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DIREITO DO

CONSUMIDOR
Princípios gerais
do Direito do
Consumidor
Camila Possan de Oliveira

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Diferenciar princípios de regras.


> Aplicar os princípios no caso concreto.
> Demonstrar por que o Código de Defesa do Consumidor é considerado uma
Lei Principiológica.

Introdução
A defesa do consumidor é um princípio constitucional. Atualmente, é possível
afirmar que todos que vivem em sociedade são consumidores de pelo menos um
produto ou serviço. Assim, a tutela desse tipo de relação é imprescindível, motivo
pelo qual ela foi prevista pela Constituição Federal (BRASIL, [2020]). A cada dia,
novos produtos e serviços são colocados no mercado e o consumo é massificado.
Por isso, o cuidado com os consumidores deve ser constante, a fim de evitar a
lesão à integridade física e moral do sujeito que consome.
Neste capítulo, você vai estudar a diferença entre os princípios e as regras.
Além disso, vai ver qual é a importância dessa diferenciação para o Direito do
Consumidor. Por fim, vai conhecer os princípios previstos no artigo 4º do Código
de Defesa do Consumidor (CDC) (BRASIL, 1990) e ver por que essa lei é considerada
principiológica.
2 Princípios gerais do Direito do Consumidor

Princípios ou regras: o que importa ao


Direito do Consumidor?
Antes de adentrar especificamente no estudo do Direito do Consumidor, é
importante entender a distinção entre os princípios e as regras. Essa distinção
foi imposta pelo pós-positivismo jurídico, que tem como importante teórico
Robert Alexy.
O pós-positivismo é um pensamento jusfilosófico que surgiu para apro-
ximar o Direito da moral (FERNANDES; BICALHO, 2011), superando o até então
aplicável positivismo jurídico. Robert Alexy foi um dos principais teóricos a
escrever sobre a aplicação do Direito sob esse novo viés. Para ele, quando
há um direito fundamental garantido, por trás dele há uma norma que o
garante (ALEXY, 2008).
Assim, é preciso entender a estrutura das normas de direitos fundamentais
por meio da distinção entre regras e princípios. De acordo com Alexy (2008,
p. 85):

Essa distinção é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fun-


damentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos
direitos fundamentais. Sem ela não pode haver nem uma teoria adequada sobre
as restrições a direitos fundamentais, nem uma doutrina satisfatória sobre co-
lisões, nem uma teoria suficiente sobre o papel dos direitos fundamentais no
sistema jurídico.

Antes de pensar nas diferenças entre as regras e os princípios, precisamos


nos atentar às suas similaridades. Os princípios e as regras, de acordo com
Alexy (2008), são normas, pois nos dizem o que deve ser. A diferença entre eles
é que cada um é uma espécie diferente de norma. Para Fernandes e Bicalho
(2011), se um julgador, ao se deparar com um caso em concreto, não encontra
regra aplicável, ele deve, então, decidir de acordo com os princípios. Desse
modo, as regras seriam mandamentos de “tudo ou nada”, pois conforme for
acontecendo algo permitido ou proibido por uma regra, ou ela é válida e
será aplicada ou ela não é válida e não será aplicada. Já os princípios apenas
servem de base para as decisões.
No entanto, algumas vezes é possível que as normas de um determinado
ordenamento jurídico entrem em conflito. É o caso em que, de acordo com
Amorim (2005, p. 126), as duas normas, “aplicadas independentemente, condu-
zam a resultados incompatíveis, ou seja, pode haver dois juízos de dever-ser
contraditórios. Mas a diferença está na forma como solucionar o conflito”.
Havendo um conflito entre as regras de um ordenamento jurídico, é preciso
Princípios gerais do Direito do Consumidor 3

