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Ficha Técnica
Título:
Manual de Processo Civil I & Perspectivas da Reforma
Autor:
Hermenegildo Cachimbombo

© Hermenegildo Cachimbombo
Composição, paginação, acabamento e design capa:
Casa das Ideias - Divisão Editorial
Edição:
1.ª edição - Abril 2017
Tiragem:
1.500 exemplares
Depósito Legal:
7894/2017
ISBN:
978-989-8396-71-6
Impressão:
Damer Gráfica, S.A.
Contactos:
Casa das Ideias - Divisão Editorial
Rua Mártires do Kifangondo
Rua 19 - n.º 21 - Luanda - ANGOLA
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sem o consentimento por escrito da Editora ou do autor, abrangendo esta proibição os conteúdos paginados, o arranjo gráfico e o
design da capa. A violação destas regras é passível de procedimento judicial.
À
Minha mãe
Rosalina Fernando
Pelo exemplo de vida com que sempre nos
brindou, cujo expoente máximo é a forma
como nos últimos anos tem lutado para se
manter entre nós.
AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar à minha família e os meus amigos por acredita-


rem na materialização deste projecto, razão pela qual consentiram o sacrifício
de se privarem do meu convívio pelas horas que se mostraram necessárias
para a conclusão da obra.
Quero também agradecer ao Doutor Evaristo Solano e ao Dr. António
Domingos Joaquim Kalikemala pela incondicional colaboração.
Por último, agradeço à Ckadvogados e à Unitel, SA pelo suporte financeiro
que viabilizou a edição e publicação desta obra.

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NOTA PRÉVIA

A presente obra consubstancia-se no desenvolvimento dos sumários que,


nos últimos cinco anos, temos ministrado aos alunos do 3.º ano do curso de
Direito da Universidade Agostinho Neto, sendo por isso os estudantes os seus
principais destinatários.
Sem prejuízo do que fica referido no parágrafo anterior, porque o autor teve a
oportunidade de, no âmbito da Comissão da Reforma da Justiça e do Direito,
coordenar a equipa técnica da reforma do Código de Processo Civil (CPC),
a obra dá tratamento à forma em que, em sede do projecto, se perspectiva a
alteração dos principais institutos processuais.
No entanto, deve-se ter em conta que as soluções, que se apontam como in-
tegrando as perspectivas da reforma, não são definitivas, visto que o processo
de reforma do CPC ainda tem um largo percurso a realizar.
Seja como for, nessa sua segunda dimensão, julgamos que a obra pode servir
de elemento de consulta para juristas que já se encontram a exercer as mais
diversas profissões, especialmente as forenses.

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PREFÁCIO

Ter a honra de receber o convite para prefaciar a obra de alguém da dimensão


académica, social e intelectual do Ilustre Dr. Hermenegildo Cachimbombo,
cujo contributo social é, flagrantemente, incontestável não só como vertical e
exigente Docente de Direito Processual Civil I e III, na Faculdade de Direito
da Universidade Agostinho Neto, mas acrescendo a sua qualidade de um dos
mais actuantes Bastonários que a nossa Ordem dos Advogados já teve, causou
em mim, de forma inelutável (apesar da nossa amizade profunda e de longa
data) dois sentimentos antagónicos: o de alegria indescritível e o do incómodo
peso da responsabilidade. A combinação dos mesmos levou-me a aceitar o de-
safio e, como não podia deixar de ser, deixar formalmente expresso os meus
agradecimentos por me brindar com tão elevada honra.
O Manual de Processo Civil I, Perspectivas da Reforma é hoje uma realidade.
Aborda o ritual processual declarativo de uma maneira bi-focalizada, tendo em
conta não só a legislação vigente mas também a marcha processual na visão de um
trabalho profundo e aturado sobre o processo civil em sede da reforma da justiça
e do direito que, consequentemente, resultará no novo Código do Processo Civil
angolano.
A capacidade explanativa do autor aliada à sua sempre coloração da simpli-
cidade linguística, bem como o senso de síntese, torna a leitura do presente
manual menos enfadonha e mais compreensível. Aqui e acolá, o mesmo não
deixa de trazer à luz discussões doutrinárias cujas labaredas continuam activas
e sem prognóstico de cessação. Tal é o caso da interpretação dos artigos 47.º
do CPC, na parte referente aos títulos judiciais, bem como a questão do ca-
rácter urgente das providências cautelares, cuja imposição de um prazo para
decisão configura também uma vexata quaestio postergada para a efectivação da
previsão legal por parte dos julgadores.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Por outro lado, não deixa de ser também interessante a possibilidade de emer-
gência da chamada inversão do contencioso que culmina com a consumpção
da acção principal pela providência cautelar.
De forma lapidar, o manual aproveita o embalo do impulso processual para
referir-se ao sistema judicial acessível a todos os cidadãos sem qualquer forma
de descriminação, sobretudo económica, onde o Estado se compromete na
realização de despesas para o asseguramento do acesso à justiça.
É também notório o tratamento que se dá aos emergentes Tribunais da Rela-
ção e dos, agora denominados, Tribunais de Comarca, onde se parece de todo
acertado conferir aos estudantes de hoje instrumentos jurídicos e científicos
para o domínio do método judicativo de amanhã.
De resto, o presente manual vem suprir um grande vazio de que padece o nos-
so ainda escasso acervo bibliográfico jurídico-científico. Porquanto, até então,
a compreensão académica e investigativa do direito adjectivo angolano tem
sido feita com quase exclusiva mobilização de doutrinas estrangeiras, máxime,
portuguesa, onerando o estudante-investigador com o doloroso exercício de
adaptação à realidade jurídica angolana.
Ilustre Dr. Hermenegildo Cachimbombo, a comunidade académica agradece o
facto de a ter brindado com um manual capaz de tornar a doutrina do Direito
Processual Civil Declarativo angolano mais enriquecida.

Coimbra, aos 10 de Março de 2017.


Evaristo Solano
Assistente da FDUAN
Advogado

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ÍNDICE

I PARTE 21
Geral 21

1. Direito Processual Civil 21


1.1. Conceito 21
1.2. Características 24
1.2.1. Ramo de Direito Público 24
1.2.2. Ramo de Direito Instrumental ou Adjectivo 25
1.3 Fontes do Direito Processual Civil 26
1.4 Interpretação das Leis Processuais 31
1.5 Integração das Leis Processuais 32
1.6. Aplicação das Leis Processuais no Tempo 34
1.7. Princípios do Direito Processual Civil 37
1.7.1. Princípio da Igualdade Processual das Partes 38
1.7.2. Princípio do Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional
Efectiva 39
1.7.3. Princípio do Dispositivo 39
1.7.4. Princípio do Inquisitório 40
1.7.5. Princípio do Contraditório 41
1.7.6. Princípio da Preclusão 42
1.7.7. Princípio da Cooperação e da Boa-fé 42
1.7.8. Princípio da Economia Processual 44
1.7.9. Princípio da Legalidade 45
1.7.10. Princípio da Estabilidade da Instância 46
1.7.11. Princípio da Concentração 46
1.7.12. Princípio da Imediação 47
1.7.13. Princípio da Aquisição Processual 48

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

1.7.14. Princípio da Livre Apreciação da Prova 48


1.7.15. Princípio da Celeridade Processual 49
1.7.16. Princípio da Publicidade 50

2. Classificação das Acções Quanto ao Fim e Quanto à


Forma 52
2.1. Acções Declarativas 52
2.2. Acções Executivas 54
2.3. Classificação das Acções Quanto à Forma 58
2.3.1. Processo Comum e Processos Especiais 58
2.3.2. Formas do Processo Comum de Declaração e Respectivo
Domínio de Aplicação 60
2.4. Processos de Jurisdição Contenciosa e Processos de
Jurisdição Voluntária 64
2.5. Procedimentos Cautelares. Natureza e Estrutura 67
2.6. Incidentes da instância. Natureza e Estrutura 72

II PARTE
Estrutura da Relação Jurídica Processual. As Partes e o Objecto 77

1.  As Partes e o objecto da relação jurídica processual.


O pedido e a causa de pedir 77
2.  Os Pressupostos Processuais. Noção e Distinção das
Condições da Acção 79
2.1. Personalidade Judiciária. Noção e Consequência da Sua
Falta 82
2.2. Capacidade Judiciária. Noção, Formas de Suprimento,
Efeitos do Não Suprimento e da Irregularidade da
Representação das Partes 85
2.3. Legitimidade das Partes. Noção e Elemento Fundamentador
da Legitimidade 87
2.3.1. Legitimidade nas Relações com Pluralidade de Partes:
Litisconsórcio e a Coligação 90

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.4. O Interesse Processual. Noção e Consequências da Falta de


Interesse Processual 95
2.5. Preterição do Tribunal Arbitral 97
2.6. Patrocínio Judiciário. Noção, Constituição Obrigatória de
Advogado e Consequências da Falta ou Irregularidade do
Mandato 99
2.6.1. Breves Notas Sobre a Assistência Jurídica e a Defesa Pública 99
2.7. A Competência. Noção e Figuras Afins 103
2.7.1. Modalidades da Competência: Competência Internacional
e Competência Interna 105
2.7.2. Competência Interna 109
2.7.3. Competência em Razão da Matéria 110
2.7.4. Competência em Razão da Hierarquia 113
2.7.5. Competência em Razão do Valor 115
2.7.6. Competência em Razão do Território 116
2.7.7. Extensão e Modificação da Competência 120
2.7.8. Violação das Regras de Competência. Regime
da Incompetência Relativa e Regime da Incompetência
Absoluta 125

III PARTE
Dinâmica da Relação Jurídica Processual
O Formalismo do Processo Declaratório Ordinário 131

1. Fases do Processo Declaratório Ordinário 131

2. Fase dos Articulados. Noção e Enumeração 134


2.1. Petição Inicial. Conteúdo e Forma Externa 136
2.2. Entrega da Petição na Secretaria. Momento da Propositura
da Acção 139
2.3. Recusa da Petição pela Secretaria 139
2.4. Distribuição. Noção e Finalidade 140

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.5. Conclusão do Processo ao Juiz. Atitudes Possíveis do Juiz


da Causa 140
2.5.1. Indeferimento Liminar da Petição Inicial 141
2.5.2. Despacho de Correcção 144
2.5.3. Despacho de Citação 146
2.6. Contestação. Conceito e Forma Externa 148
2.7. Modalidades da Contestação. Contestação Defesa e
Contestação Reconvenção 150
2.8. O Princípio da Concentração da Defesa na Contestação 154
2.9. O Ónus de Impugnação. Noção e Origem 156
2.10. Falta de Contestação e Seus Efeitos. A Revelia Operante e a
Revelia Inoperante 158
2.11. Réplica. Noção e Conteúdo 161
2.12. Tréplica. Noção é Conteúdo e Resposta à Tréplica 163
2.13. Articulados Supervenientes. Condições da Sua Admissão 165

3. Fase do Julgamento Antecipado da Lide e do


Saneamento e da Condensação do Processo 167
3.1. Audiência Preparatória. Formalidades Preliminares e Actos
da Audiência 169
3.2. Despacho Saneador. Funções 174
3.3. Especificação e Questionário. Noção, Conteúdo e Regime 178
3.4. Reclamação Contra a Organização da Especificação
e do Questionário 180

4. Fase da Instrução. Noções Gerais e Função 183


4.1. A Prova. Objecto e Conceito 185
4.2. Classificação Legal e Doutrinal das Provas 187
4.3. Distinção entre Direito Probatório Material e Direito
Probatório Formal 189
4.4. Princípios do Direito Probatório Formal. Princípio do
Inquisitório e Princípio da Audiência Contraditória 191

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

5. Fase da Discussão e Julgamento da Causa. Função


Específica 194
5.2. Formalidades Preparatórias da Audiência de Discussão e
Julgamento (Audiência Final) 197
5.3. O Julgamento. Distinção Entre o Julgamento da Matéria de
Facto e o Julgamento da Matéria de Direito. O Julgamento
da Matéria de Facto: Regra do Julgamento e a Subordinação
ao Questionário 201
5.4. Princípio da Imediação e da Plena Participação dos Juízes 203
5.5. Princípio da Concentração e o Princípio da Continuidade
da Audiência 204
5.6. Princípio da Livre Apreciação da Prova 205

6. A Sentença Final. Objecto e Requisitos 206


6.1. Estrutura da Sentença. Questões a Resolver 210
6.2. Limites da Condenação e a Relação entre a Actividade das
Partes e a Actividade do Juiz 213
6.3. Noção de Caso Julgado. Caso Julgado Material e Caso
Julgado Formal 216
6.4. Limites do Caso Julgado. Limites Subjectivos e Objectivos 218
6.5. Vícios e Reforma das Decisões Judiciais 219

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LEGISLAÇÃO

– Constituição da República (CR)


– Código de Processo Civil (CPC)
– Lei n.º 18/88, de 31de Dezembro – Do Sistema Unificado de Justiça
– Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro – Do Ajustamento das Leis
Processuais Penal e Cível
– Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro – Lei Orgânica Sobre a Organização
e Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum
– Lei n.º 1/16, 10 de Fevereiro – Lei Orgânica dos Tribunais de Relação
– Lei n.º 10/86, de 15 de Setembro – Altera o artigo 99.º do CPC
– Código das Custas Judiciais (CCJ)
– Lei n.º 15/95, de 10 de Novembro – Sobre a Assistência Judiciária
– Lei n.º 16/03, de 25 de Julho – Sobre a Arbitragem Voluntária
– Lei n.º 9/05, de 17 de Agosto – Sobre a Actualização das Custas
Judiciais e da Alçada dos Tribunais
– Lei n.º 13/11, 18 de Março – Sobre a Orgânica do Tribunal Supremo

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

– Manual de Processo Civil – Antunes Varela, Coimbra Editora, 1985.


– Direito Processual Civil, Volume I e II – Prof. Doutor João de Castro
Mendes, Edição AAFDL.
– Direito Processual Civil – Fernando Luso Soares, Almedina Coimbra,
1997.
– Processo Civil I – José João Baptista, 8.ª Edição, Coimbra Editora, 2006.
– Acção Declarativa à Luz do Código Revisto – J. P. Remédio Marques, 2.ª
Edição, Coimbra Editora, 2009.
– O Novo Processo Civil Brasileiro “Direito em Expectativa” – Luiz Flux
(Coordenador), 1.ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011.
– Direito Processual Civil – Pedro Lenz (Coordenador), 2.ª Edição, São
Paulo, Editora Saraiva, 2012.
– Lições de Processo Civil – Tomás Timbane, Maputo, Escolar Editora,
2010.
– Manual de Arbitragem – Manuel Pereira Barrocas, Coimbra, Edições
Almedina, 2011.

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I PARTE
Geral

1. Direito Processual Civil


1.1. Conceito
Dispõe o artigo 174.º da Constituição da República (CR) que os tribunais são
os órgãos de soberania com competência de, em nome do povo, administrar a
justiça, sendo que, no exercício da função jurisdicional, aos tribunais compete
dirimir conflitos de interesses públicos ou privados e assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos.
No campo das relações jurídicas p rivadas, que são as que relevam para efeitos
da nossa cadeira, como mais adiante se demonstrará, os direitos subjectivos
e interesses cuja tutela incumbe aos tribunais são atribuídos aos cidadãos e
demais pessoas jurídicas pelo direito civil comum e pelo direito civil especial,
nomeadamente, o direito comercial.
As normas do Direito Civil Substantivo ao regularem as relações que caem na
sua alçada, como sucede na generalidade dos ramos de direito, actuam no âm-
bito da generalidade e da abstracção. Quer isto dizer que, surgindo um litígio
concreto, de per si, elas não estão aptas para dar solução ao caso, apesar de em
abstracto conterem os necessários critérios para a respectiva justa composição.
Sendo assim, necessário se torna a busca de um instrumento capaz de permitir
a aplicação das referidas normas substantivas, gerais e abstractas, ao caso con-
creto, e por essa via se solucionar o litígio. São justamente as normas do Direito
Processual Civil que representam o instrumento de aplicação do direito civilI.
A afirmação acabada de fazer, segundo a qual o Direito Processual Civil é o ins-
trumento de aplicação do direito civil, não significa, no entanto, que o primeiro

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

é despido de importância prática, pois, como também veremos, em certos casos


a não observância de normas de natureza processual (adjectiva) pode determi-
nar a perda do direito subjectivo que a parte esteja a reivindicar judicialmenteII.
Logo, não obstante a sua orientação funcional, para uma boa condução da lide,
é necessário que os sujeitos processuais tenham um domínio aceitável das nor-
mas processuais, pois são elas que definem o procedimento a seguir em juízo
(tribunal) para que, a final, e por via da aplicação do direito civil ao caso concre-
to, se componha o conflito cuja solução implicou o recurso à via jurisdicional.
No nosso ordenamento jurídico processual, vigora, entre outros, o princípio
da tipicidade das formas de processo, o que significa dizer que nem ao tribunal
nem às partes é lícito improvisar o percurso a observar em juízo para a justa
composição de um litígio. Este percurso, entenda-se, processo, é previamente
definido pelas normas do Direito Processual Civil.
Na linguagem comum, o vocábulo processo, no essencial, significa um con-
junto ordenado de actos com vista a um determinado fim. Nesse sentido,
podemos falar de processo de fabrico de bebidas artesanais, processo admi-
nistrativo para obtenção de licença de construção, procedimento cirúrgico
para retirada de cataratas etc., etc.
Etimologicamente, a palavra processo advém da expressão latina “pro-cedere”,
que significa caminhar para frente, avançar.
Regressando ao processo civil, concluímos então que se trata, como na gene-
ralidade dos processos, de um conjunto sequencial de actos, previamente defi-
nidos pelo Direito Processual Civil, com vista a realização de um determinado
fim, que é a composição de um conflito de interesses jurídico-privado.
Justamente porque o fim do processo civil é a composição de conflitos de
interesses jurídico-privados, este não pode ser iniciado oficiosamente pelo Es-
tado (tribunais). Para que o Estado tenha legitimidade para actuar jurisdicio-
nalmente neste âmbito, é necessário que o titular do direito subjectivo violado
ou em iminência de violação solicite a sua intervenção, por via do exercício do
direito de acção, consagrado no artigo 73.º da CR e no artigo 2.º do Código
de Processo Civil (CPC)III.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A razão de ser desta limitação da intervenção do Estado na composição ju-


risdicional dos conflitos de interesses privados prende-se com o facto de a
generalidade dos direitos subjectivos inerentes às relações jurídicas privadas
serem de carácter disponível. Porque assim é, aos seus titulares, se assim o
entenderem, é lícito deles livremente disporem onerando-os, alienando-os ou
simplesmente consentirem na violação por terceiros.
Como reverso da moeda no que ao direito de acção diz respeito, o CPC con-
sagra no n.º 1, “in fine”, do artigo 3.º o direito de defesa, que em regra impede
os tribunais de decidirem uma causa sem dar a possibilidade de a contraparte
deduzir a sua defesa (oposição).
Não obstante o fim imediato do processo civil, a justa composição de confli-
tos de interesses privados, o Estado só intervém porque por via dele assegura
a paz social, que constitui inquestionavelmente um interesse público.
Assim, para evitar a desordem que podia decorrer de sistemas privados de
administração da justiça, que entretanto já vigoraram noutros contextos so-
ciopolíticos, o Estado chama a si a responsabilidade de administrar a justiça,
instituindo um sistema público.
Nessa conformidade, o artigo 1.º do CPC dispõe que a ninguém é lícito o
recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos
casos e dentro dos limites declarados na leiIV.
Aqui chegados, estamos em condições de ensaiar um conceito de Direito Pro-
cessual Civil: “Neste afã, entendemos o Direito Processual Civil como sendo um ramo de
direito público, constituído por princípios e normas reguladoras dos tipos de acções e dos con-
comitantes actos e formalismos a observar na propositura e desenvolvimento dela em juízo.”
Dissecando o conceito, resulta que o método do Direito Processual Civil é
o normativo e o seu objecto de regulamentação é a acção cível. Por sua vez,
a acção cível (ou processo civil), que como se infere é regulada pelo Direito
Processual Civil, é o conjunto ordenado e sequencial de actos a praticar pelos
sujeitos processuais em juízo para a justa composição de um conflito de inte-
resses jurídico-privado.

