recursos
financeiros, ou seja, os negociantes – ocupação declarada por aqueles que possuíam algum tipo de
estabelecimento de comércio (bares, mercados, etc) – eram os que com maior freqüência se
encontravam entre os criminosos estrangeiros na comarca uberabense.

* * *

À guisa de conclusão a este artigo, podemos dizer que o os crimes julgados na Comarca
de Uberaba eram práticas de resolução dos conflitos cotidianos, as quais a justiça tentava
disciplinar. Isto implica imaginarmos que a região pesquisada detinha valores culturais e padrões
de comportamento eminentemente ligados a uma cidade de hábitos “rurais”, na qual
predominavam os crimes contra a pessoa. Este modo de se comportar e pensar da sociedade
local era alvo das ações do Judiciário que, como um todo, tentava “modernizar” o Brasil.
Ademais, este tipo de crimes julgados – contra a pessoa – e as características dos indivíduos que
passaram pelas teias da Justiça – eram eminentemente homens e trabalhadores braçais –

17 Segundo Fausto (1984, p. 69/69)“No terreno da criminalidade, em seu sentido mais genérico, os
estrangeiros deixaram de constituir um grupo específico que alguns setores letrados quiseram vincular à prática do
crime como ocorreu por um breve período. Isto se deveu [...], secundariamente, às possibilidades abertas de ascensão
social, que não incentivaram o surgimento do crime organizado nas mãos dos estrangeiros”. Acreditamos, que em
Uberaba, houve uma rápida aceitação dos imigrantes, pois, muitos deles transmigraram de São Paulo, trazendo
reservas monetárias que possibilitaram sua colocação na sociedade como pequenos produtores e comerciantes. (Cf.
Silva, 1998).
33

remetem-nos à conclusão que as classes menos favorecidas, social e economicamente, eram as


mais visadas pela prática judicial. Isto não significa uma escolha pela “história dos
marginalizados” – até porque os julgados não eram “marginais” no sentido que a historiografia
adota, pois eram parte aceita da sociedade – e, sim, que constatamos o cenário em que a justiça
atuava, mostrando, portanto, sua adequação àquilo que os historiadores levantam como sendo
uma característica do período, qual seja, a busca pela ordem pública por meio da implantação de
uma nova cultura de comportamento social das classes menos abastadas.

Por fim, cabe, aqui, ressaltarmos que a atuação do Judiciário do início da República do
Brasil, sob a óptica de seus contemporâneos, caminhava para além desta constatação de que
deveria reprimir as “classes perigosas”. Sua legitimidade era conseguida à medida que procurava
criminalizar indistintamente todo aquele que atentasse contra a lei, sendo que sua atuação, de
acordo com os dados até aqui discutidos, denota que o Judiciário enfrentava situações que
ultrapassavam as questões discutidas pelos juristas à época.

Fontes consultadas
Manuscritos
PROCESSOS CRIMINAIS. Arquivo Público de Uberaba, Minas Gerais.
Localização:
1890-1900: caixas 10 a 76 – 312 processos
1901-1910: caixas 84 a 178 – 454 processos
1910-1920: caixas 92 a 189 – 476 processos

Publicações e periódicos
BUARQUE, Felício. A criminalidade em Uberaba: ensaio de criminologia local (parte II). Revista
de Uberaba, fascículo 3, volume 1, 1904.
CAMARA, Silvio. “Analphabetismo”, In: Gazeta de Uberaba, 28/11/1909, n. 3720.
GAZETA DE UBERABA, n. 3454, 26/1/1909.
GAZETA DE UBERABA, n. 3457, 29/1/1909.
Relatórios dos presidentes de província de Minas
SENA, Joaquim Cândido da Costa. Relatório do presidente do Estado de Minas Gerais, 1902, p.
25. Disponível em: <http://wwwcrl.uchicago.edu/brazil/pindex.htm> acessado em 13 de out.
2002.
34

SILVA, João Pinheiro da. Relatório do Presidente do Estado de Minas Gerais, 1906, p. 46.
Disponível em <http://wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil/pindex.htm.>. Acesso em: 13 out.
2002.

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1930). São Paulo: FFLCH/USP, 1996. Tese (doutorado em sociologia).
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1921). São Paulo: FFLCH/USP, 1990, p. 4. Tese (doutorado em História).
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Franca: Unesp, 1998. Dissertação (mestrado em história).
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1983.
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Mineiro: um estudo da imigração italiana em Uberaba, Sacramento e Conquista (1890-1920).
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THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
O JULGAMENTO MORAL DOS CORPOS – A INFÂNCIA ABREVIADA PELA VIOLÊNCIA (PORTO
ALEGRE – 1890-1904)*
THE MORAL JUDGMENT OF THE BODIES – THE CHILDHOOD ABBREVIATED BY VIOLENCE
(PORTO ALEGRE – 1890-1904)

ELIANE D. FLECK**
ANA PAULA KORNDÖRFER ***
ALINE K. CADAVIZ ****

Resumo
Este artigo aborda a “criminalização da sexualidade” e o julgamento
moral dos corpos de meninas - mulheres, apresentando uma análise
preliminar dos dados constantes dos Códices da Polícia, dos Processos-
crime e dos Livros de Matrícula Geral de Enfermos da Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre, no período de 1890 a 1904.

Abstract
This article broaches the "criminalization of sexuality" and the girl’s and
women’s bodies moral judgment, introducing a preliminary analysis of
the related data found in the Police Codices, in the Crime-Processes and
in the General Registration Books of Patients of the “Santa Casa de
Misericórdia de Porto Alegre”, along the period of 1890 - 1904.

Palavras-chave
Sexualidade – criminalidade – infância - Rio Grande do Sul.

Keywords
Sexuality – criminality – childhood - Rio Grande do Sul.

Este artigo apresenta uma análise preliminar dos dados relativos ao período de 1890 a
1904, levantados junto aos Acervos do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre,

* Artigo recebido em 15.01.2004 e aprovado em 01.03.2004.


** Doutora em História pela PUC – RS, professora da Graduação e Pós-Graduação em História da

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Desenvolve investigações vinculadas às linhas de pesquisa
“Populações Indígenas e Missões Religiosas na América Latina” e “Idéias e Movimentos Sociais na América Latina.
*** Aluna do Curso de Graduação em História da Unisinos – Bolsista – UNIBIC.
**** Aluna do Curso de Graduação em História da UNISINOS – Bolsista PIBIC/CNPq.
2

do Arquivo Histórico e do Arquivo Público do Rio Grande do Sul e que apontam para o elevado
índice de prática de violência sexual contra meninas e para o julgamento moral de seus corpos.

Nas últimas décadas do século 19, considerava-se violência, o ato sexual com uma pessoa
menor de idade1, mesmo que ela tivesse consentido. A “criminalização da sexualidade” visava a
controlar, portanto, a sexualidade dos adolescentes para que estes não se transformassem em
“pervertidos”. Entre os delitos catalogados pelos criminólogos constavam o defloramento, o
estupro, o atentado ao pudor, o rapto e o adultério2. Em todos eles estava presente a questão
sexual, sendo que outras práticas como, o sadismo, o incesto e a perda da virgindade, eram
também analisados pelos juristas.

O defloramento constava como crime no Código Penal Brasileiro de 1890, em seu art.
267. Para tanto, fazia-se necessária a cópula com uma mulher virgem e o rompimento do hímen,
mediante consentimento obtido por sedução, engano ou fraude. Caso não houvesse cópula, o
delito seria atentado ao pudor. Sem o consentimento da mulher, o crime seria estupro 3.

O Código Penal de 1890, no art. 269, definiu como estupro o ato sexual com uma mulher
sem o seu consentimento, ou seja, com a utilização de violência, diferindo, pois, do defloramento
consentido. Tanto no defloramento, quanto no estupro, a existência de laços de sangue e
parentesco, relações de dependência ou facilidade para realização do atentado ou a
impossibilidade de casar-se eram consideradas circunstâncias agravantes. Entre os parentes
estavam englobados pais, irmãos e cunhados; nas relações de dependência, tutor, curador,
encarregado de guarda e educação ou quem tivesse alguma autoridade sobre a vítima. Tanto nas
situações de crime de defloramento, quanto nas de estupro, o indivíduo viria a ser processado
somente com a formalização de queixa da vítima4. A relação sexual incestuosa não era
considerada propriamente um crime, entretanto, era penalizada como defloramento ou estupro.

1 De acordo com Adriana de Resende Vianna (1999), era considerado menor o indivíduo situado nos limites

etários da maioridade, o que implicava uma absoluta ausência de gestão sobre seu destino e, ainda, uma total
desvalorização de qualquer argumento por ele utilizado (Vianna, 1999: 25-27).
2 No século 19, o corpo feminino era considerado de responsabilidade e de direito de seus genitores. Em
casos de estupro, não era o corpo estuprado que era considerado a principal vítima e sim os seus genitores ou
responsáveis. No Código Penal de 1890, as ofensas sexuais eram consideradas “crime contra a segurança da honra e
honestidade das famílias”.
3 O Código Penal de 1890 definiu como estupro o ato sexual com uma mulher sem o seu consentimento,
mediante utilização de violência. De acordo com Mazzieiro, a mulher casada não podia dar queixas do marido por
estupro, pois o uso da força em face de resistências ao ato sexual não se constituía em crime, mas em exercício de
direito marital. (Mazzieiro, 1998: 31).
4 De acordo com Martha de Abreu Esteves, “as mulheres que desejavam ser protegidas pela Justiça, além de
atribuírem em seus relatos toda a ação ao homem, deviam dar muita ênfase à dor e ao sangue”, pois eram os
“emblemas da virgindade”. A comprovação da perda virgindade era elemento característico do delito e para prová-la
era necessário o exame de corpo de delito (Esteves, 1989: 61).
3

Também pelo mesmo Código, em seu art. 270, foi considerado crime o rapto, ou seja,
retirar do lar doméstico, mulher honesta através da violência ou sedução. Caso a ele se seguisse o
defloramento ou o estupro, o indivíduo seria enquadrado também nesses artigos 5

O estudo realizado por Sueann Caulfield, Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação
no Rio de Janeiro (1918-1940), constatou que as queixas de defloramento estiveram entre as mais
freqüentes queixas criminais até a década de 1940, perdendo apenas para lesões corporais e
roubo, e lideravam de longe a lista de crimes sexuais até os idos de 1970 (Caulfield, 2001) 6.

Martha de Abreu Esteves, em seu estudo Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do


amor no Rio de Janeiro da Belle Époque, nos informa que

(...) ao ser julgado um crime de defloramento, estupro ou atentado ao


pudor, resultante da quebra de uma norma jurídica sexual, emergiam os
valores sociais mais amplos da sociedade, pois eram também na quebra
de outras normas morais e sociais que se determinava a absolvição e
condenação do réu. Ou seja, a conduta total do indivíduo é que iria, ou
não, redimi-lo de um crime; não estavam em pauta apenas o que havia
sido feito, mas aquilo que o acusado e a ofendida eram, poderiam ser ou
seriam.
Vale ressaltar que, nos crimes de amor, as ofendidas se tornavam, mais
que os acusados, o centro de análise dos julgamentos. Os juristas
avaliavam se mereciam, ou não, sofrer o crime; se os comportamentos e
os atos facilitavam e justificavam a ocorrência de uma agressão. A
transformação da ofendida em possível culpada correspondia à posição
da mulher como principal alvo da política sexual: sua conduta tornou-se
objeto de conhecimento científico (médico e jurídico) e construíram-se
verdades universais em relação a ela. (Esteves, 1989: 41)

As mulheres que se apresentavam como “ofendidas” (vítimas de crime sexual) precisavam


provar sua honestidade e a de sua família para serem, então, consideradas merecedoras de
proteção da justiça. Mulheres honestas, por exemplo, não possuíam desejo sexual. Os homens
acusados de crimes sexuais também era julgados por sua conduta, por aquilo que eles eram, e não
somente por serem ou não os autores do crime pelo qual eram acusados. Homens de “bom

5 Segundo a análise de Esteves, os juristas defendiam que “a honra era sinônimo de virgindade sexual e ideal

de casamento”, vinculando-a a “determinadas atitudes consideradas morais”, ou seja, “para a coexistência dos valores
de virgindade e casamento era necessária a prática de determinados comportamentos” (Esteves, 1989: 119).
6 Embora estejamos interessados em analisar os dados referentes à violência cometida contra menores num

período anterior ao que foi alvo da investigação de Caulfield, consideramos significativas as suas conclusões, a partir
das quais estabelecemos aproximações.
4

caráter”, trabalhadores, tinham mais chance de serem absolvidos. (Esteves, 1989: 41; Gavron,
2002: 106)

As políticas sexuais às quais se refere Esteves são as políticas através das quais médicos e
juristas pretendiam transformar os hábitos, as moradias, as condições de existência, uma vez que
a educação dos corpos, das mentes e dos desejos resultaria em sujeitos saudáveis, aptos para o
trabalho, disciplinados e docilizados. 7

Foi a partir da segunda metade do século 19 que as Ciências se voltaram para as


denominadas “aberrações sexuais”, para os amores “contra a natureza”, para os “maníacos e
perversos”, pois a elas interessava “analisar estes fenômenos marginais exatamente para mantê-
los à margem, para melhor conservar a integridade e a saúde dos indivíduos normais” (Branco,
1984: 49).

Este aspecto pode ser observado na “criminalização da sexualidade”, na medida em que,


nesse período, a Criminologia se valeu de uma interpretação psiquiátrica que vinculava à loucura a
sexualidade considerada anormal. Contrapondo-se ao sexo “sadio”, os juristas e psiquiatras
procuraram reprimir o que consideravam sexo “doente” e controlar seus praticantes, tais como,
os indivíduos que matavam por ciúme, o rapaz que beijava uma menor, o homossexual ou o
estuprador.

No período em questão (final do século 19), a mulher era considerada o pilar da


sociedade. Deveria ser esposa e mãe dedicada, “mulher higienizada” e deveria seguir normas de
comportamento e sociabilização8.

É, ainda, importante considerar que com a chegada da República, o país vivenciou


transformações. As idéias de progresso, crescimento e civilização, os movimentos de higienização
e de transformações urbanas ocasionaram “choques”, contradições. Conceitos morais gerados a
partir da elite eram, muitas vezes, propostos como generalização, e, não podendo ser seguidos
pelas demais classes sociais, criavam contrastes e estabeleciam comportamentos “patológicos” 9.

7 É possível perceber, nos Relatórios da Secretaria do Interior e Exterior, que o Estado busca disciplinar,

educar os cidadãos em vários aspectos da vida. No que se refere aos altos índices de mortalidade infantil, observa-se
o seguinte discurso: “A ignorancia da população, como ficou dito no resumo da estatistica de 1891, alliada à falta de
recursos de sua grande maioria; é a causa d´esse mal; uma propaganda bem dirigida corrigirá aquella (...)” (Relatório
da Secretaria do Interior e Exterior – SIE.3 – 001)
8 Interessante observar que a sexualidade também tinha seus limites no lar, devendo ser respeitada a

“natureza” e contidos os excessos. As relações sexuais deveriam ocorrer dentro dos padrões tradicionais, extirpando-
se desvios e mantendo a reprodução e a sexualidade sadia.
9 Estes comportamentos “patológicos” constituem, de acordo com Martha de A. Esteves, todos aqueles que

se relacionam com condutas desonestas, proibidas e em desacordo com as normas higiênicas valorizadas e reforçadas
no período (Esteves, 1989: 47).
5

Médicos e juristas, no período em questão, não julgavam adequado uma mulher sair só,
ou freqüentar determinados lugares em determinadas horas, pois o exercícoo de determinadas
atividades revelaria uma conduta não honesta. Em razão disso, poderia ser considerada
marginalizável, logo, não amparada pela proteção da justiça.10

É o caso das domésticas, por ocasião das compras para a casa; das
lavadeiras, quando faziam entregas a domicílio; das operárias da
indústria, nas horas em que se locomovem para o local de trabalho ou
para casa após uma exaustiva jornada diária. E como seria possível às
mães que precisavam trabalhar acompanhar suas filhas ao trabalho ou
mesmo ao lazer? (Esteves, 1989: 47)

Dessa percepção resultava que homens trabalhadores eram homens de “bom caráter”;
mulheres trabalhadoras – que, por isso, precisassem sair sozinhas – eram mulheres de conduta
condenável.11

O ato sexual também era alvo de discursos e normas por parte de juristas e médicos. As
mulheres poderiam ter prazer sexual, mas as relações sexuais deveriam acontecer dentro do
casamento, caso contrário o ato sexual seria considerado leviano e doentio. As relações sexuais
também não deveriam ser nem de mais nem de menos; os extremos poderiam trazer problemas
familiares. (Esteves, 1989: 54)

O fato de as mulheres serem vistas por médicos e juristas como esposas e mães, e o
casamento (e as relações sexuais dentro deste) como base da família e da pátria (questões de
higiene e moral) deixa claro que meninas defloradas, estupradas ou alvo de atentado ao pudor
eram “situações desviantes” e que representavam uma “ameaça à ordem sexual”. A intervenção
se fazia necessária12. “Assim, aquela que não preenchesse os requisitos estipulados pela natureza,
inscrevia-se no campo sombrio da anormalidade, do pecado e do crime”. Em razão disso, “não

10 Segundo os juristas e médicos do final do séc. XIX, as mulheres que freqüentavam as ruas, explorando o

meretrício, ofendiam a moral e o pudor público, exibindo-se escandalosamente. No séc. XIX, com o
desenvolvimento da ginecologia, os médicos, embasados nas funções biológicas das mulheres, afirmavam que estas
estariam mais aptas às atividades na esfera privada familiar. Aos homens, por sua vez, caberiam as atividades públicas
(Rhoden, 2002: 117).
11A rua, para muitas mulheres, configurava-se como seu local de trabalho ou trajeto obrigatório para os
mesmos. Nos discursos dos juristas, a rua representava uma ameaça pela tentação e desvios de conduta que oferecia.
Em razão disso, idealizava-se a mudança dos hábitos dos populares, especialmente, das mulheres pobres (Esteves,
1989: 47).
12 No início do século 19, a veneração da castidade feminina era a responsável pelo alto número de
assassinatos relacionados com a honra sexual e pela enxurrada de queixas de defloramento que assolavam as
delegacias de polícia. Uma nova geração de juristas iria rever os conceitos de honra e virgindade, na década de 20,
dirigindo seu foco de preocupação para a proteção dos chamados menores, em vez de centrar-se na preocupação
com a virtude feminina.
6

amamentar e não ser esposa e mãe significava desobedecer a ordem natural das coisas, ao mesmo
tempo que se punha em risco o futuro da nação.” (Rago, 1985: 79)

O corpo feminino, pouco conhecido no período em questão, também era alvo de


estudos, teses e discursos. Mary Del Priore, em artigo intitulado O Corpo Feminino, sua História e sua
Relação com o Social, esclarece que a relação estabelecida entre os males femininos e a natureza
sexual da mulher – males uterinos – remontava à “tradição já registrada nos livros do corpo
hipocrático”, mantendo-se nos textos redigidos no século 19. Ainda segundo Del Priore, “o
critério do útero regulador da saúde mental da mulher” produziu “uma mentalidade na qual a
mulher era física e mentalmente inferior ao homem e escrava de sua fisiologia.” (Del Priore,
2000: 21)13

No século 19, a mulher era alvo da medicina, da sociologia, da filosofia e da literatura.


Qual a natureza feminina? Quando a mulher começava a ser mulher? “Cada qual no seu domínio,
muitas definições procuraram fixar a mulher, mas foram as explicações médico-biológicas da
época as que maior impacto tiveram na construção das representações sociais.” (Martins, 2002:
42-43)

Estudos sobre o caráter patológico da menstruação e a natureza frágil e instável da


mulher eram assuntos em pauta e determinaram prescrições de cuidados higiênicos para as
jovens. Entre essas prescrições podemos destacar as seguintes: evitar excesso de esforço
intelectual, considerado um risco à saúde; evitar a leitura de romances, que poderiam, no futuro,
causar ataques de nervos; evitar aulas de música, pois a música poderia despertar paixões,
inclusive pelo professores de canto e piano. Cuidados com a alimentação, exercícios físicos e
vestuário também faziam parte dos itens a serem observados no que dizia respeito à higiene das
moças (Martins, 2002: 52-53)14.

O governo republicano gaúcho que assumiu o poder político, em 1889, apresentava


feição positivista ao defender que o progresso seria alcançado pelo desenvolvimento industrial,
pelo primado da ciência, pela educação e pela moral.

13 Citando ainda o historiador Jean Delumeau, Mary Del Priore afirma que “entre os séculos XII e XVIII, a

Igreja identificava, nas mulheres, uma das formas do mal sobre a terra.” (Del Priore, 2000:17) Classificado como
“receptáculo de pecados”, “impuro”, o corpo feminino estava longe de ser desvendado, compreendido. A mulher era
vista como um ser inferior, negativo e subordinado. É importante lembrar que para a Igreja, fonte também de
discursos normativos, a família era extremamente valorizada e o sexo era visto como ato para a procriação.
14 Ao tratar desta questão em seu livro As artes de curar: Medicina, Religião, Magia e Positivismo no República Rio-

Grandense – 1889-1928, Beatriz Teixeira Weber afirma que: “A existência de espaços e práticas de cura ‘alternativos’
manifesta-se com maior intensidade no atendimento às ‘moléstias de senhoras’. As mulheres eram atendidas em casa
ou nas casas das parteiras e, mesmo quando atendidas por médicos, ainda não havia conhecimento suficiente
sobre técnicas obstétricas como cesariana ou o funcionamento do corpo feminino” (Weber, 1999:195) [grifo
nosso] .
7

A mulher, na concepção dos positivistas, constituía-se na “reserva moral da sociedade,


freio dos maus instintos e suavizadora de conflitos”, na medida em que:

Sua permanência no lar, dedicada à educação dos filhos e a fornecer


bons exemplos, era uma garantia de manutenção da ordem social. (…)
era um fator de controle dos conflitos sociais, que poderiam ser
contornados e mesmo impedidos através da ação moralizadora da
personagem feminina. (Pesavento, 1990: 72-73)

Em razão dessa concepção de mulher como “alma da família”, estabeleceu-se uma rígida
moral que entendia o casamento como caminho natural, “mas antes de chegar lá, era preciso
vigiar as jovens e preservar a virgindade das moças, coibindo namoros” (Pesavento, 1990: 74).

Eram freqüentes, nos jornais das duas últimas décadas do século 19, notícias de meninas
que eram seduzidas e arrastadas aos prostíbulos e de crianças (meninos e meninas) que
esmolavam e perambulavam pelas ruas, atraídas por toda sorte de vícios. A responsabilidade por
esta situação de desamparo da infância era imputada às mães que falhavam em sua tarefa de
educadoras, mas também, à ausência de políticas públicas orientadas para a juventude.

Os dados levantados junto ao Arquivo Histórico e ao Arquivo Público do Rio Grande do


Sul apontam para um número significativo de registros que referem a violência15 cometida contra
meninas, o que se observou tanto nos códices da polícia e nos processos-crime, quanto nas
solicitações de exames de corpo de delito por atentado ao pudor encontrados na documentação
analisada16.

Um exemplo da prática de violência contra meninas, menores é o estupro de A. S., de


quinze anos, em 1897:

15 De acordo com o Guia de atenção aos maus-tratos na infância e adolescência, de 2001, editado pela

Sociedade Brasileira de Pediatria, as definições para violência contra a criança e o adolescente variam de acordo com
as visões culturais e históricas sobre a criança e seus cuidados, com os direitos e o cumprimento de regras sociais
relacionados a ela e com os modelos explicativos usados para a violência. Esta é usualmente entendida como ação
impetrada através da força, que cause danos físicos, morais, emocionais e/ou espirituais a alguém. Os dados reais
sobre os maus-tratos contra crianças e adolescentes são muito imprecisos, uma vez que a grande maioria dos casos
não implica a busca de atendimento médico para as vítimas. Os dados existentes se baseiam, ou em denúncias, ou em
registros de atendimentos por lesões traumáticas em hospitais e clínicas.
16 Entende-se por abuso sexual todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual cujo
agressor está em estágio de desenvolvimento psicossexual mais adiantado que a criança ou o adolescente. Essas
práticas eróticas e sexuais são impostas à criança ou ao adolescente pela violência física, por ameaças ou pela indução
de sua vontade.
8

Que achava-se [A. S.] ultimamente e já desde muito morando em


companhia de seu irmão G. S., casado e com dois filhos pequeninos,
sendo já falecidos os paes della declarante, e que há mais ou menos
quatorze mezes foi por aquelle seu irmão forçada e por meio de violencia
deflorada na sua propria cama (…)17

Os exames médicos eram precariamente realizados na primeira década do século,


evidenciando imperícia e determinando confusão a respeito do defloramento e da integridade do
hímen, mesmo porque o próprio Código Penal em vigor à época previa a associação entre
defloramento e ruptura de hímen e alguns juristas defendiam a existência de uma aproximação
lógica entre dores físicas, sangue, virgindade e comportamento honesto (Ver Esteves, 1989: 60-
63).

Os dados do Gabinete Médico-legal encontrados nos Relatórios do Interior e Exterior do


Rio Grande do Sul (Diretoria de Higiene) dão uma idéia da situação na Capital do Estado18.

Exames Clínicos realizados pelo Gabinete Médico-legal


do Estado do Rio Grande do Sul
Ano Exames Clínicos realizados
Total Defloramento Atentado ao pudor %/Total
1895 147 5 3,04
1896 504 26 5,15
1897 458 15 3,27
1898 339 23 6,78
1899 344 20 5,81
1900 308 38 12,33
1901 295 25 8,47
1902 330 45 13,63
1903 193 48 24,87
1904 253 55 21,73
Tabela 1 - Fonte: Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Relatórios da Secretaria do
Interior e Exterior (SIE.3 – 003, SIE.3 – 004, SIE.3 – 006, SIE.3 – 007, SIE.3 – 008).

Dos 16 registros criminais (processos-crime ou registro nos Códices da Polícia) por nós
pesquisados, envolvendo meninas menores de vinte e um anos, 14 se constituíam em crimes
sexuais. Dentre estes registros, é grande a quantidade de casos de rapto seguido de defloramento,
os quais têm como desfecho o casamento (10 casos) [ex.: H. F. – 16 anos].

17 Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Caso de estupro da menor A. S. Processo-crime, Cartório Júri,

Maço 1, Processo nº 1, Estante 29, 1897.


9

Verifica-se dos presentes autos que A. B., no dia 5 do corrente raptou a


menor H. F., de 16 annos, deflorando-a, conforme declararam ambos
nos termos que (…) lançados de fls. 3 a 4 (?), estando o raptor pronto a
reparar pelo casamento o mal que causou á referida menor. Como não
existe entre ambos impedimento de qualquer naturesa e da parte do pai
adoptivo da raptada nem um obstaculo se antepõe, como vese da
autorização que adiante o escrivão juntará, visto não ter a menor mais
pai e mai parece-me, que, attentas as circunstancias que occorrem, é de
toda a conveniencia que o casamento se realise com a urgencia precisa,
visto haver accordo de todos os interessados.19

Nos processos-crime e Códices da Polícia que analisamos percebemos não só o


julgamento do comportamento das meninas envolvidas – julgamento moral –, como também o
julgamento de seus corpos, o que fica evidenciado neste registro que transcrevemos:

(...) e que portanto, respondem: ao primeiro quesito, sim, existem signaes


evidentes de que a paciente tem entretido relações sexuaes: firmamos
este juizo deante do facto de apresentar-se o hymen com pequena
ruptura, como foi descripta, assim como no estado de frouxidão do
mesmo, deixando penetrar sem difficuldade o dedo medio; segundo as
relações já devem ser entretidas desde algúm tempo porquanto a
cicatrização da ruptura é perfeita, terceiro, sim, e d´este modo póde ser
explicado o extraordinario desenvolvimento das partes sexuaes numa
menina de doze annos; e são estas as declarações que em sua consciencia
(...). [C. S. - 12 anos]20

Este aspecto – o julgamento dos corpos – foi também observado por Martha de Abreu
Esteves, que constatou que:

Além da violência que sofriam nos exames médico-legais, possuir vagina


dilatada, seios flácidos, grandes e pequenos lábios também flácidos
tornou-se sinal de ser muito “afeita” a contatos sexuais a de ter perdido a
virgindade há muito tempo. Os corpos das mulheres eram considerados
atestados de sua moralidade. As partes sexuais flácidas levantavam para
os juristas suspeitas de prostituição e afastavam a hipótese de terem
precedentes normais, dificultando a punição do suspeito. Com o corpo
flácido, as ofendidas infringiam outras normas. (Esteves, 1989: 64-65)

18 Não dispomos de informações sobre as razões que determinaram a diferenciação entre defloramento e

atentado ao pudor nos exames do Gabinete Médico-legal.


19 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Códices da Polícia, Livro 4, p. 85, Rapto de menor, 1896.
20 Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, Códices da Polícia, Livro 4, p. 51, Defloramento, 1896.
10

É interessante observar que as idéias acerca do julgamento dos corpos, referidas por
Esteves, aparecem de forma clara no trecho do processo-crime que transcrevemos.
C. S. apresentaria um “extraordinário” desenvolvimento de suas partes sexuais, pois teria sido
deflorada já há bastante tempo e manteria relações sexuais. O corpo da menina de doze anos
forneceria provas sobre seu comportamento sexual.

Julgamentos morais, julgamentos dos corpos, discursos “moralizantes” e “educativos”


constituíam-se em realidade do século 19, o que pode ser observado tanto nos dados relativos ao
Rio de Janeiro, quanto nos do Rio Grande do Sul.

Além de ficarem evidenciados nos dados obtidos junto ao Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul, tais discursos “moralizantes” e “educativos” são também identificáveis nos dados
coletados junto ao Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. O
levantamento feito teve como objetivo principal relacionar as causas de internações e óbitos de
pacientes enfermos com idade entre zero e vinte e um anos, no período entre 1880 – 1920. As
informações que levantamos nos Livros de Matrícula Geral de Enfermos obedecem a uma
classificação sexual e etária.

Dos zero aos sete anos, o número de meninas internadas é equivalente ao de meninos. Os
motivos mais comuns para a internação são as doenças respiratórias ou epidêmicas, agravadas
pelas más condições de higiene, a má alimentação e pelo inverno gaúcho rigoroso. Embora haja o
registro de uma menina de quatro anos que permaneceu internada por 3 meses, sem apresentar
moléstia alguma, a falta de informações impede qualquer interpretação rigorosa ou qualquer
vinculação a caso de violência contra menor.21

Dos oito aos doze anos, há um crescente número de internações masculinas. Dos treze
aos dezessete anos, a maioria numérica é de meninos. Para o objetivo deste artigo, chamou-nos a
atenção o fato de que, nesta faixa etária, aparecem doenças venéreas como causa de internação,
sendo que dos 9 casos registrados, surpreendentemente 7 são de meninas, a maioria casada.

21 Em levantamento realizado junto ao Arquivo Histórico, constatamos que nos Relatórios da Diretoria de

Higiene, afeta à Secretaria dos Negócios do Interior e do Exterior, o Estado do Rio Grande do Sul manifesta
preocupação em relação à alta incidência de moléstias gerais (tuberculose, sífilis, sarampo, etc.) e do aparelho
digestivo. Outra questão que merece ser apontada é a preocupação constante dos Diretores de Higiene do Estado
com relação à qualidade dos gêneros alimentícios, especialmente do leite. A má qualidade deste alimento, tão
importante nos anos iniciais, poderia explicar, em parte, o grande número de óbitos de crianças por problemas
digestivos. A insalubridade de Porto Alegre também foi preocupação dos médicos e higienistas do período. Cortiços
habitados por várias famílias, com pouca iluminação, “ar contaminado”, água de má qualidade e sem instalação de
esgotos eram lugares propícios para o desenvolvimento de doenças, muitas das quais contagiosas. As escolas, em
período posterior, foram consideradas meios de propagar, através das crianças, hábitos higiênicos que atingiriam
esses lares.
11

Especulando, poderíamos dizer que, possivelmente, essas meninas foram contaminadas pelos
maridos ou adquiriram a moléstia em relações extraconjugais, exercendo a prostituição.

Dos dezoito aos vinte e um anos, as entradas de homens representam 60% do total,
sendo que dos atendimentos que lhes são prestados, 75% correspondem a doenças sexualmente
transmissíveis. O atendimento a mulheres, de forma geral, mostra-se inferior, independentemente
da doença. Pode-se presumir que as jovens mulheres não quisessem ou não pudessem afastar-se
da família, determinando a negação da doença e reforçando a concepção de inferioridade
feminina. Infelizmente, podemos apenas fazer inferências, sem poder confirmá-las.

Acreditamos que muitos homens e mulheres, preocupados com sua reputação, não
procuravam atendimento médico ou o buscavam tarde demais. Em uma época em que as
políticas públicas de saúde e higiene eram incipientes ou inexistentes e em que o sexo ainda era
alvo de percepções moralistas, as doenças venéreas devem ter se alastrado com rapidez o que, no
entanto, não garantiu seu atendimento terapêutico hospitalar.

Ao elevado índice de prática de crimes de ordem moral e sexual, observáveis nos Códices
da Polícia e nos Processos-crime do período em questão, soma-se a constatação, feita nos Livros
de Matrícula Geral de Enfermos da Santa Casa de Misericórdia, da propagação de doenças
sexualmente transmissíveis entre menores de vinte e um anos. Nesse sentido, a confrontação e a
análise destes dados nos remete à possibilidade de verificar nos Relatórios da Diretoria de
Higiene da Secretaria do Interior e Exterior do Estado do Rio Grande do Sul, a adoção de
estratégias que evidenciem a preocupação com o crescente número de jovens que praticavam o
“sexo doente”.

Fontes Documentais
Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Livro de Matrícula Geral de
Enfermos, período de 2 de julho de 1888 a 15 de julho de 1892.
Arquivo Histórico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Livro de Matrícula Geral de
Enfermos, período de 7 de junho de 1893 a 28 de setembro de 1894.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Códices da Polícia, Livro 04, p. 51. Os nomes
dos envolvidos foram preservados. Ano: 1896.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Códices da Polícia, Livro 04, p. 85. Os nomes
dos envolvidos foram preservados. Ano: 1896.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS). Relatórios da Secretaria do Interior e Exterior
(SIE.3 – 003, SIE.3 – 004, SIE.3 – 006, SIE.3 – 007, SIE.3 – 008).
12

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(1910 - 1920). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.
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República Rio-Grandense – 1889-1928. Santa Maria: Ed. da UFSM; Bauru: EDUSC – Editora da
Universidade Sagrado Coração, 1999.
FROM “ORDER AND PROGRESS” TO “NATIONAL SECURITY AND ECONOMIC
DEVELOPMENT” - THE ORIGINS OF BRAZIL'S 1969 NATIONAL SECURITY STATE*/ **
DA “ORDEM E PROGRESSO” À “SEGURANÇA NACIONAL E DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO” – A ORIGEM DO ESTADO DA SGURANÇA NACIONAL NO BRASIL DE
1969

JENS R HENTSCHKE***

Resumo
Quando os militares assumiram o poder em 1964, justificaram a
sua intervenção com uma ameaça para segurança nacional e
desenvolvimento econômico. O “desenvolvimentismo” liberal
parecia ser arruinado. Brasil e os outros países do Cone Sul
demonstraram que o processo de modernização não devia levar,
quase inevitavelmente, à democracia pluralista, como alguns
teoristas tinham prognosticado. Ao contrário, em países em via
de desenvolvimento, com um alto grau de heterogeneidade
estrutural, esta modernização (conservador) podia resultar numa
ditadura de tipo “burocrático-autoritário” e demobilisador que
seguiria um “modelo de desenvolvimento associado-
dependente”. Porém, já nos anos setenta do século passado
cientistas políticos e economistas começaram a discutir de novo
o caráter aparentemente inovador do sistema político e do
modelo de desenvolvimento dos militares. Philip Schmitter e
Thomas E. Skidmore realçaram as continuidades entre o Estado
Novo de Getúlio Vargas e o autoritarismo burocrático. Outros
acadêmicos defenderam o seu ponto de vista segundo o qual a
Doctrina de Segurança Nacional, a base politico-ideológica do
golpe de 1964, foi o produto da Escola Superior de Guerra e,
portanto, do período de pós-guerra. Este artigo retoma a tese de
Schmitter e Skidmore e aplica-a à formação de um Estado de
segurança nacional. Eu quero argumentar que os têrmos de
“segurança nacional” e “desenvolvimento econômico” foram
introduzidos já alguns anos antes da instalação do Estado Novo
e sustituiram o binômio positivista de “ordem e progresso”.
Ainda que o surgimento do populismo e o começo da Guerra
Fria contribuissem à elaboração e reinterpretação do conceito
original de segurança nacional, a ESG podia partir do legado
Varguista.

*. Artigo recebido em 30.11.2003 e aprovado em 06.02.2004.


** This article is based on a research paper presented at the conference “Violence, Culture, and
Identity” organised by St Andrew’s University, Scotland, in June 2003. I wish to thank the convenor of the
symposium on political violence, Will Fowler, and the discussants of this panel for their criticisms. I also
owe thanks to Michael Derham for proof-reading the English script and to Gunter Axt and the editorial
board of Justiça e História for a very efficient co-operation
*** University of Newcastle, SPLAS. United Kingdom.
2

Abstract
When the Brazilian military took power in 1964, they justified
their intervention by pointing to a threat to both national
security and economic development. Liberal desenvolvimentismo
seemed to be bankrupt. Brazil and other countries of the Cono
Sur proved that modernisation did not inevitably lead to
democracy, as some theorists had prognosticated. On the
contrary, in take-off countries with a high degree of structural
heterogeneity it could result in a new, “bureaucratic-
authoritarian” type of dictatorship which demobilised and
depoliticised society and embraced a model of “associated-
dependent development.” However, it would not take long
before social scientists and economists began to debate how new
the military’s polity and their development model actually were.
Philip Schmitter and Thomas E. Skidmore emphasised the
continuities between Getúlio Vargas’s Estado Novo and the new
bureaucratic authoritarianism. Other scholars continued to stress
that the military’s Doctrine of National Security, the rationale for
the 1964 coup, was rooted in the Escola Superior de Guerra and
therefore remained a product of the post-war period. This article
takes up Schmitter’s and Skidmore’s thesis and applies it to the
formation of a national security state. I want to argue that the
terms of “national security” and “economic development” were
introduced long before the installation of the Estado Novo and
replaced the positivist binomial of “order” and “progress”.
Although the emergence of populism and the beginning of the
Cold War would contribute to a further elaboration and
reinterpretation of the original concept of national security, the
ESG could build upon Vargas’s legacy.

Palavras-chave
Estado de Segurança Nacional - modelos de desenvolvimento –
positivismo - Estado Novo - ditadura militar - Rio Grande do
Sul - exército

Keywords
National Security State - development models – positivism -
Estado Novo - military dictatorship - Rio Grande do Sul - army

When the Brazilian military took power in 1964, they justified their intervention
by pointing to a threat to both national security and economic development. Liberal
developmentalism, with its belief in ‘universalistic and unilinear progression toward a
3

good society’ and its extrapolation from European and U.S. models, seemed to be
bankrupt (Martz/Myers, 1992: 265). Brazil and other countries of the Cono Sur proved
that modernisation did not inevitably lead to democracy, as both Rostow and Lipset had
prognosticated. On the contrary, in relatively backward and dependent countries with a
high degree of structural heterogeneity it could result in a demobilising and depoliticising
dictatorship. Guillermo O’Donnell (1980) coined the term ‘bureaucratic-authoritarian’
for the regime the military established, while Dieter Nohlen and his students
(Nohlen/Thibaut, 1992: 66-67) spoke of a ‘new military regime’. For Fernando Henrique
Cardoso (1973), the insurgent generals embraced a new economic strategy of ‘associated-
dependent development’ combining domestic and foreign capital under the auspices of a
modernising State (see also: Evans 1979). However, during Brazil’s long abertura, social
scientists (Cammack 1985; Lauth 1985) and economists (Thorp, 1984: 13-14;
Sangmeister, 1992: 273-4) began to debate how new the polity of the military dictatorship
and its development model actually were. Given that the 1964 coup d’etat marked the
beginning of a critical realignment in South America, an answer to this question was of
importance not only in Brazil but also regionally.

While a number of historians traced authoritarian-patrimonial rule back to the


Old Republic, the Empire, or even the colonial period, Philip Schmitter (1973: 182) and
Thomas E. Skidmore (1973: 38-43) emphasised the continuities between Getúlio
Vargas’s Estado Novo (1937-45) and ‘bureaucratic authoritarianism.’ Others continued to
argue that the military’s Doctrine of National Security, the rationale for the 1964 coup,
was rooted in the Escola Superior de Guerra (ESG), founded in 1949, and therefore
represented a product of the post-war period. It was not seen as a continuation of
Vargas’s policy but rather as a departure from it.

In this paper, I intend to take up Schmitter’s and Skidmore’s thesis and apply it to
the formation of a national security state. I want to argue that the terms ‘national
security’ and ‘economic development’ were introduced long before the installation of the
Estado Novo and replaced the Positivist binomial ‘order and progress’ which had
characterised the country’s transition from monarchy to republic and Rio Grande do
Sul’s Castilhismo. Although the emergence of populism and the beginning of the Cold
War would contribute to a further elaboration and reinterpretation of the concept of
national security, the Supreme War College could build upon Vargas’s legacy.
4

My study is divided into four sections. First, I shall examine how the military
legitimised their 1964 coup. In the second step, I will analyse the institutionalisation of
the Doctrine of National Security until the consolidation of an authoritarian polity in
1969. From this basis, a retrospective view can be taken of how state security was
defined and organised under Vargas’s dictatorial regime. Finally, the adjustment of this
concept to new domestic and international conditions after 1945 has to be explored. The
conclusion will focus on functional equivalents in the formation of the two national
security states. In this paper, I will place emphasis on the institutional, rather than the
personal and structural, dimension of ‘violence’ (Waldmann, 1977) and highlight the
political-ideological aspects of ‘culture’.

1. Brazil’s Regeneration: Rationale for the 1964 Coup


By the late 1950s, import-substituting industrialisation (ISI), which had begun
after the Great Depression and converted Brazil into a take-off country, entered a cul-de-
sac. Consumer durables could now be produced domestically but a large-scale
replacement of capital good importations depended on an increase in foreign investment
and the latter in turn on an abandonment of rigid economic nationalism. Furthermore,
even in its first stage, ISI had not been guided by domestic mass demand nor did it
stimulate the exportation of national products. Industries were internationally
uncompetitive, had a restricted internal market, and accumulated debts with suppliers of
intermediary products. Brazilian society had remained regionally and socially distorted.
The agrarian sector suffered from the unilateral macro-economic orientation towards
industrialisation. Neither the traditional nor the modern capital-intensive branches of
industry, which already produced their own labour surplus, were able to further absorb
rural migrants. As a consequence, the agrarian question was aggravated. The foundation
of peasant leagues in the Northeast, supported by Communists, trade unionists, leftist
intellectuals, liberation theologists, and populist politicians, caused concern among
Brazil’s conservative classes. When rural workers began to demand their ‘1930’, it
became obvious that the populist pact which Vargas had created between State and
urban proletariat was clearly overstretched. His heir João Goulart, faced with an annual
inflation rate of more than 100 percent, a considerable government deficit, and a
decrease in economic growth, had insufficient revenue for a redistributive policy in
favour of the urban and rural masses. Nonetheless, he promised ‘basic reforms’ in the
agrarian sector, banking, tax and the electoral system. Though this was rather meant as a
5

preventative measure against a possible revolutionary threat (with regard to his attitude
towards entrepreneurs, see Toledo, 1994: 33) and for some leftist analysts did not go far
enough (Frank, 1969: 348), his enemies, among them the military, felt the opposite was
the case: Goulart would actually prepare the ground for a leftist coup against the
country’s democratic institutions and (already restricted) market economy. Similarly, U.S.
officials were obsessed with the possible emergence of a second Cuba and a
terceiromundismo policy following decolonisation in Africa.

A small circle of high-ranking ESG graduates, who were also linked to a private
conservative think tank, the Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, formed what Dulles
(1980: 21) called an ‘estado-maior informal’, i.e. a co-ordinating centre for a possible coup:
Humberto de Alencar Castello Branco, Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva, and
Ademar de Queirós (see also Abreu, 2001: 1215ff). This group was horrified by the
increasing mass mobilisation instigated by Communists and populist demagogues and
ranked the elimination of this domestic threat to the existing social and economic order
higher than the army’s more conventional task of national defence. For the ESG, the
latter had become part of a wider concept of ‘national security’ which included military,
political, psycho-social, and economic instruments to deal with external and internal
enemies: training, equipment, and mobilisation of the armed forces and control of the
security apparatus in a wider sense; rational institution-building and decision-making
procedures; formation of a national consciousness based on a consensus of Christian and
democratic [sic] values; formation of capital and its investment in industries, agriculture,
infrastructure, and social policies. In this concept, ‘national security’ and ‘economic
development’ could not be separated. Without first decapitating the Left, removing
populists from power, and placing government authority in the hands of a coalition of
patriotic military, apolitical technocrats, and responsible entrepreneurs, the new elite
emphasised, it would not be possible to create a new polity and implement an unpopular,
but necessary and well thought-through, programme of economic stabilisation. The
success of this programme and the consequent generation of high growth rates would
then fund a modernisation of the army, allow social reforms, strengthen cohesion in
society, and consolidate the political institutions; in short, national security would be
cemented. For these ESG disciples, long-term growth depended on embarking on a new
‘development’ model. According to Aarão Reis Filho (2001: 6), ‘they intended to destroy,
in its foundations, the national-statist order and traditions which Jango [Goulart]
represented and replace them by an internationalist-liberal alternative which focused on
6

an economic opening towards the international market; incentives for private, including
foreign, capital; [and] a different, more regulative than interventionist, role of the State in
the economy.’

When the military actually intervened in politics in March 1964 and Castello
Branco became president, it was not an individual, but the armed forces as a corporation,
who exercised power and focused on a transformation of State and society following
ESG guidelines. The State was described as a ‘political-institutional organ or as an
instrument of collective well-being’ (Schneider, 1971: 247). It was to define and achieve
short-term and permanent national objectives and stand above the antagonisms existing
within a historically and culturally mature society. For ESG ideologues, an optimum
‘national policy’ had to take into account the country’s ‘natural’ or ‘supra-social’
conditions such as geography, resources, and infrastructure and to guide ‘government
policy.’ Such a concept would distinguish their decision-making from the
‘incrementalism’ which had characterised populist policies (Schneider, 1971: 246-7; Werz,
1992:,122-41). In other words, the ESG was convinced it was the only group to have an
alternative policy for rational state and nation-building, output-oriented modernisation of
the economy, unification of the country, and achievement of regional great-power status.
Moreover, they had the personnel and institutionalised power to implement their
strategy. Last but not least, in their self-image, they did not represent a specific social
class but the entire nation. Those who attacked them were depicted as the Anti-Nation
and became the target of the national security apparatus.