estabelecer um critério para a sua resolução. Assim, entramos nos conceitos


de cronologia, hierarquia e especialidade.
Conforme Bobbio (1995), para usarmos o critério cronológico, devemos
entender que prevalece a norma posterior, conforme o brocardo lex posterior
derogat priori (a última lei derroga a primeira). Dessa maneira, a lei posterior
seria uma verdadeira expressão da vontade do legislador para o progresso
jurídico, assim como ocorre com uma pessoa que emana dois atos de vontade,
de forma que será válido o último proferido. A lógica para o entendimento de
tal critério é simples: "Presume-se que o legislador não queira fazer coisa inútil
e sem finalidade: se devesse prevalecer a norma precedente, a lei sucessiva
seria um ato inútil e sem finalidade” (BOBBIO, 1995, p. 93).
Há também o critério hierárquico para a resolução do conflito estabelecido
entre as normas. Isso é feito de acordo com o uso do critério lex superior
derogat inferior (a lei superior derroga a inferior). Assim, por exemplo, a
promulgação de uma emenda constitucional, por ser a norma suprema de
nosso ordenamento, seria capaz de derrogar normas infraconstitucionais em
sentido contrário. Um caso muito conhecido é o da Emenda Constitucional
nº 11 de 1978 (BRASIL, 1978), que revogou atos institucionais que contraria-
vam a Constituição Federal vigente na época, inclusive AI-5, tão comentado
atualmente pela mídia.
O critério da especialidade prevê que lex specialis derogat generali (lei
especial derroga a geral) e pode ser explicado da seguinte forma: "a lei es-
pecial é aquela que anula uma lei mais geral, ou que subtrai de uma norma
uma parte da sua matéria para submetê-la a uma regulamentação diferente"
(BOBBIO, 1995, p. 96). Nesse caso, um exemplo de lei geral é o Código Civil
Brasileiro (BRASIL, 2002), enquanto o CDC é uma lei especial.
Além disso, é possível que na aplicação dos princípios ocorra colisão
entre eles. Nesse caso, Dworkin (2002) ensina ser necessário que o julgador,
ao colocar fim ao conflito, considere a força relativa de cada princípio posto
em choque. Nesse caso, não significa se tratar de “uma mensuração exata”,
mas sim de uma ponderação efetuada naquele caso em concreto. Assim,
não será revogado nenhum princípio, mas será apenas determinado qual vai
prevalecer em razão das especificidades do caso concreto.
Nesse sentido, para a análise de qual princípio deve prevalecer em caso de
colisão, deve-se considerar a máxima da proporcionalidade. Tal máxima pode
ser simplificada como a necessidade de efetuar-se um sopesamento entre
os princípios diante das possibilidades jurídicas apresentadas (ALEXY, 2008).
Agora que vimos a diferença entre os princípios e as regras e descobrimos
como solucionar conflitos entre regras e colisões entre princípios, vamos
4 Princípios gerais do Direito do Consumidor

estudar a seguir os princípios consumeristas dispostos no CDC. Essa lei


com natureza principiológica foi criada para proteger o elo mais frágil das
relações de consumo.

Princípios consumeristas do art. 4º do


Código de Defesa do Consumidor
A Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (BRASIL, 1990), dispõe sobre a pro-
teção do consumidor e é conhecida como Código de Defesa do Consumidor
(CDC). Essa lei colocou a sociedade de consumo em um patamar diferenciado,
tutelando os direitos dos consumidores e prevendo obrigações aos fornece-
dores. A lei passou a tratar os diferentes participantes da relação de consumo
conforme suas desigualdades para, assim, alcançar a efetividade da justiça.
No Título I do referido diploma, temos um capítulo exclusivo ao tratamento
da Política Nacional das Relações de Consumo. Dentro desse capítulo, encon-
tramos o artigo 4º, que prevê uma série de princípios a serem observados no
momento da efetivação das relações de consumo (BRASIL, 1990). Tais princípios
têm como objetivo o estabelecimento da harmonia entre as partes (FILOMENO,
2017). Veja a seguir a disposição da lei (BRASIL, 1990, documento on-line):

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento
das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança,
a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida,
bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os
seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:
a) por iniciativa direta;
b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;
c) pela presença do Estado no mercado de consumo;
d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade,
segurança, durabilidade e desempenho.
III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e
compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvi-
mento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se
funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na
boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;
IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus
direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;
V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de quali-
dade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos
de solução de conflitos de consumo;
VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado
de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos
Princípios gerais do Direito do Consumidor 5

e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que


possam causar prejuízos aos consumidores;
VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;
VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.
IX - fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consu-
midores; (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)
X - prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão
social do consumidor. (Incluído pela Lei nº 14.181, de 2021)