23
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

1.2. Características
1.2.1. Ramo de Direito Público
Tradicionalmente, nos primeiros anos do curso de Direito, estuda-se um con-
junto de critérios que nos permitem classificar os diversos ramos do Direito
em: ramos de direito público e ramos de direito privado. No entanto, com
base em considerações alheias ao âmbito da presente obra, modernamente,
há autores que consideram que a distinção entre ramos de direito público e
ramos de direito privado é cada vez mais residual, começando-se a falar da
crise do direito público.
Mas, independentemente do acerto ou não das correntes de pensamento aca-
badas de referir, que no essencial se baseiam em ideologias que defendem o
maior ou menor intervencionismo do Estado, o que interessa é que, seja qual
for o critério que abraçarmos para estabelecer a sobredita distinção, a conclu-
são é una – o Direito Processual Civil é um ramo de direito público.
Se nos guiarmos pelo critério da posição dos sujeitos da relação jurídica, com
base no qual se consideram como ramos de direito público aqueles que regu-
lam as relações entre o Estado e os particulares ou entre o Estado e as demais
pessoas colectivas públicas, desde que o Estado intervenha na relação jurídica
em causa investido dos seus poderes de autoridadeV, concluímos que o Direito
Processual Civil é um ramo de direito público.
A relação jurídica processual simples é estabelecida entre três sujeitos: (i) um
sujeito público e imparcial, o Estado, representado pelo Tribunal; e (ii) dois
sujeitos privados, Autor e Réu. O Tribunal, que intervém na relação proces-
sual para realizar o interesse público da paz social, como já acima se disse,
dispõe, na referida relação, de autoridade para ditar soluções de cumprimento
obrigatório para os outros sujeitos processuais.

24
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A este propósito, de forma peremptória, estabelece o n.º 2 do artigo 177.º da


CR que as decisões dos Tribunais são de cumprimento obrigatório para todos
os cidadãos e demais pessoas jurídicas e prevalecem sobre as de quaisquer
outras autoridades, não subsistindo, assim, quaisquer dúvidas sobre o carácter
público do Direito Processual Civil.
Como decorrência da sua natureza pública, a maior parte das normas que
compõem o Direito Processual Civil são de carácter imperativo, isto é, não
podem ser afastadas por convenção das partes, entenda-se, do Autor é do Réu.
Se optarmos por fazer a destrinça com base no critério dos interesses, chega-
mos a mesma conclusão a que chegámos no exercício anterior, senão vejamos:
Apesar de o processo civil se destinar a composição de conflitos de interesses
subjacentes à relações jurídicas-privadas, portanto, cujos bens jurídicos prote-
gidos apenas dizem respeito às partes litigantes, o Estado chama a si a respon-
sabilidade de administrar a justiça privada, suportando os elevados encargos
dessa tarefa, porque indirectamente realiza um interesse público, a segurança
e a paz pública.
A necessidade de intervenção do Estado, decorre, por um lado, do facto de
a força nem sempre estar do lado de quem assiste a razão e, por outro lado,
do facto de os titulares dos direitos subjectivos violados ou em ameaça de
violação não serem as entidades psicologicamente melhor posicionadas para
avaliarem a medida da respectiva realização.
A conjugação destes factores não permite ao Estado abster-se de intervir na
resolução de conflitos que decorrem do desenvolvimento das relações jurídi-
co-privadas, sob pena de o efeito multiplicador desses conflitos poder perigar
a subsistência da própria sociedade, que ver-se-ia mergulhada numa verdadei-
ra situação de caos social.

1.2.2. Ramo de Direito Instrumental ou Adjectivo


Como já acima aludimos, as normas do Direito Processual Civil não contêm
os critérios de resolução de conflitos de interesses decorrentes do desenvol-
vimento de relações jurídicas privadas. Dito de outro modo, se numa relação

25
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

entre inquilino e senhorio sobrevier um conflito entre o interesse do inquilino


em continuar a gozar do imóvel e o interesse do senhorio em reaver a posse
do imóvel e de receber o montante correspondente ao valor das rendas ven-
cidas e não pagas, não são as normas do Direito Processual Civil que definem
qual o interesse que deve prevalecer.
A questão de saber a quem assiste razão neste conflito é respondida pelas nor-
mas do Direito Civil Substantivo que regulam a relação de arrendamento. Mas,
como essas normas se caracterizam pela generalidade e abstracção, necessitam
de um instrumento que viabiliza a subsunção da hipótese concreta na previsão
da norma e, por essa via, realiza-se a justiça do caso concreto.
São justamente as normas do Direito Processual Civil que definem os proce-
dimentos a seguir em tribunal para a aplicação do Direito Civil Substantivo na
resolução dos diversos casos da vida social submetidos à apreciação jurisdicio-
nal, daí resultando o seu carácter instrumental.

1.3. Fontes do Direito Processual Civil


Seguindo o Professor Fernando José BronzeVI, o problema das fontes do di-
reito no contexto do actual pensamento jurídico deve ser enunciado como a
necessidade do entendimento do próprio processo de constituição da norma-
tividade jurídica vigente numa certa comunidade.
Se assim entendermos, o problema, significa que estaremos a abandonar a
perspectiva consolidada pela escola positivista que reduz a questão das fontes
do direito no problema de saber quem tem, adentro de um sistema político,
o poder de criar normas jurídicas obrigatórias, o que sempre redundaria na
simples tarefa do estudo de um corpo normativo já previamente construído.
Porque pensamos não ser este o lugar certo para abordagem profunda da
melhor perspectiva de análise do tema, vamos fazê-lo de um prisma que cor-
responde ao direito ainda vigente, que é o reflectido no artigo 1.º do Código
Civil (CC) e que classicamente tem vindo a ser ensinado na quase generalidade
das escolas de Direito, pelo menos nas que seguem o modelo jurídico romano
germânico.

26
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Neste afã, o que a propósito se enuncia e analisa, é tão-somente o modo de


criação e de revelação das normas, ou seja, as fontes de direito identificam-se
com as formas de aparecimento do direito legislativamente prescritas, tudo se
passando como se na sociedade o legislador tivesse a legitimidade exclusiva
para a criação do direito. É pois embrenhado neste entendimento que o arti-
go 1.º do CC estabelece que constituem fontes de direito a lei, o costume, a
jurisprudência e a doutrina, determinando ainda hierarquizadamente a força
vinculativa das normas que brotam de cada uma destas fontes.
Rendendo-nos, por enquanto, a predominância da perspectiva consagrada
pelo já citado artigo 1.º CC, e parafraseando o Professor Tomas TimbaneVII,
considerando o carácter público do direito processual civil a lei é a sua princi-
pal fonte, visto que são poucos os casos em que se recorre a outros tipos de
fontes como o costume, a jurisprudência e a doutrina.
Chegados aqui, a tarefa que adiante nos ocupará consistirá numa sucinta revi-
são dos principais diplomas jurídicos que condensam o direito processual civil
angolano positivado. A realização desse exercício, tendo em conta a história
do surgimento do Estado angolano – que como se sabe nasceu em 1975 fruto
da independência conquistada heroicamente da então potência colonizadora,
Portugal – pressupõe necessariamente uma passagem pela história do direito
processual civil português que, na sua quase generalidade, na decorrência da
norma do artigo 58.º da Constituição de 1975VIII, transitou para o ordenamen-
to jurídico angolano.
Revisitando de forma brevíssima a história do direito processual civil portu-
guês, analiticamente impõe-se a distinção entre o período pré e pós-liberal. No
concernente ao período anterior ao advento do liberalismo, a regulamentação
das matérias processuais, com características próprias do período medieval,
ou seja, despida de qualquer critério de sistematização, estava concentrada no
livro III das Ordenações.
No limiar do período do liberalismo, mas antes do triunfo do movimento de
codificação, destacaram-se três grandes diplomas intermédios, que podem ser
entendidos como antecedentes directos do primeiro código de processo civil
português – o Código de 1876, também conhecido por Código de Seabra.

27
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Os diplomas que precederam o Código de 1876 são justamente: a Reforma


Judiciária, promulgada por Decreto n.º 24, de 16 de Maio de 1832; a Nova
Reforma Judiciária, promulgada pelos Decretos de 29 de Novembro de 1836
(1.ª parte) e de 13 de Janeiro de 1837 (2.ª e 3.ª partes); e a Novíssima Reforma
Judiciária, esta última promulgada por Decreto de 21 de Maio de 1841.
As soluções subjacentes ao Código de 1876, assentes sobretudo numa con-
cepção privatística do processo, que, por sua vez, era decorrência do pensa-
mento liberal que na época predominava, a medida em que ganhava corpo a
“ideologia” do intervencionismo do Estado, foram-se mostrando desajusta-
das às exigências sociais. Assim, o aludido código foi substituído pelo Códi-
go de 1939 (também conhecido por Código de José Alberto dos Reis) que,
entretanto, teve uma vigência relativamente curta, tendo sido substituído pelo
Código de 1961, com entrada em vigor nas então colónias de Portugal pos-
tergada para 1966IX.
O Código de 1961 – com algumas alterações que o legislador angolano a
partir de 1975 foi introduzindo, e que a seguir indicaremos – no essencial
consubstancia o código de processo civil actualmente em vigor.
De 75 ao período actual, com relevância para as matérias processuais, foram
postos a vigorar os seguintes diplomas: (i) Lei n.º 18/88, de 31 de Dezembro
(Lei do Sistema Unificado de Justiça); (ii) Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro
(Lei do Ajustamento das Leis Processuais Penais e Civis); (iii) Lei n.º 10/86, de
15 de Setembro (que altera o artigo 99.º do CPC); (iv) Lei n.º 16/03, de 25 de
Julho (Lei Sobre a Arbitragem Voluntária); (v) Lei n.º 9/05, de 17 de Agosto
(Lei Sobre a Actualização das Custas Judiciais e das Alçadas dos Tribunais; e
(vi) Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro (Lei da Organização e do Funcionamento
dos Tribunais da Jurisdição Comum).
A Lei n.º18/88, no âmbito das transformações que se impunham para ade-
quar a organização do Estado, in casu, a organização judiciária, aos novos prin-
cípios introduzidos pela Constituição de 75, alterou a organização judiciária
herdada do Estado colonial. Por conseguinte, extinguiu o Tribunal de Relação
e estabeleceu uma organização judiciária que tinha no topo o Tribunal Su-
premo, com jurisdição alargada para todo o território nacional, os Tribunais

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Provinciais, cuja jurisdição abrangia o território das respectivas provínciasX e


na base os Tribunais Municipais, com jurisdição também coincidente com os
territórios dos respectivos Municípios.
No plano dos princípios, no contexto da Lei n.º 18/88, há a destacar o prin-
cípio da tendencial coincidência entre a organização administrativa do Estado
com a organização judiciária e o princípio da participação do povo na admi-
nistração da justiça. Como corolário do segundo princípio, nos Tribunais Pro-
vinciais, que passaram a ser os Tribunais de Jurisdição Plena, o que significa
dizer que julgavam todos causas que, por lei, não fossem afectadas a outros
tribunais, a matéria de facto passou a ser julgada por um Tribunal Colectivo
integrado por um Juiz de Direito e dois Assessores Populares, que eram ci-
dadãos escolhidos entre os membros de uma determinada comunidade, ga-
rantindo, assim, no entendimento do legislador, a participação “das massas
populares” na administração da justiça.
A nova organização judiciária traçada pela Lei n.º 18/88, extinguindo uns tri-
bunais e introduzindo outros, tornou mister a adequação de algumas normas
dos Códigos de Processo Penal e de Processo Civil, tarefa que foi efectivada
pela Lei n.º 20/88.
A Lei n.º 10/86, por sua vez, introduziu uma alteração pontual ao CPC, de-
signadamente, ao artigo 99.º, conferindo competência exclusiva aos tribunais
angolanos em acções que estivessem em causa direitos sobre imóveis, ao pas-
so que a Lei n.º 16/03 revogou o Título I do Livro IV do CPC – do Tribunal
Arbitral Voluntário.
Para minorar os constrangimentos decorrentes da instabilidade da moeda na-
cional que se vivia na época, por intermédio da Lei n.º 9/05, foram introdu-
zidos novos critérios para a fixação das alçadas dos tribunais e para fixação da
taxa de justiça. Relativamente às alçadas, ficou estabelecido que a alçada junto
da Câmara do Cível e do Administrativo do Tribunal Supremo passaria a ser
de 16000 UCF (Unidades de Correcção Fiscal) e a Alçada da Sala do Cível e
do Administrativo dos Tribunais Provinciais de 8000 UCF.
Com base no aludido critério, para a determinação da alçada em moeda cor-
rente era necessário multiplicar o valor de cada UCF, que, por sua vez, era

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

fixado por Despacho do Ministro das Finanças de três em três meses, por
16000, no caso da Câmara do Cível e do Administrativo, e por 8000, no caso
da Sala do Cível e do Administrativo.
Aos 27 de Novembro de 2012, Sua Excelência o Presidente da República,
titular do poder Executivo, por intermédio do Despacho Presidencial n.º 124,
instituiu a Comissão da Reforma da Justiça e do Direito. Entre as atribuições
da Comissão da Reforma, consta a de adequar os principais diplomas estru-
turantes da ordem jurídica angolana aos novos princípios introduzidos pela
Constituição de 2010 (CR), de forma a tornar a justiça mais célere e eficaz.
No cumprimento do seu mandato, a que inicialmente foi atribuído uma dura-
ção de dois anos, a Comissão, no que à nossa matéria diz respeito, considerou
essencial a revisão da organização judiciária e, sequencialmente, a aprovação
do CC e do CPC.
Nesse ínterim, em Fevereiro de 2015 foi publicada a Lei n.º 2/15 que, revo-
gando a Lei n.º 18/88, estabelece uma nova organização judiciária que com-
porta no topo o Tribunal Supremo, com jurisdição alargada a todo o terri-
tório nacional, Tribunais de Relação, com jurisdição circunscrita aos limites
das respectivas regiões judiciárias, estabelecidos em tabela anexa à Lei, e os
Tribunais de Comarca, cujas jurisdições abrangem determinados Municípios
da Província Judiciária em que se enquadram, também conforme estabelecido
em tabela anexa.
No contexto desta nova organização judiciária, os Tribunais de Comarca pas-
sam a ser os tribunais de jurisdição plena e os Tribunais de Relação os tribu-
nais de recurso, julgando tanto a matéria de facto como a matéria de Direito.
O Tribunal Supremo recupera a sua condição de tribunal de revista, o que
significa que aprecia em sede de recurso, em regra, apenas matéria de Direito.
No concernente aos princípios norteadores da organização judiciária, entre-
tanto estabelecida, é de salientar o desenvolvimento do princípio constitucio-
nal da autonomia administrativa e financeira dos Tribunais, que passam a ser
verdadeiras unidades orçamentadas, e o princípio da proximidade da justiça ao
cidadão. O segundo dos princípios enunciados implicou o abandono da ideia
da tendencial coincidência entre a organização administrativa e a organização

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

judiciária, que, como se disse, estava subjacente à organização judiciária traça-


da pela Lei n.º 18/88.
Relativamente aos poderes de cognição no julgamento da matéria de facto, in-
troduziu-se a regra do juiz singular, que, no fundo, representou a consagração
de uma prática que há muito se vinha observando nos tribunais angolanos, pas-
sando o tribunal colectivo a intervir apenas quando o valor da causa for superior
ao dobro da alçada do Tribunal de Relação – n.º 2 do artigo 45.º da Lei n.º 2/15.
Por último, é de referir que a implementação do sistema introduzido pela Lei
n.º 2/15 comporta um período experimental que, na prática, implicará uma
relativa coabitação entre a organização judiciária traçada pela Lei n.º 18/88 e a
nova, conforme regulamentando no capítulo xii (Regime Experimental, artigo
91.º e ss) e no capítulo xiii (Disposições Finais e Transitórias, artigo 93.º e ss).

1.4. Interpretação das Leis Processuais


Para apreciação dos problemas sociais que reclamam pela intervenção do Di-
reito, a hermenêutica jurídica coloca à disposição do intérprete um conjunto
de elementos. Mas antes de prosseguirmos, convém explicitar que o legislador
ao criar as normas jurídicas nem sempre formula os respectivos comandos de
forma que os intérpretes, sem quaisquer dificuldades, possam chegar às mes-
mas conclusões na apreciação jurídica dos problemas.
Fruto da técnica de que o legislador se socorre, existem normas jurídicas de
aplicação facilitada, porquanto da simples leitura do seu texto facilmente o
intérprete compreende o seu sentido, mas também existem normas que, dada
a forma em que estão redigidas, podem potenciar entendimentos díspares por
parte dos aplicadores.
Em função do referido no parágrafo anterior, antes de mais, devemos enten-
der por interpretação como sendo a tarefa acometida ao aplicador da lei de
fixar o seu verdadeiro sentido e alcance, sempre tendo em vista a solução do
caso concreto em análise.
Sobre o tema, tendo essencialmente em vista a interpretação de normas subs-
tantivas, o artigo 9.º CC dispõe que o intérprete no exercício da sua tarefa não

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

deve ater-se à letra da lei, devendo também considerar a partir dos textos o
pensamento do legislador, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema
jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas
do tempo em que é aplicada.
Do enunciando do artigo 9.º CC, concluímos que para interpretar uma norma
jurídica, em função da sua maior ou menor complexidade, o aplicador dispõe
de um elemento gramatical, o texto da norma, de um elemento teológico ou
racional, o propósito visado pelo legislador ao criar a norma, de um elemento
sistemático, o enquadramento da norma interpretada no conjunto de outras
normas que dentro do sistema jurídico regulam o mesmo problema, e de um
elemento histórico, as actas e demais documentos produzidos no âmbito de
todo o processo de elaboração da norma.
Como já é do domínio de quase todos nós, para atingir o resultado final da sua
tarefa o intérprete poderá não precisar de lançar mão de todos os elementos
que a hermenêutica jurídica lhe disponibiliza, tudo dependendo da maior ou
menor complexidade da norma a interpretar.
Apesar de que, como acima referimos, o artigo 9.º CC ter como foco a inter-
pretação de normas jurídicas substantivas ou materiais, a interpretação das
normas processuais não suscita quaisquer especificidade que justificassem o
recurso a uma técnica interpretativa distinta da que se dispõe para a interpre-
tação das normas substantivas.
Logo, para interpretação das normas processuais, com as devidas adaptações,
devemos recorrer à mesma técnica que subjaz a interpretação das normas
processuais, sendo que o CPC não contém regulamentação específica sobre
o tema.

1.5. Integração das Leis Processuais


Ao analisar a temática da integração das normas jurídicas, o Professor Fer-
nando José BronzeXI afirma que tal como nos é classicamente apresentado o
problema, ou seja, como consistindo na necessidade do preenchimento dos
vazios de regulamentação do ordenamento jurídico ou da necessidade do su-

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

primento da falta de um dos elementos de que as normas jurídicas devem


comportar, a par da previsão e da estatuição, isto é, a sanção, corresponde a
um falso problema.
Com base no pensamento do citado Professor, que perfilhamos, este enten-
dimento parte de um pressuposto errado, que é o de perspectivar o ordena-
mento jurídico num dado contexto sócio, histórico e político como completo,
fechado. Só se partimos deste pressuposto é que concluímos que há vazios de
regulamentação que carecem de preenchimento ou integração, dando lugar as
chamadas lacunas do 1.º e do 2.º graus.
Mas como a dinâmica social é sempre superior à capacidade de previsão do
legislador, por mais ampla que ela seja, isto um por lado, e por outro lado,
pelo facto de as relações sociais nos mais diversos campos estarem sempre em
constantes mutações, não faz nenhum sentido, em qualquer momento sócio,
histórico e político, dar por fechado o ordenamento jurídico. Se para a reso-
lução pontual de um problema jurídico não encontramos normas positiva das
mobilizáveis, não significa que estamos perante um vazio de regulamentação
ou lacuna, pelo simples facto de a lei não dispor do monopólio dos critérios
de realização da justiça.
A par dos critérios de resolução de conflitos de interesses contidos nas nor-
mas criadas pelo Estado, sempre podemos mobilizar para a realização da justi-
ça do caso concreto outros critérios, contidos nos princípios gerais de Direito,
no senso comum de justiça, nos juízos de equidade ou mesmos nas normas
consuetudinárias. A propósito das normas consuetudinárias, convém não es-
quecer que a CR ao dispor no seu artigo 7.º que o costume, desde que não seja
contrário à Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana tem
força jurídica, elevou as normas consuetudinárias à categoria de fontes ime-
diatas (formais) de direito, sem necessidade qualquer intermediação das leis,
como até então sucedia em virtude do que sobre o tema vem disposto no CC.
No entanto, assentando a nossa análise no entendimento ainda predominante,
que é o reflectido no artigo 10.º CC, devemos dizer que os sobreditos vazios
de regulamentação, quando surgem, devem ser preenchidos com base no re-
curso à aplicação analógica das leis ou, não existindo norma que por analogia

33
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

possa dar solução ao caso omisso, o julgador deve fazer recurso a uma norma
ad hoc.
Só será legítima a aplicação de norma criada para regular um caso para dar
solução ao caso omisso se as razões justificativas da regulamentação do caso
previsto forem consideradas extensivas ao caso omisso. Não existindo caso
análogo, o julgador deve colocar-se na posição de legislador e projectar uma
norma que, dentro do espírito do sistema, o segundo criaria se tivesse previsto
o caso omisso.
À semelhança do que referimos em sede do 1.4., as técnicas de integração das
leis previstas nos artigo 10.º CC, foram pensadas tendo em vistas as lacunas
da lei substantiva. Contudo, porque não existem particularidades ao nível das
normas processuais que reivindicam tratamento diferenciado, mutatis mutandi,
as mesmas servem para a integração das leis processuais.