2. The ‘Coup Within the Coup’: The Formation of Brazil’s National


Security State by 1968/1969
It should be emphasised once again that the military around Castello Branco did
not intervene in politics to abolish the 1946 Constitution but, as they declared, in order
to regenerate or ‘purify’ the existing democratic system (Rouquie/Suffern, 1994: 252).
Consequently, they called their coup a ‘revolution’ and their regime a ‘democracia guiada’
(Bethell, 1992: 12). Just as in 1889 and 1930 the army considered itself the guardian of
the nation. It valued the guarantee (and improvement) of the Constitution higher than
the legitimacy of the (elected) government whose politics and policies had undermined
the State and left it unprotected. This was a conservative interpretation of the ‘citizen-
soldier’ doctrine which had guided Benjamin Constant Botelho de Magalhães and his
‘young officers’ in 1889 and the tenentes in 1930.
7

The ‘authoritarian liberals’ (Rouquie/Suffern, 1994: 252) who took over power in
1964 ‘sought to establish a highly centralised technocracy which could provide the
requisite institutional conditions for economic planning’ (Schneider, 1971: 113). Castello
Branco initially defined his government as temporary. He thought that, once anarchy was
overcome and technocratic rule established, (engineered) presidential elections could take
place. Moreover, Castello Branco was willing to collaborate with civilians, in particular
the União Democrática Nacional (UDN). Those politicians shared the military’s abhorrence
of Getulismo and of the parties which administered Vargas’s legacy, the Partido Social-
Democrático (PSD) and especially the Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).

Indeed, it was not only parties on the extreme left, most notably Moscow-
oriented and Maoist Communists, but also populist leaders and their loyal public
servants, trade unionists, and leftist intellectuals who suffered from the promulgation, in
1964, of a first Ato Institucional (AI) allowing amendments to the 1946 Constitution. This
Institutional Act was to expire at the end of the presidential term in January 1966 (later
extended to 1967). Until 15 June 1964 it authorised the executive to revoke legislative
mandates and to deprive citizens of their political rights for a period of up to ten years.
441 Brazilians were affected, among them the three presidents who had followed Vargas
in office after his suicide in 1954. In the two months following the coup, police and
military arrested between 10,000 and 50,000 people and tortured several hundred for
more than two days. However, the government refused demands from hard-line military
to extend this witch-hunt beyond the expiry date. Job security in the public services was
suspended for six months thereby allowing more time for purges. Not only civilians lost
their employment, 122 officers were also forced to retire. Thereafter, however,
persecution diminished and censorship was moderate (Skidmore, 1988: 23-7). Finally, still
in 1964, the Castello Branco administration created a notorious secret service, the Serviço
Nacional de Informação (SNI), headed by General Golbery de Couto, although initially this
was to be a civil government body.

The AI-1, which prepared Castello Branco’s election by a purged Congress,


marked the first step to a political centralisation and concentration of powers in the
executive branch. However, the administration proved unable to hermetically control the
country, much to the disgust of hard-liners who considered all civil politicians to be
incapable and corrupt and had favoured, from the start, a more permanent role for the
armed forces in Brazilian politics. They began to exert pressure on Castello Branco. As a
consequence, whenever a possible inroad for the opposition appeared the military
8

government answered with yet another institutional act which further limited civil
liberties and political rights. AI-2, promulgated in October 1965, was a reaction to the
unexpected election of two PSD/PTB-supported governors in key states. Though
Castello Branco respected their mandates, similar surprises were to be prevented in the
future. The institutional act and various complimentary acts which followed gave the
government the right to abolish all political parties (including the UDN), to deprive
adversaries of their constitutional guarantees and political rights, and to make the election
of the president indirect. Moreover, the executive further strengthened its power at the
cost of the judiciary branch: it increased the number of judges on the Supreme Court
from 11 to 16, further limited the court’s authority to review the actions of the
government, and placed crimes by individuals against national security under the
jurisdiction of military courts. By the end of 1965 two new parties were founded, the
government party Aliança Renovadora Nacional (ARENA) and the ‘opposition’ party
Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Just four months later, in February 1966, AI-3
required that state assemblies had to choose their governor who would then, after
formally consulting the legislative, appoint the prefects of state capital municipalities.
With the two new parties in place and purges under way, the legislature had become a
mere ‘rubber stamp’ (Burns, 1993: 455-6). The 1967 Constitution ended the experiment
in ‘authoritarian liberalism’ and made Brazil a barely disguised dictatorship (Martins 1993;
Excerpts 1999).

When a National Security Law (Decree-Law 314) was promulgated on 13 March


1967, coinciding with Castello Branco’s departure from office (15 March), the hard-liners
had already set the tone. Article 1 declared: ‘every individual or juridical entity is
responsible for national security within the limits defined by the law’ (cited in Skidmore,
1988: 57). These limits were narrow. Castello Branco himself justified the law as an
appropriate answer to any attempt at ‘adverse psychological’ or ‘revolutionary warfare’
against the State. The former was defined as ‘the employment of propaganda,
counterpropaganda, and actions in the political, economic, psychosocial, and military
areas designed to influence or provoke opinions, emotions, attitudes, or behaviour of
foreign, enemy, neutral, or friendly groups against the attainment of the national
objectives’. Warfare was then ‘revolutionary’ when an ‘internal conflict, generally inspired
by an ideology, or assisted from abroad, [sought] subversive conquest of power by
means of progressive control of the Nation’ (Dulles, 1980: 448).
9

The hardening of Castello Branco’s position resulted not least from the limited
success of his economic stabilisation programme. AI-1 had already given the president
the exclusive right to propose expenditure bills to Congress which the latter could not
increase. This was part of the strategy to restore public finances. Technocrats led by
planning minister Roberto Campos and minister of finance Octávio Bulhões created a
central bank and implemented an anti-inflationary policy (Skidmore, 1999: 177-8).
Exports were promoted and the investment climate for private domestic and foreign
capital improved (Hartlyn/Valenzuela, 1994: 142; Skidmore, 1985: 115-6). However,
progress was slow and social costs high: the influx of international capital remained
moderate while real wages fell and unemployment increased. This resulted in social and
political protests which were perceived as a threat to national security. However, the
hope that the 1967 National Security Law would quell any opposition was shattered.
1968 saw the climax of political protest. Workers went on strike in Osasco (São Paulo)
and other cities and corporatist union leaders (who had an ‘ideology attestation’ by the
military) proved unable to control their organisations. Urban middle classes and the
Catholic Church began to raise their voices against a socially unjust austerity policy and
institutionalised violence. A powerful student movement was organised and often
displayed solidarity with striking workers. In some cases, both groups had considerable
influence on local governments (Hall/Garcia, 1989: 182-4). One federal deputy, Márcio
Moreira Alves, called upon Brazilians to voice their protest against militarism. For hard-
line military, this was the result of Castello Branco’s yielding policy, at least after the
initial purges. Now that they were in charge and the linha branda with its ESG-ideology
marginalised, they wanted to carry out a ‘coup within the coup’ and install a national
security state. However, even Castello’s hard-line successors Arthur da Costa e Silva
(1967-1969) and Emílio Garrastazu Médici (1969-74) shared what Skidmore (1988: 57-8)
calls the Brazilian elites’ wide-spread assumption ‘that the solution to any problem was a
new law’. Therefore, even they maintained a pseudo-democratic façade: on 13 December,
AI-5 closed (but did not abolish) Congress and state assemblies, suspended the 1967
Constitution, imposed censorship, and placed crimes against national security under the
jurisdiction of military courts. In January 1968, the National Security Council was
reorganised. Its military president became a cabinet minister (Schneider, 1971: 237-8).

Similarly, the government reshaped the SNI which would now combine the
functions of a federal investigative police, secret service, military intelligence coordinator,
and national security advisory board. It became an ‘invisible government’
10

(Rouquier/Suffern, 1995: 253). Its head, a senior army officer who presided over
approximately 5,000 employees, had the rank of a minister and was often the first choice
when it came to the (indirect) election of a new (military) President of the Republic (both
Médici and Euclides Figueiredo had previously headed the security service). The SNI was
not subjected to any outside (financial) supervision. Its agents worked in every
government agency, state enterprise, university, and branch of the armed forces. From
the early 1970s, the army, navy, and air force had their own intelligence agencies though
the SNI remained intact (Conniff/McCann, 1989: 266-7; Stepan, 1973: 58-9). Its
founder, Golbery de Couto, admitted at the end of his life that he had created a
‘monster.’ Moreover, he disapproved of AI-5 and warned his friends in the U.S. embassy
as early as January 1969 that Costa e Silva lacked leadership qualities and was surrounded
by some incompetent military hard-liners. Shortly thereafter, Washington began to
distance itself from Rio and reduced economic and military aid (Sotero, 1998).

The militarisation of society made a legal opposition impossible and therefore


resulted in the organisation of an urban guerrilla, with Carlos Marighela’s Action for
National Liberation (ALN) being the most formidable group. This armed resistance, in
turn, led to a further aggravation of the 1967 National Security Law. Its modified version
of March 1969 (Decree-Law 510) provided more severe penalties for terrorism, bank
robberies and the interruption of public services, the usual guerrilla tactics, and strictly
forbade, and punished through military courts, the ‘fostering of animosity toward the
Armed Forces’ (Schneider, 1971: 279). This legislation was followed by a Constitutional
Amendment No. 1 in October 1969 which, among other things, facilitated federal
government intervention in the states; limited parliamentary immunity; strengthened the
decree-law powers of the executive branch and the role of the military in the Superior
Military Tribunal; prolonged the duration of a ‘state of siege’ decree; and introduced the
death penalty, along with a confiscation of property, for those who had engaged in
external warfare or any subversive or revolutionary act against the State. None of the
institutional acts since AI-5 had, as those before did have, an expiry date; they were to
remain in force as long as the military saw fit (Schneider, 1971: 302-3). This was until the
beginning of the abertura in 1979.

By the end of October 1969, when General Médici took over power, the
formation of a national security state was complete. The institutions and legislation had
effaced the boundaries between State and society, public and private spheres, internal
security and public safety. The militarisation of day-to-day life had reached such a scale
11

that the founder of the ESG, General Cordeiro de Farias, and the intellectual mastermind
of the coup, Golbery do Couto, became open advocates of an abertura. Under Médici,
politicians, diplomats, academics, and writers were, once again, blacklisted and lost their
job. Already in April 1969, more than 200 individuals were expelled from Congress, state
assemblies, the diplomatic service, Foreign Ministry, universities, and media. Among
them were the Rector of the University of São Paulo and internationally known
historians (Caio Prado Júnior, Emília Viotti da Costa), social scientists (Florestan
Fernandes, Octávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso), and physicists (Mário
Schemberg). Equally, journalist Antônio Callado lost his political rights (Schneider, 1971:
285). If modern means of communication were used for ‘subversive propaganda’, then
article 5 of the 1969 National Security Law prescribed a punishment of up to four years
in prison (Flynn, 1978: 424). Censorship was especially harsh with regard to television
and radio which reached an ever increasing part of the population. In contrast, print
media and literature enjoyed slightly more freedom since, in a developing country with a
high illiteracy rate, they rather targeted a small intellectual elite (Ginway, 1999). However,
the effects of this national security legislation went further than depriving intellectuals
and politicians of their political rights and censoring the media. During the Médici
government alone, 4,460 political trials took place (Bernecker/Pietschmann/Zoller,
2000: 285). Until 1972, Amnesty International registered 1,076 cases of torture by 472
individual, often sadistic, torturers. A considerable number of Brazilians ‘disappeared’, a
euphemism for political murder. The repressive apparatus included police, army, and
paramilitary forces (Skidmore, 1988: 125-35, 150).

Nonetheless, the administration continued to portray its regime as democratic,


directed against counter-revolutionary and unpatriotic elements who prevented the
country from progressing towards a bright future. To get their message across, the
military created a programme of civic and moral education which focused on ‘obedience
to the law, commitment to work, and integration into the community’ (Grupo da
Educação Moral e Cívica 1999). It was adjusted to every stage of an educational career,
from kindergarten to university. Indoctrination did not stop here. General Médici
installed a highly successful propaganda agency, the Assessoria de Relações Públicas (AERP),
which tried to counter-mobilise the population by politicising sport, especially football,
and promoting Carnival, popular music, and telenovelas (Skidmore, 1988: 110-1). The
attempt to unite the nation behind a cultural nationalism ‘from above’ did not always
have the desired effects. Some artists, like the Tropicalistas, used the manoeuvring space
12

the regime offered them to criticise it but it would not take long before they collided with
the National Security Law (Dunn 1999).

The second half of the Costa e Silva government and especially the Médici
administration not only represented the most repressive phase of Brazil’s military
dictatorship, they also coincided with the so-called ‘Brazilian Miracle’. Between 1968 and
the first oil price shock in 1973, Brazil produced unparalleled growth rates of more than
ten per cent, left its South American competitor for regional hegemony, Argentina, well
behind, and engaged in an ‘internal expansionism’ into the hinterland, especially the
Amazon, which had geopolitical (border security, prevention of a ‘balkanization’ of Brazil
through the international recognition of First Nations), economic (exploration of raw
materials) and social reasons (distribution of new land in the Interior instead of an agrarian
reform in the centres of colonisation) (Burns, 1993: 485-6). This expansionism and
creation of a national consciousness was supported by the development of television
(Mattos 1982). The regime’s propaganda machine AERP made sure that ‘many Brazilians
[…] concluded that increased national power and a rapidly growing economy were the
result of going authoritarian’ (Skidmore, 1988: 110). Those who did not step into this
trap and criticised the political, social, and ecological costs of Brazil’s development
‘model’ were targeted by the national security apparatus. The new legislation explicitly
forbade the distribution of negative news about the national economy (Skidmore, 1988:
134).

When the ‘miracle’ started, the new internationalist-liberal strategy of ‘economic


development’ had already largely failed. Castello Branco himself was never an
uncompromising advocate of economic liberalism. He considered nationalism ‘an engine
of national history’ as long as it contributed to the attainment of national objectives,
instead of class conflict, and accepted competition and partnership with foreign capital
(Dulles, 1980: 453-4). The possibilities of political and economic control which
corporatist decision-making and state interventionism offered, always prevented him
from radically breaking with the national-statist traditions, all the more so when facing an
increasing opposition (Reis Filho, 2001: 7). His successors Costa e Silva and Médici,
obsessed with geopolitics and self-sustainability, were ‘right-wing authoritarian
nationalists’ (Flynn, 1978: 377). They wanted to guarantee private capital accumulation,
include domestic enterprises and trans-national companies into the structuring and
implementation of national development plans, and mobilise foreign credits to close the
gap between the need for investment and domestic savings. However, the State
13

consolidated its role as supreme planning and regulating authority, used its legal
possibilities to intervene in the economy, and established monopolies in sectors deemed
to be essential for national security (Sangmeister, 1992: 235). Moreover, when the world
recession of 1974 hit Brazil and ended the ‘miracle’, Ernesto Geisel’s government even
returned to an import-substituting industrialisation (Pereira, 1978: 24) while Chile’s and
the second Argentinean military regime had learned the lessons and tried a neo-liberal
approach.

3. From ‘Order and Progress’ to ‘National Security and Economic


Development’: Justification for a New Polity in Vargas’s Dictatorial Regime
In their obsession to root out any form of unpredictable populist democracy, or
Getulismo, Brazil’s military did not fully realise how much they stood in the tradition of
the Estado Novo, or Varguismo. This requires a closer look at the origins of Brazil’s
interwar authoritarian regime and its concern with national security and economic
development.

The 1930 ‘Revolution’ resulted from the breakdown of the Old Republic’s fragile
system of regional ‘pillarisation’ and political clientelism. It was not a preventative step
against further mass mobilisation, as in 1964. Though the 1920s were characterised by a
crisis of social and regional participation, social mobilisation remained very limited and
passed its climax by 1927/1928. There can be little doubt that, had the Great Depression
not hit Brazil and reignited the political opposition, the café-com-leite coalition would have
been successful in co-opting dissident factions as so often before. The events of 1930-
1937/8 followed a well-established pattern, already probed in 1817-1822/3 and 1888-
1889/94: they represented a mixture of conspiracy, civil/military coup, and limited
reform following an aborted revolution or at least a defused political crisis.

Though neither of the two main actors of the ‘revolution’, a new generation of
gaúchos and highly politicised ‘young officers’ (tenentes), could rely on an elaborate and
conclusive ideological concept, such as the ESG doctrine, an alternative political strategy
did exist. Getúlio Vargas and his civil (Oswaldo Aranha et al) and military protégés (Pedro
Aurélio de Góes Monteiro, Eurico Gaspar Dutra) followed the doctrine of their political
master Júlio de Castilhos, a free interpreter of Auguste Comte, whose political ideas had
been deeply inculcated into Rio Grande do Sul’s political institutions. The executivismo
centralizante, ‘administrative continuity,’ and political and legal engineering, so typical of
14

the southern state, had guaranteed that Castilhos’s heir Antônio Augusto Borges de
Medeiros remained in power for a quarter of a century. When Vargas became governor
in 1928, he still shared the belief in the healing powers of a Positivist developmental and
educational dictatorship but tried to find a new form of political representation which
responded to the demands of a more urban and industrialised society. Italo-fascist ideas
of restructuring State and society along corporatist lines began to fuse with, but did not
contradict, the Positivist legacy. Vargas and his followers ‘had learnt all the subtle
connotations of the word “order”: order as a conservative password, order which
rationalised Borges’s restrictive regime, order which left no alternative to political
opponents but rebellion, order which explained the most surprising changes of line […,]
and order which was a prerequisite for progress, even social change’ (Bourne, 1974: 53).
Order was the codeword for the formation of a centralised and corporatist nation state
vested with authority (a euphemism for authoritarianism gaúcho-style) and progress
translated as (delayed) industrialisation through a policy of economic nationalism. Not
only was the former instrumental to the latter, modernisation would also provide political
stability and a place for Brazil among the world’s ‘great nations.’

Tenentes agreed with gaúchos that the (formally) liberal, federalist and outward-
looking state of the Old Republic, dominated by agrarian-export oligarchies and their
belief in laissez-faire (though actual policies often departed from it) was to be replaced by a
strong, centralist and nationalist regime which would be willing and able to intervene in
both the economy and society in order to foster rapid and planned industrialisation. The
Great Depression proved how important it was to overcome Brazil’s dependence on a
few agricultural staple products, and a national-statist model seemed to be the only
alternative to laissez-faire.

The origins of an intellectually and politically engaged army can be traced back to
the ‘young officers’ of the 1880s and the changes in military careers after the Paraguayan
War. Moreover, due to the absence of a nation-wide war of liberation against the
Portuguese, the Brazilian army was only founded after the Independência. The coincidence
of civilian and military leader during Spanish America’s revolution for independence,
fertile soil for the region’s chronic caudillismo, did not exist in Brazil. Here the army was
not a reliable pillar of power. In political conflicts, it often sided with the revolutionary
faction. When precisely this happened in the 1831 abdication crisis, a National Guard
was founded. It was to counter-balance a revolutionary army (with coronelismo becoming a
Brazilian variant of caudillismo) but this policy proved to be unsuccessful. During the war
15

of the Triple Alliance more middle class elements gained commissions and Positivists at
the Military School of Praia Vermelha challenged the notion of a neutral army. After the
war, ‘young officers’ joined the abolitionist and republican movements, and between
1889 and 1894 they tried to implement their project of an enlightened despotism aiming
at industrial-technical modernisation. However, eventually they had to succumb to
powerful regional oligarchies which feared a politicised army, the only national institution
during the Old Republic. The officer corps continued to feel neglected and complained
about the civilian elites’ ignorance of national defence needs and their deviation from the
1891 constitutional system.

The army’s journal A defesa nacional, published between 1913 and 1922, reveals the
ideas which motivated many ‘young officers’ to support the 1930 Revolution. Following
nationalist Olavo Bilac, they hoped that their intervention would lead to a ‘political-social
transformation’ of society, with them being the educators and organisers of the citizenry
and the architects of a new Brazil. The country was seen as ‘an improvised nation,
without roots in the past, and of indefinite ethnic formation, and therefore easy to break
up.’ The enemy were not only foreign powers but also the country’s ‘lack of national
cohesion.’ (McCann, 1989: 59). Among those who served on the journal’s editorial board
were gaúchos like Dutra but also the young Castello Branco, who had received his military
formation in Rio Grande do Sul but supported the state’s liberal opposition party (Abreu,
2001: 1209).

What was missing in the 1930 coalition, compared to 1964, was an aggressive
class of industrial entrepreneurs and civil technocrats. Their formation and education
‘from above’ would be one of Vargas’s and his supporters’ main objectives.

The years from 1930 to 1937 were characterised by a crisis of hegemony which
left little room for implementing a new political project. During the provisional
government (1930-1934), Vargas faced harsh resistance from reunited regional
oligarchies or, as one leading protagonist put it: the ‘rabble of anarchy’ against which an
‘elite of order’ was to be mobilised.1 In 1932, São Paulo even tried a counter-revolution.
Though Vargas used its defeat to deny 14 categories of opponents their political rights
for the duration of three years, among them not only the leaders of the Paulista rebellion

1 FGO/CPDOC, OA 32.10.29 cp, folhas 974-979, O. Aranha to F. Da Cunha, Rio de Janeiro 29.
10. 1932.
16

and their supporters in other states but also many politicians of the Old Republic,2
repression and censorship remained rather moderate. Furthermore, given the fact that
liberal constitutionalists retained power in the states, Vargas tried a policy of
reconciliation which included the country’s re-constitutionalisation. It was the tenentes
who held him in power during these difficult years and supported him in the engineering
of the 1933 elections for a Constituent Assembly. However, the 1934 Constitution
remained Janus-faced and preserved the hybrid status quo between Positivist gaúchos and
national-revolutionary tenentes, on the one hand, and (oligarchic) liberal constitutionalists,
on the other.

As early as January 1934, General Góes Monteiro published a memorandum


which assessed, in a pessimistic way, what had been achieved since the 1930 Revolution.
In his judgement, Brazil’s unbalanced federation, the poverty and ignorance of the rural
population, and the elites’ parasitism posed a threat to national security. Therefore, he
concluded, it would be necessary to strengthen national cohesion, regulate the economy,
rebuild the State, and sanitise the public administration. Army, police, and the judiciary
system were to unite their forces in order to protect the government from any attempt at
upheaval. This included, for instance, close co-operation between preventative police and
military intelligence. Their network was to cover the national territory and, in addition, to
target the centres of international intrigues and conspiracies. Furthermore, Góes
Monteiro wanted to strengthen the repressive (military) police, which was still controlled
by the states, and organise the Conselho de Defesa Nacional under the President’s leadership
(a law from 1927 had already formally created such a council). As a co-ordinating
political centre, it was to subordinate the Conselho Superior de Guerra, responsible for
technical aspects of warfare.3

This memorandum outlined a new security architecture. It would not take long
before Góes Monteiro’s ideas became reality. In February 1934, Law No. 23873 indeed
organised the Conselho de Defesa Nacional which was to include, as full members with the
right to vote, the President, all ministers and the chiefs-of-staff of the armed forces.
Other legislative acts created a Comissão de Estudos da Defesa Nacional, a potential think
tank for questions of national defence, and seções de defesa nacional in each ministry. A
Secretaria-Geral da Defesa Nacional centralised and co-ordinated decision-making in this

2 See PRO/FO 371/16548, A 115/115/6, W. Seeds to J. Simon, Rio de Janeiro 13. 12. 1933.
3 See FGV/CPDOC, OA 34.01.29/2 cp, folhas 0692-0710, Memorandum by P. A. Góes
Monteiro, to Finance Secretary O. Aranha, Rio de Janeiro 29. 1. 1934.
17

policy field and was directly responsible to the President. The 1934 Constitution (Article
159) already referred to the installation of a Conselho Superior de Segurança Nacional, and
after 1934 the term ‘national security’ replaced that of ‘national defence’ in the names of
study commissions and the Secretariat-General as well.4

The creation of these institutions was complemented by new legislation. In April


1935, Vargas promulgated a first National Security Law (No. 38),5 the main target of
which was clearly the Aliança Nacional Libertadora (ANL), founded in March of the same
year. The Communist Party which had just recovered from a five-year long period of
self-destruction played a major role in the organisation and development of this popular
front. The penalties the law provided were most severe though an earlier draft had gone
even further.6 In the revised version, any attempt to change, by force, the Constitution or
form of government could be punished with six to ten years in jail for ringleaders and
five to eight for accomplices. Those who tried to prevent federal authorities from
exercising their powers faced two to four years in prison. If the attack was directed
against individual representatives of federal, state, or local governments, prison sentences
varied between six months and three years. Other political crimes to be punished by
imprisonment were the instigation of collective strikes, military insubordination, class
struggle, or religious conflicts; the provocation of hostilities against or between the
armed forces or between them and civil institutions; and the violation of individual or
property rights for political, ideological, or religious motives. Building upon a previous
law from November 1934 (Carone, 1977a: 84), this first National Security Law also
focused on economic crimes which were considered a question of national security:
among them the paralysis of public services and supplies; the instigation of employers
and employees to interrupt work for reasons other than those resulting from the
production process itself; or the manipulation of prices for necessary consumer goods
with the purpose of gaining personal advantage. Finally, the law imposed censorship on
the media. Radio stations, newspapers, and advertising companies which engaged in what
the regime called subversive or war propaganda, faced the confiscation of publications
and heavy fines. If criticising the government, trade unions and professional

4 See PRO/FO 371/18656, A 4406/4406/6, 1934 Annual Report by ambassador W. Seeds, to J.

Simon, Rio de Janeiro 27. 4. 1935; Wahrlich 1983: 197, 598-600.


5 See PRO/FO 371/18648, A 3834/120/6, enclosure to W. Seeds to J. Simon, Petrópolis 7. 4.
1935.
6 See PRO/FO 371/18655, A 2002/2002/6, enclosure to W. Seeds to J. Simon, Petrópolis 7. 2.
1935.
18

organisations lost their legal status, civil servants and university teachers their position,
members of the armed forces their commission, and naturalised foreigners their
citizenship.

Similar to 1967, such a draconian security law was supposed to prevent a further
radicalisation and polarisation of society but the effort was in vain. On 5 July 1935, ANL
president and Communist leader Luis Carlos Prestes called upon Brazilians to overthrow
the Vargas government thereby forcing the organisation into illegality. If initially the
ANL had indeed enjoyed support from a broad spectrum of social and political forces,
now it found itself converted into little more than a Trojan Horse of the Communist
Party embracing the golpista strategy of its ex-tenente leader. The Intentona Comunista in
November 1935 was not successful but provided Vargas with a justification for further
strengthening national security legislation. In December 1935, a second, much tougher
National Security Law followed (No. 136).7 It provided that, if a crime against the social
and political order went hand in hand with the commitment of an ordinary crime, the
penalties for both offences would be added up. 8 The use of a weapon in an attack against
an individual was an aggravating fact and led to imprisonment for ten to twelve years
with hard labour. If the victim died, the offender faced 20 to 30 years in jail, again
combined with hard labour. Editors and journalists who abused their ‘freedom of
criticism’ could go to prison for six months to two years. A civil servant who committed
a crime was not only fired but for the next ten years he would also not get a job in any
public or semi-public institution. This included private enterprises working with
government concessions. An employer, director or administrator who accepted a
candidate from an official blacklist faced dismissal himself. Even employees in private
enterprises or educational institutes could, with permission of the Ministry of Labour,
end up on these backlists. Last but not least, the new security legislation allowed the
government to proclaim a state of siege and to extend it without limitation. Vargas
indeed governed Brazil with emergency powers until October 1937.

Though an unprecedented witch-hunt against not only Communists but all


opponents of Vargas’s government had begun immediately after the suppression of the
November 1935 barrack revolts, the legal system, inherited from the Old Republic and

7 See PRO/FO 371/19766, A 430/68/6,


8 ANL President Luis Carlos Prestes, for instance, was sentenced to 16 years and 8 months for his
role as ringleader of the 1935 Communist barrack revolutions and to another 30 years for two political
murders he allegedly ordered.
19

confirmed in the 1934 Constitution, still provided due-law procedures, at least formally.
Except in times of war, no special tribunals could be installed. This prevented the Vargas
regime from quickly trying and incarcerating those it considered to be a security risk.
However, in March 1936 a state of war was proclaimed (based on a previous
constitutional amendment which defined serious subversive activities against the State as
a war-like situation). On this basis, a Tribunal de Segurança Nacional (TSN) was installed in
September 1936 (Law No. 244). Though this National Security Court was meant to be a
temporary institution, targeting primarily the COMINTERN-supported ANL leadership,
it would remain intact until 1945. It had full responsibility for investigating and trying, in
the first instance and even retrospectively, those military and civilians who, by order of or
with support from foreign or international organisations or in relation with them, had
committed crimes against the country’s external security or carried out attacks against its
armed forces. This definition included subversive activities against political and social
institutions which led to political turmoil and, as a consequence, war-like situations. The
Supremo Tribunal Militar acted as court of second instance and appeal.9

The TSN was composed of military and civilians. It was part of a repressive
apparatus which also included: preventative, repressive, and secret police units; a
National Commission for the Repression of Communists; military-run penal colonies in
the hinterland and on remote islands. Moreover, the proto-fascist Integralista movement,
founded in 1932, was used to crush the extreme Left. Sadistic and pro-Nazi police chief
Felinto Müller arrested hundreds of alleged Communists and introduced new methods of
torture (Whitehead 1994:42). The fate of some COMINTERN-agents who had
instigated the November revolts was revealing. German Artur Ewert was tortured and
his wife raped in his presence; he lived on in a state of insanity. American Victor Allen
Barron threw himself out of a window during police interrogations; the official version
being that he committed suicide. The Jewish wife of Communist leader Luís Carlos
Prestes, Olga Benário, was extradited to Nazi Germany, ignoring her pregnancy; she died
in Bernburg’s gas chamber (Moraes, 1985: 107-283). However, repression did not stop
with aliancistas. Leftist deputies (Abguar Bastos, Domingos Velasco, João Mangabeira,
Otávio da Silva) and senator Abel Chermont who dared to take on Arthur Ewert’s
defence were incarcerated for 14 months before they were tried (Levine, 1970: 122).
Vargas’s challenger in the presidential elections scheduled for 1938, Armando de Sales
Oliveira, and Integralista leader Plínio Salgado were exiled (Dulles, 1967: 190-192). The

9 See PRO/FO 371/19767, A 7763/68/6, Mr Coote to A. Eden, Rio de Janeiro 16. 9. 1936.
20

populist governor of the Federal District, Pedro Ernesto, a tenente (Conniff, 1999: 45-47),
and his minister of education, Anísio Teixeira, who had opposed the introduction of
religious education as an option in school curricula both had to leave office. They were
accompanied by the Rector, eight deans, the director of music and art, and other scholars
of the University of Rio de Janeiro (Levine, 1970: 135). French Journalist René de
Jouvenelles was arrested for carrying a membership card of the Society of the Friends of
Russia (Zuvenel’ 1936). Some of Brazil’s leading artists were attacked as ‘subversive
elements’: Jorge Amado, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Cândido Portinari, Oscar
Niemeyer, and Vargas’s biographer André Carrazoni (Levine, 1970: 135). Interestingly,
when Robert M. Levine published his doctorate in 1970 and reminded readers of the
victims of Vargas’s regime, General Médici’s government blocked a Brazilian edition.
The similarities with practices of the military regime were striking and potentially
explosive. When the book was eventually allowed to appear in Brazil during the abertura,
it topped the non-fiction bestseller list for weeks.

When, on 10 November 1937, Brazilians woke up in the Estado Novo and read a
new Constitution in the newspapers, a coup within the coup had taken place. Vargas
remained in office and had been given dictatorial powers. No longer did he have to take
into account the interests of state particularists and obstructive liberal-democratic
politicians. He had successfully played off the Right against the Left, and now felt that
his regime was consolidated enough to prohibit all political parties, including Integralists
who had hoped for a totalitarian regime with them being in the driving seat. When it
became clear that the Estado Novo would be an authoritarian-corporatist non-party regime
and had no use for them, some Integralista leaders tried an unsuccessful armed attack on
the presidential palace in 1938. They thereby provided Vargas and his military supporters
with the justification for a further strengthening of the security edifice. If the 1937
Constitution had already preserved the security council, now called Conselho de Segurança
Nacional (Wahrlich, 1983: 594; 598-599), Decree-Law No. 474 and Constitutional
Amendment No. 1 of May 1938 once again aggravated the national security legislation.
The decree-law introduced new regulations at the Tribunal de Segurança Nacional (now
representing a special branch of the judiciary, the Justiça de Defesa do Estado) which made
trials a farce. The prosecution had to accuse an alleged offender within 24 hours but
could try him in his absence. The ‘defence’ was allowed to call two witnesses (though in
trials with more than five defendants the number of witnesses could not exceed ten) and
cross-examinations were to last no longer than five minutes. After Prosecution and
21

Council had given their final speech, the pronouncing of judgement had to follow within
30 minutes. Appeal proceedings had to be completed within 48 hours of the trial.10 The
ability to promulgate such a law revealed the new realities of power. Though another law
from June 1938 extended the time limitations again,11 the threat of a Rightist coup had
been averted. The constitutional amendment introduced capital punishment for serious
offences such as the violation of Brazil’s national integrity or constitutional order in co-
operation with a foreign power or internationally-operating organisation; the attempt to
establish a class dictatorship; an armed revolt against public authorities; the instigation of
a civil war or other acts which threatened the State’s national security or the freedom and
life of the President.12 This amendment shows clearly that the enemy was now seen to be
both outside and within Brazil, on the extreme Left as well as the extreme Right.

American scholar Bailey W. Diffie who visited Brazil during the height of the
Estado Novo did not share German writer Stefan Zweig’s illusions about Vargas’s regime
(Zweig 1960). For Diffie (1999: 203), Brazil had become ‘a democratic country with one
voter who always elects himself as saviour, and then uses arbitrary arrests, red baiting, a
form of terror, censorship of the press, suppression of free speech, abolition of civil
rights, nullification of academic freedom, and the systematic oppression of all forms of
liberal thought and all advocates of liberal thought, as a means of perpetuating his one-
man-rule’. In the name of national security, article 122 of the 1937 Constitution imposed
harsh censorship over the press, cinema, theatre, and radio. The Código de Imprensa from
December 1939 forbade any criticism of public authorities. In early 1938, Vargas
founded a propaganda office, transformed into a Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP) on 27 December 1939 (Abreu, 2001: 1831f.). It appointed the heads of DIPinhos in
the states13 and thereby centralised, co-ordinated, and controlled all instruments of mass
communication and popular culture (Gomes, 1982: 109; Schwartzman, 1983: 61-63;
Wahrlich, 1983: 41, 594-595). The Press and Propaganda Office took responsibility for
censoring the news and broadcasting the official radio programme ‘A Hora do Brasil’. It
skilfully created many of the long-standing myths of the Vargas Era, such as the

10 See PRO/FO 371/21422, A 4662/29/6, H. Gurney to Viscount Halifax, Rio de Janeiro 20. 5.
1938.
11 See PRO/FO 371/21422, A 5523/29/5, H. Gurney to Viscount Halifax, Rio de Janeiro 28. 6.
1938.
12 See PRO/FO 371/21422, 4662/29/6, H. Gurney to Viscount Halifax, Rio de Janeiro 20. 5.
1938.
13 See PRO/FO 371/3378, A 2624/2624/6, 1942 Annual Report, N. Charles to A. Eden, Rio de

Janeiro 15. 2. 1943.


22

President’s portrayal as the ‘father of the poor’, and his carefully staged appearances in
public. DIP also produced the image of Brazil being a ‘racial democracy.’ In a country
where the very existence of colour differences could be denied, there was no need for
addressing problems of racial or ethnic discrimination. Parades on the Dias de Raça rather
celebrated how far the nation had come in the process of abranqueamento and the
formation of a ‘new Brazilian.’ ‘The general tendency in Brazil is toward Aryanism’ and
becoming ‘a European or occidental country’, we read in an official publication (DIP
1942: 18). DIP’s National Commission for Textbooks depicted coloured people as
authentic nationals but considered the discussion of differences to be detrimental and
forbade any pessimism or doubt about the white future of the Brazilian race (Nava 1995:
64-65, 79). Foreign academics who challenged the myths of Vargas’s ‘democracy’ were
officially criticised, even when teaching abroad.14 Within Brazil they would lose their job,
no matter whether charges against them eventually had to be dropped, as in the case of
American social worker Lois Marietta Williams who, for no other reason than personal
vengeance, was denounced to the TSN. In her own words, ‘the full extent of my
communism is that I am a reader of THE NATION and that certain of Professor
Dewey’s ideas are used in our playground work.’15 This liberalism was already too much
for the military who in their search for dangerous literature in school libraries even
blacklisted Mark Twain’s ‘Huckleberry Finn’ (Sharp, 1940: 10-11). No wonder then that
socially satirical films like Charlie Chaplin’s ‘The Great Dictator’ were immediately
banned. Editors and journalists who tried to defy censorship and reveal the nature of
Vargas’s regime faced penalties and repression. Critical foreign correspondents had
difficulties doing their job. Telegrams going abroad were opened, private clubs
penetrated by secret agents, and women used as decoys (Diffie, 1999: 200-201; Levine,
1998: 60-62; Sharp, 1940: 12).

However, in a non-party regime like the Estado Novo, Vargas’s ‘one-man-rule’ was
conditional. It depended on the army which had been strengthened, united, and gradually
depoliticised since 1930. The dictatorial regime placed the federal states’ Military Police

14 Karl Loewenstein’s book Brazil Under Vargas and his critical lectures on Brazil in the United

States irritated Brazil’s dictator but the State Department considered Loewenstein’s analysis to be realistic.
See FGV/CPDOC, DE 42.08.05, Ambassador Caffrey to State Department (‘strictly confidential’), Rio de
Janeiro 16. 12. 1942; and reply Foreign Office to Caffrey, Washington 21. 12. 1942. See also Loewenstein
1942.
15 NARA, RG 59, M 1472, roll 18, pp. 0905-0906, U.S. Councelor of the Embassy R. M. Scotten

(in the name of the ambassador) to Secretary of State, Rio de Janeiro 11. 2. 1938. See also NARA, RG 59,
M 1472, roll 18, p. 0904, Department of State/Division of the American Republics, Memorandum, s. l., 21.
2. 1938; Sharp 1940:11.
23

under the control of central government, completed the purges of the armed forces
which had gone on since 1935, and put more emphasis on self-recruitment in the forces
(McCann, 1989: 63-65). The army became the link between developmental and
educational dictatorship. High-ranking officers occupied decisive positions in the State,
educational, security, and propaganda apparatus and were involved in the controversial
nationalisation of ‘foreign’ schools, the strengthening of civic, moral, and physical
education in curricula, the formation of a youth organisation, and the colonisation of the
hinterland which included the construction of ‘colônias-escolas’. Military technocrats were
also represented in the councils and state enterprises which shaped economic and
infrastructural development. It was in these institutions where close military-civilian co-
operation first developed. In 1939, with the war approaching, the Conselho de Segurança
Nacional participated in the creation of heavy industry, considered to be essential for
becoming a ‘great nation’. The siting of a steel plant in Volta Redonda, called the
Companhia Siderúrgica Nacional, was revealing, as Kapstein (1988: 138-141) stresses:
decisions with regard to location (50 miles away from the coast where its supply would
have been cheaper but its destruction by naval gunfire more likely), ownership (state-led
for reasons of national defence, despite more lucrative private offers), and technological
choice (development of expensive technology to use low-quality Brazilian coal for
reasons of self-sufficiency in critical times) were all guided by national security
considerations. When in 1942 pro-American forces within the Vargas administration, led
by Oswaldo Aranha, gained the upper hand over pro-Axis military and the country
joined the Anti-Hitler-Coalition, Brazil had another strategic advantage: it benefited from
its alliance with America economically and politically. In a lecture on the occasion of the
ESG’s 50th anniversary, Therezinha de Castro reminded her audience that the idea to
found an elite centre for the collective study and tackling of Brazil’s developmental
problems can be traced back to the creation of the Curso de Alto Comando para Oficiais e
Coronéis do Exército in 1942 and the consequent visit of Brazil’s chief of General Staff to
America’s National War College (Castro, 1999).

However, the closer the end of the war approached and the link to liberal
America developed, the more Vargas and his dictatorship became an obstacle. It was the
military which overthrew the President, not in order to abandon the strategy of national
security and economic development but to continue it after the inevitable (formal) re-
democratisation.
24

4. The Escola Superior de Guerra: Abandonment of Vargas’s Legacy?


The significance of the experiences Brazil’s Força Militar Expedicionária (FEB) had
in the Italian campaign can hardly be exaggerated. Not only did a distinct pro-
Americanism develop but also command officers like Castello Branco were increasingly
convinced that co-operation with foreign, especially U.S., capital would serve Brazil’s
interest more than an excessively nationalist strategy (Stepan, 1973: 63-64). This did not
mean a sell out of national interests but rather to define the most appropriate policy-mix
to achieve realistic, but ambitious, development goals within a capitalist model of
accumulation. What was needed was a collective debate, among civilian and military
elites, about these objectives and the instruments to achieve them. Reliable team work,
often lacking in the FEB but admired in the U.S. army, was seen as a necessary
prerequisite to securing victory on the military battlefield; now it was to characterise the
economic and political campaigns.

The immediate postwar period brought new conditions. Brazil had accumulated
gold reserves abroad but this money was soon ‘burned’ in a massive importation of
consumer goods. Further investment in heavy industries and infrastructural projects
under General Dutra’s administration was largely funded through foreign credits and
thereby added to the inflationary effects resulting from the pressure militant labour
exerted on wages and, as a result, prices. Sangmeister (1992: 230) considers Dutra’s anti-
inflationary policies after 1948 the ‘dress rehearsal for the policy of the “economic
miracle.”’ This interpretation would, to a certain extent, also be valid for the twin brother
of ‘economic development’, ‘national security’, though, of course, not with regard to the
degree of violence employed. The Cold War ended, in Brazil as in other countries of
Latin America, the experiment in liberalisation which had characterised the first two
years after World War II. The alliance with the U.S. was renewed in the 1947 Rio Pact.
Brazil declared the Brazilian Communist Party to be illegal, broke off diplomatic relations
with the Soviet Union, and repressed strikes. Brazilian officers were increasingly sent to
American military academies, including in the Panama Canal Zone, and trained in civic
action and counter-insurgency (Mols, 1985: 89).

The eventual foundation of the Escola Superior de Guerra in 1949 was part of this
anti-democratic turn. More than ever, Brazil’s military, many of them gaúchos or trained in
Rio Grande do Sul, were convinced that only they were able to plan and implement
‘national security’ and ‘economic development’, derivations from the Positivist motto of
‘order and progress’. It was now that these, so far rather diffuse, concepts were
25

theoretically elaborated. Officers studied, in an interdisciplinary way, conventional and


guerrilla warfare, socio-economic problems, institution-building, and social reforms
(Stepan, 1973: 56). Graduation from the ESG soon became a pre-requisite for reaching
the rank of general. By inviting police officers to the Escola (Kruijt, 1996: 265), the
different branches of the State’s security apparatus were further united. Civilian-military
relations intensified. Economic leaders and politicians enrolled in the ESG or attended
courses organised in regional centres. Consequently increasingly-militarised civilian elites
began to consider the army a partner and, if necessary, a caretaker of their interests
(Stepan, 1971: 175-177; McCann, 1988: 75).

The elaboration of the ESG doctrine coincided with Vargas’s second


government. The creator of the Estado Novo painfully realised that domestic and
international conditions had fundamentally changed. No longer was he able to govern by
decree-law or to play off the Left and the Right or the old and the new hegemonic
powers. The installation of an authoritarian regime was not viable. Representative
democracy had extremely fragile institutional roots and appealed little to the gaúcho
President. The explosive mixture of demagogic populism and aggressive attacks on his
internal and external enemies (Levine, 1998: 82-83), which resulted from this dilemma,
made it impossible to guarantee stable government; it undermined the semi-corporatist
structure of society with its underlying concept of regulated citizenship. Vargas and his
Secretary of Labour, João Goulart, raised expectations they could not meet. The
increasing social mobilisation frightened the conservative classes and the U.S. The
administration’s most ardent opponents in the UDN began to depict Vargas as a security
risk and an obstacle to economic recovery. The ESG was concerned that the military
might have to compete with labour for scarce resources (Bourne, 1974: 143). In 1954,
high-ranking military issued a ‘Manifesto of the Colonels’ which warned Vargas of a
further agitation of workers and a neglect of the army’s demand for modernisation
(Schneider, 1971: 66). In reality, Vargas’s policies had departed little from those of the
Estado Novo. The promulgation of a new National Security Law in 1953, the launching of
a nuclear programme, the construction of hydroelectric power plants, the
implementation of infrastructural projects, and especially the creation of a state
monopoly in the strategically important oil industry (Petrobrás) are testimony to the
President’s continued commitment to national security and economic self-sufficiency.
His economic policies pleased the dominant nationalist faction within the military but
not ESG founder Cordeiro de Farias and his Cruzada Democrática which in 1952 won the
26

elections in the Clube Militar. For these conservatives, the participation of foreign capital
in the exploration of oil resources was absolutely vital and nationalist officers were
infected by Communist propaganda (Abreu, 2001: 1212, 2100).

Vargas proved unable to exorcise the many bogeys he had conjured up. However,
his suicide in 1954 and the dominance of a ‘legalist’ faction within the armed forces
helped populism to survive for another decade. Vargas’s first elected successor, Juscelino
Kubitschek (1956-61), hid his more liberal desenvolvimentismo and experiment in
‘associated-dependent development’ behind a distinctly nationalist rhetoric. His success
was spectacular and represented a liberal precursor of the 1968-73 ‘economic miracle’.
However, Kubitschek pleased neither the Centre-Left which, in 1955, had founded an
Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Jorrín/Martz, 1970: 436-441) and defended
government ownership of key industries and control of foreign capital, nor the Right and
its IPES think tank, created in 1962, which complained that growth had been bought at
the cost of an economically and politically destabilising inflation. Jânio Quadros’s
intermezzo in power and especially João Goulart’s ‘nationalist capitalism’ (Sangmeister,
1992: 232) confirmed the Right’s worst fears and prompted the military’s intervention in
March 1964.

5. Synthesis
The similarities in the formation of a national security state by Vargas and the
military are striking. In 1930 as in 1964, an elected government was overthrown by a
civilian-military coup. In both cases, the insurgent faction intended to achieve more than
a mere palace revolution. Whether gaúchos and tenentes in 1930 or Castelistas in 1964, they
focused on a profound transformation of the political system, the search for a new polity
in order to implement new policies. Consciously or unconsciously, they stood in the
tradition of Alberto Tôrres, Oliveira Vianna, and especially Júlio de Castilhos. The option
for authoritarianism was a function of their interest in generating ‘progress’ or ‘economic
development’. Either of the two terms meant in reality economic growth, or ‘numerical
accumulation’, not what contemporary theory understands under ‘development’, namely
‘the maximum use of a nation’s potential for the greatest benefit of the largest number of
the inhabitants’ (Burns, 1993: 169-170), or, according to Nohlen’s and Nuscheler’s
‘magical pentagon’, growth, employment, equality/justice, participation, and
independence (with each of these five concepts representing both means and objectives)
27

(Nohlen/Nuscheler, 1992: 64-73). Due to the Great Depression, Vargas’s Provisional


Government had no other choice but to pursue a desarrollo hacia adentro though this was
well in consonance with gaúcho Positivism and the tenentes’ national-revolutionary ideas.
The Estado Novo confirmed the policy of economic nationalism and fostered ISI. The
insurgent military in 1964 advocated economic liberalisation but most of them remained
authoritarian nationalists, especially the hard-liners who took over firm control in 1967.
Notwithstanding individual cases of re-privatisation and a closer co-operation with trans-
national companies, ISI was not abandoned and the State remained planning agency,
regulator, and stern protector of industries deemed to be of strategic interest.