O caput desse artigo já começa trazendo à baila o princípio da dignidade,


seguindo os mesmos valores insculpidos na Constituição Federal (BRASIL,
[2020]). Por estar previsto na Carta Magna, esse princípio é aplicável a qualquer
relação jurídica. No entanto, o legislador quis reforçar a sua importância ao
prevê-lo também no CDC. Essa dignidade trata-se do “último arcabouço da
guarida dos direitos individuais e o primeiro fundamento de todo o sistema
constitucional” (NUNES, 2019, p. 62). Por meio dela, o indivíduo deve ter res-
peitadas todas as suas ações e a extensão do seu comportamento, como suas
escolhas de crença, intimidade e liberdade (NUNES, 2018).
Na sequência, é previsto o princípio da proteção à saúde e à segurança
(em síntese, à vida) do consumidor. Assim, os produtos e serviços colocados
no mercado de consumo, via de regra, não podem colocar em risco a saúde
(mental ou física) nem a segurança. Por exemplo, o fornecedor de um serviço
de cobranças não pode cobrar do consumidor humilhando-o perante seus
colegas de trabalho, pois isso colocaria em risco sua saúde mental. Ele também
não poderia agredi-lo, pois isso violaria sua saúde física. Quanto à segurança,
um fabricante de veículos não pode colocar no mercado um modelo específico
de automóveis que não tenha freios, por exemplo. Os produtos e serviços
colocados no mercado devem significar uma melhora na qualidade de vida
do consumidor, que, ao adquiri-los, vai encontrar não só conforto material,
mas também bem-estar (NUNES, 2019).
O CDC também protege os interesses econômicos dos consumidores, por
meio da harmonização dos interesses dos participantes das relações de
consumo. Desse modo, o desenvolvimento tecnológico e econômico não pode
ser obstaculizado por um protecionismo exacerbado, e o desenvolvimento
também não pode servir como permissivo à ofensa da moral e do patrimônio
dos consumidores.
O princípio da transparência tem estreita ligação com a boa-fé objetiva e
o dever de informar. Ele deve reger as condutas dos fornecedores, de modo
que eles deem aos consumidores “clareza, nitidez, precisão, sinceridade”
sobre os produtos e serviços colocados no mercado de consumo (CAVALIERI
FILHO, 2019, p. 53). Assim, não pode haver barreiras para que o consumidor
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tome conhecimento das informações do negócio, com ocultação das partes


desvantajosas do produto ou serviço. Também não é permitida a valorização
que não corresponde à realidade (CAVALIERI FILHO, 2019). No caso de ocul-
tação de desvantagens, um exemplo seria a contratação de um empréstimo
bancário, por parte do consumidor, em que o cliente não recebe a cópia da
cédula de crédito nem das condições gerais do contrato, pois a instituição
financeira sabe que os juros remuneratórios estão em um patamar dema-
siadamente elevado. No caso de valorização de atributos do produto que
não correspondem à realidade, podemos pensar em um telefone celular que
promete 72 horas de duração da bateria, ainda que o fabricante saiba que o
aparelho não vai alcançar tal tempo de duração (a não ser que o consumidor
fique 72 horas sem usá-lo).
A vulnerabilidade do consumidor diante do fornecedor foi a razão para a
elaboração do CDC. A característica da vulnerabilidade faz parte da figura do
consumidor e pode ser analisada sob diferentes perspectivas; veja a seguir.

„ Vulnerabilidade informacional: no sentido de que o consumidor não


detém todas as informações sobre o produto ou serviço, sendo obri-
gação do fornecedor dividir as informações que somente ele tem co-
nhecimento sobre o bem em questão. Vale ressaltar que “no século
XXI, é na informação que se concentra o poder, cabe aos experts da
cadeia de consumo, os fornecedores, adotar aparatos compensatórios
que garantam uma simetria de dados entre eles e os consumidores”
(SCHMITT; OLIVEIRA, 2020, p. 284). Por exemplo, o consumidor de um
determinado produto alimentício não tem conhecimento sobre os
valores nutricionais do alimento, então é fundamental a inserção
dessas informações no rótulo.
„ Vulnerabilidade técnico-científica: nesse caso, o consumidor não
possui conhecimento técnico suficiente a respeito dos elementos
que configuram a prestação do serviço ou entrega do produto. Por
exemplo, o consumidor que adquire um automóvel não tem todos os
conhecimentos da engenharia utilizada na sua fabricação. Ainda que
esse consumidor seja um engenheiro, isso não significa que ele vai
conhecer e dominar todo o processo de produção do veículo. Portanto,
ele ainda tem vulnerabilidade técnico-científica.
„ Vulnerabilidade jurídica: nesse tipo de vulnerabilidade, o consumidor
apresenta fragilidade tanto em juízo quanto fora dele. Por exemplo, ao
assinar um contrato, o cliente não entende todas as cláusulas inseridas,
pois são permeadas de termos jurídicos. Em um processo judicial, ele
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não poderá apresentar provas de que não recebeu um determinado


produto que comprou, por exemplo. Nesse caso, quem deve provar
que enviou é o vendedor.
„ Vulnerabilidade fática: é a representação do desequilíbrio socioe-
conômico existente entre consumidor e fornecedor, despontando a
posição de superioridade do fornecedor (SCHMITT; OLIVEIRA, 2020).
Por exemplo, ao contratar um serviço de internet, você vai receber um
contrato com cláusulas prontas, pré-elaborado pela empresa, e não
vai ter poder algum de alterar ou discutir as cláusulas ali previstas.