1.6. Aplicação das Leis Processuais no Tempo


A sucessão das leis processuais no tempo, que por sua vez impõe a necessi-
dade da determinação da lei aplicável à relação processual em curso, surge ou
pode surgir numa das perspectivas a seguir descritas.
Pode suceder que lei processual vigente à data em que relação material con-
trovertida se desenvolveu seja diferente da lei que vigora na data em que a
acção destinada a compor o subjacente conflito de interesses é introduzida em
juízo (tribunal).Num outro prisma e tendo em conta que entre a introdução
da acção em juízo e a resolução final do conflito por via do julgamento nor-
malmente decorre um longo período, não raras vezes mais de um ano, pode
suceder que a lei processual que vigorava na data em que a acção foi proposta
seja diferente da lei que vigora na data em que se praticam determinados actos
ou diligências relativas à mesma acção.
Em qualquer uma das hipóteses apontadas, surge a necessidade de determinar
qual das leis irá reger a acção ou a realização de determinados actos e/ou dili-
gências. Para a resolução de problemas desse género, prevalece uma doutrina
geral que é a doutrina da aplicação imediata da lei processual.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Mas, antes de avançarmos com o enunciado da antedita doutrina geral, a boa


técnica impõe ao aplicador da lei a procura, entre as disposições da lei nova,
portanto, a que revoga ou derroga a lei anterior, a existência ou não de normas
a regular os problemas que potencialmente podem decorrer dessa sucessão de
leis sobre a mesma matéria.
A existirem tais normas, que se denominam de disposições transitórias espe-
cíficas, uma vez que apenas têm a finalidade de resolver os conflitos de lei no
tempo que decorrem da entrada em vigor da lei em que estão contidas, é com
base nas suas soluções que se deverão encontrar as respostas aos problemas
que se levantarem.
Contudo, há que ter em conta uma outra espécie de disposições transitórias, as
disposições transitórias sectoriais ou parcelares, como as denomina o Profes-
sor João de Matos Antunes VarelaXII, que, ao contrário das anteriores, se desti-
nam a regular em termos mais ou menos genéricos os problemas decorrentes
da sucessão das leis processuais quando que regulam determinadas matérias.
Para ilustrar o que se acaba de dizer, atenda-se a norma do artigo 63.º do CPC,
que regula o tema no contexto da sucessão das leis sobre a competência dos
tribunais. Com base nesta norma, a competência dos tribunais fixa-se no mo-
mento em que a acção se propõe e são irrelevantes as modificações de facto e
de direito que ocorrerem posteriormente.
Resulta do enunciando da norma que, nesta sede, em regra o império da lei
nova apenas abranja as acções futurasXIII, salvo nas situações seguintes: (i) su-
pressão do órgão judiciário a que a causa estava afecta; (ii) deixar de ser com-
petente em razão matéria e da hierarquia; e (iii) ser-lhe atribuída competência
de que inicialmente carecesse.
Em suma, o artigo 63.º do CPC consagra a regra da perpetuação da compe-
tência, que significa que o tribunal competente à data da propositura da acção
será competente até ao seu julgamento, com excepção dos casos indicados no
parágrafo anterior.
Especial atenção também nos merece o tratamento reservado à matéria dos
recursos, com a ressalva de que aqui as soluções encontradas não têm respaldo
directo na lei. Os recursos são os meios de impugnação das decisões judiciais

35
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

com vista à correcção das injustiças e/ou ilegalidades, a operar por um tribu-
nal diferente e hierarquicamente superior, em regra.
Sobre o tema, prima facie temos de distinguir as normas que fixam as condições
de admissibilidade do recurso, das normas que se limitam a estabelecer o for-
malismo processual, ou seja, a tramitação da instância de recurso.
No concernente à segunda categoria de normas, as que se limitam a cuidar
dos trâmites da instância de recurso, por não serem susceptíveis de colidirem
com os direitos subjectivos materiais das partes, são de aplicação imediata,
conforme o princípio geral em matéria processual.
Relativamente às primeiras, as que fixam as condições de admissibilidade dos
recursos, devem ser distinguidas as situações seguintes:
– Se a nova lei admitir recurso de decisões que anteriormente o não com-
portavam, não se deve aplicar às decisões já proferidas à data da sua
entrada em vigor, sob pena de destruição retroactiva do caso julgado;
– Se a nova lei afastar a possibilidade de recurso em casos onde era ante-
riormente admitido, não se deve aplicar aos recursos já interpostos à data
da sua entrada em vigor, sob pena de ferir as legítimas expectativas das
partes;
– Em relação às decisões que venham a ser proferidas de futuro em acções
pendentes, ou seja, intentadas antes do início da vigência da nova lei, é
aplicável imediatamente que admita recurso onde anteriormente não se ad-
mitia, que negue recurso em relação à decisões anteriormente recorríveis.
Não encontrando nenhuma das duas espécies de disposições transitórias, o
aplicador solucionará o problema aplicando o critério incorporado na já enun-
ciada doutrina da aplicação imediata da lei processual.
Considerando, por um lado, que as leis processuais em regra não são sus-
ceptíveis de contenderem com os direitos subjectivos materiais das partes,
porquanto não são elas que integram os critérios de resolução dos conflitos
de interesses, como já acima se disse, e atendendo a que o legislador quando
substitui uma determinada lei processual pretende sempre aperfeiçoar o sis-
tema de administração jurisdicional da justiça, por outro lado, não existem

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

razões objectivas que possam justificar a não aplicabilidade imediata da lei


processual nova.
Com base nesse somatório de razões justificativas, a doutrina em questão con-
duz-nos à aplicação imediata da lei nova tanto às acções que se venham a ins-
taurar após a sua entrada em vigor como a todos os actos ou diligências que se
venham a realizar futuramente, ainda que sejam relativas às acções que tenham
sido movidas antes da sua entrada em vigor.
Convém ter em mente que, ao contrário do Direito Civil Substantivo, cujo
problema da sucessão das leis no tempo foi objecto de regulamentação no
artigo 12.º do CC, que estabelece o princípio geral da não retroactividade das
leis, a doutrina da aplicação imediata da lei processual não tem acolhimento
directo em nenhuma disposição do CPC. Nesse ínterim, a solução consagrada
pelos doutrinadores representa uma interpretação do artigo 12.º do CC com
as adaptações que se impuseram, dadas as características e os fins específicos
das normas processuais.

1.7. Princípios do Direito Processual Civil


À semelhança do que sucede com o direito substantivo, na doutrina do Di-
reito Processual Civil divisamos um conjunto de princípios que iluminam as
soluções legais conformadoras dos diversos esquemas processuais traçados.
No seu tratamento, várias têm sido as classificações adoptadas pelos autores,
salientando-se as que diferenciam os princípios entre estruturantes e instru-
mentais e as que arrumam os princípios segundo os destinatários processuais
dos respectivos conteúdos, havendo, assim, princípios relativos à actividade
das partes (tribunal, autor e réu), relativos à promoção e à prossecução proces-
sual e relativos à prova, mais concretamente, à actividade probatória.
Entendem-se por estruturantes os princípios cujos enunciados são determi-
nantes para a projecção de qualquer esquema processual, ou seja, sem os quais
não se pode conceber a existência do processo (acção), ao passo que instru-
mentais são aqueles que visam a optimização do processo, ou melhor, não
sendo determinantes, todavia ajudam na realização dos fins do processo.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Colocando-nos à margem das classificações aludidas, limitar-nos-emos a elen-


car os princípios que norteiam o nosso processo e a dissecar os respectivos
conteúdos, sendo que, do ponto de vista expositivo, começaremos por nos
debruçar sobre aqueles que têm tratamento no texto da Constituição.

1.7.1. Princípio da Igualdade Processual das Partes


O princípio da igualdade processual das partes, que representa o desenvolvi-
mento do princípio geral da igualdade dos cidadãos perante a Constituição e a
lei (artigo 23.º da CR), deve ser entendido como se referindo a uma igualdade
de meios. Assim, por força do seu conteúdo, as partes, no decurso do proces-
so, devem ter os mesmos meios processuais para a defesa dos seus interesses.
O CPC não contém nenhuma norma que expressamente acolha este princí-
pio, mas no tratamento das mais diversas matérias encontramos espelhadas a
ideia da igualdade processual das partes, como, por exemplo, o facto de em
sede da fase dos articulados as partes puderem produzir o mesmo número de
articulados para a invocação dos fundamentos de facto e de direito da acção
e da defesa.
Ao contrário, e num desenvolvimento que se perspectiva positivo, a Comissão
da Reforma propõe o acolhimento deste princípio com o conteúdo a que aci-
ma aludimos no artigo 4.º do projecto do CPC.
Para garantir a praticidade da igualdade consagrada, por via do instituto da
assistência judiciária, regulada no Decreto-Lei n.º 15/95, de 10 de Novembro,
o legislador assegurou alguma protecção aos cidadãos economicamente mais
carenciados para, independentemente da sua condição, puderem aceder à jus-
tiça e aos tribunais fazendo recurso a todos os meios para o efeito disponíveis,
incluindo o direito de serem assistidos durante o pleito por um advogado, a
par da dispensa do pagamento da taxa de justiça.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

1.7.2. Princípio do Acesso ao Direito e à Tutela Jurisdicional Efectiva


Este princípio foi objecto da preocupação do legislador constitucional no ar-
tigo 29.º da CR. Aqui, por acesso ao direito, teve-se em vista não só a perspec-
tiva tradicional, isto é, a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente
protegidos, mas também uma perspectiva mais ampla, que abarca o acesso à
informação e à consulta jurídica.
Seja como for, a densificação da ideia do acesso ao direito na primeira das
perspectivas descritas perpassa necessariamente pelo exercício do direito de
acção, que já acima foi objecto da nossa abordagem, mas também não deixa
de estar concatenado com o que ficou dito a monte do instituto da assistência
judiciária, pelo menos enquanto o quadro socioeconómico do nosso país se
mantiver com os índices actuais, em que as taxas de pobreza da população
ainda são preocupantes.
No que se refere à tutela jurisdicional efectiva, deve ser entendida no senti-
do de que a protecção jurídica de todos os direitos e interesses legalmente
protegidos deve ser concedida pelos tribunais em tempo razoável. Neste afã,
o particular carenciado de justiça deve poder exercer todos os mecanismos
de defesa que lhe assistem, incluindo os mecanismos de recurso, bem como
obter a execução de sentença com força de caso julgado, dentro do prazo ra-
zoável, cuja concretização só casuisticamente pode ser feita.
A ideia da tutela jurisdicional efectiva, que também é omissa no CPC, vem
ensaiada no artigo 2.º do projecto do CPC, onde se refere que a protecção
jurídica dos direitos e interesses legalmente protegidos é assegurada pelos tri-
bunais mediante decisão judicial em processo equitativo e em tempo razoável.

1.7.3. Princípio do Dispositivo


O princípio do dispositivo representa o transportar para o campo adjectivo a
ideia geral norteadora das relações jurídicas privadas, ou seja, a ideia ou prin-
cípio da autonomia da vontade.
Assim, com base no enunciado deste princípio, quer a iniciativa quer o desen-
volvimento da acção dependem da actividade das partes (artigo 264.º). Rela-

39
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

tivamente ao impulso da acção, já vimos noutro lugar que em processo civil


o Estado não pode iniciar a acção sem que o particular interessado o requeira
por via do exercício do direito de acção, consagrado no artigo 2.º do CPC.
Requerida a intervenção jurisdicional, competirá às partes fixarem o objecto
da acção, dito doutro modo, as partes devem formular os respectivos pedidos
e alegar os fundamentos de facto que sustentam as suas pretensões, e que
constituirão o objecto da apreciação jurisdicional.
Em regra, ao julgar a acção, o tribunal não poderá socorrer-se de factos que
as partes não tenham alegado, justamente por não integrarem o âmbito do
que lhe foi solicitado. O que acaba de se dizer significa que os poderes de cog-
nição do tribunal em matéria de facto são delimitados pelas partes, pelo que
só excepcionalmente no julgamento da acção o tribunal pode lançar mão de
factos não alegados pelas partes, como é o caso da tomada em consideração
dos factos notórios, nos termos do artigo 514.º.
A ideia do dispositivo também significa que o próprio desenvolvimento da
acção está na disponibilidade das partes, competindo-lhes a todo momento
estimular o seu normal curso, conservando, entretanto, a faculdade de a qual-
quer momento, sempre respeitando certos pressupostos legais, pôr termo ao
processo, por desistência da instância ou determinar o conteúdo da decisão
sobre o mérito da causa, por via da confissão do pedido, desistência do pedido
ou de transacção (acordo) – confrontar alínea d) do artigo 287.º e artigo 293.º.

1.7.4. Princípio do Inquisitório


Em função das concepções que presidem o pensamento legislativo dentro de
um determinado contexto sociopolítico, haverá mais ou menos manifestações
da ideia do inquisitório, que se quisermos pode ser entendida como o oposto
da ideia anterior, a do dispositivo ou da disponibilidade do processo pelas
partes.
O sentido do inquisitório não reserva ao decisor um papel passivo, mas con-
cede-lhe um papel que, para além do poder de ditar a decisão final do pleito,
lhe reconhece autoridade para dinamizar o curso normal de processo, o que

40
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

implica a competência para ordenar oficiosamente diligências de prova e cor-


rigir insuficiências formais da instância, como, por exemplo, suprir a falta de
pressupostos processuais sanáveis.
De qualquer modo, dado o carácter disponível da generalidade dos direitos
subjectivos materiais que o processo civil visa integrar, as soluções legais sub-
jacentes ao princípio do inquisitório, contrapondo-as às soluções decorrentes
da ideia do dispositivo, terão sempre carácter excepcional, para não se correr
o risco de se subverter a própria natureza do Direito Civil Substantivo.
Como manifestações do princípio do inquisitório no nosso quadro jurídico
processual, sem qualquer pretensão de sermos exaustivos, citamos o n.º 3 do
264.º, e os artigos 535.º, 612.º e a primeira parte do artigo 664.º.
À luz da reforma, o artigo 260.º do projecto do CPC sugere o reforço dos po-
deres de direcção do processo pelo juiz, concedendo-lhe, sem prejuízo do ónus
que recai sobre as partes, o poder de impulsionar o seu regular andamento.

1.7.5. Princípio do Contraditório


O processo civil é um processo dialéctico ou de contrários, querendo com
isso significar que no seu âmbito os pontos de vistas das partes litigantes são
naturalmente opostos.
Porque as partes apresentam sempre ao Tribunal o problema na sua óptica
interessada, este, em regra, não deve tomar qualquer decisão sem antes con-
ceder a contraparte a possibilidade de contradizer (opor-se), conforme resulta
da segunda oração do n.º 1 do artigo 3.º do CPC.
Por via do exercício do contraditório, as partes gozam da faculdade de contro-
lar, fiscalizar e monitorar toda actividade processual desenvolvida pela outra,
o que contribui significativamente para a descoberta da verdade e, consequen-
temente, para a realização da justiça.
No entanto, em determinadas circunstâncias, o legislador, ponderados os inte-
resses em causa, permite que o tribunal decida sem observar o contraditório,
abrindo assim excepções a este princípio. No leque das excepções ao contra-
ditório, para além do tema das providências cautelares, que abordaremos em

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

lugar próprio, merece a nossa atenção a possibilidade de o tribunal indeferir


o requerimento de arguição de nulidades processuais sem prévia audição da
contraparte, como disposto no n.º 1 do artigo 207.º do CPC.

1.7.6. Princípio da Preclusão


Sendo o processo civil (acção) um conjunto ordenado e sequencial de actos,
a sua marcha desenvolve-se por ciclos previamente delineados, comportando
cada um deles os actos necessários para a realização dos respectivos objectivos
específicos.
Para evitar que as partes em defesa dos seus interesses particulares, nem sem-
pre compatíveis com os interesses gerais do processo, possam optar por con-
dutas susceptíveis de comprometer o alcance dos sobreditos objectivos, a lei
e/ou o tribunal circunstancialmente impõem que certos actos ou diligências
sejam praticadas dentro de determinados prazos, de natureza peremptória.
Se o acto ou a diligência não for praticada tempestivamente (dentro do prazo),
a parte cujo prazo beneficiava perde a possibilidade de o praticar, sujeitando-
-se às consequências que a lei prescreve para a sua conduta omissiva.
Para ilustrar a ideia da preclusão, é de notar que se, em processo comum
declarativo com a forma ordinária, o Réu não contestar a acção dentro do
prazo legal, 20 dias, perde a possibilidade de contestar e incorre em revelia,
sendo que, como consequência, os factos invocados pelo Autor são dados por
provados por confissão, como resulta da interpretação conjugada dos artigos
486.º e 490.º, ambos do CPC.

1.7.7. Princípio da Cooperação e da Boa-fé


Este princípio faz recair sobre todos os intervenientes no processo, principais
ou acidentais, o dever de cooperar com o tribunal na administração da justiça,
ou seja, na descoberta da verdade subjacente ao caso a decidir.
O cumprimento desse dever, expressamente consagrado no artigo 519.º, pres-
supõe que as partes respondam o que lhes for perguntado, se submetam às

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

inspecções necessárias, facultem o que for requisitado e pratiquem os actos


que lhe forem determinados. Espera-se que na sua actuação as partes ajam de
boa-fé, ou seja, com lisura e correcção, sob pena de se engajarem no dever de
pagar multa ao tribunal e no dever de indemnizar a contraparte por eventuais
prejuízos causados, com fundamento na litigância de má-fé – artigo 456.º.
A boa-fé, aqui chamada enquanto padrão objectivo de conduta, impõe às par-
tes a obrigação geral de não praticarem actos de obstrução da justiça, isto
é, não devem deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não
ignoram, não devem conscientemente alterar a verdade dos factos ou omitir
factos essenciais, nem devem fazer uso indevido do processo com o objectivo
de atingir um fim proibido por lei.
Relativamente aos funcionários da secretaria, o código contempla uma série
de obrigações específicas cuja inobservância pode implicar a responsabilidade
disciplinar dos envolvidos, como é o caso da prática de actos absolutamente
inúteis – artigo 137.º
Mas, como acima ficou dito, também os intervenientes acidentais, quando
chamados, estão obrigados a cooperar com o tribunal na descoberta da ver-
dade, viabilizando, assim, a boa administração da justiça. É nesse âmbito que
se enquadram, a título de exemplo, o dever que recai sobre todas as entidades
públicas ou privadas de prestarem as informações ou disponibilizarem os do-
cumentos de que o tribunal possa necessitar no contexto de um determinado
processo, ou de as testemunhas comparecem no tribunal para prestarem os
respectivos depoimentos na data que lhe for designada para o efeito – artigos
535.º e 535.º.
Contudo, nas situações em que a prestação da informação e/ou a entrega do
documento solicitado possa implicar a violação de segredo profissional por
parte do obrigado, a recusa de cooperação, desde que observados os condicio-
nalismos estabelecidos em legislação específica, poderá ser legítima.
No contexto da reforma, tendencialmente procura-se incrementar o dever de
cooperação dos intervenientes processuais. Fiel a essa orientação, o n.º 4 do
artigo 150.º do projecto do CPC sugere que os excessos dos Magistrados e
dos Advogados cometidos em audiências possam ser objecto de participação

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

disciplinar para os respectivos conselhos disciplinares, contrariamente ao CPC


que apenas se refere à participação disciplinar dos excessos dos Advogados.
O artigo 151.º do Projecto aponta para a marcação das datas da realização das
diligências e/ou audiências preferencialmente por acordos dos intervenientes
e o artigo 494.º propõe uma maior participação das partes na selecção da
matéria de facto que constituirá a base instrutória, mediante debate a realizar
em sede da audiência preparatória.
De forma mais genérica, o artigo 262.º do Projecto consagra o dever de os
Magistrados, Advogados e as partes cooperarem para que, com brevidade e
eficácia, se obtenha a justa composição do litígio.