Both authoritarian regimes initially faced a crisis of hegemony. In 1932 (Paulistas)


and 1966 (PSD), the elites of the old regime regained influence and forced the new rulers
to secure their power by political engineering: Vargas convoked elections for a
Constituent Assembly and introduced a corporatist element which worked in his favour
while Castelistas, through AI-2 and AI-3, restructured the party system and changed the
balance of powers. These changes were confirmed in the Constitutions of 1934 and
1967, respectively. However, this political engineering did not have the desired effect of
eliminating any political opposition. 1935 saw the creation of a popular front (ANL),
soon dominated by Communists, and 1967/8 the organisation of labour and student
movements. Despite the immediate promulgation of national security laws in April 1935
and 1967, resistance continued and militant factions eventually defended the use of force
against institutionalised violence: under Vargas, the Intentona Comunista, and under the
military regime, urban guerrilla groups (with one of them using the acronym ALN which
resembled that of the popular front). This social mobilisation challenged the two regimes
but also offered hard-liners a reason for a coup within the coup which had, as its
functional equivalents, the national security laws of December 1935 and 1969, the 1937
Constitution and the 1968 AI-5, and the constitutional amendments of 1938 and 1969.
Arrests and torture increased and became systematised, press and propaganda offices
(DIP and AERP) imposed censorship and worked on a new image for the country and
its rulers, and new school curricula in civic and moral education indoctrinated children,
adolescents, and university students. It was on this basis that in 1938 and 1969 Vargas’s
‘authoritarian democracy’ and the military’s ‘guided democracy’ were consolidated and a
conservative modernisation fostered. Some of those who justified a coup in 1930 (gaúcho
Oswaldo Aranha) and 1964 (Castello Branco) were indeed interested in ‘improving’
democracy but in the technocratic philosophy of modernisation which guided the new
28

regimes there was no place for a bargaining between divergent social and political
interests; the resort to authoritarian means to restructure State and society was the logical
consequence. However, even after the ‘coup within the coup’ in 1937 and 1968/9, a
democratic or legalist façade was preserved. This was important since ‘tyrannies do not
have illegitimate enemies’ and therefore cannot define acts against the political and social
order as crimes against national security (Abreu, 2001: 3058).

Similarities between both authoritarian regimes are not restricted to the


institutional and legal level, but can also be personalised. Francisco Campos authored not
only the 1937 Constitution but also the military’s first institutional acts and Constitution.
Carlos Medeiros who took over the Ministry of Justice in 1966 had previously served as
Vargas’s Solicitor-General in the 1950s. Felinto Müller became a senator and under
Médici president of ARENA, the regime’s official party. All military presidents except
Castello Branco and Oliveira Figueiredo were gaúchos, and so were numerous ministers
and the first president of the ESG, General Cordeiro de Farias. However, due to their
despising Vargas’s policy during the 1950s, they had all forgotten how much they had
breathed the spirit of his dictatorial Estado Novo.

Obviously, there were also differences between both regimes. In 1964, the army
took over power as an institution. With the victory of the linha dura, it became more the
incarnation of the State than the guardian of the nation. This was the result of the
fundamental changes in military recruitment and career patterns since the Estado Novo. In
the early 1960s, every third cadet came from a military family and more than 90% of
them had been educated within the army since the age of 12 (Mols, 1985: 89). A de-
revolutionised army demobilised and depoliticised society. For Castello Branco, and even
more so the hard-liners, the crisis of 1963/4 was more than an intra-elitist conflict or a
very limited mobilisation and therefore did not allow the co-optation of dissent factions
or new groups. What was at stake, in their perception, was nothing less than the capitalist
model of accumulation (Flynn, 1978: 317). International Communism seemed to have
penetrated not only labour but also parts of the middle and upper classes, as student
revolts, guerrilla activities, and accusations by liberation theologists proved. Therefore, as
Skidmore stresses, the differential treatment of lower class elements and members of the
elite by legislator, police, and courts was no longer valid (Skidmore, 1988: 126; Skidmore
1999:174). Violence became more frequent and was more systematically organised
though in Brazil repression never reached the same scale as in Chile after 1973 or
Argentina after 1976. Even so, more than 20 years of military dictatorship and human
29

rights violations have cast a long shadow which can still be seen in today’s Brazil. Those
who after the long transición pactada advocated a continuation of the Vargas era, forgot
that the ‘father of the poor’ was also the godfather of the military’s security state. As one
SNI officer expressed it: 1964 had to be seen as the ratification of the military’s historic
decision in November 1935 (Giordani, 1986: 29).

The formation of a National Security State after 1930 and after 1964

1930 ‘Revolution’ (COUP) 1964 ‘Revolution’ (COUP)


Provisional Government (1930-4) Castello Branco government (1964-7)
double rule of gaúchos and tenentes, witch-hunt in the first three month after
repression and censorship moderate the coup (AI-1, expiry date: June 1966)
but then repression and censorship
moderate; creation of a secret service SNI
Elites of the Old Regime regain Elites of the Old Regime regain
influence, see influence, see
1932 São Paulo’s Counterrevolution 1965 Elections in States
-some citizens deprived of political rights -2 elected PSD governors confirmed but
but political engineering: AI-2/AI-3
policy of reconciliation: engineered restructure
1933/34 party system and strengthen executive
elections to Constituent Assembly power
-tenentes lose influence as a political group -‘linha dura’ gains upper hand
January 1934 Góes Monteiro’s March 1967 Castello Branco’s farewell
Memorandum failure of ‘Revolution’/ words failure of ‘linha branda’/acceptance
new security architecture of a security state
February 1934 Lei No. 23873
creation of a Conselho de Defesa Nacional;
other ‘national defence’ institutions
followed
July 1934 Constitution January 1967 Constitution
Janus-faced (contains principles of liberal end of the experiment in ‘authoritarian
constitutionalism and state corporatism); liberalism’ or a democracia guiada
mentioning of Conselho Nacional de Segurança
March 1935 Organisation of a popular 1967/8 Labour and student movements
front (ANL)
April 1934 Lei de Segurança Nacional 1967 Lei de Segurança Nacional (314)
(38) the military’s first detailed definition of
for the first time, a special legislation for crimes against national security
crimes against ‘national security’
December 1968 AI-5 (Start of COUP
WITHIN THE COUP)
first AI without expiry date closed
Congress and state assemblies and
suspended the 1967 Constitution; SNI
state within the state
30

November 1935 Intentona Comunista Organisation of an urban guerrilla (e.g.


despite draconian security law ALN) against institutionalised violence
December 1935 Lei de Segurança March 1969 Lei de Segurança Nacional
Nacional (136) (510)
strengthening of national security strengthening of national security
legislation; proclamation of a state of war legislation
during which a Tribunal de Segurança
Nacional operated.
October 1937 Constitution of the
Estado Novo (COUP WITHIN THE
COUP)
creation of a Justiça da Defesa do Estado
which makes the TSN a permanent
institution
April 1938 attempted Integralist
counter-coup
May 1938 Lei de Segurança Nacional
(774)
new TSN regulations, trials become a farce
1938 Constitutional Amendment No 1 1969 Constitutional Amendment No. 1
further strengthening of national security further strengthening of national security
legislation (introduction of death penalty) legislation (introduction of death penalty)

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VISIONS AND REPRESENTATIONS REGARDING THE POPULAR HEALTH
PRACTICES IN THE STATE OF SÃO PAULO FROM 1950 TO 1980: ONE ANALYSIS OF
THE JUDICIARY COLLECTIVE SENTENCES

ANTONIO CARLOS DUARTE DE CARVALHO**

Resumo
Neste artigo identificamos e analisamos as visões e
representações sobre as práticas populares de saúde em São
Paulo, a partir de 179 Acórdãos Judiciários relativos aos
casos de práticas de Curandeirismo, Práticas Ilegais da
Medicina, da Odontologia e da Farmácia, entre outros,
publicados na Revista dos Tribunais em São Paulo, entre os
anos de 1950 e 1980. Por se tratar de um tipo de fonte
pouco utilizada em pesquisas na área de História, a analise
dos Acórdãos Judiciários permitiu que realizássemos
também uma série de reflexões a respeito dos perigos e
possibilidades que o historiador encontra quando trabalha
com fontes judiciárias, bem como sobre algumas
especificidades próprias do oficio do historiador.

Abstract
In this article, we identify and analyze the visions and
representations regarding the popular health practices in the
state of São Paulo, based on 179 Judiciary Collective
Sentences concerning the cases of Charlatanry, Illegal
Malpractice of Medicine, Dentistry and Pharmacy, etc.,
published on the “Revista dos Tribunais” (Tribunal
Magazine) in the state of São Paulo, between the years of
1950 and 1980. Once the analysis of the Judiciary Collective
Sentences is a type of source that is scarcely used on
researches in the area of History, this type of analysis has
allowed us to reflect on the dangers and possibilities the
historian faces when he/she works with judiciary sources,

* Artigo recebido em 06.01.2004 e aprovado em 24.02.2004.


** Doutor em História Social. Docente do Departamento de Medicina da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto – FMRP – USP.
2

and as well as some particularities concerning the job of a


historian.

Palavras-chave
Representações - Práticas Populares de Saúde - Fontes
Judiciárias - Ofício do Historiador

Keywords
Representations - Health Popular Practices - Judiciary
Sources - The job of a historian

Em nossas pesquisas1 estudamos as visões e representações sobre as práticas


populares de saúde em São Paulo, a partir da analise de 179 Acórdãos Judiciários
relativos aos casos de práticas de Curandeirismo, Práticas Ilegais da Medicina, da
Odontologia e da Farmácia, entre outros, publicados na Revista dos Tribunais em
São Paulo, entre os anos de 1950 e 1980. Por se tratar de um tipo de fonte pouco
comum em pesquisas na área de História, a utilização dos Acórdãos Judiciários
naquela pesquisa, exigiu uma série de reflexões a respeito dos perigos e possibilidades
que o historiador encontra quando trabalha com fontes judiciárias e sobre as
especificidades próprias do oficio do historiador. São estas as reflexões que
pretendemos desenvolver neste artigo.

Logo de início, a questão que se colocou dizia respeito à quantidade de


Acórdãos localizados e analisados, num total de 179, que se divididos pelo número
de anos abarcados pela pesquisa (1950 a 1980) representariam pouco menos do que
seis acórdãos publicados por ano. Muitos diriam que a questão da necessidade de se
analisar uma quantidade significativa de documentos para que se tenha um resultado
confiável da pesquisa na área da História, está superada a tempos. Outros

1 Este artigo é fruto das reflexões realizadas no Doutorado em História intitulado Feiticeiros,
Burlões e Mistificadores: criminalização, expropriação e mudança dos hábitos e práticas populares de
saúde em São Paulo de 1950 a 1980, defendido na FCL/Assis – UNESP, em abril de 2001.Parte das
reflexões aqui desenvolvidas foram apresentadas no curso: Fontes Judiciárias na História, ministrado
no XVI Encontro Regional de História – Poderes e Representações, promovido pela ANPUH
Regional de São Paulo, no campus da UNESP – Franca em setembro de 2002.
3

defenderiam que esta é uma falsa questão, mesmo porque o que se buscava era uma
avaliação qualitativa da documentação pesquisada. Apesar disto, sentimos a
necessidade de amadurecer a questão, buscando apoio de pesquisadores que já tivesse
enfrentado tal objeção.

Refletindo sobre esta questão, que também lhe foi colocada quando
trabalhou com fontes jurídicas, Keith Thomas (Thomas, 1991) afirma que tais
documentos revelariam ao pesquisador apenas a “ponta de um iceberg”, cuja base
nunca poderá ao certo dimensionar, mas apenas inferir. Como este autor,
acreditamos que o número de acórdãos feitos e publicados é, para todos os tipos de
delito, infinitamente inferior ao número total de processos efetivamente ocorridos, e
a quantidade destes é, por sua vez, infinitamente menor do que o número de
ocorrências. Embora não possamos quantificar ao certo todas as ocorrências, desde
as simples denúncias até os acórdãos, passando pelos inquéritos e processos, a
quantidade de acórdãos localizados nos dá uma pequena dimensão da presença que
estes delitos tiveram no período apontado. Além do mais, acreditamos que as fontes
jurídicas, produzidas por instâncias superiores do judiciário, podem nos fornecer
alguns registros da “expressão coletiva de convicções” que não seriam fornecidos por
documentos de menor alcance regional, político e jurisdicional. Neste sentido,
concordamos com autores como Mandrou (1979: 17/18) e Ginzburg (1989: 39)
quando apontam que, muito embora não sejam numericamente abundantes, estas
fontes podem ser consideradas como verdadeiras “cristalizações” e “luzes”
reveladoras de complexas e abrangentes relações sociais de uma época.

Esta convicção é compartilhada também por Schritzmeyer (1994: 96) que,


baseada nas afirmações de Thompson (Thompson, 1987), defende que “a quantidade
dessas práticas não publicadas é infinitamente maior do que as publicadas”. Segundo
a autora, a maioria das práticas curativa “mágico-religiosas” pode não ter sido
formalmente delatada e não ter se transformado num “boletim de ocorrência”;
mesmo quando tenha havido a abertura do inquérito, este pode ter sido arquivado
por falta de provas que incriminassem o acusado; mesmo que tenha havido a
denúncia, com a conseqüente abertura de um “processo judicial”, este também pode
ter sido arquivado antes do julgamento em primeira instância; havendo o julgamento
4

em primeira instância, a sentença pode ter sido considerada satisfatória pelas partes
envolvidas e o processo pode ter sido arquivado; mesmo que uma das partes tenha
recorrido da decisão de primeira instância, nada garante que, necessariamente,
ocorrerá um novo julgamento e uma nova sentença; somente se o tribunal superior
reavaliar a sentença anterior (confirmando-a, ou reformulando-a total ou
parcialmente) é que haverá o registro do caso e da nova decisão sob a forma de
acórdão, o qual, por sua vez, poderá ou não ser selecionado para publicação numa
revista de jurisprudência.

Os 179 acórdãos judiciários analisados, proferidos no Estado de São Paulo,


apresentam as decisões de segunda instância dos processos onde houve recurso.
Embora sejam documentos menos ricos em detalhes quando, por exemplo,
comparados com os processos crime, os acórdãos possibilitam obter algumas
informações importantes e apresentam uma discussão teórica sobre os casos que nos
permite refletir sobre as concepções vigentes sobre as práticas populares de saúde.

Uma primeira análise de um acórdão judiciário normalmente causa a


impressão de tratar-se de um texto descritivo e informativo, que não poderia
fornecer ao pesquisador nada, além do relato extremamente sucinto e objetivo a
respeito do caso a que se refere. No entanto, a manipulação de um conjunto destes
documentos possibilita ao pesquisador vislumbrar horizontes que a análise de um
único documento dificulta. Autores que já se utilizaram deste tipo de fonte
asseguram que acórdãos não são textos meramente informativos, expositivos e
objetivos, são relatos opinativos e formativos de novas opiniões, pois com
parcialidade e em função de seus desfechos, resumem e selecionam aspectos das
tramas e pessoas nelas envolvidas, enfatizando detalhes e circunstâncias que
direcionam a compreensão do leitor. Sua estrutura apresenta um resumo inicial do
caso, uma transcrição literal de um parágrafo do acórdão, o texto do acórdão na
íntegra e um fechamento onde é apresentada a decisão da instância julgadora.

Pesquisando acórdãos judiciários relativos a práticas ilegais de medicina,


publicados em duas revistas jurídicas brasileiras de 1900 até 1990, Schritzmeyer
(1994: 152) afirma que o período que vai de 1951 a 1990 concentra a maioria (68%)
de todos os acórdãos publicados. Isto, segundo a autora, pode sugerir tanto um
5

aumento no número de casos de processos por estas práticas, quanto um maior


interesse por parte dos editores destas revistas pelo assunto, como ambos.
Concordamos com a autora quando afirma que é neste período que se forma a
jurisprudência sobre o Curandeirismo e práticas correlatas no Brasil.

Estas afirmações são confirmadas pelos dados sistematizados em nossa


pesquisa, apresentados na seqüência:

1 – Acórdãos Publicados na Revista dos Tribunais de 1950 a 1980


Verbete Quantidade %
Curandeirismo 72 40,0
Exercício Ilegal da Medicina 36 20,0
Exercício Ilegal da Arte Dentária 29 26,2
Exploração da Credulidade Pública (contravenção penal) 16 8,9
Estelionato 12 6,7
Exercício Ilegal da Arte Farmacêutica 07 3,9
Homicídio Culposo 03 1,6
Honorários Médicos 02 1,1
Erro Médico 01 0,5
Estupro 01 0,5
Total 179 100,00

Fonte: Revista dos Tribunais. Vol. 185 a 536. Maio de 1950/Junho de 1980.

2 – Total dos Acórdãos Publicados na Década de 1950


Verbete Quantidade
Exercício Ilegal da Arte Dentária 09
Curandeirismo 09
Exploração da Credulidade Pública (contravenção Penal) 05
Estelionato 03
Exercício Ilegal da Arte Farmacêutica 02
Honorários Médicos 02
Erro Médico 01
Total 46
Fonte: Revista dos Tribunais. Vol. 185 a 536. Maio de 1950/Junho de 1980.
6

3 – Total dos Acórdãos Publicados na Década de 1960


Verbete Quantidade
Curandeirismo 50
Exercício Ilegal da Medicina 16
Exercício Ilegal da Arte Dentária 13
Exploração da Credulidade Pública (contravenção Penal) 06
Homicídio Culposo 02
Estelionato 01
Total 88
Fonte: Revista dos Tribunais. Vol. 185 a 536. Maio de 1950/Junho de 1980.

4 – Total dos Acórdãos Publicados na Década de 1970


Verbete Quantidade
Curandeirismo 13
Estelionato 08
Exercício Ilegal da Arte Dentária 07
Exercício Ilegal da Medicina 05
Exploração da Credulidade Pública (contravenção Penal) 05
Exercício Ilegal da Arte Farmacêutica 05
Homicídio Culposo 01
Estupro 01
Total 45
Fonte: Revista dos Tribunais. Vol. 185 a 536. Maio de 1950/Junho de 1980.

Perceba-se que a tabela 1 traz o total de acórdãos publicados, na Revista dos


Tribunais, entre os anos de 1950 e 1980, apresentando números globais referentes
aos crimes enquadrados inicialmente nos artigos 282 - Exercício Ilegal da Medicina;
283 - Charlatanismo e 284 - Curandeirismo, do Código Penal de 1940, sendo que
alguns foram reenquadrados em outros artigos ao longo do desenvolvimento dos
processos. Quase a metade dos acórdãos publicados foi enquadrado como
Curandeirismo (72 vezes). Se somarmos os acórdãos enquadrados como
Curandeirismo (artigo número 284 do C. P.) e Exercício Ilegal da Medicina (artigo
número 282 do C. P.), atingiremos o significativo número de 108 acórdãos em 180
publicados, o que representa 60% do total. Estes dados apontam que até 1950 os
7

acórdãos estavam mais dispersamente classificados nos índices, podendo ser


encontrados em vários verbetes; no entanto após 1950, cerca de 70% dos casos
passaram a se concentrar no verbete Curandeirismo, diminuindo, consideravelmente,
os classificados em outros verbetes. Alguns verbetes chegam até a desaparecer após
1950, como é o caso do verbete Espiritismo, causando surpresa em Schritzmeyer,
pois o desaparecimento coincide com uma época de expansão do espiritismo no
Brasil. Segundo os dados que levanta, a incidência de aparecimento do verbete
Espiritismo, antes de 1950, estava em torno de 21% das referências, passando, a
partir dessa época, a apenas 6% em termos de Brasil. No caso de São Paulo, ele
desaparece por completo. No nosso entendimento, isto não surpreende, pois é
justamente o fato de ter ampliado o número de praticantes e consolidado seu
reconhecimento e sua aceitação como uma religião, que pode ter levado o espiritismo
a deixar sua posição majoritária como verbete e rótulo delituoso, a partir de 1950.

Outra coisa que pode explicar o fenômeno, e que já havíamos apontado em


nossa Dissertação de Mestrado, foi a tendência crescente de classificação dos delitos
sob o rótulo de Curandeirismo. Dessa maneira, o verbete acaba englobando várias
outras possíveis classificações como espiritismo, medicina popular, medicina prática,
benzimento, fitoterapia, quiromancia, cartomancia e macumba.

Para Schritzmeyer, outro motivo desta concentração no verbete


Curandeirismo deve-se ao fato de a Igreja Católica e a Medicina Acadêmica estarem
dispostas de modo muito mais ecumênico do que antes em relação a outras forças
sociais, criando condições para que a Justiça passasse a olhar para as práticas
delituosas, de maneira menos severa, o que justificaria a sua classificação em um
verbete mais amplo e, por isto, menos preciso.

Avaliamos que isto sucede, principalmente, pela necessidade de


enquadramento do delito no Código Penal, que trata explicitamente de
Curandeirismo no seu artigo número 282, e pela farta jurisprudência a respeito das
práticas de Curandeirismo, o que, na prática, facilitava a argumentação do promotor
e a possível condenação dos acusados. Isto se comprova pelos dados tabulados pela
autora que apontam que de todos os acórdãos publicados na Revista dos Tribunais,
cuja característica é a de acompanhar os efetivos enquadramentos dos processos
8

originais, 65% referem-se a práticas de Curandeirismo. Ao enquadrar o delito em um


verbete amplo e, ao mesmo tempo impreciso, como Curandeirismo, a própria defesa
do acusado fica dificultada, pois na tentativa de provar que não praticara o ato em
alguma de suas modalidades, ela acabava por fornecer à polícia e à Justiça as
informações necessárias para fundamentar o processo. Além disso, de acordo com a
análise de processos-crime que realizamos (Carvalho, 2001), a maioria das denúncias
contra curandeiros continua a ser feita por médicos diplomados e também,
principalmente nas décadas de 60 e 70, por órgãos de fiscalização do exercício
profissional, ligados a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Órgãos como os
Serviços de Fiscalização Profissional da Medicina, da Odontologia e da Farmácia
passam a atuar significativamente na denúncia contra práticas profissionais por
indivíduos não habilitados ou não registrados. Isto ocorre porque com o surgimento
de Leis regulamentadoras de diversas profissões, a partir da década de 50 como, por
exemplo, a Lei número 1.314 de 17 de janeiro de 1951, que regulamenta o exercício
profissional dos cirurgiões dentistas, os Serviços de Fiscalização Profissional ficam
responsáveis pelas denúncias de quaisquer irregularidades envolvendo as diversas
profissões (médico, farmacêutico, dentista). Tanto isto é verdade que alguns
processos acabam inclusive por ser encerrados quando se constata que a investigação
não foi solicitada por um Órgão de Fiscalização Profissional, e sim por um indivíduo,
ou foi desencadeada por iniciativa do Ministério Público. Isto, de certa forma, explica
o aumento significativo dos acórdãos classificados como Exercício Ilegal da
Medicina, Exercício Ilegal da Arte Dentária e Exercício Ilegal da Arte Farmacêutica,
ocorridos nas décadas de 50 e 60 (vide tabelas 2 e 3).

Schritzmeyer conclui que a maioria dos acórdãos por ela pesquisados era
procedente do Sul-Sudeste (99%), sendo que 43% era procedente do interior de São
Paulo, 30% da capital e grande São Paulo, 13% do Rio de Janeiro e 13% outros
Estados. Em nossa pesquisa, restrita aos casos do Estado de São Paulo, notamos que
a maioria dos acórdãos publicados se refere a casos do interior do Estado. Com
relação aos rótulos e classificações que aparecem nos acórdãos, quando se referem
aos acusados por práticas ilícitas, a autora aponta que predominam as classificações
religiosas em 21% dos casos, “espertalhões” ou “farsantes” em 20% dos casos,
9

antecedentes criminais em 18% dos casos, classificações profissionais em 15% dos


casos e “ignorantes” ou “incultos” em 12% dos casos. Segundo ela, citando Montero
(1985: 113), esta referência à presença de religiões populares e de profissões ligadas à
área médica e a educação, confirma o perfil dos praticantes de curas mágico-religiosas
enquanto agentes que disputam fatias do mercado religioso e da saúde com outras
forças sociais significativas. No mesmo sentido, aponta que os qualificativos
profissionais concentram-se nos acórdãos até o ano de 1960, enquanto os
qualificativos religiosos aparecem principalmente a partir de 1961.Com relação às
vítimas, os acórdãos optam pelo anonimato ou por sua descaracterização individual,
pois se referem a pessoas e população (48%) sem apontar se eram homens ou
mulheres, ou detalhar sua condição social e cultural. As qualificações utilizadas
apresentam-nos como doentes (34%), incautos e supersticiosos (18%), fiéis, crentes e
adeptos da religião/seita do réu (8%), saúde pública (6%), menores (4%), outros
(4%). Aponta ainda a autora, que a estereotipização coletiva das vítimas é muito
coerente com a abordagem jurídico penal dos delitos de Curandeirismo e
Charlatanismo que os classifica como crimes de perigo e não de dano. O que importa
não é quem são as vítimas, mas o que faz o curandeiro. No verbete Contravenção
Penal estão incluídos todos os delitos em que o indivíduo é acusado de Exploração
da Credulidade Pública. Enquadram-se aqui, por exemplo, os acusados de práticas de
Quiromancia (leitura de cartas e de mãos), Grafologia (leitura e interpretação da
escrita) e Astrologia (leitura e interpretação da posição dos astros). Nos acórdãos
localizados, que se enquadram em tal categoria, estariam explorando a credulidade
pública todos os indivíduos que afirmassem possuir conhecimentos especiais, ocultos
e/ou domínio das “pseudociências da quiromancia e da astrologia” (o chamado
elemento material) para, deliberadamente, explorar a crença da população em
benefício próprio (chamado elemento moral). Os indivíduos acusados deste tipo de
delito são enquadrados no artigo número 27 da Lei das Contravenções Penais.

Entre os anos de 1950 e 1980, a Revista dos Tribunais publicou 15 acórdãos


sobre a Exploração da Credulidade Pública, sendo que destes, quatro referiam-se a
práticas de Astrologia, quatro a práticas de Quiromancia, duas a práticas de
Grafologia e os outros cinco não são enquadrados em nenhum dos itens anteriores,
10

muitas vezes por apresentarem características comuns a vários deles (leitura de mãos
e predição do futuro, por exemplo).

A análise geral da ocorrência deste tipo de delito demonstra que houve, ao


longo das três décadas (50, 60 e 70), um equilíbrio, pois na década de 50 existem
quatro acórdãos, na década de 60, seis acórdãos e na década de 70, cinco acórdãos.
Uma análise mais detalhada permite constatar que doze, dos quinze acórdãos
publicados, referem-se a casos de condenação e apenas três a casos de absolvição.

Com relação aos casos onde houve condenação dos indivíduos, em nove
deles configurou-se a habitualidade e a remuneração das práticas, o que caracterizaria
que estes indivíduos faziam delas uma profissão. Inexistindo no Brasil o ensino da
grafologia, ninguém se podia dizer diplomado nessa ciência. Assim, todo aquele que
se dedicasse profissionalmente à mesma, instalando escritório e cobrando consulta,
estaria praticando a “exploração da credulidade pública” mediante as várias
modalidades estabelecidas no artigo número 27 da Lei das Contravenções Penais.

Em dois dos casos os indivíduos foram condenados, sem que ficasse provado
a habitualidade e a cobrança dos serviços, pois segundo a visão dos juizes, não seria
necessária a habitualidade para caracterizar a infração prevista no artigo número 27
do C.P. O elemento subjetivo da contravenção consistiria em abusar, com qualquer
impostura, da credulidade popular e é desta forma que a punição se justifica.

Em um dos casos, o indivíduo foi condenado porque se caracterizou a


remuneração.Na verdade, nem a habitualidade nem a remuneração eram requisitos
indispensáveis para que um indivíduo fosse condenado, bastando para isto que o
indivíduo agisse deliberada e conscientemente no sentido de aproveitar-se das
crenças populares.

O elemento material da contravenção do artigo número 27 da respectiva lei


consiste em executar alguma impostura. Entra nessa categoria a mentira, desde que
influa sobre a credulidade pública, como a de se creditar a si mesmo conhecimentos
especiais de natureza oculta, da quiromancia e/ou e da astrologia.

Em todos os casos de condenação, ficou caracterizado que os indivíduos


processados sabiam exatamente que o que estavam fazendo era condenado pela
11

Justiça. Já nos casos em que houve absolvição, ficou caracterizado que os indivíduos
não cobravam pelos serviços nem os executavam habitualmente, e desconheciam que
estavam cometendo ilícitos penais ao adotar tal conduta (“error júris”) e/ou agiam de
boa fé, descaracterizando que estivessem intencionalmente explorando as crenças da
população. Nestes casos, julga-se inadmissível presumir que alguém tenha explorado
a credulidade pública somente porque se dedicava ao estudo da astrologia e colabora
em jornais e emissoras de rádio fazendo horóscopos.

Interessante notar que quatorze dos quinze acórdãos publicados se referem a


casos ocorridos na capital de São Paulo e apenas um refere-se a um caso ocorrido
fora da capital, na cidade de Santos. Dos quinze acórdãos, oito envolvem indivíduos
do sexo masculino e sete indivíduos do sexo feminino.

Sob o rótulo de crimes de Exercício Ilegal da Medicina, aparecem trinta e seis


acórdãos publicados ao longo das décadas de 50, 60 e 70. Este número espelha bem
como eram grandes as preocupações dos médicos, do Serviço de Fiscalização
Profissional da Medicina e da Justiça, pois representam 20% dos cento e oitenta
acórdãos publicados, que utilizamos em nossa pesquisa. Analisando individualmente
cada uma das décadas, no entanto, perceberemos que as preocupações maiores com
este tipo de delito concentram-se na década de 50, onde são registrados quinze
acórdãos publicados, que representam 31,9% dos quarenta e sete acórdãos na década,
sendo que na década de 60 são publicados dezesseis acórdãos, que representam
18,1% dos oitenta e oito acórdãos, e na década de 60 são publicados cinco acórdãos,
representando 11,1% dos quarenta e cinco acórdãos. Isto pode ser explicado em
parte, pelo fato de ter sido na década de 50 o momento da organização e criação os
Serviços de Fiscalização Profissional. Isto também acontece com as profissões de
farmacêutico e dentista, como veremos mais à frente.

Mas o que seria este Exercício Ilegal da Medicina, que preocupava tanto os
médicos e era tão perseguido pelo Serviço de Fiscalização da Medicina e pela Justiça?
Segundo o artigo número 282 da Lei Penal, enquadra-se no Exercício Ilegal da
Medicina quem, exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista
ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites. A pena nestes
casos era de detenção de seis meses a dois anos. Se o crime fosse praticado com o
12

fim de lucro, aplicar-se-ia também multa de mil a cinco mil cruzeiros. Na verdade o
exercício das profissões de médico, farmacêutico, dentista e, inclusive, de enfermeira,
sempre esteve condicionado à posse de um diploma fornecido por Faculdade
reconhecida e devidamente registrado nos órgãos competentes, ou pelo menos a uma
autorização2 devidamente expedida pelos órgãos competentes. Qualquer um que
praticasse alguma dessas profissões sem ser formado, ou sem possuir o diploma
devidamente registrado, estariam exercendo ilegalmente a profissão e poderia ser
punido. Seria necessária, portanto, a habilitação legal para o exercício da profissão.
Foi o que aconteceu com algumas parteiras formadas e outras práticas, que atuavam
no período, acusadas de exercer, habitualmente, atos privativos da profissão médica,
como abortos, intervenções ginecológicas, aplicação de injeções, fornecimento de
receitas e aplicação de medicamentos em pacientes ou de, simplesmente, não
possuírem a devida formação e/ou autorização para exercerem a atividade de
parteira.

Dos seis acórdãos sobre parteiras condenadas por prática ilegal da medicina,
apenas um refere-se a um caso ocorrido na cidade de São Paulo, sendo os outros
cinco das cidades de São José do Rio Preto, Conchas, Cerqueira César, Brotas e
Araras. Isto ocorre porque na maioria das cidades do interior de São Paulo,
principalmente nas décadas de 50 e 60, ainda era difícil encontrar a quantidade
necessária de médicos e mesmo parteiras, formados e/ou autorizados a exercer suas
profissões, o que, de certa forma, estimulava uma série de pessoas a exercerem as
atividades que caberiam àqueles profissionais. Segundo apuramos, a partir de analise
de relatórios do IBGE do período estudado, existiam no ano de 1956, 1988 médicos
atuando nas 43 cidades citadas nesta pesquisa3. Na maioria delas o número de

2 A autorização para o exercício de profissões da área da saúde a indivíduos que não


possuíssem diploma foi mais comum do que poderíamos imaginar. Na profissão de enfermeira, por
exemplo, havia no ano de 1956, apenas nas cidades citadas nesta pesquisa, 1482 enfermeiras sem
diploma autorizadas a atuar na atividade de saúde, contra apenas 291 enfermeiras com diploma
atuando nestes municípios.
3 As cidades citadas nesta pesquisa, de onde se originam os processos ou acórdãos que
analisamos são, por ordem alfabética: Americana, Araçatuba, Araraquara, Araras, Assis, Batatais,
Brotas, Buritama, Caconde, Cândido Mota, Casa Branca, Catanduva, Cerqueira Cesar, Conchas,
Cunha, Dois Córregos, Fartura, Itaporanga, Ituverava, Jaú, Jundiaí, Junqueirópolis, Lins, Lucélia,
Marília, Osvaldo Cruz, Pacaembú, Palmital, Paraguaçu Paulista, Pirassununga, Pitangueiras, Presidente
Epitácio, Presidente Prudente, Santa Rita do Passa Quatro, Santos, São Bernardo do Campo, São
13

médicos era pequeno, como por exemplo, nas cidades da comarca de Assis, onde
Cândido Mota e Paraguaçu Paulista contavam com apenas um médico cada, Palmital
contava com dois médicos e Assis, que era a maior cidade da comarca, atendendo
muitas vezes aos doentes das cidades da região, possuía apenas oito médicos. Esta
situação de carência de profissionais da medicina no interior do Estado, não é
totalmente ignorada pela Justiça que, devido a isto, chega a afirmar que as
“aparadeiras” ou “curiosas” são um mal necessário.

Em decorrência disto, percebemos que dos seis casos localizados, quatro só


vieram à tona porque as pacientes morreram em decorrência de complicações no
parto ou pós-parto. Ou seja, a queixa contra as parteiras só foi feita e, por
conseguinte, o processo só foi aberto, porque houve a morte das pacientes. Todas
elas, ao que parece, exerciam habitualmente o trabalho de parteira já há muito tempo,
sem que nada nem ninguém, até então, impedisse que elas assim o fizessem. É o
caso, por exemplo, de Eliza Mimi Rodrigues, parteira de muita prática, de Conchas,
cidade que contava com apenas dois médicos e duas enfermeiras sem diploma. O
próprio Acórdão nos informa que a acusada é analfabeta e não fez curso algum de
obstetrícia e nem serviu como assistente de qualquer médico, embora há trinta anos
exerça a profissão de parteira pela prática que tem.

Na verdade, em conseqüência da falta de profissionais habilitados e como


resultado da confiança demonstrada pela população, as parteiras práticas ocuparam
um papel muito importante, principalmente no interior do Estado. Se algumas vezes
foram indiciadas, processadas e condenadas foi em razão de alguma fatalidade
ocorrida com suas pacientes ou ainda por terem concordado em realizar os partos,
mesmo sabendo que eram complicados e exigiam a intervenção de um profissional
da medicina (que nem sempre estava presente).

Mas também houve oito casos de absolvição de parteiras acusadas de


Exercício Ilegal da Medicina. Em todos os casos observou-se que o exercício da
atividade não objetivava lucro, além de se ter sido realizada em regiões distantes,

Carlos, São José do Rio Preto, São Paulo, Sertãozinho, Sorocaba, Tupã e Tupi Paulista. Estes dados
constam de levantamento do IBGE, publicados na Revista Brasileira dos Municípios, N. 41/42, Ano
XI, janeiro/junho de 1958, p. 4/122.
14

onde não estava disponível um médico para assistir ao parto e um Hospital para
realiza-lo. Muitas vezes agiam com a autorização de médicos que as indicavam e
orientavam na realização dos partos. Outro motivo para absolvição foi devido ao
fato da profissão de parteira não estar incluída entre aquelas que constam do artigo
número 282 do código penal (médico, farmacêutico e dentista), o que impediria seu
enquadramento como crime de Exercício Ilegal da Medicina.

Vejamos por exemplo o caso de Benedita Izipião, de Pacaembu, cidade que


possuía apenas dois médicos e uma enfermeira sem diploma, que prestando
declarações no processo, informa que não cobrava por seu trabalho e que quando o
caso exigia a intervenção de um médico, ela o chamava. Informa ainda, que aplica
injeções, mas antes mandava indagar a respeito, com o médico.

Em outro acórdão, de Presidente Prudente, cidade maior que contava com


nove médicos, uma enfermeira diplomada e seis sem diploma, Júlia Maria da
Conceição, é absolvida porque atuava, há muitos anos na zona rural e posteriormente
em bairro pobre da cidade atendendo a partos, só com a habilitação prática para esse
mister. Ainda neste caso, é possível identificar claramente os motivos que levaram a
Justiça a absolver a indiciada, mesmo sabendo que ela não possuía habilitação legal
para o exercício daquela atividade:

Trata-se, pois, de mulher que (...) vem prestando


inestimáveis serviços, por espírito de solidariedade humana,
sem atinar em (sic) que a prática do bem possa constituir
crime... Difícil será negar-se o papel extremamente útil que
as parteiras curiosas têm exercitado, no setor da população
que se não pode valer de Médicos e maternidades. (...)4.

Curiosamente, quando se trata de conflitos com parteiras, a Justiça demonstra


uma condescendência que normalmente não ocorria com outros tipos de delitos
também enquadrados como Exercício Ilegal da Medicina. É o caso, por exemplo, de
dois farmacêuticos e de um biologista, condenados sob esta acusação. Analisando

4 Acórdão Número 36.140 de 01/1964, p. 282/284.


15

estes casos, percebemos que, assim como no caso das parteiras, eles residiam no
interior de São Paulo, em Araçatuba, Dois Córregos e Lucélia, cidades estas que
possuíam respectivamente dez, um e nenhum médico no ano de 1956. Sabe-se que,
no caso dos acusados, tratavam-se de indivíduos formados e estabelecidos (dois eram
donos de farmácia), que exerciam habitualmente e de maneira remunerada, atividades
próprias da classe médica e que, concretamente, estabeleciam, ou poderiam
estabelecer, concorrência com os profissionais locais.

Mas também há casos de farmacêuticos absolvidos justamente porque não


faziam do diagnóstico e da prescrição de medicamentos algo habitual, agindo sempre
em consonância com o que indicavam os médicos, sanando, muitas vezes, nos
lugares mais distantes, a ausência desses profissionais. Nesses casos até mesmo a
prática de pequenos diagnósticos, da aplicação de injeções, do aviamento de receitas
e da realização de pequenas cirurgias são toleradas em nome da colaboração na
assistência às classes menos favorecidas.

Há também casos como o de enfermeiros que aplicam injeções e preparam


ficha de pacientes, denunciados como praticantes ilegais da Medicina. Os casos
terminam com a absolvição dos acusados por não ter ficado caracterizado o
“exercício” (o que implicaria a reiteração de atos ilícitos) ilegal da Medicina.

Há casos, porém em que a Justiça não hesita em condenar os indivíduos por


exercerem a Medicina sem possuírem nenhuma formação e de, deliberadamente,
tentarem se passar por médicos formados. Este é o caso de Irineu Paulo
Sammartino, que atuava na capital paulista, onde o número de médicos no ano de
1956 era de 1421 profissionais. Segundo relata o acórdão, o indivíduo se apresentava
como Médico e como tal era considerado por toda a gente, inclusive por verdadeiros
possuidores deste diploma. Além disto, exibia vistoso anel, mantinha consultório e
dispunha de impressos que até indicavam suas especialidades na arte de curar.
Percebemos que quando o indivíduo possuía alguma formação e atuava, de certa
forma, em consonância com os médicos locais, era mais fácil obter a absolvição por
praticar ilegalmente a medicina. Já quando era um leigo, sem formação universitária,
seu destino estava praticamente traçado: a condenação.
16

Do total de cento e oitenta acórdãos publicados nas décadas de 50, 60 e 70,


com os quais trabalhamos, setenta e dois referem-se a práticas de Curandeirismo, nas
suas diversas formas, o que representam 40% do total (vide Tabela 1).

Analisando por décadas (vide Tabelas 2, 3 e 4), percebemos que os acórdãos


classificados como Curandeirismo, que na década de 50 representam 19,1% do total
(nove de um total de quarenta e sete da década), passam na década de 60 a
representar 56,8% do total (cinqüenta de um total de oitenta e oito da década) e
atingem na década de 70 um índice de 28,8% do total (treze de um total de quarenta
e cinco da década). Ou seja, ao contrário dos acórdãos classificados como Exercício
Ilegal da Medicina que, como já demonstramos, tem seu auge na década de 50 para
depois se estabilizarem em patamares inferiores nas décadas seguintes, os acórdãos
classificados como Curandeirismo aparecem em maior número na década de 60,
representando mais do que a soma dos índices obtidos nas décadas de 50 e 70.

Segundo o artigo número 284 do Código Penal, que trata do Curandeirismo,


estariam enquadrados nesta categoria todos os indivíduos que exercem a arte de curar
sem habilitação profissional. Vale a pena destacar que, ao contrário do crime de
Exercício Ilegal da Medicina, que se caracterizaria pela ausência de “habilitação
legal”, o de Curandeirismo caracteriza-se pela ausência de “habilitação profissional”.
A Lei, porém, admite interpretações e pareceres, como os que constam de um dos
acórdãos trabalhados, que permitem que tenhamos uma visão mais detalhada de
como, as práticas de Curandeirismo e a ação dos curandeiros, eram vistas pelos
profissionais do direito no período estudado: “... o curandeiro é o ignorante (...) que
se arvora em debelador dos males corpóreos; (...) o curandeirismo pode ser definido
como uma forma supersticiosa do exercício ilegal da arte de curar” 5.

Muito embora, aparentemente, seja muito fácil identificar o que seria


Curandeirismo, na verdade havia muitas modalidades do delito, fazendo com que
práticas tão diversas, quanto às atividades de um religioso no templo, na igreja ou no
terreiro, e as mal explicadas incursões de um enfermeiro pelos campos da Medicina,
pudessem, igualmente, ser enquadradas no delito.

5 Acórdão Número 38.335 de 12/1964, p. 396/400.


17

De forma geral, no entanto, podemos afirmar com base na documentação


trabalhada, que na grande maioria dos casos os indivíduos acusados de atividades de
Curandeirismo tinham alguma ligação com práticas de religiões aceitas (Católica,
Protestante ou Espírita) ou não (Umbanda, Candomblé). Na verdade, como
veremos, o que faz com que vários religiosos sejam enquadrados como praticantes
do Curandeirismo não é tanto a prática das diversas religiões, mas muito mais as
atitudes e atividades individuais desenvolvidas por estes indivíduos sob o manto das
religiões. Ao que parece a religião, principalmente a espírita, continua a ser nessas
décadas, a exemplo de décadas anteriores, um abrigo comum e acolhedor para
aqueles que ousam realizar atividades condenadas pela Lei Penal. Este é o caso de
seis pessoas de diferentes cidades do Estado (Batatais, Tupi Paulista, Lucélia e
Junqueirópolis) e da Capital, processadas e condenadas devido às práticas de efetuar
passes, diagnosticar e prescrever medicamentos em caráter habitual. Todos eles, em
suas defesas, alegam que apenas exerciam atividades próprias da religião espírita ou
que os atos por ele praticados faziam parte de um ritual consagrado pela religião
umbandista, largamente difundida no Brasil e praticada por grande parcela da
população, inclusive pessoas da sociedade, sendo atos respeitados amparados
inclusive pela Constituição e não contrários às Leis e aos bons costumes. Como
vemos, são argumentos bem elaborados que tentam levar a discussão para o campo
da religião, pois assim poderiam alegar que estavam amparados pela Constituição que
garantia (e garante) a liberdade religiosa no país.

Este procedimento não é totalmente inovador, pois em períodos anteriores


este tipo de defesa já era feito, visando libertar pessoas acusadas de Curandeirismo.
Com base no artigo 72 da Constituição de 1891, que assegurava a todos a liberdade
de culto religioso, um advogado competente conseguia livrar seu cliente das grades.
Somente a partir de 1934, a Constituição passou a restringir o livre exercício dos
cultos, impondo-lhes a condição de não atentarem contra a ordem pública e os
costumes, o que abre o caminho para um cerceamento maior também às práticas
religiosas.

Em consonância com a tradição de se recorrer à liberdade de culto na defesa


dos acusados de Curandeirismo, muitas vezes, a resposta a estas argumentações já
18

estava elaborada e publicada em livros escritos e organizados por renomados juristas


como, por exemplo, Nelson Hungria (1958, p. 155/156) que afirma que mais do que
“todos os sortilégios mágicos e bruxedos”, a prática do espiritismo-medicina
constituiria um grave perigo, pois induziria os crédulos a repudiar os recursos
preconizados pela ciência médica.

Mas havia outros tipos de defesa possíveis e muito utilizados como, por
exemplo, a alegação de que os atos de Curandeirismo eram realizados gratuitamente,
sem que houvesse a pretensão de obter lucro.

No período pesquisado, localizamos seis acórdãos publicados em que os réus,


e seus advogados, ou a Justiça Pública, recorriam das sentenças, sendo que em quatro
deles os réus recorriam de condenações em primeira instância e, em dois deles, a
Justiça Pública recorria de absolvição, também em primeira instância. Desses casos,
dois referem-se a apelações da Capital, dois da cidade de Catanduva e um das cidades
de São José do Rio Preto e Guaíra cada uma.

Uma das argumentações utilizadas que espelham bem o que, de forma geral,
aparece neste tipo de defesa é a que pleiteia a absolvição do acusado sob a alegação
de que não se cobrava nada pelo atendimento e não se enganava ninguém. Frente a
este tipo de argumento, a Justiça afirmava que, por não ser um crime de dano, mas
de perigo à saúde pública, pouco importava se a prática de Curandeirismo tivesse
sido ou não remunerada, pois este não seria um elemento fundamental para a
configuração do delito. Pelo contrário, se ficasse provado que houve cobrança por
parte do curandeiro, poderia ser configurado um agravante da pena a ser imposta.
Em resumo, este tipo de argumento foi, sempre que apresentado como fundamento
de apelação, prontamente rechaçado pela Justiça, muito embora em primeira
instância, pelo menos nos casos analisados, tenha sido uma linha de argumentação
relativamente bem aceita (dois casos de um total de seis).

Aliás, este entendimento de que o crime de Curandeirismo seria um delito de


perigo e não de dano, levou também à condenação de outros oito indivíduos nestas
três décadas, como relatam os acórdãos. Sendo um delito de perigo e não de dano, a
interpretação era de que não haveria a necessidade de apontarem-se nominalmente as
19

possíveis vítimas, bastando a comprovação de que o delito fora realmente


consumado. Em função deste entendimento, não adiantavam os argumentos listados,
mesmo que muito bem formulados e concatenados, que muitas vezes só serviam
para confirmar a efetiva ocorrência dos atos condenados.

Outra razão muito forte para que houvesse a condenação de alguém pela
prática de Curandeirismo era a prova de que ele agia habitualmente. A própria Lei
Penal fala em “exercer o Curandeirismo”, o que implica não um ato isolado e
esporádico, mas uma atividade cotidiana. A acusação procurava, de todas as formas,
provar a habitualidade destas práticas:

Entre as décadas de 50 e 80, localizamos cinco casos em que ocorrem


condenações devido à habitualidade das suas práticas, nas cidades de São José do Rio
Preto, Americana, Jaú e na Capital (dois casos). Todos eles referem-se a tentativas de
cura de males físicos das pessoas por meio de passes e benzimento.