O princípio da boa-fé objetiva prevê padrões mínimos de confiança e


lealdade (SCHMITT; OLIVEIRA, 2015). Assim, é possível dizer que esse princí-
pio consiste no verdadeiro “coração” do CDC. Ele não trata as intenções do
agente, mas sim como elas se materializam no plano concreto de sua atuação
(TARTUCE; NEVES, 2021). Na definição de Marques (2020, p. 30):

Trata-se de uma boa-fé objetiva, um paradigma de conduta leal, e não apenas da


boa-fé subjetiva, conhecida regra de conduta subjetiva no Código Civil. Boa-fé obje-
tiva é um standard de comportamento leal, com base na confiança despertada na
outra parte cocontratante, respeitando suas expectativas legítimas e contribuindo
para a segurança das relações negociais.

Por sua vez, o princípio da informação é um princípio-dever. Por meio


dele, fica estabelecido que o fornecedor tem a obrigação de prestar todas as
informações sobre o serviço ou produto. Ele pode ser visualizado no artigo
31 do CDC, que dispõe (BRASIL, 1990, documento on-line):

Art. 31. A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar infor-


mações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas
características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de
validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam
à saúde e segurança dos consumidores.

Os princípios vistos são os que se depreendem da análise do artigo 4º do


diploma legal, havendo outros ao longo do CDC (BRASIL, 1990). Essa situação
demonstra que a Lei nº 8.078/90 é uma lei principiológica (BRASIL, 1990). A
seguir, vamos entender melhor esse conceito.
8 Princípios gerais do Direito do Consumidor

Você já ouviu falar em obsolescência planejada ou programada? Por


meio dessa tática, os fornecedores fabricam produtos planejados
para durar por um tempo determinado, o que ocorre comumente com dispositivos
eletrônicos. No entanto, essa informação não é devidamente esclarecida aos
consumidores. Com essa atitude, são feridos diversos princípios que guardam
as relações consumeristas, em especial o princípio da transparência, da in-
formação e da boa-fé objetiva. Para saber mais sobre o tema, leia os artigos
“A obsolescência planejada de telefones móveis e o desrespeito ao direito de
informação do consumidor”, de Camila Possan de Oliveira (2019), e “A pandemia
e a sociedade de consumo: a obsolescência programada como fator de vulne-
rabilidade do consumidor”, de Cristiano de Moraes Franco (2021). Além disso,
assista ao vídeo “Entenda: o que é obsolescência programada?” (2019), do canal
TecMundo, no YouTube.

Código de Defesa do Consumidor: uma lei


principiológica
Vimos os princípios instituídos pela Política Nacional das Relações de Con-
sumo, prevista no artigo 4º do CDC, e estudamos que, ao longo do diploma
legal, ainda estão previstos outros princípios que guardam as relações de
consumo (BRASIL, 1990). Nesta seção, vamos entender por que o CDC é reco-
nhecido como uma lei principiológica.
A própria criação de uma Política Nacional das Relações de Consumo
demonstra que a intenção do legislador foi a de criar “uma disciplina jurídica
única e uniforme destinada a tutelar os interesses patrimoniais e morais de
todos os consumidores” (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 13).
Tartuce e Neves (2021) explicam que o CDC é considerado uma lei princi-
piológica porque a figura do consumidor está constitucionalmente protegida
(art. 5º, inc. XXXII, da Constituição Federal) (BRASIL, [2020]). Ainda, o caráter
principiológico do CDC reside no fato de que ele prevalece sobre as demais
normas setorizadas, como normas que tratam de seguros e atividades ban-
cárias, por exemplo. Assim, essas leis setorizadas, ao disciplinarem suas
matérias, não podem se furtar de obedecer aos princípios previstos na Lei
nº 8.078/90 (BRASIL, 1990; NERY JUNIOR; NERY, 2003).
Princípios gerais do Direito do Consumidor 9

Nunes (2019, p. 112) explica por que o CDC é considerado uma lei
principiológica:

Como lei principiológica entende­se aquela que ingressa no sistema jurídico, fa-
zendo, digamos assim, um corte horizontal, indo, no caso do CDC, atingir toda e
qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que
esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional.