1.7.8. Princípio da Economia Processual


Genericamente, a ideia da economia processual encaminha-nos para procurar
obter o rendimento máximo de cada processo e com o mínimo de custos
possíveisXIV.
Densificando o princípio, assacamos uma primeira perspectiva segundo a qual
no processo apenas devem ser praticados os actos indispensáveis à realização
do fim processual pretendido, reduzindo, desta forma, os custos do processo
porquanto se economizam os recursos materiais (papel, tinta, electricidade,
etc.) e se potencia uma melhor utilização dos recursos humanos.
Numa outra perspectiva, também enquadrável na ideia de economia proces-
sual, um único processo tendencialmente deve resolver o maior número de
litígios possíveis, procurando-se, assim evitar, que o volume de processos pen-
dentes nos tribunais cresça desmesuradamente. É justamente esta perspectiva
que, como mais adiante e em lugar próprio veremos, permite que várias pes-
soas que tenham individualmente o direito de exigir judicialmente a reparação
de um dano causado por uma mesma entidade, porque a fonte geradora da
obrigação é a mesma, possam juntar-se (coligar-se) e mover uma única acção,
ao invés de cada uma delas mover a sua própria acção.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

1.7.9. Princípio da Legalidade


Ao analisarmos o conteúdo deste princípio, devemos ter em mente dois as-
pectos: por um lado, temos em conta a legalidade da decisão, que implica que
o sentido decisório deve ter necessariamente como fundamento os critérios
de composição de conflitos integrados em normas jurídicas, portanto, na lei,
e, por outro lado, devemos ter em conta a legalidade dos trâmites processuais.
A primeira acepção, a da legalidade da decisão, não suscita qualquer dificul-
dade interpretativa, todavia alertarmos para a particularidade introduzida pelo
artigo 7.º da CR que potencia a fundamentação directa de uma decisão judicial
com recurso ao direito costumeiro, desde que o costume em causa não contra-
rie a Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana.
A segunda acepção, catapulta-nos para o sub-princípio da tipicidade das for-
mas de processo e dos actos processuais, que significa que no nosso ordena-
mento jurídico processual as partes, ao recorrerem aos tribunais, só podem
lançar mão das formas de processo previamente definidas por lei e, no de-
correr das acções, as partes, incluindo os tribunais, só devem praticar os actos
previstos para a tramitação de cada uma das respectivas acções e devem ob-
servar o formalismo prescrito para a prática de cada um desses actos.
Porém, é de ter conta que a legalidade dos actos processuais sofre mitigação
pela ideia (princípio) da adequação formal dos actos processuais (artigo 138.º)
que refere que, sempre que um acto não esteja expressamente regulado na lei,
deve ser praticado mediante a forma que em termos mais simples se ajustar
ao fim que visa atingir.
Sobre o tema, o projecto do CPC, no seu artigo 261.º, propõe um acentuar
da ideia da adequação formal dos actos processuais, oferecendo a possibili-
dade de quando a tramitação legal não se adequar às especificidades da causa,
o juiz, oficiosamente, mas ouvidas as partes, determinar a prática dos actos
que melhor se ajustem ao fim do processo. Se quisermos, a solução legal que
se pretende ensaiar pode ser entendida como traduzindo o pensamento de
transformar o juiz num verdadeiro gestor do processo, o que vai além do seu
tradicional papel de decisor.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

1.7.10. Princípio da Estabilidade da Instância


A instância deve ser entendida como sendo a relação jurídica processual, que
é desenvolvida entre três partes (sujeitos), o Tribunal, o Autor e Réu, e é
integrada por elementos objectivos, o pedido e a causa de pedir, ou seja, os
fundamentos de facto e de direito que sustentam as pretensões que as partes
pretendem ver satisfeitas pelo tribunal, isto é, os seus respectivos pedidos.
Por força do enunciado do princípio em análise, a partir da altura em que a
formação da relação processual se completa, o que sucede no momento em
que o réu é citado para acção, tendencialmente, quer os elementos subjectivos
da instância (sujeitos) quer os seus elementos objectivos devem permanecer
os mesmos até ao final – artigo 268.º.
No entanto, porque a própria lei prevê situações que durante o desenvolvi-
mento da acção conduzem a modificações objectivas e subjectivas da instân-
cia, como sejam, as hipóteses previstas nos artigos 269.º, 270.º, 272.º e 273.º,
este princípio não tem carácter absoluto.
Para uma melhor ilustração, de entre as situações enquadráveis nos artigos in-
dicados no parágrafo anterior, salientamos as modificações subjectivas decor-
rentes da sucessão mortis causa ou por actos entre vivos na relação substantiva
em litígio, bem como a alteração do pedido e da causa de pedir por acordo das
partes, que em princípio pode ocorrer em qualquer altura do processo.

1.7.11. Princípio da Concentração


O princípio da concentração, que de certa forma anda concatenado com a
ideia da imediação, que a seguir abordaremos, aponta no sentindo de que
os actos e diligências processuais, essencialmente as de natureza instrutória,
devem ter o menor intervalo temporal e espacial possível, para melhor se as-
sacarem os fins pretendidos com a realização de cada uma delas.
É justamente a ideia da concentração processual que determina soluções
como a que privilegia a concentração das diligências de instrução em sede da
audiência final (da discussão e julgamento da causa), como em sede própria
veremos, bem como a ininterrupção dessa mesma audiência que, salvo nas

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

situações que justificadamente a lei permite a sua suspensão e/ou adiamento,


deve ser realizada numa única sessão – artigo 650.º.
Em suma, este princípio induz um certo sentido unitário e continuado das
diligências e dos actos processuais.

1.7.12. Princípio da Imediação


O contacto directo entre o julgador e os meios de prova, entre os directos e os
indirectos, contribui decisivamente para uma melhor formação da convicção
sobre a verificação ou não dos factos alegados pelas partes. Ninguém certa-
mente duvida de que o juiz que assistiu ao depoimento de uma determinada
testemunha, portanto, observou as suas expressões faciais, se apercebeu do
seu eventual nervosismo no decorrer do depoimento e tomou nota de algu-
mas contradições do seu discurso, estará melhor posicionado para aferir da
veracidade ou não das afirmações feitas pela testemunha comparativamente a
um juiz que se limitou a ler os respectivos depoimentos.
Por ser pacífica esta conclusão, o legislador impõe que a matéria de facto seja jul-
gada apenas pelos juízes que assistiram a todos os actos de instrução e discussão
realizados na audiência final, justamente por terem sido eles que mantiveram o
desejado contacto imediato como os meios probatórios – artigo 654.º.
A lei, tendo em elevada consideração a importância da imediação, apenas ex-
cepcionalmente permite que a matéria de facto seja julgada por juiz ou juízes
que não assistiram as diligências de instrução, quando tenham sido transferi-
dos ou aposentados por motivos de incapacidade física, moral ou profissional
para o exercício do cargo.
Antes de terminar o tema, é de referir que em sede do projecto do CPC,
n.º 2 do artigo 634.º, a proposta vai no sentido de, em caso de falecimento ou
impossibilidade permanente de algum dos juízes, apenas serem repetidos os
actos praticados que não tenham sido reduzidos a escritos ou gravados, con-
trariamente à solução actual que impõe a repetição de todos os actos.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

1.7.13. Princípio da Aquisição Processual


Segundo o Professor Remédio Marques, com o princípio da aquisição proces-
sual pretende-se que a verdade processual seja tanto quanto possível próxima,
coincidente, com a verdade materialXV.
Densificando o seu conteúdo, verificamos que, não obstante a cada uma das
partes impender o ónus da prova relativamente aos factos por si invocados,
nos termos do princípio geral da repartição do ónus da prova consagrado
pelo artigo 342.º CC, uma vez realizada a diligência de instrução requerida por
uma das partes, o resultado dela passa a integrar o processo, deixando, nessa
perspectiva, de servir apenas a parte que a requereu.
Concretizando, nos termos do artigo 515.º, o tribunal no julgamento da cau-
sa deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não
emanado da parte que devia produzi-las, o que significa, por exemplo, que
os depoimentos das testemunhas arroladas pelo autor podem servir para de-
monstrar a veracidade de um facto alegado pelo réu, e vice-versa – ideia que,
em sede do projecto, é retomada ipsis verbis, no artigo 500.º.
Também segundo o Professor Remédio Marques, a matriz da aquisição pro-
cessual decorre de uma solução combinada entre o princípio do inquisitório e
o princípio do dispositivoXVI.

1.7.14. Princípio da Livre Apreciação da Prova


Passeando pelo elenco de normas que traçam a base do direito probatório ma-
terial em vigor, artigo 341.º a artigo 396.º do CC, verificamos que, em regra,
os meios de prova admissíveis no nosso ordenamento jurídico não têm força
probatória plena. Excepcionalmente, a lei confere força probatória plena a
determinados meios de prova, o que significa que nesses casos o julgador está
vinculado ao juízo de valor que decorre do meio de prova em causa, como é o
caso do regime probatório dos documentos autênticos e da confissão judicial
escrita 371.º artigos 358.º do CC.
Na decorrência do referido no parágrafo anterior, o artigo 655.º estipula o
princípio da livre apreciação da prova, segundo o qual o julgador (tribunal)

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

aprecia livremente as provas e responde à matéria quesitada segundo a convic-


ção que tenha formado sobre a verificação ou não de cada facto.
Significa isto que, salvo nos casos em que a parte sobre o qual pesa o ónus
da prova disponha de um meio de prova com força probatória plena, a acti-
vidade por si desenvolvida para convencer o julgador sobre a veracidade dos
factos por si invocados será decisiva, uma vez que é com base na convicção
que formar que fundamentadamente o tribunal dará ou não por provado de-
terminado facto.
Conferindo mais ênfase à desejada prudência do julgador ao fazer a análise
crítica da prova, no artigo 635.º do Projecto, é retomado o enunciado geral
deste princípio.

1.7.15. Princípio da Celeridade Processual


No CPC em vigor este princípio não encontra acolhimento directo em nenhu-
ma norma, constatação que, todavia, não implica dizer que não tem espaço de
aplicação no nosso sistema processual.
A celeridade processual, antes de mais, deve ser entendida no âmbito do prin-
cípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, que já acima foi objecto da
nossa atenção. Em síntese, estabelece a orientação de que o período que deve
mediar o início e o fim de um processo deve ser o mais reduzido possível, por
ser certo que a excessiva demora dos processos é susceptível de retirar toda a
eficácia prática das decisões, tornando a justiça platónica.
A título meramente exemplificativo, atente-se ao facto de um cidadão requerer
ao tribunal, em sede de uma acção especial de alimentos, o arbitramento de
uma quantia para o seu sustento, por na sequência da separação com a esposa
ter perdido as fontes de sustento, e o tribunal apenas julgar a acção procedente
três ou quatro anos depois, numa altura em que o cidadão já esteja morto ou,
pelo menos, tenha já tenha passado graves dificuldades. Num circunstancialis-
mo como este, não subsistem dúvidas de que a demora do processo propicia
injustiça, e por isso deve ser tanto quanto possível evitada.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Contudo, a necessidade de administração da justiça em prazo razoável deve


ser conciliada com a necessidade, também temporal, de propiciar ao julgador
o ambiente necessário para que ele possa decidir com a ponderação necessária
para uma boa administração da justiça, visto que todos nós reconhecemos que
as decisões judiciais não podem ser tomadas de forma precipitada.
Assim, o ponto de equilíbrio entre esses dois valores, o da celeridade e o da
ponderação da justiça, só casuisticamente pode ser determinado, pelo que
não é possível definir-se em abstracto um período máximo ou mínimo para a
duração de todos os processos.
No contexto da conformação do processo com o ordenamento constitucio-
nal, no n.º 1 do artigo 2.º do Projecto, é proposta a recepção directa deste
princípio quando se refere que a protecção jurídica dos direitos e interesses
legalmente protegidos é assegurada pelos tribunais mediante decisão proferida
em processo equitativo e em prazo razoável.

1.7.16. Princípio da Publicidade


Por força deste princípio, as audiências judiciais são em regras públicas, n.º 4 do
artigo 656.º, a contrario sensu, podendo qualquer cidadão interessado assisti-las e
até mesmo serem transmitidas pelos órgãos de comunicação social. Assegura
ainda, este mesmo princípio, que as partes, os advogados e quaisquer outras pes-
soas que tenham algum interesse atendível, como, por exemplo, os estudantes
de Direito, possam examinar e consultar os autos na secretaria sem necessidade
de qualquer despacho prévio – artigo 168.º.
No que aos advogados diz respeito, é-lhes reconhecida ainda a faculdade de
requererem que os processos pendentes lhes sejam confiados para exame nos
seus escritórios, dentro do prazo que, para o efeito, lhes for fixado pelo juiz
– artigo 169.º.
A regra da publicidade do processo, materializável por via do que referimos
nos parágrafos precedentes, visa potenciar a fiscalização da função jurisdicio-
nal do Estado e, de certa forma, contribui para o aumento das garantias de
transparência e imparcialidade desta mesma função.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Porém, quando a publicidade dos actos judiciais seja susceptível de colidir


com direitos fundamentais dos sujeitos processuais envolvidos, possa ofender
a moral, a ordem ou o interesse público, ou ainda pôr em causa a eficácia da
decisão que se venha a tomar, por decisão fundamentada do juiz, podemos
assistir a limitações à regra da publicidade.
É por esta razão que, por exemplo, as acções de impugnação de paternidade
apenas podem ser examinadas pelas partes e os seus mandatários judiciais,
para a salvaguarda da reserva da intimidade da vida privada, que, como se
sabe, é digna de tutela constitucional.
Com a pretensão de desenvolver as formas de materialização do princípio
da publicidade, no seu artigo 166.º, o projecto do CPC procura estender as
faculdades que o actual artigo 168.º reconhece a qualquer interessado a possi-
bilidade de obtenção de cópias e certidões de peças processuais, de consultar
os processos com recursos aos meios electrónicos, bem como impõe aos fun-
cionários da secretaria o dever de prestar informações às partes sobre o estado
dos processos pendentes.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2. Classificação das Acções Quanto ao Fim e Quanto


à Forma
2.1. Acções Declarativas
Com base no critério do fim, isto é, tendo em vista a natureza da tutela juris-
dicional que se requer ao tribunal, dito doutra maneira, o objectivo concreto
que o autor da acção pretende ver realizado, o CPC no seu artigo 4.º começa
por distinguir as acções cíveis em declarativas e executivas.
Nas acções declarativas, em primeira instância, o tribunal intervém para dissi-
par situações de eventuais dúvidas sobre a titularidade ou não de determinado
direito(s) e também da sua eventual violação, podendo, a montante dessa sua
função inicial, emitir comandos de cumprimento obrigatório para contraparte
ou fazer produzir directamente efeitos jurídicos na esfera jurídica da contra-
parte, como melhor veremos a seguir.
O tribunal cumpre com essa sua função mediante a declaração da solução
jurídica cabível ao problema social submetido à sua apreciação jurisdicional.
Diante da factualidade subjacente à relação material controvertida, o tribunal
qualifica juridicamente o problema elegendo a norma jurídica em cuja previ-
são os factos se subsumem, interpreta-a e termina o silogismo judiciário de-
clarando a solução do conflito de interesses com base nos critérios de solução
contidos na norma eleita, tarefa esta que constitui o denominador comum de
todas as espécies do género acção declarativa.
Em função do que pode ou não ser feito pelo tribunal a montante da já re-
ferida tarefa de declarar a solução concreta do litígio com base no direito
aplicável, as acções declarativas subdividem-se ou classificam-se em acções
declarativas de simples apreciação, acções declarativas de condenação e acções
declarativas constitutivas – n.º 2 do artigo 4.º.
Nas acções declarativas de simples apreciação, o tribunal nada mais faz além de
declarar a existência ou não de um direito ou de um facto, daí resultando o prefixo
simples. Se se requerer ao tribunal a declaração da existência de um direito, tratar-
-se-á de uma acção de simples apreciação positiva, e se requerer a declaração de
inexistência estaremos perante uma acção de simples apreciação negativa.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para ilustrar, tenhamos em atenção a seguinte hipótese: dois cidadãos adqui-


riram parcelas de terreno contíguas, de 60 x 60 m2, na zona do Kifica, Bairro
Benfica, sendo que o possuidor do terreno que confronta com a estrada de
acesso iniciou a construção do seu imóvel cujas paredes, de acordo com o
projecto arquitectónico, se projectarão para um espaço que, dadas as caracte-
rísticas dos dois terrenos, está destinado a servir de acesso (servidão de passa-
gem) para o terreno do segundo cidadão, cuja obra ainda não iniciou.
Porque, quando confrontado pelo segundo cidadão, o dono da obra demons-
trou ter entendimento diferente sobre a questão da servidão de passagem,
como que se antecipando ao potencial problema, o segundo cidadão recorreu
ao tribunal para que esclarecesse que a zona em causa constitui uma servidão
de passagem, o que fez mediante a introdução em juízo de uma acção de sim-
ples apreciação, no caso, simples apreciação positiva.
Quanto às acções de condenação, para além da declaração da existência do seu
direito e da sua violação pela contraparte, o autor pede ao tribunal que ordene
(condene) o réu a realizar uma prestação de uma coisa ou de um facto, com
vista à reparação do seu direito violado.
Portanto, aqui, a acrescer a função inicial caracterizadora do género declarati-
vo, o tribunal, a pedido do autor e caso julgue a acção procedente, emite um
comando de cumprimento obrigatório para o réu, compelindo-o a praticar os
actos necessários para a reparação dos danos que causou.
Por exemplo, A e B acordaram verbalmente, na presença de dois amigos, a
venda de um veículo automóvel de marca Hyundai, modelo I10. A pagou ime-
diatamente a totalidade do preço acordado para a venda, Kz. 1.000.000,00 (um
milhão de Kwanzas), tendo B ficado de entregar o veículo dois dias depois,
bem como a respectiva declaração de compra e venda devidamente assinada.
Volvidos dois meses, B não só não cumpriu as obrigações que assumiu como
nega ter celebrado o acordo, atitude que está a causar manifestos prejuízos a A.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para solução deste problema, A moveu contra B uma acção declarativa de con-
denação, por via da qual pediu ao tribunal que declarasse a existência do seu
direito de exigir de B o cumprimento das obrigações assumidas e que o con-
denasse a entregar imediatamente o veículo e os respectivos documentos, bem
como a indemnizá-lo pelos prejuízos que entretanto a conduta de B lhe causou.
Já as acções constitutivas, porque destinadas a autorizar uma mudança na or-
dem jurídica existente, constituindo, modificando ou extinguindo relações ju-
rídicas pré-existentes, constituem os instrumentos para a realização de direitos
potestativos.
Como sabemos, o conteúdo dos direitos potestativos densifica-se pela facul-
dade concedida a uma das partes da relação jurídica de, por acto próprio ou
integrado por um acto de uma autoridade pública, no caso, o tribunal, pro-
duzir efeitos jurídicos na esfera da contraparte independentemente da sua
vontadeXVII.
Vejamos a hipótese de, com fundamento em constantes atropelos ao dever de
respeito, que deterioraram irremediavelmente os pressupostos sobre os quais
assentavam o matrimónio que mantinha há já dez anos, a Senhora A requereu,
na Sala de Família do Tribunal Provincial de Luanda, uma acção de divórcio li-
tigioso. Tendo sido provados os factos invocados pela Requerente, e porque à
luz do Direito de Família vigente constituem causa bastante para a dissolução
do vínculo conjugal, o Tribunal decreta a dissolução do matrimónio indepen-
dentemente da vontade que o cônjuge marido manifestar.