Também localizamos outros acórdãos em que os acusados são condenados.


Este é o caso do enfermeiro Gino Pavan, de Piracicaba, que teria aplicado um
tratamento em Rosa Buzo, a qual sofria de varizes, “com a finalidade de secar as
veias”, causando-lhe uma infecção e levando-a a morte6. É também o caso de Yaeko
Yamato e Haruyuky Takamori de Adamantina, pastores da Igreja Messiânica
Mundial, acusados de ministrar “benzeduras destinadas à cura de males físicos, o que
faziam através de gestos acompanhados de orações”. Segundo a acusação, isto
poderia levar os pacientes a retardar a procura por uma solução adequada para seus
males, tornando cada vez mais problemática a cura. Da mesma forma são
condenados, em dois acórdãos distintos, Antonio Bini e Ana Bini e Antonio Joaquim
dos Santos, todos da Capital, acusados de práticas de benzimento e prescrição de
ervas para a cura de doenças. Em sua defesa, alegam que realizavam tais práticas no
interior de Centros Espíritas, devidamente registrados nos órgãos competentes o que,
segundo sua argumentação, tornaria as práticas perfeitamente legais. Em sua decisão
a Justiça estabelece que incide na sanção penal, prevista no artigo número 284 do

6 Acórdão Número 28.440 de 05/1962, p. 298/300.


20

Código Penal, todo aquele que utilizasse gestos e passes como pretexto para curar
pessoas, independente do registro da atividade.

Também foram condenados Aparecida de Andrade, Ana Galmassi e Nizi


Paravelli, da Capital, e Durval Ambrizzi e Antonio Ambrizzi de Santa Adélia, interior
do estado, praticantes da umbanda, acusados de Curandeirismo e práticas de baixo
espiritismo. Aliás, fica claro que o pensamento dominante nos tribunais era o de
procurar diferenciar as práticas do Espiritismo e da Umbanda: (...) a apelante fazia
passes e outras práticas esdrúxulas, o que é punido pela lei penal (...) e não se
confundem com o espiritismo, considerado como ciência e religião7.

Além desses casos, também localizamos um de condenação na cidade de


Santos, onde Waldemar Monteiro de Carvalho e Maria Brígida de Santana são
acusados de, sob o manto de prática religiosa, impor sacrifícios às vítimas, mantendo-
as em cárcere privado com a cabeça raspada, para melhor obterem a cura de seus
males.

Um outro caso na cidade de Cunha, no qual Benedito Rita da Silva, acusado


de Curandeirismo, apela solicitando a anulação do processo, devido ao fato de a
denúncia não ter sido feita pelo Serviço de Fiscalização Profissional e sim
diretamente, por iniciativa do Ministério Público. A Segunda Câmara Criminal do
Tribunal de Alçada, por votação unânime, decide pela manutenção da condenação
em primeira instância porque “(...) somente com relação ao Exercício Ilegal da Arte
Dentária é que se exige a iniciativa do Serviço de Fiscalização Profissional (...)”8.

Outro caso na cidade de Santa Rita do Passa Quatro, em que o médium


Roberto Zerbetto, que prescrevia habitualmente substâncias diversas para a cura de
pessoas que o procuravam, solicita a absolvição alegando que atendia as pessoas e
lhes prescrevia medicamentos homeopáticos, incorporado por um espírito. Em sua
sentença o Juiz estabelece que não poderia aceitar a alegação do acusado, de que agia
inconscientemente, sob a ação do espírito que nele se encarnava, pois estaria
acatando um dogma religioso, que a Justiça leiga não poderia acolher como verdade.

7 Acórdão Número 21.609 de 09/1960, p. 448/53.


8 Acórdão Número 43.780 de 06/1965, p. 292/93.
21

Além disto, de qualquer modo, seria impossível uma solução favorável ao réu, já que
sabia que o seu procedimento o levaria à prática do Curandeirismo.

Finalmente, mais um caso de condenação ocorreu com a benzedeira Verônica


Guerra Galhardi, de Descalvado, interior de São Paulo, que “a pretexto de curar com
unção de manteiga paciente atacado de grave moléstia”, estimulou sua família a tirá-
lo do Hospital em que se achava internado. Como já estava em “delicadíssimo estado
de saúde” o paciente veio a falecer, não sendo possível afirmar com plena certeza que
o falecimento não ocorreria se ele tivesse permanecido no Hospital. Mesmo assim a
acusada é condenada pela prática do Curandeirismo porque teria convencido a
família a retirar o doente grave do Hospital “(...) em que se achava internado para
tratamento, prometendo-lhe a cura através de unções de manteiga”9.

Mas também houve muitos casos de absolvição, por diversos motivos, de


pessoas acusadas de Curandeirismo. Destes, nove acórdãos referem-se a casos em
que foi constatada a falta de habitualidade na prática do crime. Estes processos
envolveram réus tanto da capital do Estado (quatro casos) quanto do interior, nas
cidades de Catanduva, Registro, Tupã, São Carlos e Pitangueiras englobando práticas
diversas como benzimentos, diagnósticos, prescrição de medicamentos (ervas) e
massagens. Em todos eles, muito embora a Lei Penal condene as práticas, não foi
possível para a Justiça provar que os indivíduos realizavam os atos de forma habitual
e continuada, fato este necessário para que ficasse configurado o delito.

Interessante notar que os acórdãos referem-se a casos recorridos (pelo réu,


pela Justiça Pública ou por ambos) em que já houve uma decisão em primeira
instância. No caso das absolvições por crime de Curandeirismo, sete destes casos
referem-se a recursos de condenações ocorridas em primeira instância e apenas dois
referem-se a recursos de absolvições em primeira instância. Isto demonstra que, se
em primeira instância, havia uma certa tendência para a condenação dos acusados,
este ímpeto diminuía quando os casos eram analisados numa instância superior, onde
provavelmente, os juízes, até por estarem geograficamente distantes do local dos

9 Acórdão Número 54.939 de 12/1973, p. 365/66.


22

supostos eventos, mantinham o devido distanciamento dos casos e podiam julgá-los


de maneira mais isenta.

Outro motivo que levou à absolvição de indivíduos acusados de


Curandeirismo foi a constatação de que suas práticas não passavam de um simples
ritual religioso, não havendo a realização de diagnósticos e tampouco a prescrição de
medicamentos. É o caso de Rubens Roberto Martinelli, de Bebedouro, que atendeu
pessoas doentes fazendo “gestos desordenados e orações” sem, no entanto, oferecer
diagnósticos ou ministrar-lhes remédios; Feliciano Luís da Silva, de Monte Aprazível,
um “indivíduo trabalhador e de boa conduta”, que se limitou a benzer as pessoas que
o procuraram; Benedito Rosa de Moraes, da Capital, que aplicou “passes espirituais”,
sem a finalidade curativa, em pessoas que o procuraram; e Isaura Domingues
Delgado, de Osvaldo Cruz, que teria dado “passes” em seu Centro Espírita, sem, no
entanto diagnosticar ou receitar. Em três destes casos, o acusado havia sido
condenado em primeira instância, sendo absolvido depois, e em um dos casos
manteve-se a absolvição ocorrida na primeira instância.

Outra circunstância que poderia levar alguém a ser acusado de


Curandeirismo, era a atividade, nada ortodoxa, dos farmacêuticos ao lidar com seus
clientes. Na verdade, porém, este tipo de prática configura-se mais como crime de
Exercício Ilegal da Medicina do que de Curandeirsmo. Devido a isso, dois indivíduos
acusados de tal crime, mesmo tendo sido condenados em primeira instância,
acabaram sendo absolvidos em instâncias superiores porque os juízes consideraram
que simples indicações de remédios ou aconselhamentos e sugestões de pessoas que
possuíam conhecimentos técnicos sobre o assunto (farmacêutico), não configurariam
crime.

Houve também casos e indivíduos absolvidos porque se considerou que


estavam somente praticando atos próprios de suas religiões. São os casos de José
Bezerra de Mello, de Pacaembu, presidente de Centro Espírita; Clóvis Nabarreto
Nebesco, de Presidente Prudente; de José Felix de Souza, de Lins, ambos pastores
evangélicos; de Luís Mário Vilaroel Alarcon, de Presidente Prudente, padre da Igreja
Católica Brasileira; de Deise Jurdelina de Castro Freire, da Capital, praticante da
Umbanda; de Satiro Kimura, Kazuro Honoso, Morihiro Hirata e Kenichi Kato, de
23

São Bernardo do Campo, adeptos do Budismo; e de Yolanda Alves de Souza, de


Pirassununga, proprietária de uma casa de Umbanda. Segundo a Justiça. O que se
entende nestes casos é que se a cura que o réu apregoava, para os males de quem o
procurava, era pedida comunitariamente, através de orações, tal prática não
configuraria o delito de Curandeirismo, tendo em vista a liberdade de culto
assegurada pela Constituição.

Alem destes, destacamos um caso de pessoa absolvida devido ao fato de ter


ficado comprovada sua boa fé quando utilizava gestos e palavras para benzer seus
pacientes, e dois casos em que a decisão de absolvição amparou-se na constatação de
que os acusados teriam agido de maneira humanitária e “louvável”.

O verbete Estelionato aparece em 6,6% de todos os acórdãos localizados,


somando um total de doze casos, nas décadas estudadas. Destes casos, oito (66,6%)
aparecem na década de 70, sendo que apenas três casos (25%) são da década de 50 e
um (8,3%) da década de 60. Portanto, poderíamos dizer que o verbete Estelionato é
muito mais utilizado na década de 70, pois representam 17,7% do total de casos da
década.

A caracterização do crime de Estelionato não é muito fácil, o que faz com


que o Judiciário tenha certas dificuldades para diferenciá-lo do crime de
Curandeirismo ou de Exploração da Credulidade Pública.

Uma das acusações que podem levar alguém a ser acusado de crime de
Estelionato é a da obtenção de vantagem ilícita mediante promessa de livrar sua
vítima de pretensos malefícios. Foi exatamente isto o que aconteceu com os
indivíduos Carmine Mirabelli, da Capital de São Paulo; Fátima Campos, também da
Capital; e Almir Rodrigues Lopes, de Sertãozinho.

Também a encenação de “ardil fraudulento”, para a obtenção de vantagem


ilícita da vítima, era considerada como característica do estelionato e levou, mais uma
vez, à condenação, Carmine Mirabelli, da Capital de São Paulo. Aliás, sobre Mirabelli,
que já era conhecido da Polícia e da Justiça, não se possuía uma opinião muito
favorável:
24

(...) não passa de um verdadeiro espertalhão, projetando-se


nos autos com indisfarçável relevo (...) terá sido até agora um
daqueles criminosos astutos e afortunados (...) escapando
sorrateiramente através de atestados e declarações que
procuram exaltar até a sua benemerência (...) Tudo isto,
porém não desbota a sua personalidade de audacioso
“profiteur” da ignorância e da boa fé alheia, de consumado e
solerte estelionatário10.

Outras acusações que levaram à condenação por prática de estelionato


poderiam muito bem ter sido enquadradas em outros delitos. É o caso de Argemiro
Teixeira César, de Jundiaí, acusado de “práticas de baixo espiritismo” e Carmelita
Araújo de Souza, de Presidente Epitácio, acusada de “convencer” a suposta vítima a
lhe dar dinheiro para execução de um “trabalho” visando à melhoria de vida da
primeira, que poderiam muito bem ter sido enquadrados no crime de Curandeirismo.
Da mesma forma, a cartomante Dália Nicoliche e o Pai de Santo José Telles de
Souza, ambos da Capital, acusados, respectivamente, de “promover o anúncio de
curas por meio de trabalhos”, e prometer “efetuar trabalho espiritual, para que a
vítima ganhasse na loteria esportiva”, poderiam muito bem ter sido enquadrados no
crime de Exploração da Credulidade Pública. Na verdade, tanto o verbete
Curandeirismo quanto o de Exploração da Credulidade Pública são extremamente
amplos, permitindo enquadrar neles vários tipos diferentes de delito.

Mas não houve somente condenações, pois localizamos também três casos de
absolvição da acusação de Estelionato. Todos eles ocorreram no interior do Estado
nas cidades de Araraquara, Buritama e Fartura. Dois desses casos, envolviam
ministros da Igreja Evangélica Quadrangular e praticantes da Umbanda, e a
absolvição foi baseada na liberdade de culto religioso, inscrita na Constituição. Suas
práticas, de pregar a cura por meio da oração e da fé, num caso, e de realizar
“trabalhos” espirituais para afugentar os males dos que os procuravam, no outro,
foram consideradas próprias das religiões. No caso, de ciganos que se diziam
curandeiros, prognosticavam maus augúrios às vítimas e cobravam para afastar
espíritos, ocorre a absolvição porque se entendia que quando a fraude patrimonial era

10 Acórdão Número 27.942 de 03/1951, p. 89/91.


25

exercida mediante “sortilégios, predição do futuro, explicação de sonho ou práticas


congêneres”, limitando-se o agente a cobrar o preço usual, só haveria a contravenção
prevista no artigo número 27 da Lei das Contravenções Penais, e não o delito do
artigo número 171 do CP. Como vemos, embora a Lei seja aparentemente objetiva,
muitas vezes condenava-se ou absolvia-se quase pelos mesmos motivos.

No total, localizamos sete acórdãos publicados a respeito de Exercício Ilegal


da Arte Farmacêutica, sendo dois na década de 50 (4,3% dos casos da década) e
cinco na década de 70 (11,1% dos casos da década). Destes casos, seis referem-se a
réus absolvidos das acusações e um a uma condenação pelo crime de Exercício Ilegal
da Arte Farmacêutica.

O caso de condenação envolveu Francisco Pereira Vieira, da cidade de


Itaporanga, acusado simultaneamente de crime de Curandeirismo e de Exercício
Ilegal da Arte Farmacêutica. Consta que Francisco, prático de farmácia, recebera a
título precário autorização do Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional para
abrir uma ambulância farmacêutica na cidade de Coronel Macedo, enquanto não
houvesse ali uma farmácia, devendo sua licença ser renovada anualmente. Como
desde o ano de 1943 fora aberta uma farmácia na cidade, o Serviço de Fiscalização do
Exercício Profissional não mais expediu alvará de funcionamento para a ambulância
farmacêutica. Mesmo assim, Francisco manteve-a aberta até o ano de 1948, quando
houve a denúncia, ainda em período posterior àquela data.

Com relação ao crime de Curandeirismo, houve a absolvição, pois na opinião


dos juízes não ficara comprovado (como defende a acusação) que o réu fizesse
diagnósticos nem que indicasse remédios. Mas com relação ao Exercício Ilegal da
Arte Farmacêutica, argumentam que o réu era culpado, pois vinha exercendo a
profissão sem a devida autorização do órgão competente.

Nos outros casos, houve a absolvição dos denunciados pela manutenção de


farmácia sem responsável técnico, manipulação de medicamentos ou aplicação de
injeções por pessoas não habilitadas.

A acusação de administração de farmácia sem responsável técnico caiu sobre


os proprietários de estabelecimentos localizados nos municípios de Pacaembu e
26

Monte Aprazível. No primeiro caso, a absolvição baseou-se no fato de a farmácia


estar localizada em uma cidade (Pacaembu) onde não havia outro estabelecimento do
mesmo gênero e também no fato de, logo após a denúncia, o proprietário Ichiro
Suda, que possuía somente conhecimentos práticos de farmácia, sem possuir
diploma, ter providenciado a contratação de um profissional para responsabilizar-se
pela parte técnica do estabelecimento. Na verdade, a Justiça reconheceu o importante
papel social que o estabelecimento cumpria naquele município. Fechá-lo significaria
punir não somente seu proprietário, mas toda a comunidade de Pacaembu. No
segundo caso (Monte Aprazível), a Justiça avaliou que o proprietário Caissar Kassis
não cometera crime, mas somente uma irregularidade administrativa, cabendo contra
ele, portanto, tão somente um processo administrativo junto aos órgãos
competentes. Além disto, avaliou-se que fechar a única farmácia existente em
lugarejo situado em pleno sertão seria incomparavelmente pior que o mal porventura
decorrente de seu funcionamento sob a responsabilidade de quem não é licenciado.

Quanto à acusação de manipulação de medicamentos, ficou provado que os


réus Dirce Esteves Garcia e Manoel Fontes “não manipulavam os produtos que
vendiam”, limitando-se somente a vender os medicamentos fornecidos por
laboratórios oficiais. Na decisão da Justiça aparece uma informação muito importante
para entendermos as atividades farmacêuticas neste momento: a de que as farmácias
já haviam perdido a importância que haviam tido em certos períodos, principalmente
devido ao crescimento dos laboratórios farmacêuticos que passam a dominar
completamente o mercado dos remédios.

Por fim, na cidade de Osasco, ocorre uma absolvição da acusação de


aplicação de injeção por indivíduos não habilitados. A Justiça, depois da análise do
caso, decide que o ato de aplicar injeções não é privativo dos farmacêuticos, pois não
consta como tal no “artigo número 2º do Decreto número 20.377 de 8/9/1931”, que
aprova e regulamenta o exercício desta profissão no Brasil.

Com a publicação da Lei 1.314, de 17 de janeiro de 1951, que regulamenta o


exercício profissional dos Cirurgiões Dentistas, a perseguição aos que exerciam
ilegalmente a profissão de Dentista, assim como já acontecia com a Medicina, passa a
27

ser exercida pelo Serviço Nacional da Fiscalização da Medicina do Departamento


Nacional de Saúde e, nos Estados, pela autoridade sanitária competente.

Amparadas nesta Lei, as autoridades sanitárias e principalmente o Serviço de


Fiscalização do Exercício Profissional da Secretaria de Saúde do Estado passam a
empreender uma grande perseguição contra aqueles que exerciam a Odontologia sem
possuir habilitação legal para tanto.

Os números não nos desmentem, pois dos cento e oitenta acórdãos


localizados e trabalhados nesta pesquisa, trinta se referem a casos de Exercício Ilegal
da Arte Dentária, que representam 16,6% do total de acórdãos publicados no
período compreendido entre as décadas de 50 e 70.

Se formos analisar separadamente cada uma das décadas, perceberemos que


na de 50, quando é publicada a Lei, concentra-se a maioria (proporcional) do número
de casos publicados por década. De quarenta e seis acórdãos publicados, dez (21,7%)
referem-se a casos de Exercício Ilegal da Arte Dentária (ou da Odontologia,
dependendo da terminologia utilizada no acórdão). Nas décadas posteriores, esta
proporção diminui um pouco, muito embora em termos absolutos o número de
acórdãos publicados (treze - 14,7%) tenha aumentado na década de 60. Já na década
de 70, encontramos sete acórdãos que representam 15,5% do total de quarenta e
cinco publicados.

A grande maioria dos casos de acusação e indiciamento por Exercício Ilegal


da Arte Dentária resultou em absolvição, tanto em primeira instância quanto nas
instâncias superiores da Justiça. Isto é comprovado observando-se que, na grande
maioria dos casos, o recurso (apelação) a instâncias superiores é feito pela própria
Justiça Pública, insatisfeita com as decisões da primeira instância. Uma vez feita a
apelação, percebemos também que, na maioria dos casos, há uma tendência pela
manutenção das decisões tomadas pela Justiça anteriormente.

Um dos casos mais comuns envolveu Protéticos acusados de exercer


ilegalmente a Odontologia. Este é o caso de Antonio Jacob Pires, de Ituverava;
Edson Tibúrcio Valeriano, de Casa Branca; Júlio Martins, de Caconde; José Lopes,
de Paraguaçu Paulista; Lauro Toshikado Douaki, de Tupã; Onofre Sanches Viudes,
28

de Assis; Antonio de Paula Carneiro, de Marília. Em todos estes casos, não ficou
provada a habitualidade das práticas ilegais, pois os indivíduos teriam sido acusados
de atos isolados. Devido a isto, impunha-se a absolvição, pois a configuração do
crime de exercício ilegal de profissão, previsto no artigo número 282 do C.P.,
pressupunha a prática reiterada de atos a ela privativos. Outra acusação comum foi a
de Exercício da Odontologia sem o devido registro de diplomas no Conselho
Regional de Odontologia, exigência imposta pela Lei número 4.324 de 14/04/64,
regulamentada pelo Decreto número 68.704 de 03/06/71. Foi o que ocorreu com os
Cirurgiões Dentistas: Paulo Nakamura, da Capital; Dempsey Miguel Assad Taraia, de
Palmital; Sebastião de Oliveira, também de Palmital; e Joaquim Rodrigues Costa, de
Sorocaba. Nesses casos, os profissionais possuíam formação universitária em
Odontologia, bem como registro de seus diplomas no Departamento Nacional de
Saúde do Ministério da Saúde e no Serviço Nacional de Fiscalização de Medicina e
Farmácia. Apenas não haviam providenciado o devido registro de seus diplomas no
Conselho Regional de Odontologia, como exigia a Lei. Daí a denúncia ao Conselho.
A decisão pela absolvição, tomada pela Justiça, foi baseada no entendimento de que
o médico, o farmacêutico e, também, o dentista que tivessem registrado o diploma
no Departamento Nacional de Saúde Pública, com o fim de exercer a profissão, mas
permaneceram sem o registro na repartição estadual competente, não estariam
praticando ilícitos penais, mas apenas “ilícito administrativo”, pois o que a Lei penal
protegia era a saúde pública, e esta, neste caso, não correria perigo.

Pelo que pudemos perceber na análise dos acórdãos a que tivemos acesso, o
Serviço de Fiscalização das Profissões, vinculado à Secretaria de Saúde do Estado, e
o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo, tinham muitas dúvidas quanto à
validade e mesmo a veracidade de alguns diplomas expedidos por Faculdades,
principalmente de outros Estados. Dos quatro dentistas denunciados pelo Conselho
Regional à Justiça, três possuíam diplomas expedidos por faculdades de outros
Estados. A exigência de registro do diploma no Conselho Regional foi, talvez, uma
forma de estabelecer um controle maior sobre o exercício da profissão que, ao que
parece, era, pelo menos naquele período, campo fértil para a atuação dos práticos e
mesmo de outros profissionais que obtinham diplomas em faculdades não
29

reconhecidas ou mesmo clandestinas. Este é o caso de dois diplomados que tiveram


seus diplomas cassados e depois acusados de, mesmo após a cassação, continuar a
atender em seus respectivos consultórios. Salvino Lopes, de Palmital, havia cursado a
Faculdade de Farmácia e Odontologia Prudente de Morais, em Piracicaba, onde
colou grau como Cirurgião Dentista. No entanto, e 20/11/57, uma portaria do
Secretário da Saúde do Estado de São Paulo cancelou o título do réu, porque “seria
falso ou irregular”. Mesmo assim, continuou a exercer o ofício. Em 1958, em visita
ao município, o Inspetor de Odontologia do Serviço de Fiscalização do Exercício
Profissional do Departamento de Saúde do Estado de São Paulo aplicou-lhe uma
multa e concedeu-lhe um prazo “razoável para terminar os seus serviços
profissionais”. Foi isto que levou a Justiça a absolvê-lo, pois segundo a própria, o
prazo concedido pelo fiscal, para que o réu terminasse os serviços já iniciados,
“retirou o caráter de ilicitude do ato”.

Mas houve também algumas condenações de pessoas acusadas de Exercício


Ilegal da Arte Dentária. São os casos de Doraci Veiga, de Mirassol, condenado por
atuar como dentista, mesmo sem possuir o diploma; Waldomiro Pozzuto, da Capital,
condenado por atuar amparado em um diploma suspeito que, devido a isto, não fora
reconhecido e registrado pelas autoridades competentes; e Francisco Reginaldo, de
Paraguaçu Paulista, que mesmo tendo alegado desconhecer que seria necessário
diploma para exercer a profissão de dentista (“error facti”), também acabou
condenado.

Estes acórdãos que analisamos mostram como as diversas instâncias


superiores da Justiça pensaram os processos por prática de Curandeirismo, Exercício
Ilegal de Profissões da área médica e outras acusações semelhantes, no período
compreendido entre os anos 1950 e 1980, e deixam claro quais eram as linhas gerais
que deveriam ser seguidas pelas instâncias inferiores.

Referências Bibliográficas
ARAÚJO, A. M. “Alguns ritos mágicos - abusões, feitiçaria e medicina popular”.
Revista do Arquivo Municipal. Publicação do Departamento de Cultura, Ano XXVI,
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30

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O PODER JUDICIÁRIO E SEU ORÇAMENTO : A ÚLTIMA DÉCADA DO SÉCULO XX*
THE JUDICIARY AND THE BUDGET : THE LAST DECADE OF THE XX CENTURY

MARY BIANCAMANO **
MARCO AURÉLIO KIHS***
MARIANA NEUMANN****
MARILETE NICOLI*****

Resumo
A Carta Política de 1988 ensejou à sociedade brasileira a potencialização do
exercício da cidadania, criando mais direitos ao cidadão e em contrapartida
mais deveres ao Estado. Em particular, a um dos seus Poderes: o Judiciário.
Vendo-se na condição de solver o crescimento de conflitos decorrentes
dessa nova relação social, teve o Poder de se estruturar para fazer frente a
esta nova realidade. Não apenas no aspecto político das relações com os
demais Poderes, mas também, e principalmente, na obtenção de recursos
que o capacitasse a atender os anseios da sociedade. Daí as profundas
alterações ocorridas nesse período, como o acréscimo na participação no
orçamento do Estado, a busca de soluções criativas para a racionalização de
custos e maximização de resultados, a melhoria da infra-estrutura
operacional, a informatização e a implementação de ações que resultassem
em maior celeridade na prestação jurisdicional. Os principais indicadores
orçamentários, financeiros, de recursos humanos e material, da
movimentação jurisdicional e os resultados dessas estratégias estão
apresentados no presente artigo, que se espera possa contribuir para uma
maior compreensão sobre a importância do papel do Poder Judiciário do
Rio Grande do Sul.

Abstract
The Constitution of 1988 lead the Brazilian society to an improvement of
the exercise of the citizenship, creating more rights for the citizens and more
duties for the State. In particular, for one of its Powers: the Judiciary.
Finding itself in the condition of solving the conflict’s growth as a
consequence of the new social relationship, the Judiciary had to arrange its
structure in to deal with this reality. Not only in the political aspect of the
relationship with the others Powers, but also, and mainly, in the attainment
of resources that enabled it to take care of the yearnings of the society. The

* Artigo recebido em 15.01.2004.


** Coordenadora-Substituta do Memorial do Judiciário do RS
*** Assessor de Planejamento do Tribunal de Justiça do RS
**** Estagiária de História do Memorial do Judiciário do RS
***** Estagiária de Arquivologia do Memorial do Judiciário do RS
2

deep alterations occurred in this period, such as more significant


participation in the budget of the State, the creative brainstorming for
rational costs and maximum results, the improvement of the operational
infrastructure, the computerization and the implementation of actions that
resulted in speeding the judgment process. The main budgetary, financial
pointers, materials and human resources, judicial case and the results of this
strategies are presented in this article, willing to be a contributory factor in
the understanding of the Judiciary means in the Rio Grande do Sul’s society.

Palavras-chave
Judiciário – Orçamento – Indicadores

Keywords
Judiciary – Budget - Pointers

Introdução
A necessidade de o Poder Judiciário “abrir suas portas” é consenso entre os diferentes
segmentos da sociedade civil brasileira, resultando em um forte movimento pró-controle externo da
Instituição. Entretanto, há que se estar atento a procedimentos que estão longe de proteger o cidadão
e a democracia. Em palestra proferida, “A magistratura e a comunicação de massa”, 12-05-99, Carlos
Alberto Bencke enfatiza que “não devemos esquecer que o Judiciário é um desconhecido e o povo
mata aquilo que não conhece, ainda mais quando se considera prejudicado por este sistema que
ignora”1, reiterando a preocupação da Magistratura com a falta de informações e o desconhecimento
da comunidade acerca da Justiça, sua estrutura e atividades, já manifestada inúmeras vezes, como na
Carta de Rio Branco, de 14 de junho de 1996, em que o Colégio de Presidentes de Tribunais de
Justiça do Brasil ponderou à Nação que identificava uma “difusão de idéias e posições desfavoráveis
ao Poder Judiciário e comprometedoras de sua imagem pública”.

Em seqüência a essas constatações, especialistas de todo o gênero fizeram exercícios mentais


chegando, a todo momento, a soluções únicas para resolver o problema da morosidade na atividade
jurisdicional: controle externo do Judiciário, manifestando-se na e utilizando a mídia de forma a antes
confundir o cidadão, não elucidando os pontos de gargalo da administração da Justiça, que existem e
pedem ações efetivas e eficazes. Entretanto, se os poderes concentrados no Estado não estavam
imunes às aspirações da sociedade moderna plena de contradições, em que a marginalidade e os
conflitos crescentes geram intensa polêmica sobre o papel e o desempenho da Justiça, não foram
poucos os que manifestaram sua posição, salientando que “a destruição do Judiciário, ou sua
3

diminuição, o seu apequenamento ou a sua inexpressividade, só podem favorecer aos que querem
fazer prevalecer seus interesses” (Carvalho Leite, 1998)

Por seu turno, a celeuma em torno do Orçamento incita a sociedade a colocar-se de


sobreaviso, segundo visão de que o Ente estatal tudo quer para si e não permite uma melhor
distribuição dos recursos na sociedade. Essa discussão cresce dentro de cada indivíduo na medida em
que as informações são interpretadas por alguns segmentos de incisivo posicionamento em todas as
mídias, levando a uma revolução interior, ao cidadão imaginar o porquê das diversidades dentro de
uma mesma sociedade, em salários e benefícios, em construção de prédios, em equipamentos e,
principalmente, em destinação das escassas verbas orçamentárias existentes, e do esquecimento da
autoridade, por vezes, das necessidades básicas do ser humano.

Ao confrontar políticas de saúde, de educação, de segurança, com políticas de pessoal, o


cidadão percebe que nem sempre o projetado é executado, deixando no vazio muito daquilo que está
prescrito na Constituição de 1988, direitos anteriormente irreconhecíveis. Considerando que a
tomada de decisão dos agentes políticos é permeada de fatores previsíveis - sobre os quais existe
controle - e fatores emergentes – sobre os quais não existe controle -, é primordial a adequação de
programas e projetos em todas as esferas da administração pública, na viabilização da governança. Há
que se considerar nessa dimensão que muitos direitos outorgados em 1988 ainda necessitam de
legislação infraconstitucional que os regulamente, o que dificulta sobremaneira a efetivação das
políticas públicas.

Consciente de sua incapacidade de responder às demandas, de seus altos custos, de seu


emperramento burocrático, da complexidade dos procedimentos e da demora das decisões, o Poder
Judiciário percebeu sua pouca flexibilidade e o excesso de corporativismo de seus membros como
pontos sensíveis que comprometiam a eficácia do atendimento da sociedade que se via diante de
transformações profundas em seus valores e crenças. A consciência de sua realidade estrutural foi
constatada em manifestações de seus integrantes por todo o País.

Nessa esteira, na última década do século XX, o Poder Judiciário do RS sofreu diversas
alterações em sua estrutura administrativa, refletindo os novos ventos da gestão nas organizações, ao
buscar tornar-se mais eficaz na execução de suas políticas e estratégias e da prestação jurisdicional,
como se vê de parecer da Corregedoria-Geral, em que propõe a criação dos Conselhos de
Conciliação, 1999 – Projeto Judiciário Cidadão – Nenhum Município sem Justiça, como forma de
minimizar as dificuldades enfrentadas:

1 In www.tj.rs.gov.br/site_php/noticias, 09/02/2004.
4

“No âmbito do Judiciário, constatamos ao longo dos anos o evidente


distanciamento de seus representantes legais da sociedade organizada, em
razão de vários fatores, entre eles o inaceitável elitismo de seus órgãos,
exacerbada formalidade processual conjugada com o desconhecimento das
reais dificuldades e necessidades sociais.
“Nesse quadro de dificuldades imposta aos administradores públicos,
concluímos inexoravelmente que o Poder Judiciário caminha a passos largos
ao labirinto institucional, correndo riscos na sua independência e autonomia,
garantias basilares do Estado de Direito democrático.”

Dessa forma, esse artigo tem como objetivo trazer a lume algumas considerações sobre a
conformação do orçamento do Poder Judiciário, por meio de uma análise do período 1990 – 2000,
do ponto de vista de suas inter-relações com a sociedade gaúcha, dando continuidade ao trabalho de
pesquisa desenvolvido no Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, conforme seu compromisso
com a discussão da identidade institucional do Poder Judiciário, de forma transparente, e na
viabilização de sua compreensão sistêmica.

A metodologia utilizada fundamentou-se na investigação sobre dados coletados nas fontes do


Balanço Geral do Estado, Orçamento Geral do Estado e Relatórios Anuais do Poder Judiciário.
Mantendo coerência e interlocução com a primeira fase da pesquisa – período 1874 a 1990 -,
procurou-se configurar os indicadores de despesa de pessoal, material de consumo, material
permanente, despesa do Tribunal de Justiça, dentro de critérios uniformes e objetivos, facultando
uma visão abrangente do desenvolvimento da participação do orçamento do Poder Judiciário no
orçamento geral do Estado do Rio Grande do Sul, e prospectar ações implantadas pelo Tribunal de
Justiça com o objetivo de viabilizar administrativamente as atividades da Instituição.

A autonomia do Poder Judiciário – o orçamento e os repasses


Ao outorgar a Constituição Federal de 1988 novos direitos e deveres ao Estado e ao cidadão,
reconhecendo novos agentes políticos na sociedade e possibilidade de admissão de judicialização de
conflitos originários de novos direitos sociais, exemplificados no Estatuto da Criança e do
Adolescente, de 1990, no Código do Consumidor, também de 1990, assim como na Lei
Anticorrupção, de 1992, consubstanciou-se um aumento considerável na demanda judicial, na década
de 90.

Essas novas necessidades na prestação de serviços judiciais e o crescimento dos diferentes


tipos de demandas da sociedade nesse período levaram ao estabelecimento de algumas estratégias
pelo Tribunal de Justiça do Estado, buscando viabilizar a prestação jurisdicional com celeridade e
eficácia.
5

Ainda poder-se-ia tecer comentários sobre a necessidade interna de especialização e de


atendimento para fazer frente a essas novas demandas, sobre o aumento dos crimes contra a pessoa,
sobre os crimes contra o patrimônio, o crescimento dos processos envolvendo entorpecentes, os
crimes pela Internet, pendengas com o sistema financeiro e sobre o impressionante incremento das
demandas contra o próprio Governo, normalmente advindas de casuísmos legais não gerados pelo
Judiciário, mas todos exigindo uma resposta rápida e decisiva da Justiça.

Poder-se-ia citar, também, o papel do Judiciário como agente arrecadador do Governo que,
na defesa de ações contra si ou no combate à sonegação, tem no Judiciário uma força aliada que faz
reverter aos cofres públicos os recursos desviados a outras finalidades. Milhões de reais retornaram
aos cofres públicos pela atuação dos magistrados da Justiça do Estado.

Contudo, enfocando a questão administrativo-financeira do Poder Judiciário, percebe-se, no


período em estudo, existir uma autonomia financeira dependente de repasse de duodécimos, segundo
estabelecido na Constituição Estadual (1989), em seu art. 156: “os recursos correspondentes às
dotações orçamentárias destinadas aos Órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário e ao Ministério
Público, incluídos os créditos suplementares e especiais, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada
mês”. Não tendo havido regulamentação desse artigo, o que se constatou foi uma contínua
negociação de prazos de repasses a cada governo, a cada novo exercício.

Saliente-se que, nessa década, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul esteve nas mãos
de partidos políticos originários da oposição ao governo militar de 1964 – de 1987 a 1990: Pedro
Simon (PMDB); de 1991 a 1994: Alceu Collares (PDT); de 1995 a 1998: Antonio Britto (PMDB); de
1999 a 2002: Olívio Dutra (PT). Durante o período da ditadura, a participação do Judiciário no
Orçamento Geral do Estado ficou em torno de 2,0%, muito aquém de suas necessidades. A situação
orçamentária não logrou alteração significativa, não chegando a bom termo as tratativas entre os
Poderes e alcançando o Judiciário somente 2,5% do Orçamento estadual no período 1980-1990,
denotando, entretanto, a tendência das relações entre Poderes que Axt (2003: 289) ressalta: “um
regime democrático tende a ser mais generoso com o orçamento judiciário do que um regime no qual
o espaço da representação política e do exercício da cidadania está comprimido”.

Em consonância com a expectativa, na última década do século 20, a média percentual de


participação do orçamento do Judiciário no orçamento estadual sobe para 4,80%, certamente
decorrente da consolidação da autonomia financeira outorgada pela Carta 1988. Presencia-se, no
entanto, uma alteração na discussão política da questão: por meio de ações diretas de
inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, os legisladores substituíram seu voto por
decisões da Corte Maior, saindo a discussão do Parlamento e passando ao Judiciário, como se a este
competisse ser o foro para resolver e eliminar essa discussão.
6

Na tentativa de enfrentar tais questões, de buscar a modernização administrativa e de sua


infra-estrutura com áreas físicas adequadas e equipamentos que respondessem às necessidades da
época, o Poder Judiciário desenvolveu um trabalho de consolidação de sua autonomia financeira,
prevista constitucionalmente, por meio de um Protocolo de Intenções celebrado com o Poder
Executivo no ano de 1991.

Neste mesmo ano, sob a Presidência do Des. Nelson Luiz Púperi, é publicada Portaria nº
02/91, criando o Conselho de Administração para “examinar e opinar sobre todos os processos que
tratem da aquisição de bens e serviços”, contemplando a necessidade de reformulação das atividades
administrativas e financeiras do Tribunal de Justiça, para gerência dos duodécimos repassados pelo
Tesouro do Estado, calculados no percentual de 6% sobre a receita corrente líquida do Estado,
auferida no mês anterior. A composição desse Conselho contemplava integrantes das Diretorias de
Orçamento, Material e Engenharia, Arquitetura e Manutenção, além da Corregedoria-Geral, sob a
coordenação de um Desembargador designado pelo Tribunal Pleno, buscando a administração do
Tribunal de Justiça prover-se de órgãos de planejamento e reflexão permanentes, deixando de lado o
empirismo praticado.

Em Ato Regimental de 1998, foi alterada a sua denominação, de Conselho de Administração


para Conselho de Administração e Planejamento, e a sua composição, passando a ser integrado por
três Desembargadores titulares e dois suplentes. A participação nas reuniões deste Conselho das
chefias ou delegados dos órgãos: Direção-Geral, Diretoria de Orçamento e Finanças, Diretoria de
Engenharia, Arquitetura e Manutenção, Diretoria de Informática, Diretoria de Material e Patrimônio,
Diretoria de Pessoal, Fundo de Reaparelhamento do Poder Judiciário, Assessoria de Planejamento
Financeiro, Corregedoria-Geral da Justiça e Direção do Foro da Capital passou a ser meramente
opinativa sobre programas, pleitos ou processos administrativos em pauta. Estenderam-se as
atribuições do Conselho, passando a submeter à presidência, anualmente, a minuta das normas e
diretrizes para encaminhamento da Lei de Diretrizes Orçamentárias e a minuta da proposta
orçamentária do Poder Judiciário e, no primeiro ano de mandato do Governador, submeter a minuta
do plano plurianual no âmbito do Poder Judiciário.

No período analisado correspondente à última década do século 20, constatou-se que a


Administração definiu que os investimentos fossem efetuados com cautela, sendo que a situação de
muitos dos mais de 170 (cento e setenta) prédios existentes era modesta e, em muitos locais, quase
calamitosa. E de acrescer que magistrados e servidores ficaram sem perceber reajuste salarial no
período 1996 - 1999, quando foi concedida a discutida reposição aos servidores, parcelada, percebida
a partir de julho daquele ano, e, em 2000, contestada pelo Poder Executivo.
7

A informatização do Poder Judiciário, dentro do projeto de racionalização e modernização de


seus procedimentos judiciais e administrativos, condição mínima de funcionamento de qualquer
instituição de grande porte no mundo atual, foi desenvolvida com esforço - e ainda assim, só de
forma parcial – no período analisado, remanejando-se verbas de outras áreas carentes, como da
manutenção de prédios e de outros investimentos.

A questão problemática que se apresentou no período foi o crescimento das demandas, a


multiplicação das exigências e cobranças em razão exponencial e o ingresso dos recursos de forma
aritmética, por vezes negativa.

Em alguns exercícios comparativos, propicia-se o entendimento geral da situação levantada


internamente. Na Tabela 1, a Receita e a Despesa Gerais do Estado, dos anos posteriores à
Constituição de 1988, de 1990 até 2000, conforme publicadas no Balanço Geral do Estado.

Tabela 1 - Receitas e Despesas do Estado do RS - 1990 a 2000


Anos Moeda Receita Corrente Receita de Receitas do Despesa do
Capital Estado RS Estado RS
1990 (CR$) 237.577.361.285 63.166.369.956 300.743.731.241 310.639.906.222
1991 (CR$) 1.136.624.478.723 124.943.282.548 1.261.567.761.271 1.305.830.082.478
1992 (CR$) 14.816.338.470.620 1.823.523.445.249 16.639.861.915.869 17.536.400.812.212
1993 (CR$) 318.387.897.078 51.416.489.690 369.804.386.768 379.138.110.790
1994 (R$) 2.867.127.368 675.520.237 3.542.647.605 3.669.098.670
1995 (R$) 4.756.564.701 977.196.655 5.733.761.356 6.232.175.807
1996 (R$) 5.712.868.000 2.345.167.000 8.058.035.000 7.806.427.374
1997 (R$) 5.834.458.438 3.741.866.816 9.576.325.254 9.143.412.052
1998 (R$) 6.706.711.862 5.729.234.575 12.435.946.437 12.062.182.055
1999 (R$) 7.092.157.000 238.149.000 7.330.306.000 8.097.859.000
2000 (R$) 8.028.207.651 804.544.199 8.832.751.849 9.394.421.653
** Fonte: Balanço Geral do Estado do Rio Grande do Sul - Secretaria da Fazenda

Em maio de 2000, entrou em vigor a Lei de Responsabilidade Fiscal– Lei Complementar nº


101 -, integrante do Programa de Estabilidade Fiscal, estabelecendo princípios de gestão fiscal
responsável, com base na fixação de regras abrangentes e disciplinadoras da captação, gestão e gasto
de recursos públicos da União, Estados e Municípios.

A Lei Complementar nº 101, assim, estabelece normas de finanças públicas voltadas para a
responsabilidade na gestão fiscal ao restringir o comprometimento orçamentário e ao proibir
despesas extras em anos eleitorais, salientando-se que os gastos com pessoal estão limitados a 60% da
Receita Corrente Líquida do Estado. A adequação à norma previa um período de transição,
8

considerado como parâmetro o ano de 1999, até o ano de 2002. Fazendo um levantamento dos
gastos percentuais com pessoal, pelo Poder Judiciário do RS, obtiveram-se os seguintes dados: 1997
– 6,97%; 1998 – 7,15%; 1999 – 7,39%; 2000 – 6,74%, demonstrando estar sempre acima do definido
pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Antes do advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, o Orçamento para repasse das verbas
do Poder Executivo ao Judiciário era efetuado com base nas médias realizadas nos últimos 3 ou 5
anos, decorrente de uma negociação, a fim de prover as necessidades mínimas de cada Poder,
considerados os recursos previstos para o ano vindouro. Assim, por consenso, chegava-se aos
números exíguos necessários a fazer frente às despesas do ano.

A Tabela 2 está construída com base nas Receitas e Despesas do Estado. Demonstra que as
Despesas do Poder Judiciário, em valores relativos, correspondem, em média, a 4,80% e 4,97%, em
relação a Despesa e a Receita do Estado, respectivamente; portanto, dentro de patamares bastante
razoáveis.

Tabela 2 - Percentuais da Despesa do TJ sobre a Receita e Despesa do RS


Anos Moeda Despesa do Despesa do PJ Despesa PJ / Despesa PJ /
Receita do Estado
Estado Despesa RS Receita RS
1990 (CR$) 310.639.906.222 300.743.731.241 10.047.133.274 3,23% 3,34%
1991 (CR$) 1.305.830.082.478 1.261.567.761.271 38.676.197.140 2,96% < 3,07%
1992 (CR$) 17.536.400.812.212 16.639.861.915.869 716.490.307.785 4,09% 4,31%
1993 (CR$) 379.138.110.790 369.804.386.768 23.467.117.021 6,19% 6,35%
1994 (R$) 3.669.098.670 3.542.647.605 184.779.024 5,04% 5,22%
1995 (R$) 6.232.175.807 5.733.761.356 343.981.586 5,52% 6,00%
1996 (R$) 7.806.427.374 8.058.035.000 394.068.038 5,05% 4,89%
1997 (R$) 9.143.412.052 9.576.325.254 419.064.739 4,58% 4,38%
1998 (R$) 12.062.182.055 12.435.946.437 489.064.740 4,05% 3,93%
1999 (R$) 8.097.859.000 7.330.306.000 518.092.911 6,40% > 7,07%
2000 (R$) 9.394.421.653 8.832.751.849 540.300.000 5,75% 6,12%
** Fonte: Balanço Geral do Estado do Rio Grande do Sul - Secretaria da Fazenda

Utilizaram-se, em todos os comparativos, os valores de Despesa do PJ e, conseqüentemente,


de Despesa do Estado do RS, tornando equivalentes os pontos de comparação, pois ambos são
recursos efetivamente despendidos, e não simplesmente orçamentários, o que poderia causar certas
distorções.

Comparando-se as despesas do PJ em relação às despesas do Estado, tem-se 2,96% como


menor valor, em 1991, e 6,40% como maior valor, em 1999. Se a comparação for efetuada entre a
Despesa do PJ e a Receita do Estado, 1991 apresenta o menor índice, 3,07% e 1999 o maior, 7,07%.
9

Não sendo possível “simplificar” alguns processos a meros números, afirmações sem
fundamentação sobre gastos excessivos ou da existência de grupos privilegiados são, no mínimo,
perigosas. Há que se demonstrar que os números podem ter outras interpretações, que eles
representam não a simples retirada de recursos de outras funções do Estado, e sim um crescimento da
função analisada e o aumento das exigências dos usuários desta função. Adiante, mostra-se esse
crescimento de exigências que não estão sendo atendidas com o proporcional aumento de recursos.

Há, certamente, a necessidade de melhor administração interna em todas as funções


existentes no Estado, com modernização, incremento da produtividade e prestação de melhores
serviços, o que é alcançado com investimentos e recursos mínimos.

Judiciário – órgão estatal arrecadador


A maioria dos órgãos do Estado, independentemente do Poder a que pertencem, não possui
qualquer espécie de arrecadação. O Judiciário, mesmo em escala bastante pequena se comparada ao
Estado, além de consumir, também gera receitas que são destinadas ao Erário Público por meio do
Caixa do Executivo. Somente no ano de 2000 gerou, pelo recolhimento das taxas e custas judiciais,
um valor de R$ 43.882.887,00 (quarenta e três milhões, oitocentos e oitenta e dois mil, oitocentos e
oitenta e sete reais), representando 8,4% dos recursos totais de R$ 518.092.911,00 repassados pelo
Executivo ao Judiciário nesse ano.

Pode-se estabelecer, então, que o custo real do Judiciário deve ser reduzido dos valores que
envia aos cofres públicos, por ser ele mesmo o gerador de parte da receita, oriunda da prestação dos
seus próprios serviços. Esses valores, se canalizados diretamente à atividade-fim, tornariam ainda
menor o percentual de repasse que a função judiciária recebe do Executivo. Abaixo, demonstram-se
os valores arrecadados e repassados ao Executivo por meio da cobrança das taxas e custas judiciais.