Além disso, o CDC é a lei que se encarrega de efetivar, fora do plano consti-
tucional, o princípio da proteção dos consumidores, que se encontra previsto
na Constituição Federal no inciso V do artigo 170: “A ordem econômica, fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar
a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os
seguintes princípios: [...] V - defesa do consumidor” (BRASIL, [2020], documento
on-line). Assim, é possível notar que a Lei nº 8.078/90 nasce para concretizar
um princípio constitucional, o princípio de defesa do consumidor, que faz parte
dos princípios gerais da atividade econômica (BRASIL, 1990).
Por esse motivo, alguns autores, como Tartuce e Neves (2021), defendem
que o CDC tem eficácia supralegal, ou seja, está abaixo da Constituição Federal,
mas acima das leis ordinárias (Figura 1).

Figura 1. Simbologia do sistema piramidal da hierarquia entre a Constituição Federal, o CDC


e as leis ordinárias.
Fonte: Tartuce e Neves (2021, p. 28).

Conforme Cavalieri Filho (2019), esse raciocínio se dá porque o CDC espalhou


a sua disciplina por todas as áreas do Direito em que ocorrem as relações
de consumo. Nesse sentido, podemos pensar no fornecimento de serviços
públicos, em que não se furta o julgador da aplicação do CDC, bem como na
situação de problemas ocorridos com serviços bancários, ocasião em que
é aplicada a lei consumerista, havendo, inclusive, súmula nesse sentido, a
súmula 297 do STJ: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às insti-
tuições financeiras” (BRASIL, 2011, p. 245).
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Assim, o que pertence aos serviços públicos vai continuar a ser tratado
pelas normas que regem essa seara jurídica, mas também será aplicado o
CDC quando se apresentar uma relação de consumo com o poder público.
Nas relações que envolvem direito bancário, igualmente vão continuar sendo
aplicadas as normas que regem o setor, mas elas devem obedecer à Lei nº
8.078/90 quando essa relação tiver a figura de um consumidor, ou seja, elas
vão obedecer aos princípios consumeristas (BRASIL, 1990). Nesse sentido,
Cavalieri Filho (2019, p. 15) destaca:

[...] sem retirar as relações de consumo do campo do Direito onde por natureza
se situam, sem afastá-las do seu natural habitat, o Código do Consumidor irradia
sobre elas a sua disciplina, colorindo-as com as suas tintas. Vale dizer, o CDC não
criou um sistema jurídico obrigacional e contratual próprio; todo o ordenamento
jurídico continua aplicável às relações de consumo, submetido, entretanto, aos
princípios nele (CDC) consagrados.

Portanto, o CDC, ainda que seja dono de uma lógica própria e tenha obje-
tivos únicos, não se isola de todo o sistema jurídico. Ele precisa da aplicação
do Código Civil, por exemplo, no que diz respeito à constituição, validade e
execução dos contratos. Isso porque, no caso dos contratos, ao analisar de-
talhadamente a Lei nº 8.078/90, vemos que não há qualquer disciplina típica
de qualquer tipo de contrato (BRASIL, 1990). Assim, é possível aplicar o CDC
a todos os contratos de consumo por causa de sua condição principiológica,
ou seja, que se estrutura em cláusulas gerais e princípios, e não em normas
tipificadoras de condutas (CAVALIERI FILHO, 2019).
Desse modo, o CDC é um sistema jurídico aberto que se vale de uma es-
trutura jurídica preexistente de outras áreas do Direito, mas que faz imperar
os seus princípios.

Referências
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AMORIM, L. B. A distinção entre regras e princípios segundo Robert Alexy: esboço
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Constituição Federal. Brasília: Presidência da República, 1978. Disponível em: http://
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e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em:
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cessual – volume único. Rio de Janeiro: Método, 2021.

Leituras recomendadas
ENTENDA: o que é obsolescência programada? [S. l.: s. n.], 2019. 1 vídeo (8 min). Publicado
pelo canal TecMundo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ix_nYVFlqWo.
Acesso em: 4 nov. 2021.
12 Princípios gerais do Direito do Consumidor

FRANCO, C. M. A pandemia e a sociedade de consumo: a obsolescência programada


como fator de vulnerabilidade do consumidor. In: PETRY, A. T. et al. (org.). Direito do
consumidor: desafios e perspectivas. Porto Alegre: OAB/RS, 2021. p. 105-118. E-book.
OLIVEIRA, C. P. A obsolescência planejada de telefones móveis e o desrespeito ao
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Porto Alegre: Editora Fi, 2019. p. 365-383. E-book.

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