2.2. Acções Executivas


Centramo-nos agora nas acções executivas que, com base na linguagem da lei,
n.º 3 do artigo 4.º, são aquelas por via das quais o autor (exequente) requer as
providências adequadas à reparação efectiva do direito violado.
A primeira ilação que devemos tirar do enunciado legal, citado no parágrafo
acima, é a de que, ao contrário das acções declarativas, o ponto de partida para
que possamos mover uma acção executiva não é uma situação de dúvida sobre
a existência e consequente violação de um direito.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Neste âmbito, o autor dispõe já de certeza quanto à existência do seu direito e,


concomitantemente, da sua violação por parte do outro sujeito da relação jurídi-
ca controvertida, e por essa razão não tem necessidade de recorrer à actividade
jurisdicional declarativa, mas como a contraparte não cumpre voluntariamente
a sua obrigação, de modo a reintegrar (reparar) o direito violado, o exequen-
te requer ao Tribunal que pratique os actos materiais e administrativos que se
impuserem para a reparação do seu direito, ou seja, as sobreditas providências
adequadas.
Dentre os actos materiais e administrativos a praticar pelo tribunal para lo-
grar o objectivo pretendido, salientamos os actos de desapossamento de bens
patrimoniais do devedor, susceptíveis de responderem pelas suas dívidas (pe-
nhora de bens); a venda judicial desses mesmos bens e o pagamento do credor
com o produto da venda, como melhor se estudará em sede própria.
Para que o exequente esteja habilitado a mover uma acção executiva, é neces-
sário que esteja munido de um documento, título executivo, que expresse o
referido juízo de certeza quanto à existência do seu direito, competindo-lhe
denunciar a sua violação. Portanto, títulos executivos são documentos certifi-
cativos ou demonstrativos da titularidade de um direito por uma determinada
pessoa, singular ou colectiva, e que ao império da lei se revestem de força
probatória especial para estarem na base de uma execução.
Mas, se munido de um título executivo ainda assim o autor usar desnecessaria-
mente do processo de declaração, a lei não impede o curso da acção declarativa,
no entanto, faz recair sobre o autor a responsabilidade pelo pagamento das
custas, pois entende que nesses casos o réu não deu causa à acção – artigo 449.º.
Sem prejuízo do que a respeito possa ser regulado em legislação especial, o ar-
tigo 46.º enumera os documentos que a lei atribui à natureza de títulos executi-
vos, nomeadamente, as sentenças condenatórias, os documentos exarados ou
autenticados por notários, as letras, livranças, cheques, extractos de facturas,
vales, facturas conferidas e quaisquer outros escritos particulares assinados
pelo devedor dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias deter-
minadas ou de entrega de coisas fungíveis.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Contudo, nos diversos casos, para que os documentos elencados possam efec-
tivamente desempenhar o seu papel, o de servir de base à execução, é necessá-
rio que estejam preenchidos os respectivos requisitos de exequibilidade, pelo
que se impõe a leitura atenta do artigo 47.º e seguintes.
Por razões lógicas, o artigo 46.º apenas confere a natureza de título executivo
s sentenças condenatórias, entendidas como as obtidas em acções declarativas
de condenação julgadas procedentes, isto é, que condenam o réu no(s) pedi-
do(s) formulado pelo autor.
Temos assim que ficam excluídas do rol de títulos executivos (i) as sentenças
absolutórias, porque, tendo absolvido o réu da instância ou do pedido, sobre
ele não recai nenhum comando (ordem) judicial de cumprimento obrigatório
que possa ser objecto de execução; (ii) as sentenças proferidas no contexto das
acções de simples apreciação, porque aqui o tribunal não emite nenhuma or-
dem judicial, limitando-se a declarar a existência ou inexistência de um direito;
e (iii) as sentenças proferidas no âmbito das acções constitutivas, cujos efeitos
se materializam a partir do momento do prolação da sentença, como que se
de execução instantânea se tratasse.
Em função da natureza da obrigação certificada pelo respectivo título executivo,
o que equivale dizer que tendo em atenção as providências específicas que o
exequente requer que o tribunal pratique para assegurar a reparação efectiva do
seu direito, as acções executivas dividem-se ou classificam-se em acções execu-
tivas para pagamento de quantia certa, acções executivas para entrega de coisa
certa e acções executivas para prestação de facto, positivo ou negativo – n.º 2
do artigo 45.º.
As primeiras, ou seja, as acções executivas para o pagamento de quantia certa,
destinam-se a assegurar o cumprimento coercivo de obrigações pecuniárias.
Nessas acções, o tribunal invade a esfera jurídica patrimonial do devedor (exe-
cutado) e retira o dinheiro necessário para o cumprimento da obrigação e,
caso não exista dinheiro ou não seja suficiente, desapossa bens que vende e
com o produto da venda, substituindo-se o devedor, paga o credor.
Se, porém, o título executivo certificar uma obrigação de entregar uma coisa
ou de prestar um facto, lançar-se-á mão, respectivamente, da execução para

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

entrega de coisa certa ou da execução para prestação de facto, devendo as


providências coercitivas a praticar pelo tribunal adaptarem-se à natureza da
obrigação incumprida.
Por exemplo, se numa acção de revindicação de propriedade, que correu termos
na 1.ª Secção da Sala do Cível e do Administrativo do Tribunal Provincial de
Luanda, B foi condenado a reconhecer o direito de propriedade de A relativa-
mente a um imóvel de que o segundo é proprietário na Cidade do Kilamba e,
consequentemente, restituir-lhe a posse do imóvel, se transitada em julgado a
sentença, B não restituir voluntariamente o imóvel, A deverá mover uma acção
executiva para entrega de coisa certa. Nesta acção, o Tribunal, com recurso à
força pública, nomeadamente, mas sem se limitar, às forças policiais, deverá
praticar os actos necessários para investir A na posse do seu imóvel, podendo
inclusive ser necessário o arrombamento das portas, a retirada forçada de B, a
troca de fechaduras e a entrega das chaves a A, devendo ser lavrado auto ou au-
tos que atestem todas as diligências que se mostrarem imprescindíveis realizar.
Para encerrar este tema, impõe-se dizer que o projecto do CPC, tendencial-
mente, propõe uma ampliação do leque de documentos susceptíveis de exer-
cerem a função de título executivo.
Neste alinhamento, para além dos documentos exarados ou autenticados por
notários, o artigo 48.º do Projecto sugere que possam também servir de base
à execução os documentos exarados ou autenticados por outros serviços com
competência para a prática de actos de registos que importem a constituição
ou o reconhecimento de direitos. Ademais, o referido artigo do Projecto ofe-
rece a mesma possibilidade para os documentos particulares assinados pelo
devedor que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações pe-
cuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálcu-
lo aritmético, ou obrigação de entrega de coisa certa ou de prestação de facto.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.3. Classificação das Acções Quanto à Forma


2.3.1. Processo Comum e Processos Especiais
No que tange ao tema das formas de processo, no nosso ordenamento jurí-
dico vigora o princípio da tipicidade, o que significa que, na formulação e na
apreciação jurisdicional das pretensões, os sujeitos processuais devem seguir
necessariamente uma das formas de processo previamente traçadas pelo le-
gislador.
Antes de prosseguirmos, convém clarificar que as formas de processo se cor-
porizam no conjunto de actos e formalidades que os sujeitos processuais, isto
é, o autor, o réu e o tribunal praticam no decorrer da acção. Se quisermos
seguir de perto o Professor João de Matos Antunes Varela, forma de proces-
so é o conjunto ordenado de actos a praticar, bem como de formalidades a
cumprir, tanto na propositura, como especialmente no desenvolvimento da
acçãoXVIII.
Os factores com base nos quais o legislador define os diversos esquemas pro-
cessuais são vários, procurando sempre adequar os actos a praticar em cada
um deles às particularidades da tutela jurisdicional requerida. Assim, entre
esses factores, temos a própria natureza da relação jurídica controvertida, o
valor do bem jurídico em causa e o tipo de providência cuja prática se requer
ao tribunal.
Não obstante o legislador ter tido a preocupação de adequar as formas de pro-
cesso às especificidades da situação ou relação jurídica carente de intervenção
jurisdicional, como se compreende, nesta sede, não é objectivamente possível
estabelecer uma forma de processo para cada situação ou relação que deve ser
submetida à apreciação jurisdicional. Temos assim que, independentemente
do que acima ficou dito, uma mesma forma de processo pode servir para as-
segurar a realização de problemas jurídicos das mais diversas naturezas.
No entanto, o legislador optou por traçar formas de processo que devem
ser necessariamente observadas para a resolução de determinados problemas
jurídicos, conformando o elenco dos denominados processos especiais. Em
termos práticos, para eleger qual a forma de processo a seguir para a resolução
de um problema por via jurisdicional, previamente, devemos averiguar se o

58
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

problema em causa não se enquadra numas das situações em que o legislador


nos impõe a utilização de uma das formas especiais de processo.
Se a resposta à questão colocada no parágrafo anterior for positiva, então de-
vemos seguir a forma especial de processo que nos é imposta por lei, sob pena
de ser considerada desadequada a forma escolhida. Se, porém, a resposta for
negativa, aí devemos recorrer a uma das formas do processo comum, confor-
me resulta da interpretação do n.º 2 do artigo 460.º.
De forma resumida, podemos dizer que o domínio de aplicação do processo co-
mum se define por exclusão de partes, isto é, seguir-se-á o processo comum se
ao caso não couber nenhuma das formas especiais de processo previstas por lei.
No seguimento, resulta do que se acaba de dizer que o processo comum cons-
titui a regra, e os processos especiais a excepção, sendo que as razões justifi-
cativas dos esquemas processuais excepcionais foram casuisticamente ponde-
radas pelo legislador quando, no título IV do Livro III do CPC, se traçou o
elenco dos processos especiais.
Analisado o título IV do CPC, além de concluirmos que são várias as formas
especiais de processo, a título de exemplo, o processo especial de interdições e
inabilitações, o processo especial de despejo, o processo de expurgação de hi-
potecas e de extinção de privilégios, o inquérito judicial e o processo especial
de destituição de administrador, é de questionar se actualmente ainda devem
prevalecer os fundamentos que determinaram a opção do legislador ou se é
possível atingir os objectos que se realizam por via desses processos especiais
com recurso ao processo comum.
Porque não constitui nossa intenção problematizar aqui este assunto, limitar-
-nos-emos a dizer que na esteira do que vem sendo actualmente defendido
pelo novo pensamento jurídico processual, a nível da reforma, o Projecto
aponta para a redução das formas especiais de processo, mantendo-se, assim,
fiel ao princípio da simplificação e modernização processual.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.3.2. Formas do Processo Comum de Declaração e Respectivo Domí-


nio de Aplicação
A análise deste assunto, o das formas do processo comum de declaração e
dos respectivos domínios de aplicação, está concatenado com a organização
judiciária do país, como mais abaixo se verificará.
Nessa conformidade, antes de avançarmos, se impõe explicar que na sequên-
cia da entrada em vigor da Lei n.º 2/15, de 2 de Fevereiro (Lei orgânica sobre
a organização e funcionamento dos tribunais de jurisdição comum), durante
o período inicial de implementação da nova organização judiciária, entretanto
definida, coabitarão duas organizações judiciárias, ou seja, a introduzida pela Lei
n.º 2/15 e a estabelecida pela Lei n.º 18/88, de 31 de Dezembro (Lei do Sistema
Unificado de Justiça).
É que, não obstante a Lei n.º 2/15 revogar a Lei n.º 18/88, a primeira, no seu
artigo 91.º, inserido no capítulo sobre o regime experimental para implemen-
tação da nova organização judiciária, estabelece o princípio do gradualismo,
que, no essencial, significa que os órgãos judiciários existentes ao império
da Lei n.º18/88 serão extintos, na medida em que as condições humanas,
materiais e técnicas permitirem a criação dos novos órgãos previstos na Lei
n.º 2/15, evitando-se, deste modo, vazios de jurisdição.
No desenvolvimento deste princípio, o do gradualismo, nos artigos 94.º e 95.º
da nova Lei sobre a organização judiciária, inseridos no capítulo sobre as dis-
posições transitórias, o legislador estabeleceu que o Tribunal Supremo man-
tém a sua competência para tramitar e julgar todos os processos pendentes
neste Tribunal à data da instalação dos Tribunais de Relação, e que os Tribu-
nais Provinciais e Municipais mantêm a sua jurisdição até os novos tribunais
de comarca serem instalados.
A organização judiciária em vias de extinção, entenda-se, a estabelecida pela
Lei n.º 18/88, do topo a base, é composta pelo Tribunal Supremo, com
jurisdição alargada sobre todo o território do país, os Tribunais Provinciais,
com jurisdição circunscrita aos limites geográficos das respectivas províncias,
e os Tribunais Municipais, cuja jurisdição também coincide com os limites
dos respectivos municípiosXIX. No contexto desta organização, os Tribunais

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Provinciais funcionaram como tribunais de primeira instância e de jurisdição


plena, competindo-lhes o julgamento das acções que, por lei, não fossem
atribuídas ao conhecimento do Tribunal Supremo ou dos Tribunais Municipais.
Quanto aos Tribunais Municipais, na prática não chegaram a exercer a sua ju-
risdição cível, dado que o legislador antes da entrada em vigor da Lei n.º 2/15
nunca teve o cuidado de actualizar a respectiva competência em razão do valor
que, tendo sido fixado no artigo 38.º da Lei n.º 18/88 em Kz 100.000,00, aca-
bou consumida pelo fenómeno inflacionário com que a moeda nacional se vem
sistematicamente confrontando.
A nova organização judiciária, o que equivale dizer a estabelecida pela Lei
n.º 2/15, em conformidade com o consagrado na CR, é composta pelo Tribu-
nal Supremo, com jurisdição alargada sobre todo o território do país, os Tri-
bunais de Relação, com jurisdição circunscrita aos limites da respectiva Região
Judiciária e dos Tribunais de Comarca, com jurisdição na área territorial da
respectiva comarca, sendo que a circunscrição judiciária comarca pode abran-
ger a área de dois ou mais municípiosXX– conforme artigos 34.º, 38.º e 41.º.
Para definição dos limites territoriais da jurisdição dos Tribunais de Relação
e dos Tribunais de Comarca, o país foi dividido em Regiões e Províncias Ju-
diciais, conforme resulta dos artigos 20.º e 21.º da Lei, bem como dos mapas
anexos I e II. Nesta nova orgânica, os Tribunais de Comarca aparecem como
tribunais de primeira instância e de jurisdição plena – artigo 30.º.
A par da organização judiciária, a determinação das formas do processo co-
mum de declaração perpassa pelo domínio de mais dois conceitos: o de alçada
do tribunal e o de valor da acção.
A alçada do tribunal é o valor até ao qual o tribunal julga sem que as suas deci-
sões (sentenças) possam ser objecto de recurso ordinário. Desenvolvendo, se
o tribunal julgar uma acção cujo valor esteja contido na sua alçada, portanto,
o valor da acção seja igual ou inferior a alçada do tribunal, a sentença que pro-
ferir não é passível de recurso ordinário.
Com referência à Lei n.º 9/05 (Lei sobre a actualização das custas judiciais e
da alçada dos tribunais), a alçada do Tribunal Supremo corresponde a 16.000
UCF (Unidades de Correcção Fiscal) e dos Tribunais Provinciais a 8.000 UCF.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Se multiplicarmos os 16.000 UCF por Kz 88,00, valor de cada UCF com base
no último Despacho do Ministro das Finanças, a alçada do Tribunal Supremo
em Kwanzas é de 1.408.000,00, e com base na mesma operação aritmética a
alçada dos Tribunais Provinciais é de Kz 704.000,00.
Já o valor da acção é a utilidade económica directa que o autor, em caso de
ganho de causa, retira da acção (artigo 305.º do CPC). Para determinação do
valor da acção deve-se atribuir um valor certo, expresso em moeda com curso
legal, ao pedido ou pedidos nela formulados, com base nos critérios específi-
cos regulados no artigo 306.º e seguintesXXI.
Relacionando as variáveis acima descritas, adentro do processo comum de
declaração, o legislador traçou formalismos mais ou menos solenes que nos
conduzem a três formas de processo distintas, nomeadamente, o processo
ordinário, o processo sumário e o processo sumaríssimo.
Em função da maior ou menor complexidade técnica do problema em aprecia-
ção, do maior ou menor valor económico do bem jurídico em disputa, o legis-
lador submete a acção a um formalismo que disponibiliza às partes mais instru-
mentos processuais para a defesa das suas pretensões, sendo que na triologia
supra referida o formalismo mais solene é o subjacente ao processo ordinário.
Para determinamos qual das formas do processo comum de declaração que,
em concreto, devemos seguir, torna-se mister o recurso ao artigo 460.º, sendo
que a sua interpretação deve ser feita com as adaptações que se impuserem
conforme a organização judiciária com a qual estivermos a lidar, como acima
deixamos subentendido.
Assim, interpretando o artigo 462.º ao abrigo da organização judiciária es-
tabelecida pela Lei n.º 18/88, devemos observar a forma ordinária quando,
interposta uma acção no Tribunal Provincial, o valor desta exceder a alçada
do Tribunal Supremo; se o valor da acção não exceder a alçada do Tribunal
Supremo, emprega-se o processo sumário, excepto se não ultrapassar a meta-
de do valor fixado para a alçada do Tribunal Provincial e a acção se destinar
a uma das três finalidades: (i) cumprimento de uma obrigação pecuniária, (ii)
efectivação de uma indeminização por danos, ou (iii) entrega de coisas móveis,
sendo nesses três últimos casos aplicável o processo sumaríssimo.

62
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Portanto, para que estejamos no domínio do processo sumaríssimo é neces-


sário a verificação de dois pressupostos: um permanente, ou seja, o valor da
acção não ultrapassa a metade do valor fixado para a alçada do Tribunal Pro-
vincial; e, a montante e alternativamente, a acção tem uma das três finalidades
referida na última parte do parágrafo anterior.
Já com base na organização judiciária introduzida pela Lei n.º 2/15, que na sua
génese traça um modelo semelhante ao que existia à data da entrada em vigor
do CPC, a interpretação do artigo 460.º não exige adaptações. Assim, aplicar-
-se-á o processo ordinário se o valor da acção exceder a alçada da Relação;
se o valor da acção não exceder a alçada da Relação, emprega-se o processo
sumário, excepto se não ultrapassar a metade do valor fixado para a alçada do
Tribunal de comarca e a acçãose destinar a uma das três finalidades: (i) cum-
primento de uma obrigação pecuniária; (ii) efectivação de uma indemnização
por danos; ou (iii) entrega de coisas móveis, sendo nesses três últimos casos
aplicável o processo sumaríssimo.
Por fim, é de referir que o projecto do CPC se ocupa deste tema no artigo
453.º e seguintes. No que aqui importa, verificamos que a tendência é a da di-
minuição das formas de processo comum, de três para duas, nomeadamente,
o processo ordinário e o processo sumário, por se entender que as diferenças
de tramitação nem sempre efectivamente representam uma mais-valia na ges-
tão dos processos, por um lado, e por outro lado, na prática forense angolana
durante as quatro décadas de aplicação do CPC são quase nulos os casos em
que as partes lançaram mão da forma sumaríssima.
Paralelamente à diminuição das formas de processo, no artigo 454.º, o projec-
to procura introduzir uma técnica de definição do âmbito do processo ordi-
nário e do processo sumário muito mais fácil de aplicar, comparativamente à
actualmente vigente. Nesta linha, aplicar-se-á o processo ordinário se o valor
da acção exceder a alçada da Relação e, se não exceder a alçada da Relação,
aplicar-se-á o processo sumário.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.4. Processos de Jurisdição Voluntária e Processos de Juris-


dição Contenciosa
Na sistematização do CPC, os processos de jurisdição voluntária, regulados
no capítulo XVII, do Título IV, artigo 1409.º e seguintes, correspondem a
uma subespécie dos processos especiais.
No essencial, a distinção entre jurisdição voluntária e jurisdição contenciosa
assenta no facto de, no primeiro caso, a relação material que está na base do
recurso à actividade jurisdicional ter na sua génese um único interesse, ao
passo que no segundo caso a respectiva relação material baseia-se em dois ou
mais interesses divergentes.
Explicitando, no contexto da jurisdição voluntária, precisamente pelo facto de
a relação material ser integrada por um único interesse, não há qualquer con-
flito que o tribunal possa ser chamado a dirimir. Nessas situações, o tribunal é
apenas chamado para auxiliar os sujeitos da relação material a regular da me-
lhor forma o interesse em causa, desde que os mesmos possam ter posições
divergentes sobre o assunto.
Para melhor ilustração, atenda-se os casos das providências relativas aos filhos,
nomeadamente, a homologação judicial do acordo sobre a regulação do poder
paternal.
Aqui, pacificamente concluímos que o único interesse que o ordenamento jurí-
dico procura salvaguardar é o interesse do menor em beneficiar das condições
mais propícias para o seu crescimento, educação e instrução, sendo que, no en-
tanto, cada um dos progenitores pode ter uma perspectiva diferente de como al-
cançar este objectivo, daí resultando a necessidade de intervenção jurisdicional.
Como se vê, a não existência de conflito de interesses no âmbito da jurisdição
voluntária não implica necessariamente a ausência do interesse processual ou
interesse em agir, tema que melhor abordaremos em sede da análise dos pres-
supostos processuais.
Parafraseando Antunes VarelaXXII, nos processos de jurisdição voluntária, o
tribunal (juiz) não exerce a clássica actividade jurisdicional, pois na sua actua-
ção não está necessariamente compelido a formular a solução do caso com

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

base em critérios legais, podendo substituir os juízos de legalidade por juízos


de equidade, agindo como se fosse um gestor de negócios que a lei coloca
sobre a sua fiscalização.
No entanto, a liberdade de actuação do juiz, por via da qual pode pautar a
condução do processo por critérios de razoabilidade e do bom senso, conhe-
ce limites que resultam da necessidade da observância de normas jurídicas de
natureza imperativa.
Já no contexto da jurisdição contenciosa, que como se disse tem por base uma
relação material verdadeiramente controvertida, porque assente em interesses
divergentes dos respectivos sujeitos, o tribunal é justamente chamado a inter-
vir para compor o subjacente litígio. Aqui, o tribunal busca necessariamente
a solução do caso por via da aplicação dos critérios de resolução de litígios
incorporados em normas legais.