Tabela 3 - Custas e Taxas Judiciais, repassadas ao Executivo


Anos Moeda Custas Judiciais Taxas Judiciais Total das Taxas e Custas
Judiciais
1990 (CR$) 428.871.027 406.960.167 835.831.194
1991 (CR$) 2.986.922.751 2.455.234.471 5.442.157.222
1992 (CR$) 35.824.791.652 35.448.611.572 71.273.403.224
1993 (CR$) 705.358.334 745.438.341 1.450.796.675
1994 (R$) 6.981.843 7.754.192 14.736.035
1995 (R$) 17.825.598 21.143.060 38.968.658
1996 (R$) 24.958.460 20.294.435 45.252.895
1997 (R$) 19.122.896 22.153.573 41.276.469
1998 (R$) 18.429.740 21.691.292 40.121.032
1999 (R$) 18.535.736 23.847.145 42.382.881
2000 (R$) 19.429.065 24.453.822 43.882.887
10

** Fonte: Balanço Geral do Estado do Rio Grande do Sul - Secretaria da Fazenda

Efetuando-se um comparativo da participação do Judiciário nos repasses efetuados pelo


Executivo, deduz-se de “Despesa do TJ” os valores correspondentes ao somatório dessas taxas e
custas judiciais. Para efeitos de comparação com os demais valores, chamou-se essa nova coluna de
“Despesa do TJ (1)”.

Tabela 4 - Percentuais da Despesa do PJ (1) sobre Despesa do RS


Anos Moeda Despesa do Despesa do PJ Total das Taxas Despesa PJ(1) (- Desp.PJ(1)/
Estado e Custas Taxas e Custas) Despesa
Judiciais RS
1990 (CR$) 310.639.906.222 10.047.133.274 835.831.194 9.211.302.080 2,97%
1991 (CR$) 305.830.082.478 38.676.197.140 5.442.157.222 33.234.039.918 2,55%<
1992 (CR$) 17.536.400.812.212 716.490.307.785 71.273.403.224 645.216.904.561 3,68%
1993 (CR$) 379.138.110.790 23.467.117.021 1.450.796.675 22.016.320.346 5,81%
1994 (R$) 3.669.098.670 184.779.024 14.736.035 170.042.989 4,63%
1995 (R$) 6.232.175.807 343.981.586 38.968.658 305.012.928 4,89%
1996 (R$) 7.806.427.374 394.068.038 45.252.895 348.815.143 4,47%
1997 (R$) 9.143.412.052 419.064.739 41.276.469 377.788.270 4,13%
1998 (R$) 12.062.182.055 489.064.740 40.121.032 448.943.708 3,72%
1999 (R$) 8.097.859.000 518.092.911 42.382.881 475.710.030 5,87%>
2000 (R$) 9.394.421.653 540.300.000 43.882.887 496.417.113 5,28%
** Fonte: Balanço Geral do Estado do Rio Grande do Sul - Secretaria da Fazenda

Comparando-se, então, os valores da coluna de “Despesa do TJ(1)” com a “Despesa do


Estado”, a relação percentual torna-se ainda menor, chegando a um percentual de 2,55% no menor
caso (1991) e de 5,87% no ano de maior repasse (1999).

Isto representa, em números e valores reais, o que o Poder Judiciário recebeu no período
como repasse para todo o seu funcionamento, inclusa, também, a Justiça Militar, sendo que:

• para o pagamento de sua Folha de mais de 600 magistrados,

• para o pagamento de sua Folha de mais de 6000 servidores que atendiam a todo o Estado
do Rio Grande do Sul,

• para a construção e manutenção de 170 prédios, distribuídos por todo o Estado,

• para os investimentos em informática, equipamentos, mobiliário e congêneres,

• para o pagamento dos Juízes Leigos e Conciliadores dos Juizados Especiais,

• para o pagamento de exames de DNA no atendimento da função judiciária gratuita à


população carente,
11

• a Instituição contou somente com um percentual da arrecadação entre 2,55% a 5,87% da


despesa Estadual.

Iniciativas que visassem a minimizar essa situação de escassez financeira são detectadas em
todos os períodos da história do Poder Judiciário, ora com ênfase na ação política de seus membros,
ora contando com a boa vontade de governantes e legisladores. Saliente-se aqui a criação do Fundo
de Reaparelhamento do Poder Judiciário, pela Lei nº 7.220, de 13-12-78, que autorizava o Poder
Judiciário a o instituir, e regulamentado pelo Decreto nº 28.099, de 21-12-78, possibilitou um enorme
avanço na melhoria da infra-estrutura física das unidades do Poder, sendo que a Lei nº 7.221, de 13-
12-78, alterou seu valor, a exemplo de outros fundos existentes à época, com o objetivo de
solucionar freqüentes problemas de reformas, construções e reaparelhamento de foros nas diferentes
Comarcas do Estado. Tinha o Fundo como principal fonte de receita a Taxa Judiciária, em um
percentual de 20%, percentual este alterado em 1983, pela Lei nº 7.785, para 50% da Taxa Judiciária.

Considerando os cinco últimos anos do período em estudo, tem-se como recolhimento ao


Fundo de Reaparelhamento uma dotação média anual aproximada de R$ 21.292.000,00, que foram
utilizados em obras, construções, reformas, aquisições de materiais e serviços e aquisição de móveis,
veículos e equipamentos destinados ao reaparelhamento da Instituição.

Por outro lado, no Poder Executivo, a função de “previdência e assistência” representava no


ano de 2001 um percentual de aproximadamente 26% da arrecadação, valor que vem crescendo
vertiginosamente nos últimos anos. Segundo os estudiosos de assuntos previdenciários, havia um
percentual cada vez maior de pessoas idosas e aposentadas. Essa situação não está restrita ao Rio
Grande do Sul; hoje, é um problema nacional, talvez até mundial. A vida média da população,
notadamente da gaúcha, está cada vez mais alta, e os estudos previdenciários apontam para a
necessidade de novas soluções para o assunto, alongando-se os períodos contributivos e os
percentuais previdenciários necessários.

Do estudo feito, constatou-se que, com o objetivo de fortalecer a autonomia estabelecida na


Constituição de 1988 e, de certa forma, proteger os integrantes do Poder Judiciário – e seus
familiares - das atribulações por que passava o Poder Executivo, decorrentes da crise financeira do
Estado, em 1995, a Administração do Tribunal de Justiça resolveu assumir de forma total o
pagamento de inativos e pensionistas, o que já havia iniciado parcialmente em anos anteriores (desde
1993), efetuando pagamento de integrantes de seus quadros e desonerando o Executivo em valores.
Se perdurasse a situação anterior, sendo o Executivo o responsável por esses encargos - como
acontece em vários Estados brasileiros - o percentual anteriormente citado (26%) seria ainda maior.
12

Ao se fazer um exercício no estudo da retirada dos valores dos Inativos e Pensionistas do


repasse de valores efetuados ao Judiciário, poder-se-ia definir que os valores restantes fossem
realmente aqueles destinados à função Judiciária. Tomando-se como exemplo os dados de 2000, tem-
se com as “despesas do TJ” um valor de R$ 540.300.000,00 e com os pagamentos a inativos e
pensionistas o valor de R$ 169.759.637,00. Assim, 31,41% de todos os recursos destinados ao
Judiciário foram despendidos com o pagamento dos inativos e pensionistas, restando menos de 69%
para a própria função judiciária.

Retirando-se, pois, os valores de pagamentos a inativos e pensionistas do total anterior da


“Despesa do TJ (1)”, obtêm-se valores puros que representam - estes, sim - os valores de que o
Judiciário dispunha para fazer frente aos anseios da comunidade gaúcha a quem deve obrigação de
prestar a jurisdição de modo útil e célere. Denomina-se “Despesa do TJ (2)” a coluna de despesa que
representa esses novos valores.

Efetuados os cálculos dos novos valores do Judiciário versus Despesa do Estado, encontram-
se percentuais entre 2,55% (no menor caso) a 5,81% (maior caso), permanecendo quase todos os
números na faixa entre os 3 e 4%, conforme pode ser comprovado na Tabela 5.

Tabela 5 - Percentuais de “Despesa do PJ (2)” sobre Despesa do RS


Anos Moeda Despesa do Despesa do PJ(1) Inativos e Despesa do Despesa PJ(2)
Estado (-Taxas e Custas) Pensionistas PJ(2) (Inativos) / Despesa RS
1990 (CR$) 310.639.906.222 9.211.302.080 0 9.211.302.080 2,97%
1991 (CR$) 1.305.830.082.478 33.234.039.918 0 33.234.039.918 2,55%<
1992 (CR$) 17.536.400.812.212 645.216.904.561 0 645.216.904.561 3,68%
1993 (CR$) 379.138.110.790 22.016.320.346 6.040.063 22.010.280.283 5,81%>
1994 (R$) 3.669.098.670 170.042.989 52.573.300 117.469.689 3,20%
1995 (R$) 6.232.175.807 305.012.928 102.270.740 202.742.188 3,25%
1996 (R$) 7.806.427.374 348.815.143 119.159.992 229.655.151 2,94%
1997 (R$) 9.143.412.052 377.788.270 144.933.549 232.854.721 2,55%
1998 (R$) 12.062.182.055 448.943.708 161.075.786 287.867.922 2,39%
1999 (R$) 8.097.859.000 475.710.030 169.759.637 305.950.393 3,78%
2000 (R$) 9.394.421.653 531.759.000 167.024.127 364.734.873 5,66%
** Fonte: Balanço Geral do Estado do Rio Grande do Sul - Secretaria da Fazenda

Os percentuais assinalados na Tabela 5 falam por si só. É de domínio público que a Justiça
estadual é responsável por dois terços dos atendimentos de justiça do País, pois é ela quem realmente
atende à população, aos anseios do cidadão comum, a todas as demandas entre cidadão e empresas,
restando às demais entidades do Judiciário, de âmbito federal, o terço restante.

Comparados aos valores apregoados como “exagerados gastos do Judiciário”, vê-se que
realmente, com todo o âmbito estadual de atendimento, esses valores não foram exagerados e
13

merecem uma reflexão da sociedade, imprensa e governantes, para não tornar inexeqüíveis os
serviços da Instituição.

Alguns questionamentos acerca da questão: o atendimento esperado por parte da Justiça é


possível com percentuais entre 2,55% e 5,81% das despesas do Estado? O melhor atendimento e a
celeridade nos prazos não requerem mais recursos para atualização da infra-estrutura necessária às
condições de demanda processual? Reduzir percentuais despendidos pelo Judiciário não implicaria o
fechamento de unidades de atendimento, como Varas e Comarcas, ou de redução de horários de
atendimento?

A Magistratura e sua produtividade


A questão quantitativa processual não pode ser deixada de lado. A quantidade de processos
que ingressaram no Judiciário, sabidamente, teve um crescimento vertiginoso. Em 1990, houve uma
distribuição (entrada de processos novos) de 285.413 (duzentos e oitenta e cinco mil, quatrocentos e
treze) processos no ano, número este que passou, em 2000, para 1.293.931 (um milhão, duzentos e
noventa e três mil, novecentos e trinta e um) processos anuais, perfazendo um crescimento de
334,4% no período, números constantes da Tabela 6.

Os julgamentos anuais passaram de 313.956, em 1990, para 975.195 processos julgados, em


2000, num incremento de 210,61% no período analisado.

Ora, esse crescimento de 334,4% na distribuição e de 210,61% nos julgamentos foi


conseguido com um incremento de somente 12% na quantidade de Juízes em atividade. Em 1990, os
592 (quinhentos e noventa e dois) magistrados julgavam anualmente, em média, a quantidade de 530
(quinhentos e trinta) processos por ano, cada um, número que passou para 1.470 (um mil,
quatrocentos e setenta) processos por ano, por magistrado em 2000.

Disso equivalente dizer-se que, se persistisse a média de julgamentos havida em 1990, de 530
processos julgados por magistrado, em 2000, seriam necessários atualmente a quantidade de 1.840
magistrados para os 975.195 processos julgados, quando havia somente 663 magistrados, num
incremento notável de produtividade.

Tabela 6 - Incremento da Distribuição e dos Julgamentos x Médias por Magistrado

Anos Processos Total de Média Processos Média


Distribuídos Magistrados Distribuídos / Julgados Julgados /
(*) Magistrados Magistrados
1990 285.413 592 482 313.956 530
1991 353.396 590 599 349.052 592
14

1992 423.128 604 701 409.904 679


1993 489.005 583 839 484.784 832
1994 526.468 580 908 499.998 862
1995 660.957 612 1.080 559.126 914
1996 1.017.830 599 1.699 828.742 1.384
1997 951.019 645 1.474 883.931 1.370
1998 1.020.246 673 1.516 891.725 1.325
1999 1.092.499 696 1.570 941.855 1.353
2000 1.239.931 663 1.870 975.195 1.470
Evolução 1990 a 2000 334,4% 12% 210,61%
(*) Magistrados "providos" nas datas. Em vagas "criadas", os números são superiores.

Gráfico 1 - Quantidade de Processos Julgados x Quantidade de Magistrados

Produtividade da Magistratura

2000

1500

1000

500

0
1990 1992 1994 1996 1998 2000
1991 1993 1995 1997 1999

Número de magistrados Julgamentos por magistrado

O gráfico acima bem demonstra a constância da quantidade de magistrados (incremento


somente de 12% no período) e a quantidade de julgamentos por magistrado, que teve um
crescimento de aproximadamente 210% na mesma faixa temporal.

A demanda processual versus os recursos estruturais e administrativos

A demanda processual, ao ser analisada no período em estudo, apresentou algumas


características específicas ao ser comparada com outros indicadores.
15

Ao fazer a comparação entre o crescimento da população do Estado, no período de 1990 a


2000, com o aumento da demanda pela justiça, representada pela distribuição de processos no
período, obtiveram-se as seguintes informações:

Tabela 7 - Distribuição de Processos versus Aumento da População


Anos População do Processos Processos /
Estado Distribuídos População
1990 9.017.408 285.413 3,16%
1991 9.138.670 353.396 3,86%
1992 9.238.799 423.128 4,57%
1993 9.339.914 489.005 5,23%
1994 9.439.415 526.468 5,57%
1995 9.540.715 660.957 6,92%
1996 9.634.688 1.017.830 10,56%
1997 9.879.813 951.019 9,62%
1998 9.987.770 1.020.246 10,21%
1999 10.089.899 1.092.499 10,82%
2000 10.187.798 1.239.931 12,17%
Evolução 90/00 12,97% 334,43% 285,12%

A busca pela justiça vem crescendo a cada ano. Os dados apresentados na Tabela 7 revelam
que, em 1990, somente 3,16% da população do Estado entrou com algum processo na Justiça. Já em
2000, esse número passou para 12,17%, representando um acréscimo de 285,12% no período.
Significa dizer que, em 1990, para cada 31 habitantes, 1 ingressava com alguma ação na Justiça,
enquanto, em 2000, de cada 8 habitantes, 1 buscou o Judiciário para solução de conflitos,
representando quase de quatro vezes o acréscimo no número de pessoas que, dessa forma, passaram
a exercer seus direitos. Assim, os direitos outorgados na Constituição de 1988 tornam-se expressos
na medida em que a sociedade deles tem conhecimento.

Entretanto, observou-se que, no ano de 1996, houve um acentuado aumento na demanda em


relação à média da primeira metade da década, chegando a 10,56%. Num primeiro momento,
durante a pesquisa, atribuiu-se esse fato à regulamentação dada pela Lei nº 9.099/95 aos Juizados
Especiais, inclusive com a criação dos Juizados Especiais Criminais. No entanto, constatou-se
também que, na arrecadação de taxas e custas judiciárias, houve um acréscimo significativo em
relação aos anos anteriores, perfazendo um total de R$ 45.252.895,00. É certo que este fato está
ligado ao aumento na demanda, mas isso não se pode atribuir somente aos Juizados Especiais, pois
são isentos de taxas e custas.

Verificando a difusão desse aumento nas diferentes entrâncias, constatou-se que, no ano de
1996, na entrância inicial, os processos iniciados tiveram um decréscimo de 4,33%; na entrância
intermediária, houve uma elevação em 30,43% das ações distribuídas em relação ao ano anterior; e,
16

na entrância final, 1,34% de aumento confrontados o número de processos distribuídos com aqueles
do ano de 1995. (Relatório Anual do PJ, 2000)

Assim, o contexto econômico e social, a crise do Estado e a possibilidade de judicialização de


conflitos, envolvendo atores coletivos e interesses difusos, formataram um quadro de crescente
intervenção do Poder Judiciário por provocação do cidadão.

A Tabela 8 demonstra o crescimento do número de Comarcas e Varas, criadas e instaladas,


comparado com o número de processos distribuídos. No período analisado, o número de cidades
que têm atendimento direto da Justiça, isto é, as Comarcas, aumentou em somente 5,26%, passando
de 152 em 1989, para 160 em 1999.

O número de Varas, que efetuam o atendimento especializado das matérias judiciais, também
aumentou em número não muito significativo, passando de 375 Varas, em 1990, para 4637 Varas, em
2000. Assim, os recursos propiciados ao atendimento direto da população para a busca de suas
demandas, não tiveram crescimento muito acentuado.

Em contrapartida, no mesmo período, houve uma variação positiva de 334,43% no número


de processos distribuídos, que representaram, somente em 2000, a quantidade de 1.239.931
processos distribuídos no ano.

As Comarcas, que em 1990 recebiam a quantidade de 1.878 processos em média, passaram a


ter a quantidade média de 7.749 processos, incrementando em 312,61% o número de processos por
Comarca.

A análise da situação das Varas Judiciais também demonstra níveis percentuais semelhantes.
Recebiam uma média de 761 processos anuais, em 1990, e, no ano de 2000, a quantidade de 2.665
processos por Vara, num incremento de 248,88%.

Tabela 8 - Distribuição de Processos por Comarcas e Varas


Processos
ANO Nº de Nº de Varas Processos por Processos
Comarcas Distribuídos Comarca por Vara
1990 152 375 285.413 1.878 761
1991 153 381 353.396 2.310 928
1992 154 385 423.128 2.748 1.099
1993 155 389 489.005 3.155 1.257
1994 156 407 526.468 3.375 1.294
1995 156 416 660.957 4.237 1.589
1996 156 422 1.017.830 6.525 2.412
1997 157 449 951.019 6.057 2.118
1998 160 455 1.020.246 6.377 2.242
1999 160 463 1.092.499 6.828 2.360
17

2000 160 467 1.239.931 7.749 2.655


Evolução 90/00 5,26% 24,53% 334,43% 312,61% 248,88%

Resumindo-se, a situação do Judiciário é no mínimo tratada com alguma irresponsabilidade.


Se não foi o responsável por obras e investimentos diretos, o Judiciário é, sim, o fiel da balança, o
único organismo que pode, de forma autônoma e independente, analisar e julgar as contendas, com
um olho na Lei e outro no ser humano, sem se importar com o “poder” das partes.

Então, apesar de todos os indicativos judiciais serem crescentes, todos os anseios da


população estarem grifados no crescimento processual, muito acima do vegetativo populacional, seria
justo que a contrapartida financeira - já baixa - fosse amputada, unilateralmente, sem propiciar as
condições necessárias ao atendimento, no mínimo igual ao atual?

Mudanças e alternativas eficazes


As funções do Poder Judiciário passam pela exata compreensão do Estado democrático
moderno, de seu desenvolvimento, de suas ideologias em diferentes épocas e das exigências atuais.
Resulta daí que não mais se permite ao Judiciário restringir-se aos limites do dogmatismo, sendo
mero agente estatal da aplicação e interpretação das leis, focalizando sua atividade através do prisma
do individualismo, quando a sociedade se tornou mais complexa e exige novas posturas na solução
de litígios antes não cogitados, modificando o seu papel político e a sua função social frente a um
cenário de tensões, antagonismos e contradições da sociedade capitalista contemporânea.

Assim, a função jurisdicional está na solução dos litígios, sendo necessário que o Juiz afirme a
existência de uma vontade concreta da lei em relação a uma das partes do litígio, e a eficácia da
prestação jurisdicional está na sua validade absoluta para não perdurar o conflito e, na imutabilidade
da sentença que produziu coisa julgada, a definição da função jurisdicional.

Na última década do século 20,

“no contexto de lutas sociais protagonizadas por grupos minoritários,


negros, estudantes, sem-terra, pleiteando direitos nos domínios da segurança
social, habitação, educação, transportes, meio ambiente e qualidade de vida,
as desigualdades sociais foram recodificadas no imaginário social e político.
A igualdade dos cidadãos perante a lei confrontada com a desigualdade da lei
perante os cidadãos, sendo questão central o acesso à justiça por parte das
diferentes classes sociais”. (Biancamano, 1999)
18

As relações sociais se fundamentam no indivíduo e na coletividade, na soberania e na


liberdade daqueles sobre os quais ela atua. E o pensamento contemporâneo não extrai conclusões
definitivas sob o risco de elas mesmas submergirem ante as transformações e a velocidade com que
as mudanças se operam, provando uma crise de valores.

Frente a essa realidade de consciência por parte da sociedade da necessidade de maior


reciprocidade, maior controle de sua parte, maior garantia das liberdades individuais e da realização
da ordem jurídica, o Poder Judiciário buscou alternativas, a partir da Carta de 1988, de organização
interna, com autonomia financeira, apesar da expressa falta de compreensão dos demais Poderes,
como manifestado pelo Des. Adroaldo Furtado Fabrício, em 1997:

“...temos a lamentar o baixo grau de compreensão dos demais Poderes do


Estado relativamente à importância e às específicas necessidades da
jurisdição – talvez por tratar-se de bem que, como o ar, só pode ser
percebida a sua essencialidade quando ele falta”.

Dentro da visão de que os objetivos de uma organização são sua razão de ser e se constituem
em fonte de legitimidade que justifica suas atividades (Etzioni, 1976), e diante da necessidade de o
Poder Judiciário não só se adaptar a novas exigências sociais, sob pena de se tornar retrógrado em
sua constituição e estrutura, como também para proteger-se dada sua vulnerabilidade à intromissão
de outros Poderes em sua organização, seus membros têm defendido a necessidade de reformulação
de seu modo de gestão, com toda a ética e cautela necessárias.

Em 1994, o então Presidente do Tribunal de Justiça, Des. Milton dos Santos Martins, propôs
a busca de solução para os problemas enfrentados por meio da modernização da gestão:

“Preocupa-nos, mas não nos atemoriza ouvir dizer da pesada estrutura, do


sistema de relações equivocadas, da linha absurda dos processos, dos
procedimentos aferrados, onde melhor, como na empresa privada, seria a
reengenharia de Hammer, reconstruir o Judiciário do nada. Nem a
administração suporta descontinuidade, nem eu venho incendiar Roma.
Espera-se ir além do ‘conservar melhorando’ de Castilhos, pois as
providências urgem, quando zelamos pela coisa pública. Aí, evidente, de
proveito as lições de Stalk na indispensável administração do tempo, bem
como o adequado ‘controle da qualidade total’, de recomendação dos
mestres”. (apud Biancamano, 1999)
19

Assim, partindo da busca de um modelo de gestão que contemplasse todos os segmentos do


Judiciário, que se preocupasse com o todo, com o processo e com o homem, que construísse com
base no que já existia, reorganizando, corrigindo e melhorando procedimentos, foi instituído o Plano
de Gestão pela qualidade do Judiciário, aprovado, à unanimidade, pelo egrégio Tribunal Pleno do
Tribunal de Justiça do RS, em sessão de 27 de março de 1995. Tal Plano propunha a transição de um
processo administrativo essencialmente burocrático para um outro participativo, em que o
comprometimento com a missão da organização e a aprendizagem organizacional eram essenciais.

Consubstanciando as ações planejadas para implantação do Plano de Gestão, havia a


perspectiva de revisão de conceitos, redefinição de responsabilidades e de papéis de cada um na sua
área de atuação, desenvolvimento de equipes de trabalho, onde a cooperação, a criatividade e a
integração dos servidores e magistrados ultrapassassem os limites individuais da tarefa e alcançassem
o processo em sua visão sistêmica, para que a sociedade visse atendidas suas necessidades de justiça,
e conseqüentemente, se atingisse a redução de custos, por diminuição de erros, retrabalho e
desperdícios e aumentasse a produtividade tanto na área administrativa quanto na jurisdicional.

Várias ações foram implementadas, acarretando melhorias setoriais relevantes. Em termos de


abertura para a comunidade, foi instalado, no dia 23 de abril de 1998, o projeto “Ouvir a
Comunidade”, sendo de registrar aqui editorial do Jornal Diário Popular, de Pelotas, do dia 02-09-98:

“Inédito no País, o referido programa tem procurado ser totalmente


transparente quanto à gestão administrativa do Poder Judiciário do Estado.
Em Pelotas. (...) proporcionou esclarecimentos sobre (com)cessão de
benefícios, direito de qualquer cidadão de buscar a Justiça, paralisação de
processos, morosidade do sistema judiciário, valores cobrados por cartórios,
gratuidade do registro de nascimento e óbitos e necessidade de haver mais
defensores públicos (...) A iniciativa teve excelente efeito no sentido de
melhorar a comunicação entre a Justiça e o cidadão comum (...)”

Com a justificativa de racionalizar e diminuir custos com o aparelho administrativo do


Judiciário, em dezembro de 1997, o Tribunal de Alçada (criado pela Lei nº 6.124/70) foi extinto, pela
Emenda Constitucional nº 22, de 11-12-1997, sendo incorporado pelo Tribunal de Justiça e seus
Juízes de Alçada promovidos a Desembargadores. Entretanto, de imediato, no período analisado não
houve alteração significativa em redução de custos, tão-somente absorção de valores.

Os Juizados Especiais
20

Instituído em 1986, pela Lei Estadual nº 8.124, o Sistema Estadual de Juizados de Pequenas
Causas, somente em 1991, com a Lei Estadual nº 9.446, foi regulamentado em sua competência, e,
em 1995, a Lei Federal nº 9.099 instituiu e regulamentou nacionalmente os Juizados Especiais,
orientados pela simplicidade, informalidade, rapidez e economia processual, buscando em primeiro
lugar a conciliação entre as partes.

Em 1986, a lei conferiu competência aos Juizados em causas de valor até 5 vezes o salário
mínimo nacional, ou 10 vezes, em caso de ter por objeto “a condenação à entrega de coisa certa,
móvel ou ao cumprimento de obrigação de fazer, a cargo de fabricante ou fornecedor de bens e
serviços para consumo; a desconstituição e a declaração de nulidade de contrato relativo a coisas
móveis e semoventes.”

A Lei nº 9.446, de 1991, instituiu algumas facilidades para o ingresso de ação e aumentou o
limite para ingresso no valor de 40 salários mínimos, passando os Juizados a abranger causas para as
quais a lei prevê processo sumário, assim como a execução de títulos extrajudiciais, cujo valor não
exceda o limite estabelecido. Regula também os atos processuais e a execução das sentenças,
tornando os procedimentos mais simples e ágeis, dentre eles a audiência de conciliação em 15 dias do
pedido.

A Lei nº 9.099/95, em seu art. 9º, determinou que “nas causas de valor até vinte salários
mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor
superior, a assistência é obrigatória. § 1º Sendo facultativa a assistência, se uma das partes comparecer
assistida por advogado, ou se o réu for pessoa jurídica ou firma individual, terá a outra parte, se
quiser, assistência judiciária prestada por órgão instituído junto ao Juizado Especial, na forma da lei
local.” Assim, com o objetivo de fazer frente à demanda excepcional em causas, cujos valores situam-
se na faixa dos 20 a 40 salários mínimos, o Tribunal de Justiça propôs em 2003 a ampliação da
obrigatoriedade do ajuizamento, no Juizado Especial, de causas de valor até 40 salários mínimos,
excepcionando os casos previstos na Lei nº 9.099, o que gerou ponto de conflito entre a Ordem dos
Advogados do Brasil, Seção RS, e o Poder Judiciário do RS.

São instituídos também, com a Lei 9.099, os Juizados Especiais Criminais, cuja competência é
processar e julgar as contravenções penais e crimes, em que é prevista pena máxima de 1 (um) ano,
promovendo a reparação dos danos sofridos pela vítima e, preferencialmente, aplicação de pena não
privativa de liberdade.

Os Juizados Especiais, Cíveis e Criminais, atendendo à obrigação constitucional de prestação


judiciária gratuita à população mais carente, atualmente, estão espalhados e institucionalizados no
País inteiro. Sem necessidade de advogado -para assuntos com valor até 20 salários mínimos - e
21

somente com um documento que diga qual o seu problema, o cidadão consegue fazer valer seus
direitos sem despender um centavo sequer.

Essa assistência é gratuita à população, entretanto, o seu custo é arcado pelo Poder Judiciário.
É um serviço aditivo à justiça convencional que consome recursos, tempo e instalações. A maioria
das sessões desses Juizados acontece em horários noturnos, após o horário normal de expediente dos
servidores. Isso implica pagamento de adicionais noturnos ou concessão de dias de folga. Além disso,
no Judiciário gaúcho - que possui os Juizados Especiais mais atuantes em nível nacional - os Juízes
Leigos e Conciliadores recebem pagamento por seus serviços, cuja eficiência é incontestável, de
recursos provenientes do orçamento geral do Judiciário.

É essa conta, portanto, um ônus financeiro adicional ao Judiciário, que viu crescer a demanda
de 7.396 processos distribuídos em 1990 para 331.738 processos anuais em 2000, numa
impressionante evolução de 4.385% (quatro mil trezentos e oitenta e cinco pontos percentuais) no
período. Conforme se vê na Tabela 1, os anos de 1992, 1993 e 1997 são anos de explosão da
demanda nos Juizados Especiais. Nos julgamentos, a diferença atinge mais de 3000% de crescimento,
ressaltado o fato de que quase todos os processos que ingressam tem seu resultado conhecido em 30
ou 40 dias.

A Tabela 9 ilustra toda essa situação, demonstrando o crescimento intermediário e a evolução


havida no período.

Tabela 9: Movimentação Jurisdicional dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais 1990-2000

Vindos
Variação Variação Variação Variação
Ano do Ano Distribuídos Julgados Passam
% % % %
Anterior
1990 2.259 100,0 7.396 100,0 7.335 100,0 2.320 100,0
1991 2.320 2,7 19.413 162,5 15.858 116,2 5.875 153,2
1992 5.875 160,1 44.346 499,6 38.624 426,6 11.597 399,9
1993 11.597 413,4 66.092 793,6 60.464 724,3 17.225 642,5
1994 17.225 662,5 85.232 1.052,4 80.270 994,3 22.187 856,3

1995 22.187 882,2 144.897 1.859,1 121.069 1.550,6 46.015 1.883,4

1996 46.015 1.937,0 348.156 4.607,4 284.395 3.777,2 109.776 4.631,7

1997 109.776 4.759,5 318.285 4.203,5 324.092 4.318,4 103.969 4.381,4

1998 103.969 4.502,4 292.709 3.857,7 286.539 3.806,5 110.139 4.647,4

1999 110.139 4.775,6 303.908 4.009,1 294.652 3.917,1 119.395 5.046,3

2000 119.395 5.185,3 331.738 4.385,4 262.101 3.473,3 189.032 8.047,9


22

** Fonte: Relatórios do Tribunal de Justiça

O gráfico adiante propicia uma demonstração visual do incremento de processos nos


Juizados Especiais, Cíveis e Criminais, durante o período analisado.
23

Gráfico 2 - Quantidade de Processos Distribuídos x Processos Julgados


Processos Distribuídos X Processos Julgados

400.000

350.000

300.000

250.000

200.000

150.000

100.000

50.000

-
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000

Distribuídos Julgados

Considerações finais
No final do século 20, malgrado a necessária autonomia e independência dos Poderes se ver
ameaçada ao não ser conferido ao Judiciário co-participação no exercício do poder político do
Estado, constata-se uma crescente “profissionalização” daqueles que administram a Justiça, se não
pessoalmente, buscando em seus quadros e fora deles integrantes com competência e experiência na
área de administrativo-financeira.

Iniciativas criativas, inovações tecnológicas, quebra de paradigmas, foram palavras-chaves


proferidas pela Administração, a partir da metade da década de 90, norteando projetos e programas
em todas as áreas administrativa e jurisdicional. Salientam-se dentre esses a informatização das
Comarcas, com unificação dos sistemas utilizados (JUSMICRO, APJ e THEMIS) e do Tribunal de
Justiça – jurisdicional -, e a racionalização na área administrativa do Tribunal, com sistema de Reserva
de Verbas, Controle de Precatórios, Cálculo de Pagamento de Processos, etc.

Verificou-se também que, decorrente da crescente demanda judicial ocorrida no período


analisado (variação de 334,43% na distribuição de processos) e das ações implementadas para
viabilizar a prestação jurisdicional, considerando somente o ano de 2000, houve um aumento nos
valores executados no orçamento do Poder Judiciário. A Despesa com Pessoal (ativos) atingiu R$
313.412.072,00; com Inativos e Pensionistas, R$ 169.759.637,00; com Custeio, R$ 36.740.935,00;
total com Investimentos, 153.138,00; e Fundo de Reaparelhamento, R$ 17.281.854,00.
24

Fazendo um comparativo com a média da despesa com pessoal, na década anterior (1980 –
1990), houve um decréscimo, alcançando 58% do orçamento realizado do Poder Judiciário, no ano
de 2000, excluindo-se, por óbvio, os pensionistas e inativos.

Em conclusão, observou-se que o crescente aprimoramento na administração da justiça, com


integrantes preocupados em bem gerir a coisa pública e bem cumprir a missão constitucional do
Poder de prestar a tutela jurisdicional A Lei nº 11.667, de 11-09-2001, criou o Sistema de
Gerenciamento Financeiro dos Depósitos Judiciais, com o objetivo de constituir receita do Fundo de
Reaparelhamento do Poder Judiciário por meio dos rendimentos líquidos resultantes da “diferença
entre os índices fixados por lei para remuneração de cada depósito judicial e os estabelecidos para
remuneração” do Sistema, exceto os referentes a tributos estaduais.

Inovou a Instituição na iniciativa ao definir a metodologia e a utilização de tais recursos,


acrescentando aos já definidos pela Lei nº 7.220/78 “para pagamento pela prestação de serviços a
advogados designados para atuar como assistentes judiciários de partes beneficiadas pela concessão
de justiça gratuita, nas localidades em que não haja atendimento da Defensoria Pública do Estado do
Rio Grande do Sul”.

Em seu § 2º, a Lei assegurou parcela ao Poder Executivo quando definiu que “os
rendimentos líquidos referentes aos depósitos judiciais relativos a tributos estaduais”, constituindo-se
desde então em “item de receita do Fundo Estadual de Saúde, do Fundo Estadual de Segurança
Pública, do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento dos Pequenos Estabelecimentos Rurais, do Fundo
Estadual de Sanidade Animal e do Fundo de Reaparelhamento de Estradas do Sul, em partes iguais”.

Destarte, ao fazer considerações acerca do Orçamento do Poder Judiciário, é fundamental


que se ressalte também outras configurações da estrutura administrativa da Instituição – além do
Conselho de Administração e Planejamento – que estão a demonstrar o esforço despendido por
seus integrantes para adequar seus recursos aos novos tempos. Destacam-se a criação dos Conselhos:
de Racionalização, de Política Salarial, de Recursos Administrativos, da Qualidade, de Comunicação
Social, de Informática Judiciária, que envolveram e comprometeram magistrados de primeiro e
segundo graus nas decisões administrativas da Presidência.

Finalmente, a análise expõe diferentes perspectivas acerca do orçamento do Poder Judiciário


na última década do século 20, em meio à necessidade de mudanças: a organização burocrática,
pesada, hermética necessita abrir-se e flexibilizar-se porque os indivíduos que a integram trazem
consigo novas crenças e novos valores. Entretanto, o campo de estudo é amplo e muito pouco, ou
nada, está pronto, por isso que as iniciativas implantadas, ou em vias de implantação, visam à
mudança por meio de modelo de gestão que propugna a compatibilização de uma cultura burocrática
25

com sistema participativo e flexível de administração, cujos aspectos organizacionais guardam


contornos particulares.

Referências Bibliográficas
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determinantes na implantação do PGQJ em um estudo exploratório. Dissertação de Mestrado,
PPGA/UFRGS. 1999.
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CARVALHO LEITE, Luís Carlos. Discurso. Diário da Justiça. Porto alegre, n. 1381, 1998.
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26

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MINTZBERG, H. Criando organizações eficazes: estrutura em cinco configurações. São Paulo : Ed. Atlas,
1995.
RIO GRANDE DO SUL. Poder Judiciário. Ato Regimental n. 01/98, 30-06-98.
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RIO GRANDE DO SUL. Poder Judiciário. Portaria n. 02/91, 22-03-1991.
RIO GRANDE DO SUL. Poder Judiciário. Portaria n. 22/97, 08-10-1997.
http://www.tj.rs.gov.br/site_php/noticias - acesso em 09/02/2004
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE OS CRITÉRIOS PARA A IDENTIFICAÇÃO E GUARDA DOS
*
PROCESSOS JUDICIAIS HISTÓRICOS

GUNTER AXT**

Resumo
Nos últimos anos, têm crescido os esforços, tanto no plano da
legislação quanto no administrativo e no acadêmico, no sentido do
desenvolvimento de estratégias eficazes para o enfrentamento do
problema relativo à gestão documental do Judiciário. Este artigo
pretende apresentar sugestões quanto ao tratamento dos chamados
“processos históricos”. Fundamentalmente, busca-se identificar a
possibilidade de construir alternativas de gestão que garantam a
preservação eficaz do patrimônio histórico ao mesmo tempo em que
levem em consideração as premências de ordem administrativa
enfrentadas pelo Poder Judiciário na contemporaneidade.

Abstract

Palavras-Chave
Processos históricos – Judiciário - arquivos judiciais

Key words

Apresentação
Ao se considerar a guarda e a preservação dos processos judiciais com “valor histórico”
agregado, cabe, como indagação preliminar, saber em que medida incumbe ao Poder Judiciário
a competência sobre a concepção e a execução de políticas arquivísticas próprias, tema que

* Artigo recebido em 15.01.2003.


** Doutor em História Social pela USP; coordenador do GT de História Política da Associação Nacional
de Historiadores (ANPUH); consultor do Memorial do Judiciário do RS e do Memorial do Ministério Público do
RS.

1
precisa ser compreendido tanto à luz da legislação vigente, quanto na perspectiva da
conveniência administrativa, bem como social. Assim sendo, na primeira parte deste artigo
veremos como a legislação corrente tem regulado este campo de atividade. Em seguida,
trataremos do sentido sócio-político que encerram os documentos e os arquivos judiciais,
intentando avaliar o interesse destes arquivos para o conjunto da sociedade. Na terceira parte,
abordaremos aspectos da metodologia tradicional sugerida pela arquivologia para o tratamento
científico das tarefas de identificação e conservação da documentação de preservação
permanente, bem como procuraremos acompanhar, com base nas informações disponíveis,
aspectos das experiências neste campo reunidas pela Justiça Federal, pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e pelo
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Competência do Judiciário na gestão documental


Nos termos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política
nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências, diploma, este,
nacionalmente aceito como o ordenador máximo da matéria, ao Poder Público em geral é
atribuída a responsabilidade pela gestão documental e proteção especial de documentos em
arquivos, particularmente daqueles corpos documentais produzidos pelos órgãos públicos. Ao
estabelecer sobre os critérios para a eliminação de documentos desses órgãos, e, portanto, para
a preservação dos chamados processos históricos, em seu artigo nono a Lei comete à
“instituição arquivística pública”, na sua área de competência, a responsabilidade para a elaboração
desses critérios e para a autorização de eventual eliminação de documentos.

Ora, as “instituições arquivísticas públicas” são os órgãos do Poder Público designados em


lei para a gestão documental em cada jurisdição, como trata o artigo 17º da referida Lei, sendo
elas responsáveis pela aprovação de tabelas de temporalidades. Em respeito à autonomia
federativa e local, a Lei não dispõe sobre a organização dos arquivos estaduais e municipais.
Porém, no artigo 20º, ao tratar dos arquivos judiciais da jurisdição federal, a Lei confere aos
mesmos status de “instituição arquivística pública”, garantindo autonomia ao Poder Judiciário para
a implementação de políticas arquivísticas, desde que respeitados os termos da Lei e as
diretrizes técnicas estabelecidas pelo Conarq – Conselho Nacional de Arquivos. Assim sendo,
parece prevalecer o entendimento de que esta fórmula possa ser derivada para os Estados.

2
O Decreto Federal nº 2.134, de 24 de janeiro de 1997, fixou, ainda, diretrizes para
concepção e aplicação das normas para acesso a documentos considerados sigilosos,
determinando a todos os órgãos públicos a instalação de Comissões Permanentes de Acesso:
“as comissões deverão analisar, periodicamente, os documentos sigilosos sob custódia, submetendo-os à autoridade
responsável pela classificação, a qual, no prazo regulamentar, efetuará, se for o caso, a desclassificação”. Estão
nesse rol, certamente, os processos judiciais, vez que envolvem, muitas vezes, informações de
caráter privado relativas a pessoas físicas e jurídicas. O Decreto nº 4.553, de 27 de dezembro
de 2002, suspendeu parcialmente a validade do Decreto nº 2.134, estendendo o prazo de
vedação à consulta dos documentos considerados sigilosos de 30 para 50 anos e esvaziando a
importância das Comissões Permanentes de Acesso. Todavia, o Projeto de Decreto Legislativo
nº 11/03, de autoria da Deputada Federal Alice Portugal (PC do B-BA), que tramita na CCJ da
Câmara Federal, pretende a restituição das normas aplicadas pelo Decreto 2.134. O PDL
amplia o papel das Comissões Permanentes de Acesso, atribuindo-lhes o cuidado pelo “acesso
pleno aos documentos públicos”.

A forma como estes temas vêm sendo interpretados pode ser captada nos anais do
XIII Congresso Brasileiro de Arquivologia, promovido pela AAB – Associação Brasileira de
Arquivistas – em outubro de 2000, na cidade de Salvador (BA). Na oportunidade, estabeleceu-
se uma lista de recomendações, dentre as quais podemos destacar como as de maior interesse
para o Poder Judiciário:

• “(...) Que sejam implementadas políticas para assegurar


notadamente a conservação e a preservação do patrimônio
documental do Poder Judiciário.
• Que os Tribunais empreendam esforços para viabilizar a criação
de mecanismos que possam oferecer soluções eficazes para o
tratamento técnico da sua documentação, através de um Programa
de Gestão Documental, abrangendo a elaboração de um Plano de
Classificação e de uma Tabela de Temporalidade.
• Que as autoridades do Poder Judiciário, através das Assessorias
Parlamentares ou responsáveis diretos, viabilizem junto ao
Congresso Nacional a aprovação do Projeto de Lei 2.161/91 que
dispõe sobre a eliminação de processos judiciais.
• Que sejam criadas Comissões Permanentes de Avaliação de
Documentos em cada instituição do Poder Judiciário.

3
• Que sejam empreendidos estudos para subsidiar a regulamentação
do uso, armazenamento e controle da documentação eletrônica do
Poder Judiciário.”
(http://www.aab.org.br/quadro_sublinks.htm)

Impende registrar que, atualmente, prevalece o entendimento entre juristas e arquivistas


segundo o qual a não promulgação do Projeto de Lei 2.161/91, que tramita há mais de dez
anos no Congresso Nacional, não pode servir de impedimento para o desenvolvimento de
tabelas de temporalidade pelos Judiciários Federal e Estaduais, nem tampouco bloqueia o
início dos trabalhos de eliminação dos autos, vez que a Lei 8.159/91, como ficou demonstrado
acima, trata dos arquivos judiciais, considerando-os “instituições arquivísticas públicas”. Outrossim,
a Lei nº 6.246/75, de 7 de outubro de 19751, que suspendeu a vigência do art. nº 1.215 do
CPC2, referiu que tal suspensão vigoraria “até que lei especial discipline a matéria nele contida”, o que
parece ter sido atendido pela Lei 8.159/91 (Sordi & Marques, 2003; Facchini Neto, 2003;
Tedesco, 2003: 303-7).

Na esfera federal, têm surgido importantes iniciativas para o enfrentamento do


problema arquivístico. Um trabalho integrado entre o Conselho da Justiça Federal e os cinco
TRFs deu origem à Resolução nº 217, de 22 de dezembro de 1999, que disciplina e instituiu o
Programa de Gestão de Documentos da Administração Judiciária Federal de 1º e 2º Graus
(Brandão, 2001). Em São Paulo, por exemplo, para executar tais diretrizes a Seção Judiciária
contratou a Associação dos Arquivistas do Estado para proceder ao tratamento especializado
de 500 mil feitos, formando um arquivo histórico próprio e um arquivo corrente (Villar, 2001).

1 Lei nº 6.246, de 7 de outubro de 1975, faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu

sanciono a seguinte Lei:


Art 1º Fica suspensa a vigência do artigo 1.215 do Código de processo Civil até que lei especial
discipline a matéria nele contida.
2 “Art. 1.215. Os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio
adequado, findo o prazo de 5 (cinco) anos, contado da data do arquivamento, publicando-se previamente no
órgão oficial e em jornal local, onde houver, aviso aos interessados, com o prazo de 30 (trinta) dias. (Redação dada
pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
§ 1o É lícito, porém, às partes e interessados requerer, às suas expensas, o desentranhamento dos
documentos que juntaram aos autos, ou a microfilmagem total ou parcial do feito. (Redação dada pela Lei nº 5.925,
de 1º.10.1973)
§ 2o Se, a juízo da autoridade competente, houver, nos autos, documentos de valor histórico, serão eles
recolhidos ao Arquivo Público. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)

4
Por sua vez, as soluções aplicadas na jurisdição comum nem sempre têm primado pela
clareza jurídica e pela objetividade administrativa. Num extremo, pelo menos seis diferentes
Estados da Federação (TO, RR, RO, AP, GO e MS) sequer possuem legislação arquivística
específica. Em outro pólo, verificamos que na Bahia a documentação judicial é custodiada pelo
Arquivo Público Estadual, gerido pelo Poder Executivo, e, no Sergipe, criou-se um Arquivo
Público do Poder Judiciário (Gomes, 2003).

Breve histórico da política para arquivos judiciais no RS


No Rio Grande do Sul, o tratamento das fontes judiciais não vinha recebendo
abordagem sistemática até a bem pouco tempo. No passado, determinou-se o envio de toda a
documentação de caráter judicial ao Arquivo Público do Estado, instituição, esta, vinculada à
Secretaria Estadual da Administração, que, se estima, abriga mais de seis milhões de
documentos judiciais, produzidos, sobretudo, entre o Século XVII e a década de 1950 do
Século XX. Cabe, todavia, ressaltar que o Arquivo Público não recebeu a totalidade da
documentação judicial produzida durante esta quadra. Com efeito, também o Arquivo
Histórico do Estado, vinculado à Secretaria Estadual da Cultura, abriga importantes fontes
documentais, tais como os relatórios da Presidência do Tribunal de Justiça anteriores a 1930,
correspondências de juízes com o Presidente da Província no Império e, até, processos. Além
disso, nem toda a documentação de primeira instância seguiu para a Capital, permanecendo
fragmentos, por vezes consideráveis, nos fóruns. Esta documentação residual foi parcialmente
extraviada, ou se encontra distribuída pelos arquivos dos fóruns e pelos arquivos municipais,
sendo este, por exemplo, o caso do Arquivo Municipal de Santa Maria, que reúne processos
iniciados no Século XIX. Já a Comarca de Santo Antônio da Patrulha, por sua vez, entendeu
de enviar este acervo residual, que monta cerca de 2.000 processos, para o Memorial do
Judiciário, cuja equipe vem atualmente trabalhando da higienização e identificação do acervo.

Da década de 1950 em diante, muito embora existam ainda alguns processos mais
recentes guardados no Arquivo Público, os processos judiciais deixaram de ser enviados ao
Arquivo Público do Estado, sob o aparente argumento de que a capacidade de armazenagem
desta instituição esgotara-se. Destarte, a documentação judicial passou a ser acomodada, via de
regra, nos fóruns. Se esta fórmula conseguiu garantir a preservação da documentação, trouxe,
por outro lado, o grave inconveniente de sobrecarregar as administrações dos fóruns,

5
consumindo recursos humanos e financeiros e ocupando espaço físico que poderiam estar
sendo direcionados para a prestação jurisdicional, aliás, cada vez mais demandada pela
sociedade. Além disso, este acervo jamais recebeu um tratamento arquivístico tecnicamente
apropriado, sendo, na prática, em geral acomodado de forma improvisada, quando não,
precária3.

Este drama não é apanágio exclusivo do Judiciário. Especialistas diagnosticam que, no


Brasil, de um modo geral, o Pode Público guarda, de forma irracional, “imensa quantidade de
documentos em todos os suportes, em sua maioria, sem avaliação, classificação, descrição”, constrangendo o
acesso do cidadão a este acervo, bem como a preservação do mesmo. Segundo o Dr. Luiz
Carlos Lopes, da Universidade Federal Fluminense, “ainda é fácil encontrarem-se casos de imensos
acervos sem tratamento, eliminações sem qualquer critério, trabalhos de classificação e de descrição mal-feitos,
pessoal sem formação adequada, etc.”. E sublinha: sequer “sabemos o custo da guarda dessas massas
documentais” (Lopes, 2002: 179).

Diante do impasse, a Alta Administração do Poder Judiciário passou a se preocupar


diretamente com o assunto. Por meio da Resolução nº 231, de 7 de outubro de 1997, do
Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, dispôs sobre a criação

3 Um diagnóstico de 1996 descreveu a situação dos arquivos judiciais da jurisdição federal, que pode, em

grande medida, ser considerada análoga à existente na jurisdição comum do Rio Grande do Sul:
a) Inexistência do Arquivo como unidade administrativa. Em muitos casos, os documentos
administrativos e autos findos são arquivados nas Varas, acarretando uma crescente necessidade de
ampliação do espaço físico e, conseqüentemente, da construção de novos prédios;
b) Espaços físicos inadequados, insuficientes, com problemas de infiltração, rachaduras, falta de
resistência da estrutura, mofo, umidade, iluminação insuficiente, exposição ao sol, ao calor,
ventilação inadequada, equipamentos de segurança contra incêndios inadequados a depósito de
papéis, fiação elétrica exposta, falta de higienização e limpeza adequadas, presença de agentes
poluentes e a existência de até 13 depósitos de documentos em diferentes locais em uma mesma
cidade sede de Seção Judiciária;
c) Falta de recursos humanos em número e em qualificação;
d) Falta de recursos materiais: sistemas automatizados, estantes, caixas-arquivo, computadores,
impressoras, mesas e outros mobiliários;
e) Falta de equipamentos de proteção (luvas, máscaras, jalecos) e ocorrência de doenças adquiridas em
função do trabalho (alergias respiratórias e de pele) devidamente comprovadas pelos serviços
médicos das instituições;
f) Falta de normas, manuais, sistemas automatizados e instrumentos de gestão documental, planos de
classificação de documentos, guias de transferência de autos findos das Varas para os Arquivos,
métodos de recuperação dos documentos, critérios de eliminação de documentos. 19,4% dos
arquivos já haviam eliminado documentos e outros 29% não souberam informar. (Sordi & Marques,
2003)

6
do Arquivo Ótico e de Processo do Poder Judiciário, objetivando a paulatina substituição de
todos os arquivos judiciais por um único arquivo centralizado, bem como a implantação de um
sistema de arquivamento ótico, por meio magnético digital, dos processos judiciais e de
natureza administrativa. A Resolução pretendeu, ainda, o descarte dos processos judiciais
findos há mais de cinco anos, depois de serem os mesmos escaneados, bem como o descarte
de certos processos cíveis e criminais, sem exigência de digitalização, tais como habeas-corpus,
embargos diversos, agravos de instrumento, ações cautelares, processos tramitados nos
juizados especiais cíveis, etc.

A implementação da Resolução, entretanto, não foi automática. Em 2002, a Presidência


do Tribunal convocou a Comissão de Seleção e Avaliação de Processos, pelo Expediente 7202-
0300/02-3, designando um Juiz-Corregedor para presidi-la. Em 21 de março de 2003, a
Comissão concluiu seus trabalhos preliminares, encaminhando relatório à Presidência do
Tribunal de Justiça para subsidiar a formatação de uma tabela de temporalidade. Em julho de
2003, iniciou-se a transferência dos processos do Interior do Estado para o novo e moderno
prédio construído pelo Poder Judiciário para abrigar a sede do Arquivo Ótico na Capital. Não
teve início, entretanto, o trabalho de eliminação de processos findos, pois não apenas não foi
aprovada a tabela de temporalidade do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul por legislação
competente, como ainda não se foi capaz de definir os critérios de identificação dos processos
chamados históricos e destinados à preservação permanente.

Dimensão social dos arquivos judiciais: o poder dos arquivos e bibliotecas


Afinal, o que é um arquivo histórico judicial? Trata-se de órgão e serviço meramente
administrativos ou encerra algum alcance social e político? É possível mapear, separar e
preservar uma documentação judicial chamada histórica de outra considerada não-histórica?

Arquivos e bibliotecas são instituições que reúnem livros e documentos, que


condensam o vivido e constituem uma janela de cognição à disposição de um corpo social. Ao
preservar a cultura escrita, estes órgãos transcendem a materialidade do conteúdo encerrado
nas páginas manuscritas e impressas para afirmarem-se como espaço de conservação e
reprodução do patrimônio intelectual de uma instituição, ou de um povo, enfim, como lugares
de memória (Nora, 1993). Neles, processa-se uma “alquimia complexa em que, sob o efeito da leitura,

7
da escrita e de sua interação, se liberam as forças, os movimentos do pensamento” (Baratin & Jacob, 2000:
9).

Ora, arquivos e bibliotecas são construtos históricos. Formam-se como resultado de


uma política – ou da falta dela – de coleção, de sistematização e de divulgação dos
documentos. Portanto, são sempre o resultado de uma seleção, que pode ser mais ou menos
eficaz para as gerações futuras, mais ou menos consciente para as gerações presentes. É por
isso que se diz que todo arquivo ou biblioteca “dissimula uma concepção implícita de cultura, do saber e
da memória” alimentada por um tempo, por uma sociedade, por uma instituição. A história de
um arquivo ou de uma biblioteca é indissociável da história da cultura e do pensamento de
uma sociedade, não só como lugar de memória no qual as gerações passadas depositaram
seletivamente estratos de sua experiência vivida, mas também como “espaço dialético no qual (...) se
negociam os limites e as funções da tradição, as fronteiras do dizível, do legível e do pensável” (Baratin &
Jacob, 2000: 11).

Conforme registra Jaques Le Goff (1990), a todo ato de lembrar corresponde um ato
de esquecer. O investimento na guarda de um documento pode estar determinando a exclusão
de outro. A forma com que as instituições arquivísticas organizam e disponibilizam o seu
acervo pode contribuir para guiar o olhar do consulente e do pesquisador, que mais tarde irá
trabalhar a construção de interpretações sobre o vivido, a formulação de identidades. A
memória coletiva é sempre seletiva, é produto de uma construção política animada pelo influxo
de forças sociais organizadas.

Assim, o poder dos arquivos e bibliotecas não se situa apenas no campo das palavras e
dos conceitos. Como demonstram os historiadores Anthony Grafton e Roger Chartier, o
domínio sobre a memória escrita e sobre a acumulação de livros e documentos possui sentidos
políticos. Representa o signo e o instrumento de poder, por exemplo, da Igreja, dos monarcas,
da aristocracia, da nação, da república; poder econômico de quem dispõe de recursos
necessários para comprar, acumular e conservar um acervo documental, poder intelectual
sobre os intelectuais (Baratin & Jacob, 2000: 169-199).

Quando os britânicos invadiram a cidade de Washington, em 1814, destruíram e


queimaram a incipiente biblioteca do Capitólio, desferindo um golpe certeiro sobre a tentativa
de construção da identidade nacional do país que então nascia. A perda causou tamanho
trauma que Thomas Jefferson ofereceu a sua biblioteca particular, então com pouco mais de

8
6.000 volumes, para que a coleção do Congresso Nacional fosse reiniciada. A Biblioteca do
Congresso resiste até hoje como materialização da memória e da identidade dos Estados
Unidos da América (Darnton, 2003: 10). Como demonstra Luciano Canfora em estudo sobre a
mítica biblioteca de Alexandria, a perda dos livros significou a perda de civilizações (Baratin &
Jacob, 2000: 234-245). Aniquilar o passado e começar uma nova sociedade a partir do que o
Khmer Vermelho chamou de “ano zero” foram exatamente os objetivos do Exército de Pol
Pot quando destruiu a Biblioteca Nacional de Phnom Pehn, no Camboja, dando origem a um
dos mais obscuros e sanguinários regimes políticos da nossa era (Darnton, 2003: 11).

Em 1755, um terremoto e um maremoto arrasaram a Capital do reino de Portugal,


Lisboa, destruindo a Biblioteca Real, cuja reconstrução esteve entre as prioridades do Marquês
de Pombal. Quando a família real portuguesa veio para o Brasil, em 1808, fugindo das invasões
napoleônicas, dentre os seus tesouros trouxe consigo também o arquivo e a biblioteca, os quais
deram hoje origem ao Arquivo Nacional e à Biblioteca Nacional do Brasil. Quando o Brasil
cortou o cordão umbilical com a Coroa Portuguesa, Dom Pedro I recebeu um pedido de
indenização a propósito do patrimônio deixado por Portugal na ex-Colônia, de cujo total, a
impressionante porcentagem de 12% correspondia ao acervo literário, indicando o quanto o
Arquivo e a Biblioteca eram valorizados, tanto pela Metrópole, quanto pelo governo do novo
País independente, que não exitou em bater o martelo (Schwarcz, 2002).

Livros e documentos, portanto, quando reunidos em lugares de memória,


potencializam um sentido simbólico, porquanto operam como lugares formadores de
identidades (Bosi, 1994: 59) – e não há soberania institucional ou nacional sem um sólido
complexo de identidades como substrato cultural de qualquer formação social (Axt, 2002). Se
não há democracia real sem liberdade de expressão e pensamento, para que estas se afirmem,
sem dúvida nenhuma, devemos procurar garantir no presente a democratização aos meios de
acesso à informação. Para que o pensamento de uma sociedade não seja estanque e possa
sempre estar pronto para enfrentar as surpresas do devir, a memória coletiva tem de ser um
campo simbólico sempre passível de sofrer criticidade, de sofrer reformulações: a memória de
sociedades democráticas é um campo cultural em processo constante de transformação e re-
significação.

Para os historiadores, os arquivos reúnem, ainda que de forma imperfeita e parcial,


fragmentos por meio dos quais podemos acessar mundos e experiências humanas perdidas,

9
cuja reconstituição pode ser essencial para o estabelecimento de referenciais identidários. Mas
os documentos não falam por si só. Cada historiador, ao compulsar um corpo documental,
organiza e elabora séries documentais, sistematizando dados e construindo sentidos analíticos e
interpretativos conforme suas perguntas. Ora, como já registrou o filósofo italiano Benedetto
Croce, as perguntas formuladas pelos historiadores são invariavelmente influenciadas e
determinadas pelas experiências individuais e coletivas que lhe são contemporâneas. Portanto,
por esta lógica presume-se que um estudo, por exemplo, sobre a evolução da propriedade
fundiária somente será alvo de interesse quando a questão agrária converter-se em problema
social, político e econômico de uma determinada sociedade, e assim por diante.

As fontes judiciais, produzidas pelo Poder Judiciário e pelos operadores do Direito,


cada vez mais vêm sendo objeto de interesse dos historiadores, no Brasil e no mundo. Dois
são os vetores que explicam esta tendência: de um lado, cresce o interesse da sociedade em
conhecer o funcionamento do Poder Judiciário, de outro percebem os estudiosos que os
processos judiciais encerram um feixe profícuo de informações sobre as relações sociais e de
poder de tempos passados.

Até a bem pouco tempo, a História Nacional vinha sendo contada, sobretudo, da
perspectiva do encadeamento de eventos e fatos, que tinham como protagonista o Poder
Executivo, a ação de seus integrantes e sua arquitetura institucional. Esta cultura historiográfica
foi caudatária de uma concepção específica de poder, que sempre se estribou na apologia do
presidencialismo forte e voluntarista, freqüentemente sobreposto às demais instâncias de
poder. Aqui, o Estado, ao invés de ser entendido como uma das agências de poder na
sociedade sobre a qual incide a pluralidade da cidadania, era caracterizado como um veículo
funcional, cuja prática seria ou providencial ou retrógrada, dependendo da perspectiva
ideológica do analista (Axt, 2002).

As transformações que agitaram a sociedade brasileira nos últimos 20 anos trouxeram


em seu bojo uma conhecida reengenharia constitucional. Os Poderes Legislativo e Judiciário
foram convocados a assumir e a desempenhar um novo papel no processo político e na
determinação dos rumos escolhidos pela Nação. Paralelamente, cresceu o interesse da
historiografia pela manipulação de novos corpos documentais e pela construção de novas
abordagens. Temas como problemas sociais, cultura política e formas de expressão da
cidadania ganharam destaque (Axt, 2002).

10
Aos poucos, esta análise vem convergindo para as organizações sociais não
governamentais, para os movimentos sociais, para a ação dos partidos políticos e para a
conformação do Parlamento e da Justiça. No início, algumas teses acadêmicas passaram a
compulsar os anais do Legislativo bem como processos judiciais, na condição de fontes para
enriquecer o tratamento dado à pesquisa. Em seguida, começaram a surgir os primeiros
trabalhos exclusivamente dedicados a estes personagens institucionais (Axt, 2002). Com efeito,
“uma instituição como a Justiça, pela amplitude de seu poder de intervenção na ordem social, é capaz de
espelhar, de maneira indireta, boa parte das características dessa mesma sociedade, daí o interesse dos
historiadores na consulta da documentação por ela produzida” (Camargo, 2003: 329).

Portanto, as fontes judiciais, além de permitir o acesso a uma nova perspectiva do


Estado, o que é fundamental para o fortalecimento da democracia e para o estímulo
construtivo à harmonização entre os Poderes, têm servido para reconstituir e re-significar uma
experiência social, não apenas perdida, mas, também, muitas vezes, deliberadamente ocultada
por uma memória coletiva politicamente construída, geralmente elitista, excludente e
comprometida com os esquemas de dominação.

Para citar, neste sentido, apenas um exemplo recente, bastante próximo da realidade
sul-rio-grandense, merece registro o trabalho do historiador norte-americano John Chasteen,
que se valeu recentemente das fontes judiciais produzidas no Brasil do Século XIX para
reconstituir aspectos fundamentais dos hábitos culturais e cotidianos dos habitantes da região
fronteiriça entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, contribuindo sobremaneira para o esforço
de caracterização e de entendimento da identidade característica do gaúcho. A sua opção
metodológica encontra explicação, em grande parte, no fato de o sistema judicial brasileiro,
mais organizado do que o dos demais países latino-americanos nesta época, era das poucas
instituições estatais que chagavam ao campo (Chasteen, 2001: 76).

Ora, quem poderia imaginar, nos remotos anos de 1870, que simples processos de
cidadãos anônimos guardados durante décadas por zelosos funcionários do Judiciário,
poderiam se converter, mais de cem anos depois, em fonte tão rica para o estudo da alma do
povo gaúcho?

Com efeito, como destaca Ana Maria Camargo,

11
“os historiadores que se valeram dos processos judiciais, neles
encontraram informações que não foram previstas pelas instituições
produtoras da documentação. É o caso de trabalhos clássicos da
História da Cultura, que utilizam os processos-crime para caracterizar
idéias, valores e comportamentos de toda uma sociedade. Em lugar do
crime, razão pela qual foram elaborados os processos, são outros os
fatores que, de forma espontânea, transparecem nos autos. Vale
lembrar, entre nós, o livro de Maria Sílvia de Carvalho Franco sobre
homens livres na ordem escravocrata, baseados em processos
criminais da Comarca de Guaratinguetá, SP. Trata-se de importante
exemplo da utilização dessa fonte para o estudo, não do crime, mas
das relações comunitárias.” (Camargo, 2003: 329)

Ou seja, quando o documento perde o seu valor corrente e administrativo, quando ele
se distancia do objeto para o qual foi produzido originalmente, ele ganhará um novo valor,
cujo sentido é estabelecido pelo historiador a partir das perguntas norteadoras de sua pesquisa.
Assim, um documento histórico, para o historiador, não tem um sentido em si, um valor
intrínseco, pois é o próprio historiador, no exercício do seu métier, que poderá conferir sentido
ao documento. E este sentido é cambiante, variando de um historiador para outro, de uma
época para outra, pois cada pesquisador carrega a sua pergunta sobre o passado.

Enquanto os historiadores podem transformar qualquer coisa em documento, para


efeitos de investigação científica – como, por exemplo, inscrições em paredes feitas por
“pichadores” urbanos para demarcar territórios de gangues que podem converter-se em prova
documental de determinados comportamentos sociais –, os arquivos não resultam dessa
atribuição de sentido própria do métier do historiador. Pelo contrário, “os arquivos têm uma função
documental congênita em relação à entidade ou organização que lhes deu origem”. Se os documentos
preservados em um arquivo, pela sua própria natureza e constituição, são autênticos, isso não
significa, também, que o seu conteúdo seja verdadeiro. O historiador, mesmo reconhecendo a
impossibilidade de atingir a verdade absoluta sobre um determinado objeto, tem a veracidade
como horizonte ético, o que, aliás, o aproxima do Juiz (Camargo, 2003: 330).

A própria validação do documento como testemunho fiel de uma época ou de um


objeto histórico qualquer se faz de forma relacional, isto é, o valor comprobatório dos
documentos históricos pode ser extraído da formação de séries históricas por parte de
historiadores com credibilidade científica, mas dificilmente pode ser captado em um único
documento isolado. Este é o motivo, aliás, pelo qual os bons historiadores procuram sempre

12
investigar o contexto de produção do documento histórico bem como o contexto de
preservação do conjunto no qual o mesmo se insere institucionalmente. Esta tarefa,
naturalmente, torna-se mais fácil quando o historiador dispõe para suas investigações de
arquivos bem organizados e indexados e cuja unidade temática não foi mutilada pela ação do
tempo ou dos homens (Camargo, 2001: 7-8).

Assim, podemos dizer que depois de os documentos perderem o interesse


propriamente administrativo e corrente, os arquivos tornam-se alvo de um interesse acadêmico
e historiográfico, quando o objeto é especulativo, o sujeito é um pesquisador científico e o
resultado é reflexivo (Bellotto, 2002: 171). Os nexos produzidos pelo cientista vão ajudar a
significar identidades coletivas, as quais, pela sua natureza, constituem-se em patrimônio
cultural de uma sociedade. Eis porque parece lícito sugerir que os arquivos possuem também
um uso difuso, altamente impactante do ponto de vista social.

Além disso, como registra com pertinência Heloísa Bellotto, professora da USP e
especialista em gestão de arquivos, os acervos documentais também podem ser objeto de um
uso popular e individual. Nesse caso, o foco de interesse é informativo e o sujeito que visita o
arquivo é o cidadão comum que persegue ali dados informativos ou comprobatórios de seus
direitos e deveres. Foi com a Revolução Francesa que as populações começaram a ter acesso
aos arquivos públicos, indicando que há uma relação estreita entre a disponibilização da
informação e o fortalecimento da cidadania. No Brasil, o hábeas data consolidado na
Constituição de 1988 e expresso, também, na Lei nº 8.159/91, garante a todo cidadão acesso a
documentos ou bancos de dados que lhe digam respeito (Bellotto, 2002: 169).

Um exemplo bastante palpável do impacto desta Lei para a construção do


conhecimento e para a afirmação da cidadania no Brasil pode ser captado junto ao livro de
Carlos Fico, professor da UFRJ, intitulado “Como eles agiam. Os subterrâneos da ditadura militar:
espionagem e polícia política”. Foi graças à Lei nº 8.159 que o historiador solicitou formalmente
acesso ao arquivo sigiloso da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça, sob
guarda do Arquivo Nacional, conseguindo, a partir desta base documental, construir uma
valiosa narrativa sobre a organização e os procedimentos da polícia política durante a ditadura
militar no Brasil (Fico, 2001: 25).

Em síntese, quando nos remetemos a uma instituição arquivística qualquer, não pode
haver equívoco maior do que considerá-la tão somente pelo prisma administrativo – embora

13
seja o mesmo importantíssimo –, pois os arquivos encerram uma poderosa dimensão social,
exprimem paradigmas simbólicos e representam relações de poder, explícitas e implícitas. A
propósito da submissão da lógica administrativa ao interesse social, como sabem os estudiosos,
o filósofo alemão Max Weber tinha por referencial sempre inquirir qualquer política pública
com a pergunta: que Homem queremos construir no futuro com este investimento, com este
gasto? De fato, parece que toda a institucionalização democrática ocidental contemporânea
pretende, pelo menos conceitualmente, assentar-se sobre esta inspiração. De forma que, ao
pensarmos ou desprezarmos uma política arquivística, precisamos ter em mente que estaremos
legando às gerações futuras o entendimento hodierno e embalado por uma fração de classe
específica do que é memória e do que merece ser lembrado, o que, certamente, constrangerá o
alcance cognitivo daqueles que virão sobre o seu próprio passado e poderá limitar a
compreensão das perspectivas e dos impasses do presente no futuro.

Eis porque para um historiador é, a priori, impossível – assim como para um juiz é
impossível afirmar que um processo que envolve somas de 10 milhões de reais é mais
importante do que aquele que representa disputas em torno de 10 reais – determinar níveis de
historicidade para os documentos. O historiador com consciência apurada da sua
responsabilidade ética sabe que – assim como o juiz não pode decidir que um cidadão tem
mais direito de acessar a Justiça que outro – não pode decidir quais as práticas sociais, quais os
cidadãos, quais as instituições que serão lembrados e quais deverão ser esquecidos. O
historiador consciente de suas responsabilidades éticas, tal qual o juiz que precisa ouvir todas
as partes antes de prolatar uma sentença, sabe que precisa auscultar todos os interlocutores
sociais, captar todas as representações possíveis, antes de propor à sociedade uma
interpretação sobre um determinado fato e, destarte, tem perfeitamente presente que o que
pode ser uma interpretação cientificamente aceita nos dias de hoje, pode não mais sê-lo no
futuro, quando as pessoas poderão descobrir novas fontes, inquirir os documentos de outras
maneiras, sempre à luz das questões que forem mais pertinentes aos dramas próprios de suas
identidades coletivas.

Portanto, a questão que se afigura neste momento é: como agentes de democracia, qual
o direito que temos de legar aos pósteros uma memória seletiva do nosso presente? Quais os
prejuízos intrínsecos a uma opção como esta para o enfrentamento dos impasses que o futuro
trará aos nossos filhos e netos? Existem fatores que devem nos estimular a operar intervenções

14
seletivas nos esquemas de preservação da memória? Quais são eles, como justificá-los
teoricamente e como executá-los metodologicamente sem ofender o interesse público e sem
prejudicar a legalidade, a coerência conceitual e a memória orgânica de uma instituição?

Definindo conceitos e conhecendo estratégias de gestão


Constatamos que a concepção e a implantação de políticas de gestão documental por
parte do Poder Judiciário é um requisito legal, uma prerrogativa garantida por lei e uma
necessidade administrativa. Mas, para além do formalismo jurídico e da urgência
administrativa, uma política eficaz de gestão documental, como vimos, é um instrumento de
reforço da soberania institucional, de fortalecimento do regime democrático e da cidadania,
encerrando, portanto, uma dimensão sócio-política que interessa ao conjunto da sociedade,
pois, se conduzida equivocadamente, esta política pode comprometer estes termos. Verificou-
se, além disso, que o campo de conhecimento científico compreendido pela historiografia e
pelo saber histórico é incapaz de atribuir “valor histórico” a um documento, pois o historiador
confere sentido aos documentos de acordo com a sua proposta de composição de séries
documentais e conforme suas questões analíticas, as quais mudam conforme os tempos, sendo,
inevitavelmente, influenciadas pelos impasses e idiossincrasias da cultura do presente.

Sendo assim, a sociedade sentiu necessidade de desenvolver um saber técnico


especializado para pensar as estratégias de gestão documental. O primeiro curso superior de
arquivologia foi implantado no Brasil em 1974 e, em 4 de julho de 1978, foi sancionada a Lei
nº 6.546, regulamentada em seguida pelo Decreto nº 82.590/78, que dispõem sobre as
profissões de técnico de arquivos e arquivista (Paes, 1991: 19).

Dentre outras coisas, os dois diplomas supracitados determinam que toda instituição
arquivística deverá ser dirigida por arquivista competente, o qual somente poderá ser
substituído por um profissional da área da biblioteconomia naquelas regiões e estados da
Federação onde não houver cursos superiores de arquivologia. No Rio Grande do Sul,
funciona na Universidade Federal de Santa Maria um dos mais antigos cursos do gênero do
País. Recentemente, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul instituiu, também, um curso
superior em arquivologia.

O termo “arquivo” parece ter surgido na antiga Grécia, com a denominação de arché,
atribuída ao palácio dos magistrados, daí evoluindo para archeion, local de guarda e depósito de

15
documentos legais. A moderna ciência arquivística ampliou e classificou o conceito. Entende-
se serem funções básicas do arquivo a guarda e a conservação de documentos com alguma
organicidade conceitual e origem comum, visando a sua utilização para fins administrativos e
históricos. Jean-Jacques Valette (1973), inspirado em Schellemberg, norte-americano
considerado pai da moderna arquivologia, propôs três idades para os arquivos, numa
classificação hoje universalmente aceita: corrente, intermediária e permanente. Arquivos
correntes são aqueles que reúnem a documentação de uso contemporâneo. Arquivos
intermediários são aqueles que abrigam a documentação que já não é mais de uso cotidiano,
mas pode ainda vir a ser consultada para fins administrativos. A permanência dos documentos
nestes arquivos é essencialmente transitória. Finalmente, os arquivos permanentes, ou de
terceira idade, preservam a documentação que perdeu todo valor de natureza administrativa,
mas que deve ser conservada em razão do seu interesse histórico, constituindo o meio de
conhecer o passado e a evolução da cultura de uma instituição ou da sociedade. Recomenda-se
que haja separação espacial entre os arquivos de três idades, ou seja, ainda que abrigados no
mesmo prédio, devem os mesmos ocupar espaços diferenciados (Paes, 1991: 4-6).

Os arquivos de uma instituição podem ser centralizados ou descentralizados. Os


arquivistas são cautelosos em apoiar modelos descentralizados, enfatizando que esta opção
deve ser rigorosamente técnica e deve levar em consideração os hábitos de pesquisa e as
rotinas administrativas da instituição. Além da descentralização física dos arquivos, também é
possível descentralizar o serviço de protocolo dos documentos, repassando esta atribuição às
unidades descentralizadas, o que deve ser tratado com prudência ainda maior, pois, ainda que
possa ser implantada em instituições cuja política de gestão goza maturidade, pode também ser
fonte de graves prejuízos (Paes, 1991: 16).

Todavia, impende registrar que arquivos descentralizados estão mais próximos das
comunidades que produziram os documentos e, portanto, podem ser objeto de consultas mais
freqüentes e podem se prestar mais a fins e usos didáticos do que arquivos centralizados,
aspecto que vem sendo progressivamente valorizado por historiadores e arquivistas (Bellotto,
2000: 158-9).

Quanto à classificação dos documentos, os arquivistas entendem, corretamente, que os


documentos históricos de hoje foram os documentos administrativos de ontem e os
documentos administrativos de hoje serão os documentos históricos do futuro. Nem todos os

16
documentos administrativos são preservados nos arquivos permanentes. Em países como os
Estados Unidos e a França, por exemplo, estima-se que apenas de 5 a 20%, no máximo, dos
documentos administrativos devam ser preservados, sendo os demais eliminados. Um arquivo
permanente deve dividir suas atividades em cinco etapas: 1) a Destinação opera a
transferência dos documentos, o recolhimento, a análise, a avaliação, a seleção e a eliminação
daqueles documentos que não forem considerados como agregando valor de conservação
perene; 2) o Arranjo reúne e ordena adequadamente os documentos; 3) a Descrição e
Publicação respondem pela execução da política de acesso aos documentos para consulta e
pela divulgação do acervo; 4) a Conservação responde pelos trabalhos de proteção e guarda
dos documentos, visando impedir sua destruição pela ação deletéria do tempo, de fungos, etc.
5) finalmente, a Referência responde pela concepção da política de acesso e de uso dos
documentos (Paes, 1991: 73).

A avaliação, seleção, eliminação dos documentos devem ser cuidadosamente pensadas,


planejadas e implantadas. Segundo os arquivistas, “a eliminação não pode ser feita
indiscriminadamente, nem deve basear-se simplesmente em datas e períodos rígidos, ao fim dos quais se possa
destruir tudo”. A tarefa de eliminação consiste em estabelecer um valor conceitual e uma idade
de preservação aos documentos, de acordo com seus valores probatórios e informativos, a sua
especificidade e as suas possíveis destinações. Os chamados documentos “permanentes
temporários”, ao contrário dos “permanentes vitais”, podem, portanto, ter uma caducidade
estabelecida. Esta caducidade não pode, todavia, ser determinada de forma arbitrária. Ela deve
estar expressa numa Tabela de Temporalidade, formatada e aplicada necessariamente por uma
comissão técnica, usualmente denominada Comissão de Análise de Documentos, constituída
por membros efetivos e eventuais da instituição arquivística. Na composição desta Comissão é
indispensável a presença de arquivistas formados em cursos superiores, recomendando-se,
também, a presença interdisciplinar de historiadores, sociólogos, administradores e juristas
(Paes, 1991: 78).

Para que seja aplicada na eliminação de documentos, a Tabela de Temporalidade deve


ser permanente e aprovada por lei, decreto ou resolução competente. Finalmente, aquelas
instituições que tiverem sob sua responsabilidade a guarda de documentação considerada
sigilosa, como é o caso do Poder Judiciário, devem, nos termos do Decreto nº 2.134, de 24 de

17
janeiro de 1997, constituir Comissões Permanentes de Acesso, cujas normas básicas de
composição e funções acham-se regulamentadas.

No que se refere às diretrizes específicas para seleção de documentos, a metodologia


arquivística tradicional admite a eliminação de: a) documentos cujos textos ou elementos
essenciais estejam reproduzidos em outros ou tenham sido impressos em sua totalidade; b)
cópias cujos originais sejam conservados; c) documentos de pura formalidade, tais como
convites, cartas de agradecimento, intimações, etc.; d) documentos que se tornaram obsoletos e
não apresentam interesse para a administração corrente e para o interesse histórico genérico.
De um modo geral, a metodologia tradicional determina a preservação permanente de todos os
documentos patrimoniais originais, todos os documentos que provem como uma instituição
foi organizada e funciona, todos os documentos que possuem valor de informação sobre
pessoas físicas e jurídicas, lugares, edifícios e objetos ou fenômenos. Portanto, muito embora a
metodologia tradicional não cite explicitamente os documentos judiciais, estes critérios
parecem ser plenamente extensíveis aos mesmos (Paes, 1991: 81-83).

Nesse sentido, constatamos que a teoria arquivística tradicional, que, aliás, nunca se
debruçou especificamente sobre a documentação judicial, é igualmente incapaz de definir
“valor histórico” aos documentos, sendo tão somente capaz de estabelecer valores de direito e
de vigência. De tal sorte que, se aplicada a metodologia tradicional, tanto na perspectiva da
ciência histórica, quanto na perspectiva da ciência arquivológica, constata-se ser impossível a
eliminação de processos judiciais, excetuando, quando muito, documentos como embargos
(que reproduzem partes do processo), habeas-corpus ou intimações (documentos de pura
formalidade).

Do exposto até aqui, percebe-se serem dois os níveis de estratégia a serem


considerados da perspectiva da disciplina arquivística: o primeiro respeita à exigência de
convocação da comissão multidisciplinar (com a presença de arquivistas, historiadores, etc.)
para o desenvolvimento de uma tabela de temporalidade; e o segundo diz respeito à
metodologia corrente utilizada para conferir valor aos documentos.

Sendo a sistemática de composição da comissão interdisciplinar e de desenvolvimento


da tabela de temporalidade academicamente aceita e juridicamente garantida pela Lei nº 8.159,
de 1991, e pelo decreto 2.134, de 1997, qualquer procedimento divergente poderá suscitar
interpelações judiciais, por parte de entidades civis da a OAB ou do Ministério Público, ou,

18
mesmo, um cidadão qualquer (no caso de um indivíduo não encontrar nos arquivos judiciais
processos em que tenha figurado como parte, visto que, pelo Artigo 24 da Lei 8.159/91,
parece evidente a responsabilidade do Poder Público, e especialmente do Judiciário, também
na preservação de documentos sigilosos que possam, a qualquer momento, ser requisitados
pelas partes). Ainda que os Judiciários estaduais tenham autonomia para gerir sua política
documental, se assim o quiserem, não resta dúvida de que a legislação federal pertinente
estabeleceu diretrizes conceituais rígidas para o tratamento da matéria, tanto ao nível do
Executivo, quanto do Legislativo, do Judiciário e da iniciativa privada, as quais parecem que
devem ser observadas. Ou seja, parece estar na alçada da jurisdição estadual optar, por
exemplo, por transferir a responsabilidade da gestão documental para o Poder Executivo ou
assumi-la diretamente, ou, ainda, por uma política centralizada ou descentralizada de gestão
documental. Mas não é possível implementar uma política de eliminação de documentos sem
uma tabela de temporalidade concebida por uma comissão especializada, na forma da lei, e
aprovada por autoridade competente. Perpassando a autonomia administrativa da instituição
estarão sempre o bem comum e o interesse social, de sorte que uma política polêmica poderá
provocar a ação das instituições que zelam pela preservação do patrimônio histórico e
documental, bem como pelo fortalecimento da cidadania.

Foi exatamente isto o que aconteceu com a solução pretendida pelo Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, com base no polêmico Provimento nº 556, em 14 de fevereiro de
19974, que previu a eliminação de processos após cinco anos de arquivamento, com exceção

4
PROVIMENTO CSM Nº 556/97.
Regulamenta a destruição física de autos de processo, arquivados há mais de 05 (cinco) anos
em primeira instância, nas Comarcas da Capital e do Interior do Estado.
O Conselho Superior da Magistratura, no uso de suas atribuições legais, nos termos do artigo 216, inciso
XXVI, "b" do Regimento Interno;
Considerando o elevado número de processos definitivamente arquivados na Capital e Comarcas do
Interior do Estado;
Considerando a necessidade de adotar providências que permitam reduzir, com segurança e resguardo, o
número de autos que, arquivados há mais de 05 (cinco) anos, desinteressem às partes, ao Poder Público e às
entidades de preservação histórica;
Considerando o alto custo e dispêndio de trabalho e servidores na manutenção de grande quantidade de
autos findos nas condições acima e a absoluta falta de espaço nos fóruns do Interior e nos arquivos da Capital;
Considerando que expressiva parte deles está danificada e deteriorada pela ação do tempo;
Considerando, ainda, os precedentes deste Conselho Superior e da Corregedoria-Geral da Justiça
constantes dos expedientes CG-83.298/88, G-147.055/88, CG 83.645/88 e do Provimento CSM nº 485/92;

19
Considerando, finalmente, que este Conselho Superior, no Processo nº 25/92 - DEPRI, aprovou em
24.10.1996 parecer da Comissão de Arquivo e autorizou a destruição de processos findos, arquivados
definitivamente há mais de (05) cinco anos,
Resolve:
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Artigo 1º - Os autos de processos judiciais ou administrativos poderão ser eliminados por incineração,
destruição mecânica, transformação em aparas ou por outro meio adequado, findo o prazo de 05 (cinco) anos,
contado da data do arquivamento, segundo os critérios e condições estabelecidas neste Provimento.
Parágrafo único - Ficam excluídos da destruição física todos os autos cujo interesse histórico seja
comprovado por entidade regularmente instituída, ou por deliberação do Conselho Superior da Magistratura.
Artigo 2º - Somente os processos findos, arquivados há mais de 05 (cinco) anos, poderão ser eliminados.
Parágrafo único - Considera-se processo findo aquele definitivamente decidido, com trânsito em julgado,
que não comporte qualquer recurso, bem como as causas resolvidas por acordo de vontades.
Artigo 3º - É lícito às partes e interessados requerer, às suas expensas, o desentranhamento de
documentos que juntaram aos autos, ou a reprodução total ou parcial do feito, por intermédio de extração de
cópias reprográficas, microfilmagem, "escaneamento", leitura ótica, ou qualquer outro sistema disponível.
Parágrafo único - Não sendo possível o atendimento pela Vara, Foro ou Arquivo Central, qualquer das
partes do processo poderá requerer a retirada dos autos, pelo prazo de 10 (dez) dias, para sua reprodução total ou
parcial.
Artigo 4º - Se, a juízo da autoridade judiciária em exercício na Comarca ou Vara no Interior, e da
Presidência do Tribunal de Justiça, na Capital, houver, nos autos, documentos de valor histórico comprovado,
serão eles recolhidos e colocados à disposição da Comissão de Arquivo para as providências necessárias ou
entrega à entidade dedicada à preservação que demonstre interesse.
Artigo 5º - A destruição de autos se fará duas vezes por ano, a cada período de 06 (seis) meses.
§ 1º - A destruição de autos e a periodicidade estabelecida são obrigatórias.
§ 2º - Quando houver algum impedimento ou dificuldade para dar cumprimento ao estabelecido no
parágrafo anterior, o Magistrado ou a Comissão de Juízes deverá, fundamentadamente, pedir autorização ao
Conselho Superior da Magistratura para exceder ou diminuir esse prazo ou suspender o procedimento.
Artigo 6º - Competirá a este Conselho Superior, ouvida a Comissão de Arquivo, estabelecer ou alterar
prazos, critérios e sistemas necessários ao cabal cumprimento deste Provimento.
CAPÍTULO II
DO PROCEDIMENTO NA DESTRUIÇÃO DE AUTOS
SEÇÃO I
Das Disposições Comuns
Artigo 7º - A lista dos processos que serão eliminados será organizada em ordem numérica, segundo o
ano de distribuição.
Parágrafo único - A lista será elaborada em 03 (três) vias.
Artigo 8º - Na elaboração das listas os autos serão identificados apenas pela Vara, Foro Distrital, Foro
Regional ou Comarca, Ofício de Justiça respectivo, ano de distribuição e número de registro, vedada a divulgação
do nome das partes ou a natureza da ação.
Artigo 9º - O Escrivão-Diretor do Ofício de Justiça e o Diretor do Arquivo Geral manterão,
obrigatoriamente, Livro de Registro de Autos Destruídos, que será composto por cópias das relações de
processos destruídos, cabendo à Corregedoria-Geral fiscalizar a sua correta organização e manutenção.

20
SEÇÃO II
Da Destruição de Autos nas Comarcas do Interior
Artigo 10 - Nas Comarcas do Interior competirá ao Juiz Titular da Vara ou, estando vago o cargo de
titular, ao Diretor do Fórum em exercício, onde houver Vara única, as providências para a destruição de autos.
Artigo 11 - O Escrivão-Diretor elaborará lista de processos que deverão ser eliminados, e a submeterá ao
Juiz Titular da Vara.
§ 1º - Conferida e corrigida a lista no prazo de 10 (dez) dias, o Magistrado determinará a publicação do
edital e da lista de processos na Imprensa Oficial uma única vez, com o prazo de 30 (trinta) dias para apresentação
de requerimentos ou reclamações.
§ 2º - Da decisão do Juiz de Direito ou da Comissão de Juízes Corregedores caberá recurso para o
Conselho Superior da Magistratura, no prazo de 10 (dez) dias.
§ 3º - Enquanto o recurso estiver pendente de julgamento os autos não poderão ser destruídos.
Artigo 12 - O ato de eliminação física de autos será presidido pelo Juiz Titular ou em exercício, auxiliado
pelo Escrivão-Diretor e contará, obrigatoriamente, com a presença de 03 (três) testemunhas, dentre autoridades
ou cidadãos previamente convidados, podendo dele participar, querendo, um representante da Subseção da
Ordem dos Advogados do Brasil e de outras entidades de preservação histórica.
Parágrafo único - Do ato lavrar-se-á, no verso da relação de processos destruídos, termo circunstanciado,
certificado pelo Escrivão-Diretor e assinado pelo Juiz Presidente e pelas testemunhas.
SEÇÃO III
Da Destruição de Autos na Comarca da Capital
Artigo 13 - Na Comarca da Capital competirá a uma Comissão de Juízes Corregedores as providências
para a destruição de autos.
§ 1º - A Comissão será composta por dois Juízes designados pelo Conselho Superior da Magistratura,
sendo um indicado pela Corregedoria-Geral e outro pela Presidência.
§ 2º - A designação será feita por um período de 02 (dois) anos, coincidindo com os mandatos do
Presidente e do Corregedor-Geral da Justiça, podendo os membros ser substituídos por ato do Conselho
Superior.
Artigo 14 - O Diretor do Arquivo Geral elaborará lista dos processos que deverão ser eliminados e a
submeterá à Comissão de Juízes Corregedores.
Parágrafo único - Conferida, corrigida e procedidas às diligências necessárias, no prazo de 10 (dez) dias, a
Comissão determinará a publicação do edital e da lista de processos na Imprensa Oficial uma única vez.
Artigo 15 - O ato de eliminação física de autos será presidido pela Comissão de Juízes, auxiliados pelo
Diretor do Arquivo Geral, com a presença de 03 (três) testemunhas, dentre autoridades e cidadãos previamente
convidados, podendo dele participar, querendo, um representante da Ordem dos Advogados do Brasil e de outras
entidades de preservação histórica.
Parágrafo único - Do ato lavrar-se-á, no verso da relação de processos destruídos, termo circunstanciado,
certificado pelo Diretor do Arquivo Geral e assinado pelos Juízes Corregedores e pelas testemunhas.
SEÇÃO III
Do Edital
Artigo 16 - O edital deverá esclarecer quais processos serão destruídos, a Vara, Foro Distrital, Foro
Regional ou Comarca, Ofício de Justiça, ano de distribuição, número dos processos, local, hora e o sistema de
destruição a ser utilizado.
§ 1º - Cópia do edital, com a respectiva lista, será encaminhada à Ordem dos Advogados local, com
antecedência mínima de 15 (quinze) dias.

21
§ 2º - Outra cópia será remetida, com a mesma antecedência, ao Departamento da Magistratura, na
Capital, onde será aberta pasta especial de registro de autos destruídos para cada Comarca e para a Capital.
§ 3º - Se na Comarca houver alguma entidade de preservação histórica, ser-lhe-á, no mesmo prazo,
remetida cópia.
CAPÍTULO III
DOS CRITÉRIOS E RESTRIÇÕES PARA A DESTRUIÇÃO
SEÇÃO I
Dos Feitos Criminais
Artigo 17 - Serão mantidos em arquivo, facultada, oportunamente, a documentação por outro meio, e
posterior destruição, os processos relativos a ações penais em que o réu tenha sido condenado.
Artigo 18 - A destruição física de autos de natureza criminal, segundo a classificação abaixo, fica
autorizada sem necessidade de documentação prévia:
I - inquéritos policiais e termos circunstanciados arquivados (Lei nº 9.099/95);
II - ações penais absolutórias onde não tenha sido aplicada medida de segurança;
III - ações penais onde tenha sido declarada a extinção da punibilidade antes de proferida a decisão sobre
o mérito;
IV - ações penais da competência dos Juizados Especiais Criminais onde tenha havido absolvição,
transação, ou a extinção pela reparação do dano.
SEÇÃO II
Dos Feitos Cíveis e Administrativos
Artigo 19 - Serão mantidos em arquivo, facultada, oportunamente, a documentação por outro meio, e
posterior destruição, os processos relativos a:
I - ações relativas à família, sucessões, união estável entre conviventes e ao estado e capacidade das
pessoas;
II - ações relativas a registros públicos, inclusive processos administrativos;
III - ações relativas à posse, registro e propriedade de bem imóvel, inclusive as de desapropriação,
apossamento administrativo (desapropriação indireta), usucapião, servidão, retificação de área, discriminatória de
terras, divisão, demarcação e adjudicação compulsória;
IV - procedimentos de infância e juventude de adoção, guarda e suprimento do consentimento.
Artigo 20 - A destruição física dos demais processos cíveis e administrativos, qualquer que seja a
natureza da ação, processos incidentes, medidas cautelares, antecipatórias ou conexas, fica autorizada, sem
necessidade de documentação prévia.
CAPÍTULO X
DAS DlSPOSlÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS
Artigo 21 - O Conselho Superior da Magistratura poderá autorizar a entrega de processos que, nos
termos do artigo 2º, deveriam ser destruídos, a Universidades e Faculdades de Direito situadas no Estado de São
Paulo, à Escola Paulista da Magistratura e a entidades de preservação histórica.
§ 1º - Só se permitirá a entrega para fins de estudo e preservação histórica, hipóteses em que na capa do
processo deverá conter a expressão, sob carimbo, "Documento de propriedade do Poder Judiciário de São Paulo -
Preservação obrigatória".
§ 2º - A entidade depositária será responsável pela preservação dos processos, vedada a sua entrega a
terceiros, podendo, contudo, devolvê-los à origem.