Face ao que até aqui ficou dito, podemos divisar os seguintes elementos carac-
terizadores de cada uma das jurisdições:
i. Na jurisdição voluntária, ao contrário da contenciosa, predomina o prin-
cípio do inquisitório. Nessa conformidade, o n.º 2 do artigo 1409.º con-
cede ao juiz a faculdade de investigar livremente os factos, bem como
permite-lhe ordenar os inquéritos e recolher as informações que julgar
convenientes;
ii. Como base no artigo 1410.º, sem prejuízo da necessidade do respeito
das disposições legais de natureza imperativa, o tribunal, na decisão dos
casos, pode substituir os juízos de legalidade por juízos de equidade, con-
trariamente ao que sucede na jurisdição contenciosa;
iii. As decisões (resoluções) dos tribunais em sede da jurisdição voluntária,
com fundamento na alteração superveniente das circunstâncias com base
nas quais se decidiu, são sempre passíveis de alteração, o que significa di-
zer que, ao contrário do que sucede no âmbito da jurisdição contenciosa,
o poder jurisdicional do juiz não se esgota com a prolação da sentença
– artigos 666.º e n.º 1 do artigo 1411.º;

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

iv. Com referência ao n.º 2 do artigo 1411.º, das resoluções não é admissível
recurso para o Tribunal Supremo.

Em relação ao (iv) elemento caracterizador, ou seja, a não admissibilidade de


recurso para o Tribunal Supremo, convém deixar as seguintes notas. Primeiro
deve-se ter em conta que só não há possibilidade de recurso quando a decisão
tenha por base, dentro dos condicionalismos legais, juízos de equidade e/ou
razoabilidade, em detrimento da aplicação de normas legais.
Delimitado o âmbito da restrição legal, facilmente se percebe a sua razão de ser,
na medida em que, sendo o Tribunal Supremo um tribunal de revista por vocação,
apenas conhece a matéria de direito, não lhe competindo a valoração do acerto ou
não dos sobreditos juízos de equidade e/ou razoabilidade que podem presidir as
resoluções. Quando as resoluções assentem sobre juízos de equidade, a instância
de recurso deve ser os Tribunais de Relação, que têm poderes de cognição quer
quanto à matéria de facto quer quanto a matéria de direito.
Todavia, até que entre em funcionamento a organização judiciária traçada pela
Lei n.º 2/15, sob pena da violação do princípio constitucional do acesso ao
duplo grau de jurisdição e atendendo a que a Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro
(Lei do Ajustamento da Leis Processuais Penais e Cíveis), no seu artigo 47.º,
concede ao Tribunal Supremo poderes de cognição para o julgamento da ma-
téria de facto, a norma do n.º 2 do artigo 1411.º não tem campo de aplicação.
A implementação da nova organização judiciária, que pressupõe a repristinação
da natureza de tribunal de revista para o Supremo (n.º 1 do artigo 35.º da Lei
n.º 2/15), a par da reintrodução dos Tribunais de Relação, como instância inter-
média entre as comarcas e o Supremo, revitalizará a norma morta do n.º 2 do
artigo 1411.º.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.5. Procedimentos Cautelares. Natureza e Estrutura


As situações jurídicas ou relações jurídicas cujos inerentes conflitos devem ser
resolvidos com recurso aos tipos de acções previstas no artigo 4.º do CPC,
com o decorrer do tempo que necessariamente se consome para a decisão das
anteditas acções, estão sujeitas a diversas transformações.
Como desde a propositura até à decisão das acções, geralmente, se passa um
largo período, pode suceder que quando a acção é decidida a situação que lhe
deu causa esteja alterada de tal forma que a decisão já não é susceptível de
produzir o seu efeito útil.
Exemplificando, a senhora Juliana viveu casada com o senhor Júlio durante
vinte e cinco anos, sendo que, na constância do casamento, a senhora dedica-
va-se a trabalhos domésticos e o senhor, fruto dos proventos que adquiria do
seu ofício de mecânico, garantia o sustento do casal.
Tendo o senhor Júlio abandonado subitamente o lar, porque entretanto en-
volveu-se com outra senhora, a senhora Juliana ficou privada de meios eco-
nómicos necessários para a sua sobrevivência. Ora, apesar de a questão da
atribuição de alimentos vir a ser também resolvida em sede da acção de di-
vórcio litigioso que, necessariamente, será intentada, como a tramitação deste
género de acções é longa, pode suceder, no limite, que quando o senhor Júlio
for condenado a prestar alimentos à senhora esta já esteja morta por falta de
meios de subsistência, perdendo, assim, a decisão condenatória qualquer uti-
lidade prática.
Justamente para garantir que o decurso do tempo não potencia o esvaziamen-
to do efeito útil da acção, o legislador introduziu no CPC de 1961 o Instituto
das Providências ou Procedimentos Cautelares. Portanto, resulta do que se
acaba de dizer que os procedimentos cautelares têm uma função instrumental
relativamente à actividade jurisdicional condenatória, constitutiva ou executi-
va, como melhor ensina o Professor Remédio MarquesXXIII.
Podemos então afirmar que a função dos procedimentos cautelares é a de im-
pedir que durante a pendência da acção ocorram modificações da situação de
facto, ao ponto de se comprometerem os resultados que se pretendem atingir
com a respectiva acção, regulando provisoriamente a situação.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para regular provisoriamente a situação, a actividade a desenvolver no contex-


to da jurisdição cautelar poderá consistir na antecipação de efeitos das deci-
sões a proferir em sede da acção principal, falando-se, nesses casos, de provi-
dências antecipatórias, ou na preservação do statu quo ante, ou seja, na situação
tal qual existia antes da prolação da decisão final em sede da acção principal,
falando-se, nessas hipóteses, de providências conservatórias.
Pode-se lançar mão das providências cautelares antes de ser intentada a acção
principal, isto é, como um expediente preliminar a acção, como se pode delas
recorrer já na pendência da acção, ganhando nesta segunda hipótese o cunho
de procedimento ou providência incidental.
Dados os fins específicos da jurisdição cautelar, os procedimentos têm al-
gumas características próprias que importa frisar: (i) estão numa relação de
dependência relativamente à acção principal; (ii) por terem natureza urgente, a
sua tramitação é bastante simplificada; e (iii) compõem de forma provisória o
conflito que lhes é subjacente.
Como as providências cautelares visam garantir o efeito útil de um direito cuja
existência, violação e consequente necessidade de reparação será comprovada
em acção principal, as primeiras estão sempre numa relação de dependência
relativamente às acções.
Esta dependência, que é expressamente referida pelo artigo 384.º do CPC, é
que determina que quando sejam movidas antes de intentada a acção princi-
pal, os autos da providência sejam apensos aos da acção principal tão logo esta
seja introduzida em juízo; também impõe que sendo a providência proposta
em tribunal diverso do tribunal em que corre a acção principal deve ser reme-
tida para o tribunal competente para a acção principal e que, quando requerida
na pendência da acção principal, deve ser instaurada no tribunal onde corre a
acção e por apenso aos autos da acção principal.
A relação de dependência, nos termos do artigo 382.º, manifesta-se ainda
pela caducidade da providência quando: (i) o requerente não propuser acção
principal dentro do prazo de 30 dias, contados a partir da data em que lhe for
notificada a decisão que ordenou a providência requerida; (ii) se a acção prin-
cipal vier a ser julgada improcedente por sentença transitada em julgado; (iii)

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

se o réu for absolvido da instância e o requerente não propuser nova acção


no prazo de 30 dias; e (iv) se o direito que se pretende acautelar se extinguir.
Não obstante a relação de dependência referida, porque o juízo de procedên-
cia ou improcedência das providências assenta em pressupostos diversos do
juízo de procedência ou improcedência das acções, como mais adiante verifi-
caremos, o eventual indeferimento da providência requerida não impede o re-
querente de propor a respectiva acção principal, cuja apreciação não deve ser
influenciada pela decisão proferida no âmbito da providência – artigo 386.º.
Quer isto significar que, no plano das condições da acção, existe indepen-
dência entre os procedimentos cautelares e as respectivas acções principais.
Porque assim é, o projecto do CPC contém uma norma que, contrariamente
à norma 386.º do CPC, que apenas acentua a independência entre o indefe-
rimento da providência e a possibilidade de se instaurar a acção principal,
melhor reflecte a antedita independência.
O n.º 4 do artigo 364.º do projecto do CPC sobre o tema vem propor que nem
o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimen-
to cautelar devem ter qualquer influência no julgamento da acção principal.
A natureza urgente dos procedimentos cautelares, que radica nas razões já
acima avançadas, implica que, comparativamente às acções, a tramitação dos
primeiros obedeça a um ritualismo substancialmente mais simplificado. Fiel a
esta linha de pensamento, o artigo 381.º sujeita os procedimentos cautelares
ao mesmo formalismo observável em sede dos incidentes da instância, regu-
lados nos artigos 302.º a 304.º.
Aqui, sem prejuízo das particularidades concernentes ao ritualismo de cada
uma das providências especificadas ou nominadas, no essencial é de realçar
que com o requerimento inicial em que se requeira qualquer providência, o re-
querente deve logo oferecer o rol de testemunhas e requerer outros meios de
prova de que pretenda lançar mão. Quando admissível a defesa, esta deve ser
deduzida dentro do prazo de oito dias, seguindo-se a audiência de produção
de prova e a prolação da decisão.
No que concerne ao exercício do contraditório, se analisarmos o artigo 385.º,
inserido no âmbito das disposições gerais respeitantes aos procedimentos

69
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

cautelares, parece-nos que no quadro actual o exercício do direito de defesa é


tido pelo legislador como de carácter excepcionalXXIV. Refere expressamente
esta norma que quando tenha de ser ouvido antes de decretada a providência,
o requerido é chamado ao procedimento cautelar por meio de citação, ideia
esta que grosso modo nos parece que é repetida em sede da regulamentação de
alguns procedimentos nominados, exemplificativamente, no âmbito da resti-
tuição provisória da posse e do arresto – artigos 393.º e 404.º.
Agora, se olharmos para o projecto do CPC, mais precisamente para o seu
artigo 366.º, constataremos que o que se propõe é a inversão da regra, ou seja,
tendencialmente deve ser observado o contraditório antes da decisão mas, a
título excepcional e a pedido do requerente, o tribunal fundamentadamente
poderá dispensar a audição do requerido.
Apesar de o CPC não impor prazos dentro dos quais as providências devam
ser decididas, toda a filosofia que lhes é inerente exige que sejam decididas no
menor curto espaço de tempo possível, sendo que o ideal seria que fossem
decididas no mesmo dia em que são introduzidas em juízo ou, quando muito,
nos dois dias imediatamente a seguir, como de resto já acontece noutras lati-
tudes. É também a sua natureza urgente que determina que mesmo durante as
férias judiciais, os prazos e actos relativos às providências cautelares não sejam
suspensos, nos termos e para os efeitos dos artigos 143.º e 144.º
Neste particular, o projecto do CPC avança no sentido de as providências
serem decididas no prazo de 30 dias, quando haja citação do requerido, e no
prazo de 15 dias quando o requerido não tiver sido citado – artigo 363.º. Nos
termos deste mesmo artigo do projecto, a reboque do que já vem regulado
nos actuais artigos 143.º e 144.º, se deixa-se claro que os actos respeitantes
aos procedimentos têm precedência sobre qualquer outro serviço judicial não
urgente.
Umas da principais novidades que sobre o assunto nos é sugerida pelo pro-
jecto, tem a ver com a possibilidade da inversão do contencioso, regulada no
artigo 369.º. A vingar o pensamento do legislador técnico, se no decurso da
marcha da providência, o julgador formar convicção segura sobre a existência
do direito invocado pelo requerente, mediante requerimento deste, pode dis-

70
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

pensá-lo de propor a acção principal, compondo-se definitivamente o litígio


no âmbito da providência.
Como se infere do que foi dito acima, tendo em conta essencialmente os ter-
mos em que se manifesta a relação de dependência entre os procedimentos e
as acções, no quadro actual as decisões proferidas em sede da jurisdição cau-
telar têm sempre cariz provisório, porque poderão ser confirmadas ou substi-
tuídas pela decisão a ser proferida em sede da acção principal.
Justamente por regularem provisoriamente a situação controvertida, para
que o tribunal decrete a providência requerida, não é necessário observar os
mesmos pressupostos ou requisitos para o juízo de procedência das acções
principais. Nesta sede, basta que o requerente demonstre séria probabilidade
da existência do direito ou da posição jurídica invocada (fumus boni iuris) e o
fundado receio de que a situação patente seja susceptível de lhe causar dano
grave ou dificilmente reparável (periculumin mora).
Assim, contrariamente ao caso das acções, nos procedimentos cautelares o
esforço probatório do requerente é mais reduzido que o do autor, visto que
para ser julgada procedente, a providência requerida não precisa de convencer
o juiz sobre a absoluta existência do direito ameado de violação, sendo sufi-
ciente a demonstração da probabilidade da sua existência.
Contudo, não será suficiente uma mera verossemelhança, exigindo a lei que
se demonstre a séria probabilidade da existência do direito invocado, grau de
convicção que, de resto, também é exigido no que respeita à demonstração do
perigo de dano.
Como as providências se destinam a prevenir a lesão irreparável ou dificilmen-
te reparável de direitos, elas não cabem contra situações de lesões já consuma-
das, dito doutro modo, se o direito que o requerente alega possuir já estiver
violado, a providência requerida não deve ser decretada pelo tribunal.
O terceiro pressuposto que deve ser observado para que seja julgada proce-
dente qualquer providência cautelar tem a ver com a relação de proporcio-
nalidade que deve existir entre o dano que se pretende evitar e a respectiva
providência e o dano que pode ser causado ao requerido com a execução da
decisão.

71
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Sempre que o dano que a eventual procedência da providência puder causar


ao requerido for superior ao dano que o requerente pretende evitar, a pro-
vidência não deve ser decretada. Por exemplo, se a suspensão de uma deli-
beração social de uma sociedade causar a esta um prejuízo de um milhão de
Kwanzas, quando o requerente pretende evitar um prejuízo de quinhentos mil
Kwanzas, o tribunal deve negar provimento à providência.
Para terminar, convém referir que relativamente a este tema o CPC não adop-
tou o princípio da taxatividade das providências cautelares. Regula um con-
junto de providências cautelares nominadas ou especificadas, nomeadamente,
alimentos provisórios (artigo 388.º), restituição provisória de posse (artigo
393.º), suspensão de deliberações sociais (artigo 396.º), arresto (artigo 402.º),
embargo de obra nova (artigo 412.º) e arrolamento (artigo 421.º)XXV, mas sem-
pre que a situação concreta não caia no âmbito de nenhuma das providências
nominadas o interessado pode buscar solução para o caso decidindo com
recurso à providência cautelar não especificada, regulada no artigo 399.º.
No âmbito das providências não especificadas, sem procurar ser exaustivo,
o legislador deixa ao critério do requerente a possibilidade de solicitar ao tri-
bunal a providência judiciária mais adequada ao caso, nomeadamente reque-
rendo a autorização para a prática de determinado acto, a intimação para que
o requerido se abstenha de certa conduta ou ainda a entrega de bens a um
terceiro como fiel depositário.
Uma última nota prende-se com o facto de o projecto do CPC consagrar no
seu artigo 375.º a responsabilidade penal do requerido caso não cumpra com
a decisão do tribunal e, no artigo 390.º, eliminar a restrição de ser decretado o
arresto contra comerciantes.

2.6. Incidentes da Instância. Natureza e Estrutura


Durante a tramitação de uma acção podem sobrevir questões que, sendo di-
versas da questão que constitui o seu obejcto, são, no entanto, a ela conexas.
Especificando melhor, as questões que sobrevêm, sendo secundárias ou aces-
sórias relativamente ao objecto da acção, são todavia susceptíveis de influen-
ciar a decisão final da acção principal.

72
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Neste conspecto, pode haver necessidade de se resolver a questão que sobre-


veio antes de se decidir a causa principal, abrindo-se para o efeito uma trami-
tação específica e paralela à tramitação da acção que configura o incidente da
instância.
Portanto, podemos dizer que do ponto de vista estrutural, os incidentes da
instância se consubstanciam na abertura de tramitações paralelas à tramitação
da acção principal com o propósito de resolver uma questão acessória, mas
susceptível de influir na sorte da questão a decidir em sede da acção principal.
Tendo em conta a sua natureza acessória relativamente à acção principal, a
tramitação dos incidentes, que no essencial vem regulada nos artigos 302.º a
304.º do CPC, deve ser a mais simples e curta possível.
A este propósito, impõe a lei que, com o requerimento inicial, a parte deve re-
querer já todos os meios dos quais se pretende socorrer e, quando admissível
oposição, esta deve ser deduzida no prazo de oito dias e o opoente também
está obrigado a indicar na peça da sua defesa todos os meios de prova que
pretenda lançar mão.
É de salientar que consoante a maior ou menor potencialidade de a questão
incidental influir mais ou menos na questão principal, o legislador opta em
conferir ou não o efeito suspensivo ao incidente, ou seja, em paralisar ou não
o curso da acção principal enquanto tramita o incidente, sendo que esta opção
é feita casuisticamente em sede da regulamentação de cada um dos incidentes
nominados previstos por leiXXVI.
O CPC prevê os seguintes incidentes nominados: (i) verificação do valor da
causa (artigo 305.º); (ii) intervenção de terceiros, que se desdobra em três
espécies, nomeadamente, nomeação à acção (artigo 320.º), chamamento à au-
toria (artigo 325.º) e chamamento à demanda (artigo 330.º); (iii) assistência
(artigo 335.º); (iv) oposição (artigo 342.º); (v) intervenção principal (artigo
351.º); (vi) falsidade (artigo 360.º); (vii) habilitação (artigo 371.º); e (viii) liqui-
dação (artigo 378.º).
Se, relativamente aos incidentes de falsidade, habilitação e liquidação, os mol-
des em que estão regulados não são susceptíveis de potenciar dúvidas sobre
os respectivos âmbitos, o mesmo não se pode dizer em relação aos demais.

73
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Quanto ao incidente de verificação do valor da causa, convém deixar claro que


só surge quando existir divergência entre as partes sobre o valor que deve ser
atribuído à causa com base no critério geral ou nos critérios especiais consa-
grados por lei, competindo neste caso ao juiz fixar o respectivo valor – artigos
314.º e 315.º.
No que concerne a intervenção de terceiros, a delimitação do âmbito das três
espécies não é a mais feliz, nada medida em que as fronteiras de uns e outros
não são suficientemente claras, a montante do facto de quer a assistência quer
a oposição lato sensu também representarem formas de intervenção de tercei-
ros na acção.
Preocupado em expurgar do regime dos incidentes a falta de clareza aludida
no parágrafo anterior, o projecto do CPC oferece uma arrumação diferente
dos incidentes de intervenção de terceiros, artigo 313.º e seguintes.
Nesta matéria, o projecto distingue a intervenção principal da intervenção
acessória, sendo que cabem no quadrante da intervenção principal a inter-
venção espontânea (artigo 313.º), que permite a intervenção como parte prin-
cipal de quem tiver interesse igual ao do autor ou ao do réu, e a intervenção
provocada (artigo 318.º), que permite qualquer das partes chamar a juízo os
interessados com legitimidade seja como seu associado seja como associado
da parte contrária.
Na esfera da intervenção acessória, temos a intervenção provocada (artigo
323.º) que permite que o réu tenha acção de regresso contra terceiro para
ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda e chamá-lo a
intervir como auxiliar na defesa sempre que o terceiro careça de legitimidade
para intervir como parte principal.
Outra proposta de inovação prende-se com a introdução do incidente de opo-
sição mediante embargos de terceiros (artigo 342.º). Este meio processual
permite reagir contra qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou
entrega de bens que ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a
realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na
causa.

74
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A solução proposta busca a sua bondade na projectada retirada das acções


possessórias do leque de acções especiais, pelo que, por via da introdução des-
te incidente, se procura deixar à disposição de terceiros cuja posse tenha sido
ofendida judicialmente um meio de defesa.
Para terminar, é de salientar que, contrariamente ao regime vigente, o projecto
aponta para a obrigatoriedade do contraditório no contexto da tramitação dos
incidentes – artigo 296.º.

75
II PARTE
Estrutura da Relação Jurídica Processual. As Partes e
o Objecto

1. As Partes e o Objecto da Relação Jurídica Processual


A relação jurídica processual é uma relação triangular integrada por três sujei-
tos ou partes, nomeadamente, o autor, o réu e o tribunal.
Mas, para que possamos falar de uma verdadeira relação jurídica, para além
dos já identificados elementos subjectivos, ou seja, as partes, torna-se mister
assacar os outros elementos caracterizadores de uma relação jurídica, como
sejam, objecto, o facto jurídico e a garantia.
Antes de regressarmos para análise do tema das partes e do objecto, que pela
sua relevância processual merece maior desenvolvimento, é oportuno dizer que
o facto jurídico constitutivo da relação é o acto jurídico de propositura da acção
que é de autoria do autor. Todavia, como a relação processual só se completa
com a intervenção do réu, rigorosamente a constituição da relação processual
implica a ocorrência necessária de dois factos, a propositura da acção (n.º 1 do
artigo 3.º) e a citação do réu (n.º 1 do artigo 228.º) – ambos do CPC.
Relativamente à garantia, esta consiste no conjunto de sanções ou outras con-
sequências cominadas pela lei processual para os casos de incumprimento
ou inobservância pelos sujeitos dos deveres ou ónus processuais, como bem
ensina o Professor José João Baptista in Processo Civil I, Parte Geral e Processo
Declarativo, 8.ª Edição.

77
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A título exemplificativo, temos as sanções que a lei prevê para os sujeitos


processuais, máxime autor e réu, que litiguem de má-fé (artigo 456.º) e a con-
sequência legal que decorre da não observância do ónus da impugnação espe-
cificada (artigo 490.º).
Revisitando o tema inicial, começamos por dizer que o autor é a pessoa que
carecendo de tutela jurídica para uma determinada situação da sua vida pro-
põe a acção, sendo que o réu é a pessoa contra quem a acção é proposta. A par
do autor e do réu, intervém o tribunal que é o sujeito público e imparcial que,
não tendo interesse próprio no pleito, a sua intervenção circunscreve-se na
defesa do interesse público da realização da justiça e consequente pacificação
social, daí os poderes de autoridade que lhe são reconhecidos.
O objecto da acção, por sua vez, é o conflito de interesses privados que opõe
o autor ao réu, que na linguagem processual é comummente designado por
relação material controvertida.
Porém, para que o tribunal possa apreciar o sobredito conflito de interesses,
litígio, é necessário que este esteja convenientemente delimitado, o que é feito
com recurso a duas categorias ou conceitos jurídico-processuais: o pedido e
a causa de pedir.
O pedido é o efeito jurídico que o autor espera realizar com a acção por si pro-
posta, portanto, a sua concreta pretensão – alínea d) do n.º 1 do artigo 467.º.
Se com base na relação material controvertida o autor se arroga no direito de
exigir do réu o cumprimento de uma obrigação pecuniária, este deve pedir ao
tribunal a condenação do réu no pagamento da quantia que em seu entender
lhe é devida.
Já a causa de pedir se consubstancia no conjunto de factos e de razões de di-
reito que servem de fundamento ao pedido ou aos pedidos formulados pelo
autor ou réu reconvinte – alínea c) do n.º 1 do artigo 467.º. Ao indicar a causar
de pedir, o autor ou réu reconvinte deverá concretizar os factos ou aconte-
cimentos da sua vida exterior ou interior que estão na base da sua pretensão,
não sendo suficiente uma indicação de factos genéricos que potencialmente
podem determinar o efeito jurídico que reclama.

78
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Do que acima fica vertido sobre este tema, podemos então concluir que o ob-
jecto do processo é formado pelo pedido e pela causa de pedir, que traduzem
os elementos objectivos da relação processual ou, se preferirem, da instância.

2. Os Pressupostos Processuais. Noção e Distinção


das Condições da Acção
O processo civil, como já acima ficou dito, tem como fim imediato a justa
composição de conflitos de interesses privados e como fim mediato garantir
a paz social, correspondendo o segundo à materialização de um interesse pú-
blico.
Como o normal desenvolvimento de uma relação processual implica necessa-
riamente a utilização de recursos públicos, por um lado, e, por outro lado, deve
ser orientado com vista ao asseguramento de uma correcta administração da
justiça, é necessário estabelecer um conjunto de requisitos que permitam que,
no final, quando se produza uma determinada decisão judicial esta se venha a
revelar idónea e útil.
Idónea porque foi proferida por decisores tecnicamente habilitados e em cir-
cunstâncias que garantem a sua imparcialidade no processo decisório e útil,
porque é susceptível de produzir os efeitos jurídicos esperados na esfera jurí-
dica dos seus destinatários.
Os veículos para potenciar a idoneidade e a utilidade das decisões judiciais são
justamente os pressupostos processuais, dito doutro modo, os pressupostos
processuais permitem a avaliação da regularidade ou não da formação da ins-
tância.
Portanto, pressupostos processuais são requisitos estabelecidos pela lei pro-
cessual cuja verificação ou não verificação determina o surgimento do dever
(poder-dever) de o juiz se pronunciar sobre o mérito da causa, concedendo ou
negando provimento aos pedidos formulados.
Como condicionantes do surgimento do dever de apreciação do mérito da
causa, o conhecimento daqueles é sempre prévio ao conhecimento deste, sen-

79
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

do que a falta ou presença de um pressuposto processual em geral tem como


consequência a absolvição do réu da instância – n.º 1 do artigo 288.º do CPC.
Relativamente ao tema do conhecimento prévio dos pressupostos processuais
e pela ordem instituída pelo artigo 288.º, como resulta da interpretação con-
jugada do antedito artigo e do artigo 660.º, que do ponto de vista doutrinal
caracteriza o chamado dogma da prioridade, o projecto aponta para mudança.
A mudança projectada busca a sua bondade na teoria do abandono do dogma
da prioridade, ou seja, quando na apreciação de uma causa o juiz concluir que
a parte que pode ser beneficiada pelo juízo de procedência de um pressuposto
processual que defenda essencialmente interesses privados, como por exem-
plo a incapacidade judiciária, é a mesma que obterá ganho de causa no caso
de ser julgado o mérito, deve deixar de se pronunciar previamente sobre o
pressuposto julgando directamente o mérito.
Neste alinhamento, o n.º 4 do artigo 282.º do projecto dispõe que subsistindo
alguma excepção dilatória não tem lugar a absolvição da instância quando,
destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo
obsta no momento da apreciação da excepção a que se conheça do mérito da
causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.
Mais acima falamos em falta ou presença de pressupostos porque em de-
terminados casos a lei exige a presença do requisito, reconduzindo-nos aos
pressupostos processuais positivos, por exemplo, a personalidade judiciária,
e noutros casos exige a não verificação, colocando-nos então perante pressu-
postos processuais negativos, como é o caso da litispendência.
Os interesses subjacentes a grande maioria dos pressupostos processuais são
de natureza essencialmente públicos, daí que o seu conhecimento pelo tribunal,
exceptuando os casos da incompetência relativa do tribunal e da preterição do
tribunal arbitral voluntário, não depende da invocação da parte que dele possa
tirar proveito, portanto, são de conhecimento oficioso – artigo 495.º.
Além da distinção entre pressupostos processuais positivos e negativos, estes
também costumam a ser classificados em: (i) pressupostos relativos às partes,
personalidade judiciária, capacidade judiciária, legitimidade, patrocínio judi-
ciário e interesse processual ou interesse em agir; (ii) pressupostos relativos

80
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

ao tribunal, competência e preterição do tribunal arbitral; e (iii) pressupostos


relativos ao objecto, a não existência de caso julgado e de litispendência.
Diferentes dos pressupostos processuais, que no essencial são requisitos res-
peitantes a todo o processo e, por essa mesma razão, a sua falta determina a
sua nulidade global, são os pressupostos dos actos processuais individualmen-
te considerados.
Os segundos se consubstanciam em condições de existência ou validade de
cada acto processual e integram o formalismo geral dos actos, sendo que a sua
falta determina apenas a nulidade do acto em causa e, em determinadas situa-
ções, a nulidade dos actos processuais subsequentes, mais nunca fazem falecer
todo o processo, como sucede no caso da falta de pressupostos processuais.
A propósito, o artigo 242.º estabelece uma série de formalidades essenciais para
a citação pessoal do réu cuja inobservância, para efeitos do artigo 195.º, é equi-
parada a falta de citação. A falta de citação, por sua vez e ao abrigo do artigo
194.º, gera a nulidade de tudo que se processe posteriormente, mas não afecta a
própria petição, o que equivale dizer que não anula o processo na sua plenitude.
Outra figura diversa dos pressupostos processuais tem que ver com as con-
dições da acção; estas, as condições da acção, actuam no plano substantivo e,
como ensina o Professor João de Matos Antunes VarelaXXVII, representam re-
quisitos para que a acção baseada no direito substantivo possa ser considerada
procedente.
Portanto, as condições da acção são requisitos estabelecidos pela lei substan-
tiva e que determinam o juízo de procedência do pedido ou pedidos formu-
lados pelo autor e/ou pelo réu reconvinte. Por exemplo, se autor numa acção
declarativa de condenação pede a condenação do réu na restituição de uma
quantia que lhe entregou a coberto de um contrato de mútuo, bem como os
respectivos juros moratórios, deverá provar a existência do necessário con-
trato de mútuo e o vencimento da obrigação de restituição, para que a sua
pretensão possa caber na previsão da correspondente norma substantiva e
consequentemente desencadear-se os efeitos jurídicos estatuídos.
Pela sua própria conceptualização, a apreciação das condições da acção pres-
supõe a prévia verificação dos pressupostos processuais, porque o poder-

81
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

-dever de apreciação do mérito, condição sine qua non para se determinar a


procedência ou improcedência dos pedidos, só surge para o juiz depois de
arrumado o tema dos pressupostos processuais, como acima ficou referido.

2.1. Personalidade Judiciária. Noção e Consequência da Sua


Falta
Como já acima ficou dito, a relação jurídico processual é uma relação trian-
gular que é estabelecida entre três sujeitos, o Tribunal, o autor e o réu, que
comummente são designados por partes.
O conceito de parte com que se labuta nesta senda é um conceito meramente
formal, sendo autor quem move a acção e réu aquele contra quem a acção é
movida. Logo, a questão que se coloca é a de saber quem pode mover uma ac-
ção e contra quem pode ser movida, cuja resposta pressupõe a determinação
do critério para aferição da personalidade judiciária.
Para que se possa actuar numa acção como autor ou réu é necessário que se
esteja habilitado pelo ordenamento jurídico vigente para ser um centro de
imputação de direitos e deveres, o que é o mesmo que dizer que é necessário
possuir personalidade jurídica.
É sabido que nos termos gerais de direito o momento de aquisição da per-
sonalidade jurídica, portanto, da antedita susceptibilidade para ser um centro
de imputação de direitos e deveres, varia consoante a natureza singular ou
colectiva da pessoa.
As pessoas físicas ou singulares (humanas) adquirem personalidade jurídica a
partir do momento do seu nascimento completo e com vida, sem prejuízo de
eventuais direitos que a lei reconhece aos nascituros, ao passo que as pessoas
colectivas, consoante os casos, adquirem a respectiva personalidade com o
acto da sua instituição, registo ou reconhecimento.
Por conseguinte, adquirida personalidade jurídica, adquire-se também a per-
sonalidade judiciária, esta entendida como a susceptibilidade de, em nome
próprio, mover ou contra si ser movida uma acção.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Alinhado com que se acaba de dizer, o artigo 5.º do CPC refere que a perso-
nalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte e tem esta mesma
susceptibilidade quem tiver personalidade jurídica. Interpretando a norma,
concluímos que o legislador consagrou o princípio da coincidência ou reci-
procidade entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária.
Se é verdade que a personalidade jurídica coincide com a personalidade judi-
ciária, no sentido inverso nem sempre verificamos tal coincidência, uma vez
que para acautelar determinados interesses, como sejam, a defesa de direitos
de terceiros ou a necessidade de proteger bens patrimoniais cujos titulares
ainda estejam por determinar, a lei processual, excepcionalmente, concede
personalidade judiciária a realidades destituídas de personalidade jurídica.
Neste sentido, o artigo 6.º do CPC reconhece personalidade judiciária à heran-
ça jacente e aos patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos
de personalidade jurídica. No seguimento, o artigo 7.º atribui personalidade
judiciária as sucursais, agências, filiais e delegações, que como se sabe são
meras formas de representação local das estruturas societárias em que estão
integradas e nessa medida não gozam de personalidade jurídica própria.
Contudo, deve-se atender a limitação decorrente do facto de as sucursais,
agências, filiais e delegações só puderem demandar ou ser demandadas quan-
do a acção proceda de facto por elas praticado, n.º 1 do artigo 7.º.
Mas se a administração principal da sociedade que representam tiver sede ou
domicílio no estrangeiro e a obrigação que se pretenda exigir com acção tiver
sido contraída com um angolano ou com um estrangeiro domiciliado em An-
gola, podem demandar ou ser demandadas mesmo que a acção derive de facto
praticado pela administração principal.
A terceira hipótese de extensão da personalidade judiciária, entenda-se, do re-
conhecimento desta quando não exista personalidade jurídica, tem a ver com
a personalidade das associações, fundações e sociedades irregulares, regulada
no artigo 8.º do CPC.
Como se sabe, pessoas colectivas irregulares são aquelas que, não tendo concluí-
do o seu processo de constituição, e por essa mesma razão ainda não adquiriram
personalidade jurídica, actuam como se já estivessem legalmente constituídas.

83
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Situações do género desta, se não tivessem tido o tratamento que lhes foi con-
cedido pela lei, poderiam potenciar situações que beneficiariam os infractores,
ou seja, os promotores da iniciativa da sua constituição, em prejuízo das pes-
soas que estabelecerem relações com a pessoa colectiva irregular.
Assim, aparece o artigo 8.º do CPC a conceder às pessoas colectivas e às so-
ciedades irregulares apenas personalidade judiciária passiva, dizendo concre-
tamente que, quando demandadas, não podem defender-se invocando a sua
própria irregularidade, pois tal situação configuraria uma situação de abuso de
direito na modalidade de vinere contra factum proprium.
Todavia, o n.º 2 do citado artigo 8.º contém uma reminiscência de personali-
dade judiciária activa das pessoas colectivas e sociedades irregulares, permitin-
do que, uma vez demandadas, possam deduzir reconvenção, que como já se
sabe consiste no pedido que, respeitados determinados condicionalismos, em
sede de contestação o réu pode formular contra o autor.
Constatada a falta personalidade judiciária, por ser insuprível, porquanto não
existe no código nenhuma norma que se refira a uma eventual forma do seu
suprimento, gera a extinção da extinção da instância, determinando ou o in-
deferimento liminar da petição, quando a falta seja constatada antes da citação
do réu (alínea b) do n.º 1 do artigo 474.º) ou a absolvição do réu da instância,
quando se constate após a citação (alínea c) do n.º 1 do artigo 288.º).
Para concluir este tema, avançamos as propostas de inovações que o projecto
de CPC traz à colação. Prima facie, começa por concentrar num único artigo
o que presentemente está regulado nos artigos 6.º e 8.º do código ao mesmo
tempo que amplia o leque de situações de extensão de personalidade judiciária.
Vê-se assim que artigo 7.º do projecto propõe o reconhecimento, nas suas
alíneas a) e d), de personalidade judiciária às comissões especiais e ao condo-
mínio resultante de propriedade horizontal.
Não ficando por aí, propõe a extinção do tratamento diferenciando que o
artigo 8.º do CPC concede às pessoas colectivas e às sociedades irregulares,
reconhecendo-lhes somente personalidade judiciária passiva, integrando tal
hipótese na previsão da norma do artigo 7.º do projecto e por via consequen-
cial, passando a atribuir tanto personalidade judiciária passiva como activa.

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2.2. Capacidade Judiciária. Noção, Formas de Suprimento,


Efeitos do Não Suprimento e Irregularidade da Repre-
sentação das Partes
Nos termos do artigo 9.º do CPC a capacidade judiciária consiste na suscep-
tibilidade de estar por si em juízo, e tem por base e por medida a capacidade
de exercício de direitos.
O que fica dito no parágrafo anterior quer significar que, quem tiver capacida-
de de exercícios de direitos, entendida como a susceptibilidade de praticar os
actos jurídicos de administração da sua própria pessoal e bens, e na medida em
que a tiver, também poderá estar em juízo por si mesmo ou por intermédio
de um representante por si livremente escolhido – representante voluntário.
Aferindo-se a capacidade judiciária pela capacidade de exercícios de direitos,
concluímos que dela carecem os incapazes, quer se trate de incapacidade por
menoridade quer se trate de incapacidade por interdição ou por inabilitação.
A jusante, a medida da capacidade ou incapacidade judiciária está concatena-
da com a respectiva medida da capacidade de gozo ou exercícios de direitos,
explicando melhor; se nos termos da lei civil, todavia, ao incapaz for reconhe-
cida capacidade para praticar determinados actos jurídicos, como, por exem-
plo, sucede com os menores relativamente aos negócios jurídicos relativos à
profissão que esteja autorizado a exercer (alínea c) do n.º 1 do artigo 127.º
do Código Civil), poderá por si mesmo mover acções cuja causa de pedir se
enquadre no âmbito daqueles actos.
Fora das situações em que lei civil concede capacidade de exercício limitada
aos incapazes, estes só podem estar em juízo por intermédio dos seus repre-
sentantes que praticarão no processo, em nome e por conta dos seus repre-
sentados, os actos jurídicos processuais que se mostrarem necessários para a
defesa dos interesses daqueles.
Questão diferente da questão da representação dos incapazes é a da represen-
tação judiciária das pessoas colectivas, mas que no plano das formas de supri-
mento das irregularidades de representação recebeu do legislador processual
tratamento idêntico, como mais abaixo constataremos.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Resultando as pessoas colectivas de uma ficção jurídica, como é consabido, a


formação e expressão da sua vontade é feita por intermédio dos órgãos que
com base na lei ou nos estatutos a representam, como dispõe o artigo 21.º do
CPC. Não se trata aqui de representação enquanto forma de suprimento de
capacidade judiciária, porque as pessoas colectivas têm esta capacidade, que
também pode ou não ser limitada pelo princípio da especialidade consagrado
pelo artigo 160.º do CC, mas sim de representação enquanto veículo normal
de formação e expressão da sua vontade (representação orgânica).
Aqui chegados, é momento para dizer que os incapazes só podem estar em
juízo por intermédio dos seus representantes legais, como impõe o artigo 10.º
do CPC. Ora, tratando-se de incapacidade por menoridade, nos termos do
artigo 123.º do CC, o respectivo suprimento é feito mediante a intervenção
dos pais, sendo que se se tratar de incapacidade por interdição ou inabilitação
o necessário suprimento pressupõe a intervenção do tutor ou do curador –
artigos 143.º e 153.º, ambos do CC.
Se o incapaz não tiver representante, o problema deve ser resolvido reque-
rendo-se ao tribunal competente para a causa a respectiva nomeação, como
resulta do enunciado da norma do artigo 11.º. Não despicienda nesta avenida
é a faculdade que o artigo 15.º concede ao Ministério Público (MP) de defen-
der os incapazes ou ausentes quando estes ou os seus representantes, uma vez
citados para acção, não deduzam oposição.
Contrariamente à personalidade judiciária, a falta de capacidade judiciária,
bem como a irregularidade de representação são passíveis de suprimento, de-
vendo este ocorrer nos termos regulados nos artigos 23.º e 24.º.
Constatada a falta, oficiosamente ou a requerimento de uma das partes, o juiz
deve fixar prazo dentro do qual o vício deva ser sanado, o que é efeito median-
te a intervenção ou a citação do representante legal.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Tratando-se de falta de capacidade ou de irregularidade de representação do


autor, para que o vício seja considerado sanado é necessário que após a citação
do seu representante este ratifique os actos anteriormente praticados. Se não
o fizer, ou seja, se o representante do autor não ratificar os actos anteriores o
réu é absolvido da instância, por força da interpretação conjugada das normas
do n.º 2 do artigo 23.º e da alínea c) do n.º 1 do artigo 288.º.
Se, porém, a irregularidade respeitar ao réu, o vício considera-se sanado com
a simples citação do seu representante, não se condicionando à correcção a
prática de qualquer acto adicional. Se tal fosse exigido, o réu provocaria a sua
própria absolvição da instância, abstendo-se simplesmente de praticar o acto
de ratificação ou, pelo menos, deixar-se-ia ao pleno arbítrio do réu a correcção
do vício, sendo que, na maior parte das vezes, não o faria porque a situação
potencialmente o beneficia.
Portanto, se citado o representante do réu, este nada fizer, o processo pros-
segue os seus trâmites, devendo a parte passiva sujeitar-se às consequências
jurídicas decorrentes da sua omissão.
Por último, convém dizer que sobre este tema o projecto do CPC, no essen-
cial, mantém-se na mesma linha das soluções legais subjacentes ao código em
vigor. No entanto, nos seus artigos 10.º e seguintes encontramos normas que
melhor densificam as questões atinentes a solução de controvérsias entre os
representantes dos incapazes, no caso da incapacidade por menoridade, bem
como os procedimentos para a nomeação de tutores e curadores, nas hipóte-
ses de incapacidade por interdição e por inabilitação.