22
dos chamados “processos históricos”. Na oportunidade, o Juiz aposentado Fausto Couto
Sobrinho, Diretor do Arquivo do Estado de São Paulo, e a Dra. Zilda Iokoi, Presidenta da
ANPUH (Associação Nacional dos Historiadores), afirmaram categoricamente que os Juízes
“não têm condições técnicas para decidir o que tem valor histórico”. Ambos manifestaram temor de que
interpretações apressadas permitissem a destruição de processos valiosos em todo o Estado.
Segundo o jornal O Estado de São Paulo, Zilda Iokoi sublinhou o exemplo da tese de doutorado
do historiador Sidney Chalhoub, da Universidade de Campinas, que se valeu de processos
judiciais na sua pesquisa para demonstrar que, no Século XIX, muitas escravas conquistaram a
sua liberdade recorrendo à Justiça, junto a qual provavam que seus senhores as haviam

§ 3º - A entrega far-se-á mediante recibo circunstanciado, constando a Comarca, Vara, ano de


distribuição, número do processo, natureza da ação e nome das partes, devendo o Ofício de Justiça ou o Arquivo
Geral manter pasta onde os recibos serão colecionados.
§ 4º - Fica vedada a entrega de processos que corram em segredo de justiça ou nos quais essa
circunstância tenha sido declarada.
§ 5º - Fica vedada, também, a entrega de autos às partes ou a seus advogados.
Artigo 22 - Para os fins dos artigos 17 e 19, o Conselho Superior da Magistratura editará provimento
regulamentando a forma de documentação a ser adotada.
Artigo 23 - Os Ofícios de Justiça e o Arquivo Geral da Capital poderão manter sistema informatizado de
controle de autos destruídos, mantidos os controles mecânicos.
Artigo 24 - Qualquer interessado, mediante requerimento, poderá obter informação acerca de processos
destruídos e acesso às listas que comprovem essa circunstância.
Artigo 25 - Se for possível a destruição dos autos pelo sistema de dilaceração mecânica, as aparas
poderão ser vendidas, revertendo o produto da venda ao Fundo Especial de Despesa do Tribunal de Justiça.
Artigo 26 - As fichas dos processos deverão ser mantidas em cartório, nelas anotando-se o número da
Iista e a data da destruição, servindo de base para futura expedição de certidão.
§ 1º - O mesmo procedimento será adotado no Livro de Registro de Feitos. § 2º - O Escrivão-Diretor
do Ofício de Justiça respectivo deverá acompanhar a publicação do edital na Imprensa Oficial, de onde extrairá os
dados necessários para anotação nas fichas dos processos.
§ 3º - Inexistindo a ficha referida neste artigo, deverá o Escrivão-Diretor confeccioná-la antes da
destruição, anotando os dados essenciais constantes dos autos.
Artigo 27 - A Corregedoria-Geral da Justiça tomará as providências necessárias, no seu âmbito de
atuação, para o fiel cumprimento deste Provimento e adequará as suas Normas de Serviço, segundo o que ficou
aqui estabelecido.
Artigo 28 - Se no primeiro ato de destruição não for possível incluir todos os processos que se
enquadram nas regras e limites deste Provimento, dever-se-á obedecer o critério de iniciar-se o processo pelos
feitos mais antigos.
Artigo 29 - Os casos omissos serão resolvidos pelo Conselho Superior da Magistratura.
Artigo 30 - No exercício de 1997 o levantamento dos processos a serem destruídos deverá ter início no
mês de março e a efetiva destruição poderá se dar até 30 de julho.
Artigo 31 - Este Provimento entra em vigor na data de sua publicação.
(DOE Just., 18.02.1997, p. 01)

23
obrigado a se prostituir, o que era proibido pela legislação civil e escravagista brasileira. Ora, na
época processos envolvendo escravos eram considerados banais pelas pessoas, porém,
justamente por terem sido guardados e preservados, permitiram aos homens do futuro a
reconstituição de importantes traços da nossa cultura social e jurídica. Certamente, estes
processos consultados pelo historiador, lente da academia brasileira, permaneceram
adormecidos nos arquivos por décadas, sem que ninguém os consultasse, até que renascessem
para a sociedade por meio das páginas de um excelente livro de história (O Estado de São
Paulo, 11 de outubro de 1998).

Por sua vez, comentando o mesmo Provimento, a historiadora Ana Maria de Almeida
Camargo, então Presidenta da AAB, esclareceu: "antes de destruir, uma comissão
multidisciplinar deveria dar valores para cada documento, determinando prazos de
conservação e definindo o que pode ser eliminado”. Na mesma linha de opinião, o Diretor do
Arquivo Nacional, com sede no Rio de Janeiro, Jaime Antunes da Silva, afirmou, que “o
critério temporal para destruir processos judiciais arquivados é irrelevante”, acrescentando,
também, que o importante é o “valor atribuído ao documento pela tabela de temporalidade e
não há quantos anos o processo está arquivado”. Compartilhando da posição dos colegas, a
historiadora Rose Marie Inojosa, da Fundação do Desenvolvimento Administrativo do Estado
de São Paulo, não viu justificativa razoável para o estabelecimento de um prazo geral e
arbitrário de cinco anos para eliminar documentos essenciais para a memória da sociedade,
perguntando-se: "por que cinco e não um ou dez ou cem?". Na mesma oportunidade,
finalmente, o advogado José Galante Rodrigues, conselheiro do Instituto dos Advogados de
São Paulo (IASP), condenou duramente o Judiciário: "um povo que destrói a documentação
que contém o drama de suas populações é um povo que destrói seu passado e tende a repetir
desmandos e erros que atrasam o progresso da Nação" (O Estado de São Paulo, 11 de outubro
de 1998).

O principal argumento invocado pela Magistratura daquele Estado para justificar o


Provimento era o de ordem administrativa. O TJ afirmou não dispor de estrutura e orçamento
adequados para administrar e preservar a massa documental que produz. Apenas na Comarca
da Capital eram gastos, em 1998, R$ 439.586,00 por mês no aluguel de quatro prédios para a
guarda do acervo, sem mencionar o gasto com a conservação e acessibilidade da
documentação (O Estado de São Paulo, 11 de outubro de 1998).

24
Não tendo havido acordo entre a comunidade acadêmica, a comunidade de arquivistas
e gestores públicos, de um lado, e a Magistratura, de outro, o impasse teve desdobramentos
judiciais. O Procurador-Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (de
nº 1.919-8/SP) em face Provimento nº 556. Em dezembro de 1998, o plenário do Supremo
Tribunal Federal concedeu, por unanimidade, “medida cautelar para suspender, até a decisão final da
ação direta, a eficácia do Provimento CSM nº 556”. O mérito da referida ADIN ainda não foi
julgado. Posteriormente, a Associação dos Advogados de São Paulo – AASP –, impetrou
mandado de segurança contra a mesma Resolução, junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo.
Denegado na origem, a impetrante obteve, via Recurso Ordinário em MS (de nº 22.824-SP), a
concessão do mandamus, em julgamento unânime assim emendado: “Recurso ordinário conhecido e
provido para declarar a nulidade do Provimento nº 556/97 do Conselho Superior da Magistratura, por sua
flagrante ilegalidade”. O julgamento ocorreu em 16.04.2002 (Facchini Neto, 2003; Tedesco, 2003:
303).

O argumento administrativo invocado pela Magistratura paulista, todavia, é importante


e precisa também ser levado em consideração. Sobretudo porque o custo de armazenagem da
documentação judicial, como assinala o Presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, Desembargador José Eugênio Tedesco, certamente estará comprometendo
investimentos na melhoria da prestação jurisdicional, o que constitui atividade fim do
Judiciário (Tedesco, 2003: 301). Portanto, o custo da gestão documental sem racionalidade
pode estar, indiretamente, prejudicando sobremaneira o interesse social. Além disso, é preciso
avaliar até que ponto a metodologia padrão da arquivística, baseada, sobretudo, nas
experiências com fontes e arquivos administrativos ou privados, pode ser aplicada aos arquivos
judiciais.

Na Justiça Federal, antes que uma comissão pertinente iniciasse seus trabalhos, notava-
se uma carência de políticas de preservação e organização, o que dificultava o acesso às
informações. Em diagnóstico da situação dos arquivos da Justiça Federal, realizado pelo CJF
em 1996, constatou-se um enorme volume de processos nesses arquivos. Grande parte desses
documentos ainda não está cadastrada em sistema automatizado, o que dificulta sua
localização5. O maior problema, no entanto, é a velocidade de crescimento desses acervos,

5
“Grande volume de documentos judiciais e administrativos. Grande volume de documentos não
cadastrados em sistema automatizado ou manual, não sendo, portanto, passíveis de recuperação. Enfileirados, são
1.600 Km de autos findos julgados após 1967. O custo médio de construção para abrigar esse volume de papéis –

25
proporcional à explosão da demanda processual, que resulta em altos custos no aluguel ou na
construção de depósitos para esses documentos (Critérios, 2003).

Temendo repetir os erros cometidos pelo Judiciário paulista e seguindo o estabelecido


pela Lei de 1991, o Conselho da Justiça Federal nomeou, em 1998, pela Portaria nº 159, a
Comissão Interdisciplinar para Gestão de Documentos da Justiça Federal, constituída por
servidores dos TRFs e do CJF, e profissionais das áreas de Arquivologia, Biblioteconomia,
Administração, História, Contabilidade e Direito. A comissão elaborou uma proposta e, a
partir dela, uma minuta de Resolução, que foi disponibilizada em inícios de 2003 no site da
Justiça Federal para receber sugestões de toda a comunidade interessada e foi submetida à
apreciação do Colegiado do CJF. Comentando o resultado do trabalho, Neide Alves Dias de
Sordi, secretária de Pesquisa e Informação Jurídicas do Centro de Estudos Judiciários
(CEJ/CJF) e coordenadora da Comissão Técnica, registrou que “tivemos que inventar uma forma
nova para definir a temporalidade dos processos”, referindo-se ao difícil processo que a Comissão
enfrentou para chegar à definição dos critérios para a seleção, guarda e eliminação dos autos
findos, para os quais a metodologia arquivística tradicional não se revelou eficaz (Critérios,
2003).

Conforme informa o site do Superior Tribunal de Justiça:

“A Comissão selecionou, com base nas competências constitucionais


da Justiça Federal, ações e assuntos que, pela importância para a
sociedade, deverão ser de guarda permanente. Definiu-se que seriam
preservados os processos relativos à primeira fase da Justiça Federal,
de 1890 a 1937, e à segunda fase, até 1967; ações sobre índios; sobre
Direito Ambiental; as coletivas; as referentes à privatização; as
relativas a direitos humanos; as decorrentes de aplicação de tratados
internacionais; as criminais; as de desapropriação e aquelas
precedentes de súmulas. Para a eliminação dos demais processos,
segundo informa Martha Balbi, chefe da Seção de Pesquisa
Institucional do CEJ/CJF e membro da Comissão, os critérios foram
retirados da Teoria Geral do Processo, com base na natureza do
provimento jurisdicional. Aos prazos legais foi somado um prazo
denominado ‘precaucional’. Desse modo, a Comissão chegou a uma
tabela que divide os feitos em ações cautelares, de conhecimento,

140 mil metros quadrados – é equivalente a R$ 68 milhões ou ao custo de construção de 5.000 casas populares.
Não incluindo nesses custos os relativos à manutenção, equipamentos, móveis e recursos humanos.” (Sordi &
Marques, 2003)

26
executórias e um último grupo incluindo embargos e ações especiais.
Para cada grupo, foram estipulados diversos prazos de guarda,
dependendo do provimento demandado, do provimento obtido, da
análise do mérito e do processo vinculado” (Critérios, 2003).

A eliminação de documentos, portanto, obedecendo às orientações da teoria geral de


arquivística e aos preceitos fixados pela legislação pertinente, foi adotada pela Justiça Federal, a
partir de uma tabela de temporalidade desenvolvida para os fins específicos do Judiciário por
uma comissão multidisciplinar. O marco temporal proposto pela tabela foi teoricamente
conceituado e justificado. Tendo em vista a pertinência do argumento de cunho administrativo
e a impossibilidade de conservação da totalidade dos documentos judiciais, todos os processos
iniciados depois de 1967 foram considerados passíveis de eliminação, salvaguardados os
marcos jurídico-legais estabelecidos e aplicado um modelo de seleção por amostragem:

“O procedimento de triagem e de determinação dos prazos de guarda


dos processos deverá seguir o roteiro estabelecido fluxo de avaliação
de autos findos e na tabela de avaliação das ações judiciais. Passado o
período de guarda determinado na tabela, será ainda preservada uma
amostra representativa do universo dos julgados, obtida com base em
fórmula estatística definida no CJF. O inteiro teor de sentenças,
acórdãos e despachos terminativos são considerados documentos de
guarda permanente e, de acordo com a minuta de Resolução, devem
ser recolhidos imediatamente após sua publicação às unidades
arquivísticas dos órgãos onde foram produzidos. Comissões de
avaliação documental, que devem ser formadas em todas as
instituições da Justiça Federal, com a incumbência de coordenar a
aplicação dos critérios propostos para guarda e eliminação dos autos
findos, também poderão selecionar, para fins de guarda permanente,
os autos que pela sua peculiaridade devem ser preservados para
composição da memória institucional. A eliminação das ações judiciais
transitadas em julgado será precedida por publicação de edital de
eliminação contendo os números dos processos e suas respectivas
datas de distribuição e de arquivamento definitivo, publicado com
antecedência de 45 dias da data prevista para a efetiva eliminação. As
partes interessadas nos processos a serem eliminados poderão
requisitar os autos para guarda particular, por meio de petição ao
diretor da unidade administrativa à qual o arquivo esteja vinculado.”
(Critérios, 2003).

27
A propósito da seleção de determinadas ações da competência constitucional da Justiça
Federal para a guarda permanente, privilegiaram-se, justamente, as ações coletivas, pois se
entendeu que elas encerram um conteúdo social amplo, altamente representativo dos
problemas sociais do País, ao qual não é possível determinar, para efeitos de tratamento
arquivístico, nem valor de direito nem tampouco valor de vigência. De fato, as ações coletivas,
produto da tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, são o resultado
da própria consolidação do regime democrático brasileiro e surgiram no País há relativamente
pouco tempo, sobretudo, na década de 1980. Ressalta, portanto, que ainda estamos, no Brasil,
“iniciando o exercício das ações coletivas e nos familiarizando com a idéia de direitos difusos”. (Fontinele &
Domingues, 2001). Além disso, importa registrar que as ações coletivas representam parcela
relativamente pequena do conjunto da massa documental produzida pelo Poder Judiciário, não
chegando, portanto, a significar um escolho dramático para a administração judiciária e para a
gestão documental.

O critério da seleção de documentos pelo método de proporcionalidade e amostragem


foi, sem dúvida alguma, a grande novidade introduzida pela política de gestão documental do
Judiciário Federal. Neste particular, transparece a preocupação em desenvolver um método
que garanta o enxugamento do acervo, levando em conta a pertinência do argumento
administrativo, sem basear-se no critério tradicional de valor. Isto porque, como se verificou, é
impossível para juízes, arquivistas e historiadores determinar arbitrariamente o “valor
histórico” dos documentos. Além disso, o Judiciário Federal mostrou compreensão de que o
arquivo, que nasceu da acumulação natural de documentos, continue representando a
instituição ao longo do tempo, sem mutilação. A aplicação de critérios estatísticos e
matemáticos evita polêmicos e temerários julgamentos de mérito, afastando o risco de
deformar o arquivo e legar para os pósteros uma memória seletiva e incompleta da instituição e
de suas práticas. A aplicação do método da proporcionalidade torna o acervo do arquivo
natural, ou original, mais enfático. Sendo a massa documental enxugada de forma padronizada,
sem deformações, o arquivo torna-se mais eloqüente. Como registra Neide De Sordi, “quem
guarda tudo não encontra nada” (Critérios, 2003; Camargo, 2003; Camargo, 2001).

O método da proporcionalidade não se fixa com base em uma quota arbitrária, como,
por exemplo, X ou Y documentos de um determinado tipo devem ser preservados e os demais
eliminados. A classificação prévia dos documentos por meio de uma tabela de temporalidade é

28
fundamental, bem como é importantíssimo conhecer a variação da quantidade de tipos de
ações em cada ano. Por exemplo, no Estado de São Paulo há períodos em que as ações de
desapropriações têm uma incidência enorme, divergindo da média de processos desse gênero,
o que certamente é um forte indicativo de conjunturas de crise social, dado, este, que não pode
ser desprezado ou perdido pela memória.

Portanto, como afirma Ana Maria Camargo, consultora da Justiça Federal do Estado de
São Paulo,

“por mais contraditório que possa parecer, para que o arquivo


conserve sua polissemia máxima e continue a ser o celeiro onde o
historiador vai colher as informações de que necessita, é preciso
mantê-lo afastado das operações seletivas feitas em nome de supostos
e prováveis ‘valores históricos’. O importante é garantir o seu caráter
orgânico, preservando a capacidade que os documentos de arquivo
têm de refletir, de forma permanente e estável, a instituição que lhes
deu origem” (Camargo, 2003: 334).

Podemos parcialmente acompanhar a aplicação prática dessa estratégia no arquivo da


Seção Judiciária do Estado de São Paulo. A Associação dos Arquivistas do Estado de São
Paulo (ARQ) foi contratada em 2000 pela Justiça Federal para proceder, no espaço de 16
meses, reunindo uma equipe de mais de 30 pessoas, ao tratamento especializado de 500 mil
feitos. Cerca de 100 mil processos anteriores a 1970 foram preservados na sua totalidade. Este
bloco foi submetido à limpeza mecânica, desmetalização, substituição das caixas de papelão,
guarda e classificação arquivística, vislumbrando a criação de um espaço para implantação do
Centro de Memória da Seção Judiciária do Estado de São Paulo. Os demais processos foram
igualmente limpos e cadastrados (Villar, 2001).

Sublinhe-se que, no âmbito da Justiça Federal, cada Tribunal Regional e cada Seção
Judiciária constituiu a sua Divisão de Arquivo e Documentação, nomeando para a sua direção
funcionários efetivos, concursados e formados em arquivologia. Igual caminho seguiu o
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul que criou, em 2000, a Divisão de
Documentação, para a qual foram nomeados arquivistas concursados. A Divisão de
Documentação coordenou os trabalhos de desenvolvimento e aplicação de uma tabela de
temporalidade, cuja concepção contou com o acompanhamento e a consultoria dos

29
historiadores do Memorial do Ministério Público. Como efetivamente sublinha Bertoletti
(2002), “pesquisas sobre a história da instituição são essenciais para que se possa elaborar um programa e um
projeto de preservação dos documentos”. Neste caso, a formatação da tabela de temporalidade
somente foi possível depois de um estudo sobre a evolução institucional do Ministério Público
sul-rio-grandense elaborado pelos historiadores do Memorial. Atualmente, a Divisão de
Documentação vem ministrando palestras para os funcionários de todas promotorias para
explicar o funcionamento e a aplicação da tabela de temporalidade. Além disso, está reunindo
toda a documentação de guarda permanente em um arquivo de instalações amplas e dotado de
equipamentos modernos. O Ministério Público estadual também já constituiu a sua Comissão
Permanente de Avaliação, com base em uma formatação multidisciplinar (Miranda, 2003).

Além da Justiça Federal, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro vem


adotando o método de amostragem. Segundo a tabela de temporalidade elaborada por aquela
Corte, devem ser preservados todos os processos iniciados antes de 1940. O marco
cronológico, todavia, apesar de não estar teoricamente fundamentado e conceituado, não foi
concebido de forma rígida, pois se admitiu a sua alteração após a emissão de relatório com
identificação tipológica dos documentos administrativos e judiciais, que deveria ser
encaminhado às Comissões Permanentes de Avaliação Documental e ao Museu da Justiça,
setores encarregados da seleção dos documentos para preservação na totalidade ou para
aplicação do método de amostragem. Fixou-se uma amostragem de 10% (dez por cento) por
tipo de ação, assunto e ano, para o recolhimento ao arquivo permanente.

Outro aspecto da questão diz respeito ao suporte da documentação e à reprodução do


acervo documental. Em primeiro lugar, o trabalho de reprodução de um acervo, seja por
microfilmagem, seja por digitalização, precisa ser precedido de um trabalho de classificação do
acervo existente e de enxugamento do volume documental, pois se reproduzirmos o caos
documental, teremos sempre o caos no momento da consulta, seja na base impressa ou na base
digital. Portanto, um conjunto documental destinado à microfilmagem ou digitalização precisa
ser conhecido e preparado com desvelo. Esta preparação consiste na classificação, na seleção,
na higienização do documento e na desmetalização (Bertoletti, 2002: 17, 24).

Em seguida, os técnicos recomendam que a reprodução do acervo inicie por aqueles


documentos mais prejudicados pela ação do tempo, tais como manuscritos acidificados,
corroídos pela tinta, os quais precisam e podem ser salvos, ou por aqueles corpos documentais

30
acessados com mais freqüência pelos consulentes. Quanto a esse aspecto, devemos estar
atentos aos livros de registro de consultas, às informações dos funcionários dos arquivos, às
datas comemorativas. Os técnicos não costumam recomendar a reprodução de acervos em
estado avançado de deterioração ou que não são consultados pelos pesquisadores. Portanto, a
reprodução é entendida como uma estratégia de conservação do acervo e de facilitação da
consulta (Bertoletti, 2002: 18, 31).

Com efeito, “a reprodução do acervo não significa o seu abandono”. Os originais reproduzidos
não só não podem ser destruídos como, ainda, devem ser objeto de conservação regular e
sistemática. A eliminação de documentos deve, portanto, ser aplicada a um arquivo antes do
início do trabalho de reprodução e não posteriormente. Os arquivistas também defendem que
cada tipo de documento, cada corpo documental, cada série documental seja objeto de um
projeto específico de reprodução, para que não sejam, por exemplo, reproduzidos documentos
pouco consultados (Bertoletti, 2002: 22).

Arquivistas mais conservadores insistem que o melhor método para reprodução de


documentos permanece sendo o da microfilmagem, pois este suporte garante a preservação
das cópias por 500 anos e constituiu uma solução tecnológica estável, diferentemente daquelas
que se desdobram dos avanços da informática. Todavia, as técnicas de digitalização por meio
do scaner têm se mostrado menos custosas e mais dinâmicas, na medida em que a consulta das
cópias pode ser facilitada. Este é um debate longo e polêmico. A recomendação mais prudente
segue sendo que cada instituição faça a sua opção depois de um cuidadoso debate interno.

De qualquer forma, é preciso que fique bem claro que o custo das técnicas de mudança
de suporte é bastante elevado. Como sublinham Sordi e Marques (2003), “o Arquivo das Índias,
que é um departamento do Arquivo Nacional da Espanha, onde são guardados os documentos do período de
colonização das Américas Espanholas, gastou US$ 10 milhões em 1992 para digitalizar 5% do seu acervo.
Em 1999, gastou US$ 2,5 milhões para migrar de mídia porque os equipamentos atuais não liam os CDs
antigos”. Por seu turno, “no Tribunal Regional Federal da 3ª Região todos os acórdãos foram digitalizados
utilizando a tecnologia de fitas magnéticas”, mídia considerada a mais moderna existente na época.
Todavia, ultrapassados três anos, houve necessidade de conversão de todos os documentos
para mídia ótica, importando em novos gastos. Um dos Tribunais Regionais Federais gastou,
em 1999, R$ 300 mil apenas na digitalização de uma terça parte dos acórdãos (Sordi &
Marques, 2003).

31
Algumas reflexões sobre a política dos arquivos de acesso à documentação ao público
podem ainda ser rapidamente tecidas. Como registramos anteriormente, historiadores
dificilmente consultam um único documento para realizar suas pesquisas. Justamente por
buscar constituir nexos culturais, os historiadores precisam formatar séries documentais. Para
tanto, é recomendável que os arquivos sejam equipados da melhor forma possível para receber
o pesquisador, permitindo-lhe consultar conjuntos de documentos. Eis porque seria muito
importante que o trabalho de classificação dos processos previsse também ementas explicativas
do conteúdo de cada documento (contendo dados tais como comarca de origem, apelações,
juizes, partes envolvidas, tipo de processo, sentença, artigo dos códigos jurídicos), bem como
permitisse aos pesquisadores cruzarem estas informações. Um bom sistema eletrônico de
consulta permitiria, por exemplo, a um pesquisador obter em segundos uma lista de todos os
processos junto aos quais um dado juiz atuou; ou, ainda, obter com um toque de teclado uma
relação de todos os processos iniciados e/ou julgados em uma certa comarca durante um certo
período de tempo; ou, finalmente, obter com facilidade uma relação dos processos que
tematizaram uma certa área do Direito ou que se remetem a algum artigo ou legislação
específicos.6

6
A propósito das dificuldades que o historiador costuma enfrentar para pesquisar em arquivos judiciais,
reproduzimos trecho do relatório da Dra. Marília Schneider (USP) à FAPESP, em 2000, sobre o arquivo judicial
de São Paulo:
“Minha experiência com os arquivos do Poder Judiciário de São Paulo foi bastante frustrante. As dificuldades encontradas
pelo pesquisador começam na burocracia: é necessário obter uma autorização para ser admitido nas instalações do arquivo. O acesso é
controlado pelo TJ, através de um Juiz Corregedor do Departamento Técnico de Primeira Instância- Depri. Trabalhei com pesquisa
entre 1997 e 2000, quando o Depri elaborava um credenciamento com validade de 90 dias. Para requerer o credenciamento, era
necessário justificar a consulta e detalhar quais documentos seriam consultados. Certa vez, pedi o credenciamento, aguardei a semana
de praxe para obtê-lo e fui até o arquivo, nada próximo ao Tribunal. Meu credenciamento autorizava a consulta aos Livros de
Acórdãos da primeira década de vida republicana. Porém, os Livros não estavam no arquivo e a funcionária não sabia aonde eles
poderiam estar. Então, para ‘não perder a viajem’, pedi para consultar os relatórios da Presidência do Tribunal. Porém, meu
credenciamento não mencionava os tais relatórios e o acesso foi negado.
Minha pesquisa coincidiu com a mudança física do arquivo, o que explica parte da desorganização. Até poucos anos atrás,
o Arquivo do Judiciário paulista era um simples depósito de documentos, localizado em um local de acesso bastante difícil, no Bairro
chamado Leopoldina, na zona Oeste da cidade. Tristemente famoso pelas inundações que destruíram as fileiras de documentos
guardados nas prateleiras mais baixas. Naquele depósito a situação era muito precária, tanto no que diz respeito às instalações,
quanto aos inexistentes critérios de catalogação. Existia um índice de documentos regido pela classificação das varas distritais, o que
não ajudava em nada a pesquisa de caráter histórico. Milhares de processos amarrados eram de conteúdo completamente desconhecido.
As pessoas mais qualificadas do Arquivo Judiciário mencionaram a retirada de documentos ‘interessantes’ para exposição no Museu
do Palácio da Justiça ou para exposições em outras casas da Justiça. Não havia qualquer critério, além da opinião pessoal dos
diretores de Arquivo que simplesmente mutilavam as coleções de documentos, sem o menor compromisso técnico ou social.
Atualmente o Arquivo está localizado em um bairro um pouco mais central, no Ipiranga, na Rua dos Sorocabanos, 680
(f: 6161 7040). Estive lá duas vezes e desisti da pesquisa, de forma que não sei como o arquivo está funcionando atualmente. Preferi
trabalhar com documentos impressos que estão disponíveis na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP) ou então, na
biblioteca do Palácio da Justiça. Até onde sei, o Tribunal vinha trabalhando na digitalização dos documentos, mas todo esse esforço

32
Para além do uso acadêmico e investigativo que historiadores e sociólogos fazem dos
arquivos, hoje se admite, como registra o Documento Final do Congresso Patrimônio
Histórico e Cidadania, realizado em São Paulo, em 1992, que “as instituições que atuam na
preservação do patrimônio histórico e cultural devem promover uma política de divulgação das suas atividades e
de esclarecimento de suas práticas e instrumentos de ação a fim de estabelecer amplos canais de comunicação com
todos os segmentos da sociedade, de modo claro e direto” (Bellotto, 2000: 158). Enfim, mesmo um
arquivo centralizado pode desenvolver atividades de extensão para a comunidade, agregando
profundo valor didático e social, pois “há todo um público potencial a conquistar” para os arquivos.
Alguns exemplos nesse sentido seriam: 1) oficinas de preservação e restauração de documentos
para jovens carentes; 2) convênios com os cursos universitários de arquivologia, objetivando a
criação de estágios curriculares (obrigatórios e não remunerados) e/ou extracurriculares
(remunerados) para os estudantes; 3) visitas de estudantes da rede de ensino médio realizadas
ao arquivo e guiadas por arquivistas e funcionários; 4) aulas de história do Judiciário
(explicando o papel da Justiça na nossa sociedade) realizadas por professores especializados no
arquivo para alunos da rede; 5) concursos de monografias para estudantes do ensino médio; 6)
confecção e distribuição de kits pedagógicos, constituídos de reprodução de trechos de
documentos, formando um conjunto elucidativo; 7) exposições históricas de originais do
arquivo.

Uma das experiências acadêmicas de extensão de mais sucesso e repercussão em


andamento no País é certamente o projeto “Oficina de História”, coordenado pela
Historiadora Doutora Maria Luiza Tucci Carneiro, junto ao acervo do Deops/SP
(Departamento de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo), sob guarda do Arquivo
do Estado de São Paulo, por meio de um convênio firmado com a USP e a FAPESP. O
projeto, em execução a sete anos e reunindo, presentemente, mais de 30 pesquisadores,
envolve pesquisas históricas e aulas para estudantes universitários ambientadas no Arquivo. Os
pesquisadores, que fazem desde trabalhos de iniciação científica até teses de pós-doutorado,
vêm produzindo estudos acadêmicos publicados em séries editorais como a Coleção
Inventário Deops, financiada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. A coleção foi
iniciada em 2001, com o livro “No coração das trevas: o Deops/SP visto por dentro”, de autoria de
Maria Aparecida Aquino, Marco Aurélio Vannucchi Leme de Mattos e Walter Cruz Swensson

vinha sendo desenvolvido por funcionários do próprio Tribunal, ou por estagiários. Ao que parece, essa reorganização estava atendendo
a critérios da organização judiciária e não envolvia profissionais da história.”

33
Júnior. Dentre os livros mais recentes publicados estão: “O despertar do campo: lutas camponesas no
interior do Estado de São Paulo”, de Emiliana Andréo da Silva, “Combates pela Liberdade: o Movimento
Anarquista sob a vigilância do Deops/SP (1924-1945)”, de Lucia Silva Parra, “Na Boca do Sertão: o
perigo político no interior do Estado de São Paulo (1930-1945)”, de Beatriz Miranda Brusantin. Outro
exemplo das publicações construídas a partir do projeto é o livro organizado por Maria Luiza
Tucci Carneiro, intitulado “Minorias Silenciadas”, a partir de um seminário acadêmico, que traça
uma instigante história dos métodos de censura no Brasil. Outra faceta visível da pesquisa foi
disponibilizada ao público entre 6 de janeiro e 20 de abril de 2004 na mostra “Livros malditos,
idéias proibidas”, exposta na Estação Ciência, em São Paulo. Todas estas atividades vêm
sistematicamente granjeando espaços destacados na grande imprensa nacional, como a matéria
de capa do Caderno Ilustrada do Jornal Folha de São Paulo do dia 30 de dezembro de 2003
(Aquino et. alli., 2001; Carneiro, 2002; FSP, 30.12.2003, págs. E1 e E2).

Considerações finais
A competência do Judiciário para conceber e executar políticas de gestão documental
não apenas está garantida em lei como parece ser um imperativo administrativo diretamente
relacionado às necessidades do Poder. Não obstante, a autonomia administrativa do Judiciário
neste campo parece dever interagir com as diretrizes estabelecidas na legislação federal
pertinente de 1973, 1991 e 1997 – supracitadas –, bem como dialogar com os saberes
constituídos e organizados da nossa sociedade que respondem pela reflexão em torno da
preservação da memória e do patrimônio, vez que um arquivo encerra, como vimos, delicadas
dimensões social e política, as quais transcendem o cotidiano administrativo institucional.
Fundamentalmente, uma política de gestão documental precisa ser institucionalizada e tratada
de forma técnica e constante.

Parece ser perfeitamente admissível a eliminação de documentos que possuem apenas


valor administrativo imediato, conforme normas previstas em uma tabela de temporalidade
aprovada por lei e proposta por uma comissão pertinente. Por outro lado, a busca de uma
definição científica para o que muitos entendem por “processos históricos” é impossível, como
esperamos ter tido o ensejo de comprovar. Como, entretanto, o argumento administrativo das
Cortes de Justiça do País precisa ser levado em consideração, mesmo porque são
fundamentados em pertinente reflexão de caráter social, gestores públicos, magistrados,

34
historiadores e arquivistas, enfim, devem ser capazes de, juntos, encontrar alternativas
construtivas para o impasse criado. Até o momento, as sugestões e experiências que parecem
ter alcançado melhores resultados e mais aceitação na comunidade científica e junto à opinião
pública são as que optaram pelo método de amostragem.

Quanto à digitalização de um acervo, esta medida tem sido sugerida pelos arquivistas
experimentados como uma forma, não de substituir na íntegra um arquivo em base impressa,
mas, sim, como uma forma de facilitar o acesso aos consulentes a uma parte da documentação
de um arquivo, normalmente muito consultada. Ou seja, todos os especialistas insistem em que
não se pode substituir acervo impresso por acervo digital e que a digitalização deve ser
precedida por um tratamento técnico do acervo.

Finalmente, mais do que nunca, numa época em que o Judiciário vem sendo zurzido
por uma perigosa crise de legitimidade, como sugerem os baixos índices de aprovação que o
Poder goza junto aos cidadãos, os quais foram medidos por recentes pesquisas de opinião que
ganharam as manchetes nacionais, ou, ainda, como indicam os ataques desferidos de parte do
Poder Executivo Federal ao longo do ano de 2003, parecem imprescindíveis investimentos na
formação de uma nova consciência popular sobre o Poder, o que, certamente, passa também
pelo trabalho junto aos arquivos e pela aproximação dos arquivos e da história do Judiciário à
comunidade, pois é por meio deles que se pode, também, ajudar a construir novos formadores
de opinião. Afinal, como disse o célebre publicitário Duda Mendonça a cerca de 800
participantes do 18º Congresso Brasileiro de Magistrados, realizado na Bahia, em outubro de
2003, “é fácil criticar o Judiciário; difícil é defender, porque vocês não dão argumentos (...)”: o Judiciário
“precisa urgentemente aprender a se comunicar com o povo” (Folha de São Paulo, 25.10.2003, pág. A 10).

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37
ENTREVISTA: DRA. EUNICE NEQUETE*

O Programa de História Oral do Memorial do Judiciário do Estado do Rio Grande


do Sul está formando um Banco de História Oral, cujas entrevistas vêm sendo publicadas
nesta revista, como também, na série Histórias de Vida, que reúne coletâneas de
depoimentos. A formatação da rede de depoentes e a formulação dos questionamentos
aos entrevistados coincidem com as demandas animadas pelas pesquisas desenvolvidas no
Memorial. Os depoimentos, depois de degravados pelo Departamento de Taquigrafia e
Estenotipia do Tribunal de Justiça, são textualizados pela equipe técnica do Programa e
devolvidos aos depoentes para eventuais ajustes e aprovação final. Aprovados, os
depoimentos são indexados, de forma a facilitar o acesso aos consulentes e, em seguida,
são devidamente arquivados.

Eunice Nequete formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (UFRGS), em 1974. Ingressou na Procuradoria do Estado, em 1981. Foi
Procuradora-Geral do Estado no período de 1995/98, sendo a primeira mulher a ocupar
este cargo. Atualmente, é professora da UFRGS, onde ministra a cadeira de
Hermenêutica, coincidentemente, a mesma que era de responsabilidade de seu pai, o Dr.
Lenine Nequete, autor de diversas obras, dentre as quais destacam-se as sobre a história
do Direito e do Poder Judiciário.

Memorial - Dra. Eunice, esta entrevista tem dois objetivos: um deles é de


fazermos um registro da sua trajetória no Direito e especialmente junto à Procuradoria-
Geral do Estado, até porque não temos um registro de memória e de histórias de vida de
um Procurador-Geral do Estado. Então, é importante que tenhamos essa vivência. O
outro aspecto tem a ver justamente com registrar algo em memória do seu pai, Dr. Lenine
Nequete, porque o Tribunal de Justiça está organizando uma homenagem ao Dr. Lenine,
daí a importância também deste depoimento da família. Então, podíamos começar pela

* 1 Entrevista concedida aos historiadores Gunter Axt e Márcia de la Torre, em 22 de maio de

2003, na sede do Memorial do Tribunal de Justiça. Degravação feita pela Diretoria de Taquigrafia e
Estenotipia do TJ/RS. Textualiação de Márcia de la Torre.
2

sua escolha, pelo Direito, em que medida ela tem ou não influência da família e da
vivência familiar.

Entrevistada - Ela tem muita influência da família, especialmente do meu pai, que
foi uma pessoa muito inspiradora na minha vida. Acho que só me dei conta do tamanho
dessa influência depois que ele morreu, quando percebi que seu papel não tinha sido
apenas de pai, ele foi um ídolo, um modelo, ele foi o meu formador, foi um mestre para
mim em casa, como o foi também na faculdade, pois lá foi meu professor. Então, foi
bastante determinante, apesar de que eu não tivesse muita consciência disso. Eu me
achava muito independente, muito diferente dele. Fiz escolhas no Direito bastante
diferentes das escolhas dele, e isso me parecia um pouco reativo, como uma filha batendo
pé e escolhendo caminhos independentes dos de seu pai, ou fazendo opções diferentes
das opções do seu pai. Ele trabalhou muito com o Direito Privado. No âmbito público,
trabalhou exatamente com a própria visão institucional do Poder Judiciário, com a história
do Poder Judiciário. Aí, sim, ele optou, um pouco mais adiante na vida, pelo tratamento
de um tema que dizia respeito mais ao “interesse” público, mais àquilo que eu entendia
como “interesse público”. Por outro lado, apesar de ter trabalhado, durante longo
período, tanto com o Direito Civil como com o Direito Penal, com todas as especialidades
no Direito, pois ele era Juiz único na Comarca de Canoas, num aspecto da sua vida, que
não era diretamente ligado à sua vestimenta profissional, meu pai era extremamente
comprometido com questões sociais, com questões públicas, e acho que esse aspecto me
contaminou. O pai dele foi fundador do Partido Comunista, e ele foi do grupo fundador
do Partido Socialista. Isso enquanto não foi Juiz; depois de se tornar Juiz, ele deixou
completamente as atividades políticas de lado, dedicou-se somente à Magistratura, e à
pesquisa de instituições de Direito Privado e de algumas questões mais filosóficas do
Direito. Inclusive ele tem uma obra sobre filosofia. Acho que me influenciei e trouxe para
dentro da minha visão profissional essa mais ligada à política, mas a política com “p”
maiúsculo que o meu pai havia vivenciado, e acabei optando por um direito político,
como foi inicialmente chamado por alguns publicistas o Direito Administrativo. Nasceu
em casa essa opção por ser advogada do Estado. E por que eu queria ser advogada do
Estado? Porque me parecia que já havia instituições suficientes para tratar de interesses
privados, para tratar de interesses que diziam respeito a coletividades, mas não havia
3

instituições suficientemente fortes que garantissem a defesa de determinados interesses


que não podiam ser personificados num processo judicial a ponto de serem ativa ou
passivamente legitimados, senão que através da própria entidade estatal. Quando eu fiz
esta opção, Procurador de Estado era uma função que nem existia ainda tão plenamente
como logo veio a se tornar. Havia uma função de Consultoria do Estado na qual se
examinavam todas as questões de que devesse cuidar o Estado, inclusive aquelas que ainda
que viessem a ser integradas numa lide e das quais a consultoria só pudesse cuidar
preventivamente, mas eu sonhava em fazer defesa judicial do Estado. Por quê? Porque a
verdadeira defesa judicial do Estado não é a defesa judicial dos governos, é aquela defesa
que vai propiciar o contraditório em todas as questões afetas ao Estado, enquanto
representante de todos (eleitores e não-eleitores, crianças, adultos, idosos, contribuintes ou
não-contibuintes, consumidores ou não, colonos ou índios, etc.) e inclusive naquelas em
que se apresentam as grandes opções sociais, nas quais se vai dar concreção, vai tornar-se
realizável uma grande meta político-social. Por exemplo, opções cruciais como: a quem
destinar uma determinada área do Estado do Rio Grande do Sul: para assentamento dos
colonos ou dos índios? Essa é uma opção dramática. E havendo pretensões em sentido
contrário ao pretendido pelo Estado, a quem jamais será admissível a pretensão de
solucionar apenas um dos problemas, mas também aqueles problemas que resultarem
remanescentes após alguma solução parcial, não importando quem possa fazer a
representação judicial daquelas pretensões contrárias, inclusive o Ministério Público, o
contraditório só pode ser plenamente estabelecido se houver legitimidade processual
direta do próprio ente estatal. Especialmente nos países em desenvolvimento os quais são
chamados a prestar praticamente todos os bens da vida a parcelas imensas de sua
população, das mais variadas características sociais e econômicas. Algumas parcelas da
população que eventualmente viriam a ser atendidas por uma determinada ação
administrativa, em algumas hipóteses, não terão como serem representadas e numa
determinada lide, do ponto de vista processual mesmo, e restarão marginalizadas. Elas vão
ser objeto de uma decisão de caráter administrativo, jurídico e político, como no caso em
que o Estado tenha que resolver entre a destinação de uma área de terras ao assentamento
de colonos ou de índios que pleiteiem a mesma.
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Memorial - O exemplo mencionado é particularmente interessante, porque nele


existe, em especial, um confronto entre uma noção de direito coletivo nem sempre
reconhecida no âmbito da nossa tradição liberal individualista do Direito privado. Então,
onde é que esse conflito, essa tensão pode encontrar uma solução? É justamente no plano
da PGE.

Entrevistada - Justamente, em alguns casos só nesse plano, pois já houve tempo


em que o Ministério Público, aqui no Brasil, fazia também essas vezes, mas esta função foi
exatamente derivada da conformação anterior do Ministério Público, para integrar as
funções da Procuradoria-Geral do Estado. E por ser o Ministério Público, no Brasil, em
especial, um corpo que vai atuar pela própria população ou por alguns de seus segmentos,
tendo em vista alguns de seus interesses, sua opção em tal sentido poderia fragilizar a sua
própria função de defesa do ente do qual estaria demandando. E tais definições
institucionais do Ministério Público se tornaram mais possíveis e apropriadas depois de
desfazer-se do encargo da defesa judicial. E estas especializações funcionais repartidas em
duas instituições distintas, embora de idêntica natureza, parece melhor atender as
necessidades de um país como o nosso em que se encontram, de uma parte, grandes
demandas de muitos segmentos da sociedade, e, de outra parte, um ente estatal altamente
demandado por sua população e responsável por atender não só as demandas que lhe são
judicialmente apresentadas, mas igualmente todas as que também exijam satisfação, ainda
que não constituam objeto de uma demanda judicial. Por outro lado, ao tempo em eu fiz
esta opção profissional, a grande bandeira da atuação do Ministério Público era Direito
Penal. Hoje em dia não, mas naquela época era. O Ministério Público que eu queria estava
já muito próximo do que a Procuradoria fazia a título de consultoria e que viria a fazer a
seguir, a título de órgão de representação judicial do Estado, ou seja, como Procuradoria
do Estado, ou seja, defesa judicial do Estado, que jamais pode confundir-se com defesa
judicial de alguma intenção de seus governantes, a qual, em alguns casos, quando muito,
pode significar a representação de alguma questão de governo, na medida em que é por
este que se dá representação legal ao Estado democrático de direito. Isto eu achava
fundamental e pensava ser particularmente necessário. Hoje, vejo que também
poderíamos aperfeiçoar o próprio sistema processual civil para abarcar essas questões de
maneira mais adequada de modo a possibilitar soluções administrativas que não
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representem a simples opção pelo interesse de uma das partes em detrimento de outros
interesses. Essa era uma idéia que o meu pai também tinha, de que o Poder Judiciário, a
hermenêutica jurídica e as instituições do processo estão muito bem aparelhadas para
atender aos interesses individuais e o antagonismo entre eles, mas nem sempre para
resolver o antagonismo entre os interesses do Estado e os interesses individuais. E os
interesses individuais - digo aqui entre parênteses e em negrito - não são interesses
menores, são interesses que podem ser tão públicos e tão maiores quanto os ditos
interesses públicos ou os ditos interesses de Estado e, de outra parte, os interesses ditos
públicos também podem ser de maior ou de menor grandeza e, assim, podem legitimar ou
não a ação estatal.

Memorial - O que seria do cidadão sem o habeas corpus ou o mandado de


segurança?

Entrevistada - O que seria do cidadão sem a garantia do direito à vida e sem a


garantia do direito à liberdade, sem a garantia de seus direitos? Quer dizer, esse é um
interesse público maior, e muitas vezes não compreendemos muito bem o que integra o
conteúdo do interesse público, mesmo se levarmos às raízes a análise desse problema de
interesse. Porque muitas vezes temos necessariamente que entender, dentro do interesse
público, interesses individuais e fundamentais, que só podem ser tratados como interesses
individuais judicialmente, mas como interesses a serem publicamente respeitados no
exercício da administração pública. Podem não ser interesses coletivos e nem interesses de
Estado em si, podem ser interesses individuais e, como tais, habitarem também a órbita de
interesse de Estado. A noção de direito individual é fundamental, alguns deles são
fundamentais e não podem ser divorciados nem antagonizados do e pelo interesse
público. E não parece existir interesse majoritário, e porque e enquanto definido por uma
maioria coletivo, que possa superar em importância direitos individuais. Em compensação,
existem determinadas coletividades que só têm representação por enquanto, ainda, por
meio da própria representação judicial do Estado. Por outro lado, determinadas
necessidades podem não ter ainda aparência de necessidade coletiva e pública, pelo só fato
de que uma dada coletividade ser ainda muito pequena ou não consistir em uma entidade
juridicamente identificável. Então, para mim, isto era e continua sendo fundamental, dar
voz, dar defesa para quem não tinha oportunidade processual mais própria, e continua não
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tendo, porque em alguns casos tais posições são abstratamente imprevisíveis, como, a
título de exemplo, pode ocorrer com a discussão de determinadas licitações, nas quais
tanto se pode questionar se o poder estatal deu ou não tratamento isonômico aos
concorrentes, quanto se o mesmo atende ou não à finalidade pública. E como se poderia
identificar o sujeito titular do interesse na geração e distribuição da energia? Esta
identificação não é possível, e contrasta com aquela propiciada saudavelmente pelo
princípio da sindicabilidade, que atribui a vários representantes legitimidade para agir no
controle da ação estatal, pelo que se impõe a adequada representação e defesa judicial do
ente estatal. E o papel da Procuradoria, nesse sentido, é muito rico, pois é um papel de
consultoria prévia, ou seja, um trabalho de prevenção. Ela pode fazer um trabalho de
prevenção, pode até opinar, por exemplo, pelo desfazimento e a correção de uma licitação
inteira, mas, uma vez implementado o processo licitatório, se ele estiver regular, ele
precisará ser defendido e ser defendido em tempo de a ação governamental servir os
interesses públicos e sociais a que se deve propor.

Memorial - Se todas as partes não estão representadas de alguma forma, e a parte


que a PGE representa, nesse caso, é aquela parte que vem em decorrência da intervenção
do Estado na sociedade, porque, quando o Estado intervém na sociedade, pressupõe-se
que ele esteja executando uma determinada política pública, e essa política pública tem um
fim estratégico, que geralmente tem uma visão de longo prazo, uma visão de longo curso,
que está relacionada com o desenvolvimento da sociedade

Entrevistada - Pode até estar destinada a uma ação que vai atender a uma
população futura ou à possibilidade da formação, de surgimento de uma população futura.

Memorial - Por exemplo: o Poder Judiciário, ou mesmo o Ministério Público,


pela sua natureza, têm que ser conservadores, não têm uma visão, que é prerrogativa do
Poder Executivo, de futuro. O Poder Executivo precisa programar o futuro.

Entrevistada - Além de resolver as questões do presente, tem que projetar-se para


o futuro. O Judiciário até pode ter essa visão, os Juízes podem ter essa visão, mas não têm
que ter essa visão. Há que desenvolver a hermenêutica e talvez alguns institutos
processuais para proporcionar a adequada discussão e solução de determinadas questões
de interesse público. Não faço aqui qualquer crítica quanto à atuação de um ou outro
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Poder, porque não é de qualidade de atuação que estou falando, não gostaria de ser mal
interpretada, mas me parece que há ainda muito trabalho a ser desenvolvido no próprio
âmbito da doutrina jurídica, para que, especialmente as questões ditas de interesse público
possam ser submetidas a um processo próprio de fundamentação, de discussão e de
decisão, e este processo ainda não se encontra plenamente desenvolvido sequer no âmbito
da atuação da administração pública, para a qual é crucial.

Memorial - Nós trabalhamos, aqui no Memorial, com distanciamento em relação


ao objeto. O objetivo é produzir uma reflexão sobre a estrutura do Judiciário e a prática
do Direito, e isso é feito sem uma intervenção institucional, sem uma determinação
institucional.

Entrevistada - Isto pode favorecer o desenvolvimento e o aperfeiçoamento das


próprias instituições...

Memorial - Mas o Ministério Público também tem o seu Memorial e tem a


mesma diretriz conceitual, tanto que algumas entrevistas publicadas pelo Memorial do
Ministério Público têm, inclusive, elementos de crítica e de discussão institucional muito
profundos, e o objetivo é justamente suscitar esse debate. Então, fique tranqüila.

Entrevistada - Uma das minhas principais preocupações com a forma de


tratamento das questões que estamos versando é de que minha manifestação não se
confunda com questões corporativas, porque estou falando de uma opção profissional
minha que vem da adolescência, de meus ideais.

Memorial - Quando foi a sua entrada na PGE? Naquele momento ela se chamava
Consultoria?

Entrevistada - Quando entrei na PGE, já havia um projeto de assumir a defesa


judicial do Estado. Aliás, acho que já havia alguma coisa de defesa judicial, mas ela só foi
transformada em Procuradoria em seguida. Entrei no Tribunal de Alçada em 1973 e, em
1981, entrei na Procuradoria.

Memorial - E do Tribunal de Alçada?

Entrevistada - Fui direto para a Procuradoria.

Memorial - E como foi esse deslocamento? Foi por cedência?


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Entrevistada - Não, fiz concurso. Eu tinha um cargo em comissão no Tribunal


de Alçada e, quando me formei, em 1974, fiquei esperando que saísse o concurso da
Consultoria, que não saía nunca. O concurso foi aberto em 1976, quando eu estava
grávida do meu primeiro filho, e, quando terminou, eu já tinha dois filhos. Foi um
concurso muito demorado, durou de 1976 a 1980. Foi também disputadíssimo, pois havia
pouquíssimas vagas, e, apesar de ter ficado entre os 14 aprovados, até chegar a minha
nomeação, demorou algum tempo. Entrei na Procuradoria em 1981, e, em seguida,
assumiu-se toda a defesa judicial do Estado, tanto é que, nesse período, começamos a
receber lotação no Interior do Estado, e começamos a ser responsáveis pela defesa judicial
nas comarcas do Interior.

Memorial - E qual era e qual é, hoje, exatamente a área de abrangência e a


competência da PGE? Há a Capital, o Interior e as autarquias do Estado, que estão
incluídas nesta defesa, que são uma questão polêmica dentro da PGE. Como funciona.

Entrevistada - Não sei se vou estar suficientemente atualizada para responder


sobre isso, porque no momento está em discussão a apresentação de um projeto de lei
visando a representação judicial de algumas fundações pela Procuradoria. Deixando de
lado, portanto, esta questão, temos que a Procuradoria-Geral do Estado é o órgão ao qual
incumbe a consultoria jurídica do Estado, bem como a sua representação judicial, isto é,
sua apresentação em juízo, quer no polo passivo (defesa judicial), quer no polo ativo,
como autor. Incumbe também à Procuradoria a representação judicial das demais pessoas
jurídicas estaduais dotadas de personalidade jurídica pública, como as autarquias.

Memorial - Incluindo as estatais?

Entrevistada - Não necessariamente. A defesa de algumas estatais deveria , ou


poderia eventualmente ser feita, pelas próprias entidades estatais. Porém, como boa parte
dessas entidades estatais foram criadas por esta entidade matriz, que é o próprio Estado,
para descentralizar determinados serviços que seriam originariamente seus, se a sua defesa,
eventualmente, no entendimento do Poder Público, não está sendo suficiente, ou se ela
deixa de atender alguma diretiva que seria mais própria do Poder Público do que da
própria entidade, nada obstaria que o Poder Público decidisse por assumir essa defesa, nos
termos da lei. Entretanto, esse tipo de decisão, em determinadas hipóteses, deve ser
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tomada por lei. Uma lei deve prever que essa representação judicial é exercida pela
Procuradoria, porque, de regra, e tomando o exemplo das S/As, a representação judicial
das estatais tem que ser delas próprias, porque a Lei das S/As diz quem é o representante
legal da S/A e como a mesma é representada em juízo. É claro que existe, em tese, a
possibilidade de atuação da Procuradoria, pelo fato de que as economias mistas revestem a
forma da S/A, e a própria Lei das S/A lhes dispensa tratamento especial. Por contarem
com capital público e controle acionário do Estado se submetem não só ao Direito
Comercial, mas também ao Direito Público. E assim sua representação judicial poderia ser
cometida à Procuradoria Geral do Estado, nos termos da lei, especialmente quando sua
atuação disser respeito ao interesse público. Não é dever originário da Procuradoria o
exercício direto da defesa judicial das estatais, é necessário que haja questão relevante ao
interesse público, para que a procuradoria possa assumir sua representação em
determinadas questões ou processos, ou que haja uma previsão legal de que essas estatais,
como quaisquer outras entidades da administração indireta, sejam representadas pela
Procuradoria-Geral.

Memorial - E os contratos de concessão de serviços públicos - aí há entidades


jurídicas privadas -, em que medida isso transita também pela PGE? Serviço de
transportes públicos, em que a competência de concessão passa a ser do Estado, serviço
de geração ou distribuição de energia elétrica, serviço de telefonia, isso vem evoluindo
também no entendimento do Direito brasileiro. Houve um momento em que a concessão
para o serviço de distribuição de energia elétrica, e mesmo de geração de hidroeletricidade,
por incrível que pareça, era municipal, e isso no início do século XX. Quer dizer, há toda
uma modificação. Como isso vem desaguar, como isso transita pela PGE hoje em dia?

Entrevistada - Recentemente, foi aprovada uma Lei Orgânica da PGE. Não


tenho presentes todos os detalhes, mas a PGE é a central de um sistema de advocacia
geral do Estado, o que abrange tanto a atividade de consultoria quanto de representação
judicial do Estado. Cada Secretaria de Estado é responsável por uma determinada área
administrativa. Então, vamos tomar esta área da Secretaria dos Transportes como
exemplo. A Assessoria Jurídica da Secretaria dos Transportes, se desconhecer a orientação
oficial do Estado na questão da concessão do serviço de transporte, vai-se reportar
necessariamente à Procuradoria, e a Procuradoria dita a orientação jurídica de toda a
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administração. Então, isso não vai simplesmente se fazer dentro da Secretaria, a Secretaria
vai ter que observar as diretrizes dadas pela Procuradoria.

Memorial - A concessão de benefícios fiscais que possam ajudar a viabilizar


grandes investimentos, em determinados contratos, passa, de alguma forma, pela
Procuradoria?

Entrevistada - Não, todas as questões fiscais têm de ser previstas expressamente


em lei.

Memorial - Antes da Constituição Estadual de 1989, a Procuradoria-Geral do


Estado também defendia os interesses da Assembléia ou a Assembléia já tinha uma
Procuradoria própria?

Entrevistada - A Assembléia tinha uma Procuradoria própria, mas que fazia


apenas a defesa dos atos da Mesa, não da Assembléia enquanto instituição. Hoje a
Assembléia tem sua própria Procuradoria. A Procuradoria tem a representação do Estado
como um todo, incluindo além do Poder Executivo, os poderes de Estado não dotados de
procuradorias próprias.

Memorial - E o Poder Judiciário também, em que medida?

Entrevistada - O Poder Judiciário também. Em questões mais complexas, mais


especializadas de Direito Administrativo, é comum prestarmos consultoria ao Poder
Judiciário, a pedido do Presidente do Tribunal de Justiça, e além disto, sempre que
necessário, defesa judicial.

Memorial - Isto deixou de acontecer depois da Constituição de 1988?.

Entrevistada - Não. Isto deixou de acontecer em relação apenas à Assembléia a


partir de agora, não em relação ao Poder Judiciário.

Memorial - Em questões mais amplas, mais administrativas do Poder, então,


continua sendo representado pela PGE.

Entrevistada - É, a representação é ampla, a representação do Estado e,


conseqüentemente, pode incluir a do Poder Judiciário. A representação da Procuradoria-
Geral não era representação do Poder Executivo.
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Memorial - E, no entanto, tem uma Procuradoria-Geral da Assembléia


Legislativa, que está dentro do Poder Legislativo, mais ou menos com a mesma autonomia
que teria o Tribunal de Contas, mas operando, na verdade, de forma assistencial às
medidas da Mesa.

Entrevistada - Mas tenho a impressão de que agora não fazem só a defesa dos
atos da Mesa...

Memorial - E durante a Constituinte de 1989, como foi a participação dos


membros da PGE?

Entrevistada - Foi bastante intensa. Eu não participava muito, na época. A minha


atividade era de soldado raso, eu fazia consultoria junto à Unidade de Pessoal (unidade
especializada em matéria de direito do trabalho e regime estatutário), atuando apenas
dentro da Procuradoria. Mas os procuradores do estado foram bastante solicitados a
prestar assessoramento nas matérias relativas à nova Constituição em todo o âmbito do
Estado, tendo tido, assim, uma participação bastante ativa junto à própria Assembléia
Legislativa. Além disto foram promovidos alguns encontros e jornadas trazendo
Deputados Federais, Deputados Estaduais e Procuradores do Estado para debater os
temas constitucionais. Isto desde a Constituinte Nacional; com a Constituinte Estadual,
mais ainda, porque aí estávamos no âmbito do exercício de nossas funções. Não tive
participação nesse trabalho, mas assisti a todas as jornadas, às palestras, aos debates e aos
estudos que foram promovidos no âmbito da própria Procuradoria.

Memorial - Parece que existiu uma requisição formal, uma solicitação de parte do
Presidente da Assembléia e do Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da
Assembléia, naquele momento, para que os Procuradores do Estado auxiliassem o
funcionamento das Comissões Constituintes. Então, junto às Comissões, sempre atuavam
membros da PGE, e isso, inclusive, chegou a produzir, num determinado momento, um
estranhamento que verteu para a imprensa também. Tens alguma lembrança disso?

Entrevistada - Não tenho lembrança muito clara disso. Tu dizes estranhamento


entre a Procuradoria da Assembléia e a PGE?
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Memorial - Em algum momento, teria surgido na imprensa alguma indicação de


que havia uma “eminência parda” atuando junto aos gabinetes parlamentares e às
Comissões Constituintes, que seria a PGE. Isso é verdade? Nasceu de uma solicitação da
própria Assembléia e de uma necessidade.

Entrevistada - A PGE era recebida como assessoramento jurídico de alto nível,


do mais alto nível do Estado. Então, não me parecia, pelo menos não cheguei a ouvir
comentários no sentido de que haveria uma ingerência indevida da Procuradoria ou uma
“eminência parda” na construção de um texto constitucional. Não, é que realmente o
trabalho da Procuradoria mais ou menos repetiu os mesmos passos do Conselho de
Estado francês, só não chegou a fazer as vezes de tribunal administrativo. Quer dizer, ele
foi formando a própria noção de Direito Público, de Direito Administrativo estadual que
não existe em compêndio, que não existe em código nenhum. Portanto, o valor do
assessoramento jurídico prestado pelos Procuradores do Estado era realmente
especializadíssimo e era único sobre questões de administração pública estadual, e
evidentemente que nada mais cabível dentro de uma Constituição do Estado do que as
questões relativas ao Estado-membro e sua adequação aos ditames da Constituição
Federal e ao Direito Constitucional afeto à própria atribuição funcional da PGE. Então,
nada mais natural do que chamar os Procuradores do Estado para fazer esse tipo de
assessoria. Mas efetivamente não acompanhei muito de perto tais acontecimentos na
época.

Memorial - O Judiciário, o Ministério Público tinham comissões organizadas


atuando também junto à Assembléia, sobretudo na defesa do entendimento de como
deveria funcionar, por exemplo, o capítulo do Ministério Público. Então, estava lá a
Associação do Ministério Público. Da mesma forma, a Justiça Militar, as justiças
especializadas, todos tinham, de alguma forma, uma representação organizada atuando
junto à Assembléia Constituinte. Muito embora estivesses afastada do fronte, tens alguma
percepção da relação que se dava entre os membros da PGE, naquele momento da
Constituinte, com os membros da Associação do Ministério Público, da Ajuris?

Entrevistada - Aqui temos que distinguir duas linhas de atuação dos procuradores
do Estado: uma, relativa a sua atuação profissional, que não pode misturar os interesses da
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instituição com os seus próprios interesses pessoais; outra, de atuação exclusiva no âmbito
da Associação dos Procuradores, que é a linha de defesa dos interesses da corporação - e
aí se pode chamar de corporação mesmo -, é outro braço da atuação de um Procurador,
mas que não é da Procuradoria. Sempre estive mais por dentro do braço da Procuradoria,
e para nós ficava muito clara a necessidade desta distinção, porque era o que garantia a
confiabilidade do nosso trabalho. Se misturássemos isso, estaríamos correndo o risco de
contaminar o nosso trabalho, e isso sempre foi muito claro, a ponto de termos feito a
defesa, inclusive a pedido do Poder Judiciário, de ações judiciais que seriam contrárias aos
interesses da corporação e que foram muito bem sucedidas.

Memorial - No final, o resultado dessa defesa foi neutralizado pelos sucessivos


mandados de segurança, ou não? Houve uma relação especificamente em torno desta
questão da Lei do Teto - aí já estamos no Governo Britto.

Entrevistada - Mas estou antes do Governo Britto. Essa foi uma questão que
surgiu antes do Governo Britto, acho que foi no período do Governador Collares.

Memorial - É verdade, também houve alguma coisa que foi suscitada.

Entrevistada - Que foi antes do Governo Britto. A questão do teto no Governo


Britto foi versada em Ações Diretas de Inconstitucionalidade. Não me referi a estas,
apesar de que o trabalho da Procuradoria igualmente nestas se realizou com alto nível.

Memorial - Pelas ADIns e pelos mandados de segurança. Alguns mandados de


segurança impetrados pela Associação do Ministério Público ou pela Ajuris foram
julgados aqui no Tribunal. Houve ADIns que foram movidas e que demandaram ao
Supremo.

Entrevistada - É, ações movidas pelo MP, aqui no Rio Grande do Sul.

Memorial - E, nesse caso da Lei do Teto do Governo Britto, como a PGE se


posicionava? Ela tem que defender o Estado.

Entrevistada - Ela tem que defender o Estado. Existe um tipo de interesse que
obrigatoriamente tem de ser representado pelo defensor do Estado, como Procurador do
Estado, que é o interesse do Estado, na forma eventualmente expressa por seu
governante, como no caso em que inicia um processo legislativo ou sanciona uma lei,
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como representante de todos, e enquanto do próprio Estado. Isso tem que ser bem
entendido. E há um tipo de interesse que vai resultar da atuação específica do
representante legal do Estado daquele momento, e este não é o Procurador do Estado.
Um procurador tem que ter muita clareza com relação a isto, assim como qualquer
advogado tem que ter relativamente a seu cliente. No caso da advocacia pública, há que se
ter presente que na maioria esmagadora das ações em que atuam os procuradores não há
qualquer ingerência da vontade de um governante, e, em determinadas ações - em bem
poucas, é verdade - o interesse do Estado é definido pelo próprio governante através de
processos constitucionais e legais. É o povo que elege diretamente, que escolhe o
governante e que escolhe, presumivelmente, o que o governante vai fazer, e, assim, quem
detém a representação judicial do Estado há de acatar e dar defesa a tais iniciativas, nos
termos da lei e observada a legalidade destas, porque aquele representante estará agindo
em nome do Estado, e não em seu nome pessoal, a menos que se invalide sua atuação por
falta de amparo legal. E um advogado do Estado está na representação judicial deste
cliente por força de lei. Na prática pode até acontecer de um Procurador não se sentir
muito inspirado ou preparado para fazer determinada defesa e pode solicitar a designação
de outro, mas a instituição deverá prover de qualquer forma a defesa. Não poderá haver
uma declinação daquela defesa indefinidamente. O que o responsável pela coordenação
dos trabalhos pode fazer é dar preferência a quem com tranqüilidade aceite a defesa que
lhe seja requerida, porque devemos compreender que alguém, estando convencido de uma
determinada questão, encontra e desenvolve melhores argumentos, e o discurso jurídico é
de construção de argumentos capazes de comprovar a juridicidade e a correção de uma
dada questão. Isto favorece o sucesso da atuação. E o sucesso traz grande gratificação
profissional, além de valor à própria instituição. Por outro lado, se a despeito da excelência
do trabalho da representação judicial do Estado, este não é bem sucedido em uma ação,
cabe a seus procuradores a orientação pelo acatamento e cumprimento da decisão judicial.

Memorial - Com certeza. Em tese - isso não aconteceu durante o Governo Britto,
mas já aconteceu na história do Estado -, no caso de o Estado ter uma determinada ação
política, sofrer uma contestação jurídica disso, perder juridicamente esta ação...

Entrevistada - É claro, se o Estado perde em juízo, tem de cumprir a sentença.


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Memorial - O Estado tem de cumprir. E, se o Estado não cumpre, a PGE faz


alguma coisa?

Entrevistada - Aí, sinceramente, a responsabilidade direta pelo cumprimento, em


princípio, não é da Procuradoria-Geral, eis que não é a ela, de regra, que incumbe a
execução, a qual é afeta aos órgãos administrativos. Portanto, descumprimento se houver
será da responsabilidade de quem deixa de cumprir a decisão judicial. A função da
Procuradoria é a de orientar o cumprimento.

Memorial - Aí é inteiramente do Chefe do Poder Executivo.

Entrevistada - Do Procurador jamais se poderá exigir uma orientação em sentido


negativo.

Memorial - Certo. Antes falávamos um pouco da quebra da paridade. A


Constituição de 1988 criou o dispositivo da isonomia, e isso vem sendo discutido desde
então no plano estadual, nas Constituintes Estaduais, nas nossas Constituições e tal. Como
é que nós chegamos a esse momento de quebra da paridade entre a PGE, o MP e o
Judiciário?

Entrevistada - Não entendi como é que chegamos. Tenho a impressão de que o


problema não foi a paridade com os Procuradores, e sim as pretensões que se criaram a
partir dessa paridade dos Procuradores.

Memorial - Sim, porque ela engloba a Polícia Civil, ela engloba ...

Entrevistada - Não, legalmente, ela não englobaria, mas o enfrentamento de tal


questão no contexto desta entrevista talvez seja mais problemático do que construtivo.

Memorial - Não tem problema, muitos falam isso nas nossas entrevistas. Esse é
um tema recorrente nas nossas entrevistas, e existem posições diversas. Há alguns
depoentes nossos que criticam muito o dispositivo da isonomia na Constituinte, e há
outros que defendem. Então, as posições são diversas. É um tema bastante recorrente,
não precisa preocupar-se.

Entrevistada - Preocupo-me, sim, em primeiro lugar porque todos merecem


ganhar bem. Em segundo lugar porque vejo efetivamente na PGE um desmembramento
do MP, pelo que entre ambas as instituições uma grande afinidade. E mais, a PGE ficou
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com um problema muito mais sério com relação aos seus servidores, pois eles faziam um
concurso único para o Ministério Público e para a PGE, e iam alternadamente para o
Ministério Público, e para a PGE. Que pouca sorte tiveram os que foram para a PGE,
pois, de repente, ficaram fora de qualquer política salarial! Eles deveriam ter o mesmo
tratamento remuneratório, porque esse foi o tratamento acenado no concurso público que
fizeram, que foi o mesmo, para os servidores de ambas as instituições. No entanto, pelo
temor dos legisladores de que se confundissem servidores com procuradores, para
assegurar-se da penalização dos procuradores do Estado, penalizaram-se ambos, tendo
ficado tanto servidores como procuradores fora de todas as revisões remuneratórias a
partir de então, fora de toda e qualquer política salarial do Estado.

Memorial - E aí tenho uma pergunta, pois é algo que me suscita interesse: antes
mencionávamos que a PGE tem dois braços, o braço institucional e um braço político,
que seria a associação.

Entrevistada - São braços relativos aos próprios profissionais e não propriamente


da instituição.

Memorial - Mas como se resolve, no plano institucional, um momento em que a


Associação da PGE precisa discutir determinados aspectos com o Governo e se
estabelece inclusive algum tipo de confronto?

Entrevistada - Infelizmente, no período em que fui Procuradora-Geral, a


Instituição em si não tinha autonomia para resolver por si e plenamente todas as questões
de seu interesse e mesmo do interesse dos procuradores do estado. Assim, as
reivindicações eram apresentadas a mim, para que eu as levasse ao Governador, além de
também fazê-las diretamente à Casa Civil. Foi um período bastante difícil neste sentido,
porque muitas vezes fiquei com a missão de estabelecer o diálogo, mas não poderia fazer
mais do que fiz que foi propor as soluções que teriam de ser tomadas pelo próprio Chefe
do Poder Executivo.

Memorial - Essa é uma questão interessante. Lembro, por exemplo, do caso do


Procurador-Geral do Estado e da Justiça, Peri Condessa, que mais tarde veio a ser
Desembargador do Tribunal. No final do Governo Peracchi Barcelos, ele se exonera do
cargo, justamente em função de uma questão salarial, relacionada à classe e tal, e assume a
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própria Procuradoria, independentemente da confiança do Governador, na condição de


membro mais antigo da categoria. Na época, a Procuradoria e o Ministério Público eram
uma coisa só, e o Procurador-Geral era nomeado ao nuto do Governador. É uma situação
interessante, porque é um problema da categoria, da classe, enfim, e o Procurador-Geral
representa, recebe uma negativa muito firme do Governador, e com isso ele se exonera do
cargo. Mas tão logo ele se exonera, reassume a função na condição de membro mais
antigo, porque era o que a lei determinava, e aí independentemente da confiança do
Governador. Estabelece-se mais uma crise institucional naquele momento. Então, é um
caso engraçado, só para ilustrar um pouco essa questão. E fica muito claro, por exemplo,
se o Judiciário ou o Ministério Público entram em confronto com o Poder Executivo em
torno de algum elemento relacionado à classe, à categoria, pois é outro Poder, é outra
instituição. Mas a PGE é uma instituição que está dentro do Estado.

Entrevistada: Tu dizes, se esta instituição entra em confronto com o Governo?

Memorial - É, a diferença de posições. Agora, a PGE tem essa característica,


como o Dr. Peri Condessa tinha, naquele momento, em 1969. Então, é um caso
emblemático.

Entrevistada - Pois é, mas entre o Presidente do Tribunal de Justiça ou o Chefe


do Ministério Público também não haveria uma confusão das questões institucionais com
as causas tratadas pelas Associações respectivas, embora tanto nestes como na PGE
possam ser divergentes ou convergentes os interesses institucionais e os associativos.

Memorial - Mas muitas vezes há uma convergência?

Entrevistada - Sim, muitas vezes há.

Memorial - A gente poderia falar ainda um pouco sobre o Governo Britto. Como
foi o Governo Britto visto da perspectiva da Procuradoria-Geral do Estado? Quais foram
as suas diretrizes fundamentais, quais foram os aspectos mais importantes do trabalho da
Procuradoria?

Entrevistada - A grande massa do trabalho da Procuradoria não aparece. Mas as


grandes causas do período de Governo Britto foram causas extremamente vistosas,
vultosas, nas quais a Procuradoria fez um excelente trabalho. Houve um episódio
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interessante, que ilustra bem o tipo de visão que um advogado tem que ter e que, não
importa se sua posição política pessoal seja favorável ou contrária à do administrador,
como advogado deve agir de acordo com sua função. Lembro que a minha diretriz, a qual
partilhava com os colegas responsáveis pela atuação em juízo naquelas causas vultosas e
vistosas, era a seguinte: a decisão não nos cabe, não temos competência para decidir, a
decisão está tomada. Trabalhar pelo cumprimento efetivo de tais deliberações deveria ser
trabalhar pelo melhor cumprimento das mesmas, de sorte a preservar os interesses
públicos postos a nossa guarda. Com relação, por exemplo, à CRT, que foi uma causa tão
propalada, nela se discutia o valor do patrimônio do Estado, não propriamente do serviço
de telefonia, que não pertence nem pertencia ao Estado. A transferência do serviço de
telefonia para o Estado estava terminando ali, iria reverter para a União, e o Estado tinha
um patrimônio que estava investido naquela sociedade de economia mista, cujo controle
acionário detinha, e que, de alguma forma, se perderia se simplesmente deixássemos
escoar aquele prazo sem fazer aquele bem reverter em favor do próprio Estado-membro e
sem os percalços que poderiam determinar a desvalorização das respectivas ações postas à
venda.

Memorial - Aliás, um pequeno parêntese: este aspecto é muito importante, e acho


que foi muito mal divulgado, na época.

Entrevistada - Muito maltratado, mas deixo claro que minha posição não é nem
de apologia nem de crítica, porque não era política a função da PGE.

Memorial - Todas as pessoas com quem comentei a respeito desconheciam


completamente isso.

Entrevistada - É provável.

Memorial - As pessoas não têm a noção do conceito de concessão do serviço


público e que a concessão é temporária.

Entrevistada - Aquele serviço sempre foi da União. O Estado-membro, quando


recebeu autorização para o prestar, criou uma entidade com patrimônio seu
majoritariamente. A partir de então, tinha um prazo para exploração e prestação do
serviço - se não me engano eram trinta anos - e o prazo terminou. Na verdade, fiquei
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sabendo que aquele prazo estava terminando no curso daquelas ações todas. Para mim, era
fator fundamental para a tomada de qualquer decisão política, mas não importa, a decisão
política não era minha. Tomada a decisão de venda, o que a minha consciência funcional e
profissional determinava? Que eu não permitisse, pela minha atuação, que nenhum
interesse escuso tivesse lugar, ou, melhor, pudesse ter êxito. Então, naquele momento,
tivemos que por em prática não só nossas habilidades profissionais, mas ainda aquelas
habilidades que melhoram as possibilidades de sucesso daquelas, as de estabelecimento de
estratégias. Montávamos as estratégias das ações, as estratégias da defesa, para que não
houvesse o menor lapso de tempo entre uma ação judicial proposta para paralisar a ação
do Estado e a venda, porque quanto mais ações são propostas contra uma determinada
entidade, quanto mais se consegue desgastar a confiabilidade daquela instituição, e mais ela
é desvalorizada. Toda a estratégia foi montada neste sentido: os recursos a serem obtidos
são do povo, foram investidos pelo Estado, pelo povo, para isso, e devem voltar, para os
cofres públicos, com o maior valor possível. Considero que o grande mérito do trabalho
da Procuradoria, naquele período, foi garantir não só a manutenção, como talvez até a
elevação do valor das ações, tanto é que as privatizações daqui saíram supervalorizadas, e
as de fora daqui, nem sempre.... Foi uma coisa surpreendente. Mas o fundamental era
saber do dever de prestar defesa fiel ao Estado, e vislumbrar neste cliente, não o
governante, mas a coisa pública, a coisa do povo e, assim empenhar-se não só em apoiá-lo
a atingir suas metas, mas a atingi-las sem que estas lhe impusessem o depauperamento do
bem público e consequentemente dos valores pecuniários nos quais seria convertido.

Memorial - Fiz questão de fazer essa pergunta justamente porque quem compara
os processos de privatização nos Estados percebe que o daqui tem algumas características:
primeiro, ele foi muito contestado por setores da sociedade civil organizada; segundo,
acho que ele foi muito mal-explicado do ponto de vista de conceito de política pública.
Mas, se formos comparar com outros, acho que ele é um processo de privatização que
atinge um sucesso significativo. Um outro aspecto interessante é que, quando se fala ainda
nas privatizações, fala-se apenas no Governador e quando muito, numa determinada área
do Governo que chamaria a si essa competência e essa tarefa, mas a Procuradoria-Geral
não aparece nesse trabalho para a grande opinião, digamos assim.
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Entrevistada - Não, não aparece. Casualmente, há pouco tempo, li aquele livro


“A arte da Guerra”, muito badalado agora por ocasião da Guerra do Iraque, e nele o autor
diz que o melhor soldado é aquele que vence a guerra, mas ninguém sabe que ele venceu e
nem como ele venceu a guerra. E com relação a esta atuação da Procuradoria, tive um
episódio muito ilustrativo de seu papel, numa conversa com meu pai Nesse ponto, o meu
pai estava muito conflituado comigo naquela atuação, talvez pelo temor de me ver julgada
por posições políticas que poderiam me ser atribuídas e que talvez na sua percepção não
correspondessem às mais adequadas. Ele tinha tido o privilégio de ser magistrado, isto é
de decidir o que estava correto ou não estava correto, dizer o que era direito ou não era
direito - bem entendido, dentro do caso concreto –, e com uma visão social idêntica à
minha. Não tínhamos visões diferentes, mas, lá pelas tantas, ele achou que, na minha
função, eu me estava excedendo e estava contrariando as minhas convicções. Então, eu
lhe disse: “Pai, eu sou advogada, não juíza...” Meu dever de ofício não é julgar...Nesse dia,
de madrugada, conseguimos levantar uma liminar num desses leilões, e a venda sairia na
manhã seguinte por um preço altíssimo. Naquela mesma madrugada , quando ficou
sabendo que se tinha levantado a tal liminar, ele me ligou: Agora eu entendi o que tu estas
fazendo, parabéns!

Memorial - Aliás, eu diria, na minha modesta opinião, passados esses anos,


possibilitou o ingresso de receitas em três vias: uma, pela receita do ativo vendido; a outra,
pelo que se deixou de gastar em uma estrutura operacional que já não se adequava mais ao
estágio que o capitalismo internacional havia atingido, pois, sejam, ou não, as pessoas
favoráveis à globalização, ao liberalismo, enfim, existe uma coisa de lógica de mercado que
precisa ser considerada e que tem um custo operacional, e a sociedade paga. E um terceiro
aspecto é o que isso acaba revertendo em termos de ICMS, hoje em dia, para o Estado.
Na época, essas questões não foram suficientemente debatidas, e a impressão que se tem é
que houve setores da sociedade civil organizada que polarizaram as coisas de uma forma
quase maniqueísta - de um lado, os defensores da sociedade, da Nação, do povo, que são
os de esquerda, e, de outro, os vendilhões da Pátria, os tais neoliberais, os associados ao
Conselho de Washington, etc. No meio disso, não houve mediação, não houve aquela área
cinzenta, que é a área própria da dúvida, onde se estabelece a terceira via alternativa. Por
quê? Gostaria de ouvir a tua opinião.
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Entrevistada - Isto não estava a cargo da Procuradoria, estabelecer esse tipo de


comunicação. Esse tipo de mediação não era nossa competência. Penso que foi uma
característica do Governo Britto ser um pouco fechado. Não sei se dos governantes em
geral, não sei até se não é uma falha da própria comunicação achar que há certos detalhes
que não adianta esclarecer, quem sabe pensando que o povo ou não se interessaria, ou não
acreditaria, ou não entenderia, e são detalhes fundamentais, que são capazes de mudar a
compreensão das coisas.

Memorial - Em momento algum se discutiu isso. Fiquei sabendo depois

Entrevistada - Eu fiquei sabendo, por exemplo, que o Estado não mais poderia
prestar o serviço de telefonia naquele momento, quando tive que me debruçar sobre
aquela papelada toda para coordenar alguns dos trabalhos daquela defesa. Porque não a fiz
diretamente, mas acompanhei o trabalho com os meus colegas, ia designando, chamando
eventualmente alguns colegas, lendo, relendo, ajudando e estabelecendo, principalmente,
as estratégias. A estratégia envolvia tudo, até a hora de sair de Porto Alegre, até o tipo de
entrevista que se daria e o momento em que se daria. E a minha função, nas entrevistas a
imprensa não era defender o Governo, não era explicar o que o Governo estava fazendo,
mas tão somente, dizer, na medida do possível, o que a Procuradoria iria fazer.

Memorial - É muito pitoresca essa relação com o Dr. Lenine, homem de


esquerda, que teve uma contribuição no entendimento do alargamento do papel do Poder
Executivo do Estado na sociedade, e, aí, como entender essa questão. Aquela história
relatada antes, do telefonema de madrugada, agora, entendi...

Entrevistada - Agora entendi o que estás fazendo. Até hoje me emociona ter
recebido aquele telefonema. E graças à competência dos meus colegas conseguimos. E só
teríamos conseguido da forma institucional, porque uma das inspirações que nos movia
era também uma espécie de orgulho institucional, que nos fazia almejar também
comprovar a eficiência da defesa feita por profissionais visceralmente ligados ao seu
representado, de tal sorte que jamais interessasse a proliferação de processos, para que
fossem seus defensores agraciados com índices percentuais de remuneração por processo
defendido, ou mesmo por processo judicial efetivado, cabendo-nos a posição privilegiada
de em determinados casos podermos evitá-lo.
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Memorial - Isso foi uma coisa que em algum momento apareceu, e penso que até
no último Governo apareceu um pouco mais para a imprensa do que no Governo Britto,
que são os contratos que o Estado faz de escritórios de advocacia para defender uma
determinada causa. Como é que se dá a relação desses contratos com a PGE?

Entrevistada - Não sei como é que se deu a relação desses contratos. Sei que a
PGE foi acionada durante o Governo Britto, em função de que havia aberto uma licitação
para contratação de escritórios de advocacia para defesa de uma estatal x, porque a estatal
não tinha quadros suficientes e sequer tínhamos procuradores suficientes, enquanto as
ações eram numerosíssimas e de altos valores. Nesse momento, essa licitação foi
completamente interrompida por essa ação judicial, e acabou não se realizando. Não sei
em que contexto, mas ouvi falar que houve uma contratação recentemente, mas não
soube muito a respeito...

Memorial - Foi uma prática sistemática no último Governo.

Entrevistada - E foi extremamente combatida no período do Governo Britto.

Memorial - Fiz questão de trazer esse aspecto porque me parece uma


contradição.

Entrevistada - E é, pois há certas ações que não têm como ser melhor defendidas
por escritórios particulares, porque só se contrata um advogado quando se tem uma ação
em juízo. Não se contrata um advogado, e um advogado, em princípio, não é constituído,
para evitar ações, quer dizer, até pode ser contratado como assessor para evitar ações, mas
o forte ou a remuneração típica do advogado, é o honorário pela atuação em um processo
judicial. É uma contradição pensar que o Estado vai estar melhor defendido quando
estiver em juízo; de preferência, que não esteja, mas, se estiver em juízo, tem que estar
com a melhor defesa. De preferência, que atue bem, que haja uma consultoria preventiva,
um assessoramento preventivo, um controle interno da legalidade, um controle preventivo
da legalidade, e que o Estado esteja tanto menos quanto possível em juízo.

Memorial - E a fusão da Caixa? Eu prometo não fazer mais muitas perguntas,


porque o nosso tempo já andou bastante, mas são temas interessantes, estamos falando de
assuntos que foram muito debatidos na imprensa, mas que têm um lado, uma perspectiva
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que apareceu muito pouco. A fusão da Caixa com o Banrisul, por exemplo, foi outro tema
impactante, na época, com mobilização de parte da Assembléia. Lembro do ex-
Governador Leonel Brizola dando conferências na Assembléia Legislativa e reunindo toda
a imprensa para contar como ele havia fundado a Caixa e que era um verdadeiro crime a
sua extinção naquele momento. Enfim, uma posição política legitima. A PGE se envolveu
com alguma coisa nesse processo?

Entrevistada - Não. Do ponto de vista de tomada de decisão, não houve


envolvimento nenhum.

Memorial - Mas e a execução legal, jurídica, da decisão?

Entrevistada - Aí, sim, era papel da PGE fazer valer, porque normalmente a PGE
é chamada ou para defender ou para entrar em juízo. Nesse caso, não foi para entrar em
juízo, foi sempre para defender ou orientar a execução da decisão administrativa. Em
todas essas ações emblemáticas do Governo Britto, a PGE atuou para promover a defesa,
muito embora, naquele período, a PGE tenha sido bastante pró-ativa. Costumávamos não
só promover as ações de cobrança e de execução das dívidas fiscais, mas também
responsabilizar determinados particulares ou determinadas empresas que talvez não
esperassem ser chamadas à responsabilidade por um órgão público. Também temos essa
liberdade, a Procuradoria pode sinalizar a possibilidade, aliás, em muitos casos ela sinaliza,
e na maior parte das vezes, entra diretamente com ações, mesmo que o administrador não
determine isso, porque esta iniciativa é normalmente da própria instituição. Em um bom
número de ações, inclusive, recebemos até consultas de alguns políticos sobre a
possibilidade de não propor ou postergar a propositura de certas ações, ou acordar. Aí,
temos o poder, o dever e a liberdade de dizer não, porque a não propositura de
determinadas ações pode significar a disposição de um interesse público, e felizmente
nossos políticos tem sido bastante sérios e tem sabido acatar a decisão da PGE, que no
particular detém efetivamente competência para tanto.

Memorial - Como foi ser a primeira mulher na Procuradoria- Geral do Estado?

Entrevistada - Não sei. Senti que muitas pessoas tentaram identificar detalhes
mais femininos na minha atuação, mas digo com honestidade que não consigo ter essa
ótica porque nunca fui homem, e também nunca me discriminei como mulher, ou seja,
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como um ser desigual aos demais, a minha ótica é essa. Diziam-me que as mulheres são
mais conciliadoras, mais dedicadas. Não sei. Acho que foi diferente porque causou algum
impacto o fato de uma instituição já razoavelmente antiga não ter tido até então uma
chefia feminina, mas foi o impacto em si que fez um pouco de diferença, não o fato de eu
ser mulher. Isso não deve ter pesado tanto. Com relação à recepção que tive por parte dos
que não me conheciam, aí sim poderia apontar alguns indícios de que haveria uma
consideração diferente daquela que eu podia observar com relação aos demais. Mas, quase
sempre, até me omito de dizer como é ser mulher no meio público, porque acho muito
pouco educativo dizer o que realmente se sente, em determinadas, e felizmente poucas,
ocasiões, sendo mulher, em determinados ambientes mais discriminatórios. Prefiro
lembrar das ocasiões já mais comuns de tratamento não discriminatório e, portanto,
respeitoso, e afirmar que...

Memorial - Que não há diferença nenhuma ...

Entrevistada - Mas, antes de eu ser mais conhecida, a coisa mais comum era eu
chegar em um gabinete qualquer e ser tratada como se eu fosse de posição inferior a dos
demais que estivessem presentes e fossem ou homens ou mesmo mulheres mas já
conhecidas. Não posso comparar, é ofensiva a comparação com qualquer outra pessoa de
posição inferior, mas me tratavam como uma guria, mais uma carinha ”no pedaço”, me
tratavam por “tu”, “meu bem”, quer meus interlocutores fossem homens ou mulheres.
Por sorte minha, a maior parte dos ambientes que freqüentei foi extremamente civilizada.
Mas em ambientes menos acostumados ao trato com profissionais do sexo feminino, o
tratamento era contrastante: qualquer outra pessoa do sexo masculino era recebido como
“Chefe! Mestre! Comandante!”. Enquanto eu, seria “E tu, heim, o que tu queres?” Mas
isto está se tornando cada vez mais raro. E é por isto que agora até me animo a falar sobre
o assunto. Antes não admitia expressamente isto para ninguém, porque achava
deseducativo. Naquele momento, eu achava que era deseducativo, agora acho educativo
lembrar que tais fatos começam a ser história passada, superada, enfatizando que o
tratamento que se dispensa a pessoas conhecidas ou desconhecidas jamais pode ser
discriminatório e desqualificador. É sempre preferível senhora ou senhor a ”fofa” ou
“Chefe”!
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Memorial - Só para servir um pouco de consolo, no depoimento da primeira


Promotora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, ela conta a dificuldade
na mudança de paradigma. A primeira Comarca que ela assumiu foi a de Erechim. Ela
atendia às partes, e, no dia seguinte, estava a pessoa que ela havia atendido pegando ficha
para ser atendida novamente dizendo: “Ontem, eu fui muito bem atendido por uma
mocinha muito simpática, nunca fui tão bem atendido no serviço público, mas eu queria
falar com o Promotor hoje”.

Entrevistada - É bem assim.

Memorial - E isso é relativamente recente, não tem trinta anos que aconteceu
isso.

Entrevistada - É incrível.

Memorial - Mas vamos falar um pouquinho do Dr. Lenine ainda. Como era o
convívio com o Dr. Lenine, que é realmente uma lente no meio jurídico do Rio Grande
do Sul? Conversávamos antes a respeito, e acredito que ele foi uma das poucas pessoas no
Brasil que se dedicou, efetivamente, ao estudo da história do Direito e do Poder Judiciário,
tema tão pouco abraçado pelos historiadores e pelos juristas. Como era esse convívio e
essa participação com ele?

Entrevistada - Sempre me dei conta do valor desse convívio, mas ele ficou muito
mais evidente quando não o tinha mais e vi o quanto era difícil encontrar alguém com
quem discutir o que costumávamos discutir. Também fui percebendo o quanto o pai
estava à frente do seu tempo. Ele era uma pessoa de excelência no seu serviço, na sua
função de Juiz, mas era também de extrema excelência do ponto de vista acadêmico. Ele
sabia o que era pesquisar, ele sabia o que era estudar, coisa que a grande maioria dos
nossos profissionais e dos nossos estudantes, até pouco tempo, não sabia, especialmente
na área do Direito. Lembro-me de um determinado momento na minha vida, em 1992,
em que ele me pediu que eu fizesse concurso para a Universidade. Eu lhe disse que não
queria mais lecionar, havia lecionado na Unisinos e fora um período muito cansativo para
mim, pelo acúmulo de funções, eu não queria voltar. Ele, então, disse que, depois que eu
me aposentasse, seria bom voltar para a Universidade como Professora, poderia me
dedicar a ler, a estudar. Como ele estava pedindo, eu faria. Foi um concurso bem
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concorrido. Fui aprovada, fui nomeada e comecei a lecionar Hermenêutica, que foi a
cadeira que ele lecionou por último na UFRGS. Meu pai começou como Professor de
Introdução à Ciência do Direito na UFRGS em 1970, depois de ter fundado a Faculdade
de Direito da Unisinos e de ter sido seu Diretor e Professor. Ele entrou na UFRGS, em
1970, e foi meu primeiro professor na Introdução à Ciência do Direito. Quando eu falei
que estava apavorada, pois havia feito concurso para Direito Administrativo e teria que
lecionar Hermenêutica, ele disse: “Mas é o que se faz a vida inteira. Hermenêutica é o que
somos obrigados a fazer a vida inteira”. E ele efetivamente fazia. Ele não lia simplesmente,
ele lia e estudava o que lia. Assim como o Direito e seus processos, ele estudava Eça de
Queiroz. Também apreciava música erudita, além da literatura. E tudo parecia ser uma
forma de exercício de sua capacidade de perceber e compreender. Somente depois que ele
morreu, descobri que um instituto de hermenêutica jurídica dos Estados Unidos, tem
departamentos dedicados à interpretação literária, à música e os seus integrantes são
juristas. Meu pai, portanto, estava alguns passos à frente do que eu podia entender. Em
certa ocasião conversamos sobre algo que uma vez ouvira alguém dizer dele: que ele seria
um pouco dispersivo por gostar de coisas tão diversas como literatura, direito e música. E
ele comentou que quem pensasse que literatura, direito e música, seriam inconciliáveis,
não se dava conta de que a literatura e a música seriam atividades que contribuiriam ao
desenvolvimento da capacidade de interpretação da lei. Ninguém se dedicaria à
interpretação da lei sem conhecer a língua, sem literatura, sem refinar sua sensibilidade.
Realmente, em certas outras especialidades é até mais evidente a preocupação com o
desenvolvimento das habilidades necessárias ao exercício da função profissional, como,
por exemplo, quantos cirurgiões plásticos, hoje, fazem artes plásticas, ou alguma outra
atividade para manter as mãos aptas para o seu trabalho? O pai, portanto, foi acuradíssimo
em tudo o que fez, e dotado de um senso de justiça extremamente desenvolvido. Logo
depois que ele fez concurso para Juiz, começou a atuar em Nova Prata e teve um caso
muito difícil de usucapião. A partir daí, ele se dedicou de corpo e alma àquele assunto e
acabou escrevendo o seu primeiro livro sobre o tema. Ele sentiu necessidade de pesquisar
profundamente em função dos casos difíceis que enfrentou e não em função de uma
atividade exclusivamente acadêmica.

Memorial - Esse livro não conheço.


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Entrevistada - É o primeiro dele, “Da Prescrição Aquisitiva – Usucapião”. A


primeira edição é de 1954, ele era Juiz recém- nomeado, havia-se formado em 1947. Em
função daquele caso de Nova Prata, ele acabou fazendo essa pesquisa e, em 1954,
publicou o livro. Ele foi para mim um convívio privilegiado, e foi privilegiado também
pelo fato de ele ser um Juiz bastante original. Isso eu resgatei em entrevistas com amigos
e colegas dele. Inclusive ele teve alguns problemas no início da carreira por sua
independência, seu senso de justiça e sua coragem, tanto que proferiu uma decisão
contrária à ordem de um padre que não permitira o enterro de uma criança por não ter
sido batizada, determinando que a criança fosse enterrada. As suas sentenças eram
brilhantes, tanto é que, às vezes, eram reformadas e finalmente acabavam se tornando
direito sumulado no Supremo Tribunal Federal - na época só havia o Supremo. Ele era,
realmente, uma pessoa diferenciada e, como tinha grande interesse pela pesquisa, pela
Universidade, acabou se resignando em ter uma carreira menos longa, pois ele não
chegou a Desembargador. Assim que ele completou o seu tempo como magistrado, se
aposentou e passou a dedicar-se somente à vida acadêmica.

Memorial - Por que ele não ascendeu ao desembargo? Ele chegou a integrar listas
de promoção, ou não?

Entrevistada - Isso eu não sei dizer. Sempre tive dúvidas. E ele não falava a
respeito. Não sei se teria sido pelo fato de ele ter tido alguma atividade política antes de
ingressar na carreira, se pelo fato de se chamar Lenine e ser filho do Fundador do Partido
Comunista...Talvez estes fatores não fossem muito favoráveis a ele, de acordo com a ótica
da época.

Memorial - Dra. Eunice, a senhora de deixar mais alguma coisa consignada?

Entrevistada - Apenas gostaria de deixar a relação dessas obras que ele publicou:
“Da prescrição aquisitiva (Usucapião)”, “Da passagem forçada”, “O Poder Judiciário no
Brasil” (em 4 volumes), “O Poder Judiciário no Rio Grande do Sul”, “O Escravo na
Jurisprudência Brasileira”, “Filosofia e História”, “Usucapião Especial” e “Itinerário
Poético de Eça de Queiroz”, entre outras. Pouca gente sabe que o pai, além de bacharel
em Direito, era Bacharel em Filosofia e Livre-Docente em Direito.
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Memorial - A súmula teológica de São Tomás de Aquino. De certa forma, ele foi
um continuador do trabalho que o Dr. Câmara fez.

Entrevistada - Foi, e, apesar de serem politicamente opostos, eram amicíssimos


os dois.

Memorial - Que interessante os dois completamente opostos politicamente e


muito amigos.

Entrevistada - Eles tinham um grande respeito um pelo outro. Ainda com


relação às obras, encontrei o manuscrito de um artigo sobre “A Tragédia da Rua das
Flores”, do Eça de Queiroz. Foi publicado apenas sob a forma de artigo em uma revista,
não sei qual. Comecei a procurar em bibliotecas universitárias as suas obras, porque a
localização dos seus manuscritos na sua biblioteca levaria muito tempo. A biblioteca que
mais tem trabalhos dele é a Biblioteca da Unisinos. Foi lá que encontrei esse trabalho
sobre “A Tragédia da Rua das Flores”, que é uma obra póstuma do Eça de Queiroz, e que
teria confirmado sua tese sobre o conflito edípico deste.

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