2.3. Legitimidade das Partes. Noção e Elemento Funda-


mentador da Legitimidade
Contrariamente à personalidade e à capacidade judiciária, que são pressupos-
tos processuais que traduzem qualidades abstractas das partes, a legitimidade
é um pressuposto cuja verificação ou não verificação só se pode aferir relacio-
nando as partes a uma situação ou relação jurídica concreta.

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Resulta do referido no parágrafo anterior que a pessoa, singular ou colectiva,


se tiver personalidade e capacidade judiciárias estará habilitada a mover ou
contra si serem movidas quaisquer acções. No caso da legitimidade, quer a
activa quer a passiva, quando exista, viabiliza tão-somente o seguimento e o
julgamento do mérito daquela acção individualmente considerada.
A lei exige para o prosseguimento da acção que as partes formalmente consi-
deradas tenham, para além da personalidade e capacidade judiciárias, legitimi-
dade, justamente para permitir que a decisão de mérito que se venha a tomar
se possa repercutir na esfera jurídica dos respectivos destinatários, evitando-se
deste modo a prolação de decisões inúteis.
Portanto, para saber se as partes têm ou não legitimidade para a acção é ne-
cessário determinar qual é a sua posição face à pretensão deduzida em juízo,
como bem ensina o Professor Antunes VarelaXXVIII. Assim, se da análise que
se fizer se concluir que o autor e o réu têm necessidade de uma tutela jurisdi-
cional favorável, porquanto da procedência da acção pode resultar um ganho
para o autor e um prejuízo para o réu, estarão em juízo as partes legítimas.
Para este propósito o CPC, no seu artigo 26.º, estabelece que o autor é parte
legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima
quando tem interesse directo em contradizer, sendo este o critério primário
para a aferição da legitimidade das partes. Contudo, porque reconhece que em
concreto poder-se-ão suscitar dificuldades na determinação da legitimidade
das partes com base no critério do interesse directo, que como se disse acima,
exprime-se pela utilidade e concomitante prejuízo derivado da procedência da
acção tendo em vista respectivamente a perspectiva do autor e do réu, o CPC,
no n.º 3 do citado artigo 26.º, consagrou um critério supletivo.
Temos, assim, que, com base no n.º 3 do artigo 26.º, na falta de indicação em
contrário são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legi-
timidade os sujeitos da relação material controvertida, por se entender que são
eles que têm o poder de disposição sobre os bens ou direitos objecto do litígio.
Em relação a este critério surgiu na doutrina uma querela consubstanciada em
saber qual é a relação material controvertida que deve ser considerada, entre
aquela que é configurada pelo autor na petição inicial e aquela que se apresenta

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objectivamente ao tribunal depois de ouvidas as partes e produzidas provas. A


primeira posição, que é correspondente à tese subjectivista foi defendida pelo
Professor Barbosa de Magalhães e a segunda, que corresponde à tese objec-
tivista, foi defendida pelo Professor Alberto dos Reis que posteriormente foi
seguido, entre outros, pelo Professor Antunes Varela.
Sem termos a pretensão de reavivarmos aqui a discussão, convém frisar que
ganhou espaço a tese subjectivista porque torna-se cristalino que a aferição da
legitimidade com base na tese objectivista pressupõe uma prévia análise do mé-
rito da causa, sem a qual não seria possível saber quem são os efectivos sujeitos
da relação material controvertidaXXIX. Justamente por esta razão, caso, no con-
fronto das duas correntes, procedesse a defendida pelo Professor José Alberto
dos Reis, equivaleria a transferência do tema da legitimidade processual do plano
do pressupostos processuais, funcionalmente destinados a sindicar a regular for-
mação da instância, para o plano da apreciação e julgamento do mérito.
Actualmente, a jurisprudência angolana tem-se inclinado para a tese subjecti-
vista e, em termos de direito a constituir, o n.º 3 do artigo 24.º do projecto do
CPC expressamente refere que a relação material que deve ser tida em conta é
a que é configurada pelo autor na sua petição, pelo que, a vingar a proposta, o
assunto será definitivamente arrumado por via legislativa.
Contudo, é de ter em conta que a lei por diversas razões em certos casos
concede legitimidade a quem não é titular da relação material controvertida
ou só em parte é titular dessa mesma relação. Neste conjunto de situações,
enquadramos a legitimidade que é conferida a determinadas associações e ao
MP para defesa de interesses difusos, nos termos da Lei n.º 15/03, de 22 de
Julho e da Lei n.º 4/02, de 18 de Fevereiro, Lei da Defesa dos Consumidores
e Lei Sobre as Cláusulas Gerais dos Contratos, respectivamente, para além dos
casos da legitimidade do cabeça-de-casal, do testamenteiro e do administrador
da massa falida.
No que concerne à defesa de interesses difusos, o projecto do CPC procura con-
densar as várias situações de legitimidade extraordinária previstas em diversa legis-
lação avulsa no seu artigo 25.º, atribuindo para o efeito legitimidade, entre outros
entes, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa e ao MP.

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2.3.1. Legitimidade nas Relações com Pluralidade de Partes: Litiscon-


sórcio e a Coligação
Como já ficou dito noutro lugar, a relação jurídico-processual, que se com-
pleta com a citação do réu, é uma relação triangular integrando a par deste o
autor e o tribunal – sujeito imparcial que intervém exclusivamente na busca da
realização do interesse público.
Sendo assim, nesta matéria a regra é a da dualidade de partes, autor e réu, mas
em certos casos a dualidade de partes dá ou pode dar lugar a pluralidade, que,
por sua vez, pode ser activa, passiva ou mista.
Há lugar à pluralidade de partes activa quando dois ou mais autores demandam
conjuntamente um réu e há lugar à pluralidade passiva se um autor demanda
simultaneamente dois ou mais réus. Por conseguinte, a pluralidade será mista
quando dois ou mais autores demandam simultaneamente dois ou mais réus.
A jusante da sua tríplice caracterização, quanto ao momento da sua formação,
a pluralidade de partes pode ser inicial ou sucessiva, sendo que a pluralidade
de partes sucessiva resulta genericamente da dedução de incidentes proces-
suais por via dos quais terceiros intervêm em acções pendentes que inicial-
mente contavam apenas com um sujeito em cada um dos lados, por exemplo,
o incidente de habilitação regulado no artigo 371.º e seguintes. Já a pluralidade
inicial, como já a seguir melhor se explicitará, está geneticamente imbricada
com a figura do litisconsórcio necessário que exige ab initio a intervenção na
acção de todos os sujeitos da relação material controvertida.
Quanto à fonte, as situações de pluralidade de partes podem derivar de im-
posição legal, da vontade ou convenção das partes ou da própria natureza da
relação ou situação jurídica.
Independentemente da fonte de que brotam, podem ter duas naturezas distin-
tas, a de litisconsórcio, necessário ou voluntário, e a de coligação.
No caso do litisconsório a pluralidade de partes activa ou passiva corresponde
a uma única relação material controvertida que é titulada por vários sujeitos,
mas no caso da coligação a pluralidade de partes corresponde à pluralidade de
relações materiais controvertidas.

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No litisconsórcio voluntário a pluralidade de partes resulta apenas da vontade


delas, daí que há uma simples acumulação de acções, conservando cada um
dos litigantes uma posição de independência em relação ao outro, como se lê
no artigo 29.º do CPC, in fine.
Por conseguinte, a não intervenção de algum dos compartes não gera qualquer
ilegitimidade, devendo o tribunal apenas conhecer da quota-parte do interes-
se da parte ou partes que intervieram – artigo 27.º. Por exemplo, nos litígios
que envolvem a contitularidade de direitos reais, a legitimidade processual activa
mostra-se assegurada ainda que a acção seja movida só por um dos compossui-
dores (artigo 1286.º do CC) ou por um dos comproprietários (n.º 2 do artigo
1405.º do CC), mas estes podem optar pela intervenção conjunta.
Apesar da referida independência da posição dos litigantes em sede do litis-
consórcio voluntário, que radica no facto de defenderem interesses cindíveis,
é conveniente a demanda de todos os interessados na relação material contro-
vertida em virtude do que dispõe o princípio da relatividade do caso julgado,
nos termos das disposições conjugadas dos artigos 498.º e 673.º, ambos do
CPC. Ou seja, por via da intervenção de todos os interessados permitir-se-á
que a decisão que se venha obter na acção lhes seja oponível.
Em relação ao litisconsórcio necessário, por estarem em causa interesses in-
cindíveis, a intervenção plural das partes que titulam a situação ou relação
material controvertida é imposta por lei (litisconsórcio necessário legal), por
convenção própria das partes (litisconsórcio necessário convencional) ou pela
própria natureza da relação material controvertida (litisconsórcio necessário
natural). Porque assim é, por força do disposto no n.º 1 do artigo 28.º do CPC,
a não intervenção de um dos interessados na relação material controvertida é
motivo de ilegitimidade.
A título ilustrativo, veja-se o artigo 18.º do CPC, que impõe a necessidade de
ser movidas por ambos os cônjuges ou por um com o consentimento do ou-
tro as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por
ambos possam ser alienados, ou a perda de direitos que só por ambos possam
ser exercidos. No plano passivo, o artigo 19.º do mesmo diploma legal diz
que devem ser propostas contra o marido e a mulher as acções emergentes de

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facto praticado por ambos os cônjuges, as acções emergentes de facto prati-


cado por um deles mas em que se pretenda obter decisão susceptível de ser
executada sobre bens comuns ou sobre bens próprios do outro.
Ora, a questão que se coloca é a de saber quais são as consequências jurídicas-
-processuais que decorrem do facto de, em violação ao preceituado nos arti-
gos 18.º e 19.º, a acção apenas foi movida por um dos cônjuges quando devia
ter sido movida pelos dois, ou foi movida contra um dos cônjuges quando
devia ter sido movida contra os dois.
Nessas situações, por força da interpretação conjugada dos artigos 23.º e 24.º
do CPC, em primeira instância caberá ao juiz o suprimento da ilegitimidade,
fixando prazo para fazer intervir no processo o cônjuge ausente ou obter dele
o consentimento que se impuser.
Se o problema se colocar no lado activo da relação processual e, decorrido
o prazo que o juiz fixar, o cônjuge ausente não intervier na acção, o réu é
absolvido da instância, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 28.º; se intervier e
ratificar os actos anteriormente praticados, o processo segue como se o vício
não existisse, mas se não ratificar fica sem efeito todo o processado posterior
ao momento em que a falta se deu, como resulta do n.º 2 do artigo 23.º.
Levantando-se o problema no lado passivo, ou seja, quando o autor move a
acção contra um dos cônjuges quando devia ter sido movida contra os dois,
o juiz deve fixar prazo para o autor promover a citação do outro. Se persistir
em demandar apenas um dos cônjuges, também por aplicação da cominação
prevista no artigo 28.º, o cônjuge demandado indevidamente deve ser absol-
vido da instância.
Como as situações de litisconsórcio necessário convencional nos parecem não
suscitar quaisquer dificuldades na sua avaliação, passamos de imediato para a
análise dos casos de litisconsórcio necessário natural.
A propósito do litisconsórcio necessário natural, dispõe o n.º 2 do artigo 28.º
do CPC que é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados
na relação material controvertida quando, pela própria natureza da relação ju-
rídica, ela seja necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal.
Refere ainda esta norma que a decisão produz o seu efeito útil normal sempre

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que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definiti-


vamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Para elucidar o sentido da norma acabada de transcrever, ensina-nos o Profes-
sor Remédio Marques que o efeito útil normal de uma decisão judicial consiste
na composição definitiva do litígio entre as partes relativamente ao pedido
formulado, de modo que o caso julgado material possa abranger todos os
interessados, evitando tornar-se incompatível com a decisão eventualmente
obtida numa outra acçãoXXX.
Aqui, porque se conserva alguma divisibilidade do objecto do litígio, a decisão
a tomar não vincula necessariamente todos os interessados na relação material
controvertida, mas regula definitivamente o litígio em relação às partes que
intervêm no processo. Para caracterização dessas situações, é essencial que a
solução dada ao litígio não possa ser afectada por uma outra que venha even-
tualmente ser dada numa outra acção que posteriormente possa ser movida
contra as mesmas partes.
Por exemplo, numa acção que se pretenda a declaração de que um determinado
logradouro (quintal) é parte comum de um prédio e não propriedade exclusiva
de um dos condóminos, deve ser proposta por todos os demais condóminos,
para se viabilizar a composição definitiva do litígio relativamente a todas as par-
tes (condóminos) e evitar a possibilidade de acção ser movida apenas por um e,
neste caso, obtendo-se uma decisão favorável possa ser afectada por uma outra
decisão que posteriormente venha a ser movida por outros condóminos.
Já no que à coligação diz respeito, a pluralidades de partes corresponde a plu-
ralidades de relações materiais controvertidas ou, com referência à linguagem
do n.º 1 do artigo 30.º do CPC, na coligação temos pluralidades de partes e
diversidade de pedidos.
Tratando-se aqui de interesses cindíveis, por razões de economia processual,
verificados determinados pressupostos, permite-se a coligação de vários auto-
res para demandarem um ou vários réus, coligação activa, mas também é per-
mitido um autor demandar conjuntamente vários réus, coligação passiva ou
conjunção de réus como também certos sectores da doutrina preferem referir.

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Seja como for, para que seja admissível a coligação é necessária a verifica-
ção alternativa de um dos pressupostos seguintes: (i) que os diversos pedidos
formulados estejam sustentados pela mesma causa de pedir; (ii) os anteditos
pedidos estejam entre si numa relação de dependência ou prejudicialidade; e
(iii) a procedência dos pedidos formulados dependa essencialmente da apre-
ciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras
de direito ou de cláusulas contratuais análogas, ainda que seja diversa a causa
de pedir.
Contudo, é preciso ter em conta que a validade da coligação, nos termos do
artigo 31.º do CPC, depende do facto de os diversos pedidos formulados cor-
responderem a mesma forma de processo e é necessário que o tribunal seja
competente internacionalmente e em razão da matéria e da hierarquia para
conhecer dos diversos pedidos.
Não obstante o que se acaba de dizer, a diversidade da forma de processo que
derive unicamente do valor dos pedidos não deve obstar a coligação. Exem-
plificando, se a um dos pedidos for atribuído valor que, com base nos critérios
consagrados no artigo 462.º do CPC, o processo adequado seria o declarativo
comum sumário e ao outro pedido fixar-se valor que determinaria a aplica-
ção do processo declarativo comum ordinário, deve ser seguida a tramitação
prevista para o processo ordinário, por conter maiores garantias processuais
para as partes fazerem valer as suas pretensões. Mas se um dos pedidos cor-
responder processo comum e a outro processo especial já não é admissível a
coligação.
Não menos despicienda é a prerrogativa reconhecida ao tribunal de, indepen-
dentemente de se verificarem os requisitos para válida coligação, poder deter-
minar ser preferível que as causas sejam instruídas, discutidas e julgadas em
processos separados, sendo que esta determinação deve ser feita em sede do
despacho saneador e, uma vez concretizada, pressupõe a extinção da instância
sem prejuízo de as partes, no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado
do despacho saneador, puderem mover novas acções separadamente – n.º 2 do
artigo 31.º, in fine.

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Da interpretação conjugada da alínea e) do n.º 1 do artigo 288.º e da alínea i)


do n.º 1 do artigo 494.º, conclui-se que a coligação ilegal, isto é, a que for feita
sem a observância dos pressupostos plasmados no artigo 30.º, determina a
absolvição do réu e a consequente extinção da instância.
Na retina do projecto, o tema da coligação absorve grande parte das soluções
actuais do CPC, contudo duas notas inovadoras não devem ser perdidas de
vista. A primeira, consagrada no n.º 2 do artigo 32.º do Projecto, tem a ver
com o facto de se aos diversos pedidos corresponder formas de processo
diferentes, mas não absolutamente incompatíveis, havendo interesse relevante
ou quando a apreciação conjunta das pretensões for indispensável para a justa
composição do litígio, o tribunal puder autorizar a cumulação, devendo nesses
casos adaptar a tramitação a cumulação autorizada.
A norma aludida no parágrafo anterior, contrariamente ao que sucede no re-
gime actual do CPC, a título excepcional poderá viabilizar a coligação mes-
mo em situações em que a um dos pedidos corresponder forma de processo
comum e ao outro forma de processual especial, o que nos parece melhor
ajustado a preocupação geral de fazer prevalecer a apreciação do mérito das
causas em detrimento dos meros julgamentos de forma.
A segunda, mas não menos importante, prende-se com o facto de o Projecto
propor que nos casos em que não sejam observados os pressupostos para a
válida coligação, antes de determinar a absolvição do réu, o juiz deve notificar
o autor para, no prazo que lhe for fixado, indicar qual o pedido que pretende
ver apreciado no processo, sob pena de não o fazendo o réu ser absolvido da
instância quanto a todos os pedidos.

2.4. O Interesse Processual. Noção e Consequências da Fal-


ta de Interesse Processual
Este pressuposto processual tem como principal especificidade o facto de a
lei não o consagrar expressamente, mas pacificamente a doutrina aceita a sua
existência e encontramos no CPC algumas normas que se traduzem em mani-
festações desse pressuposto.

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A sua função primordial é evitar que as partes recorram precipitadamente à


tutela jurisdicional e, consequentemente, os tribunais se vejam sobrecarrega-
dos com acções desnecessárias, cuja gestão sempre implica gastos contabilizá-
veis e não contabilizáveis por parte do Estado.
Ao contrário dos demais pressupostos processuais relativos às partes, o inte-
resse processual não constitui uma qualidade a elas intrínseca, mas traduz uma
situação objectiva dessas mesmas partes face à relação jurídica controvertida.
Nesse contexto, o interesse processual deve ser entendido como a necessidade
objectiva de o autor ou o réu usar do processo, sendo que este pressuposto
assume maior relevo no lado activo da relação jurídico-processual.
Portanto, para o que autor possa mover uma acção, entre outros pressupostos,
deverá estar numa situação em que objectivamente careça de tutela jurisdicio-
nal não podendo servir-se do processo para a satisfação de meros caprichos
ou de interesses de cariz meramente subjectivo.
Queremos com isso dizer que só se deve requerer tutela jurisdicional quando
se pretenda satisfazer uma necessidade justificada, razoável e fundada. Logo,
a título de exemplo, não é viável a interposição de uma acção para o reconhe-
cimento do direito de propriedade de um apartamento na centralidade do
Kilamba quando ninguém contestou a referida propriedade e não se verificou
qualquer violação ou limitação das faculdades inerentes ao direito e nem se-
quer há qualquer ameaça de violação.
Facilmente se distingue o interesse processual da personalidade e capacidade
judiciárias, bem como da legitimidade, que como já acima referimos represen-
tam qualidade inerentes às partes.
Só para ilustrar, no que concerne à legitimidade, o autor pode ser o sujeito da
relação material creditícia e nesta medida potencialmente poderá a vir a ter a
necessidade da sua apreciação jurisdicional, mas, no momento, carece de inte-
resse processual pelo simples facto de o sujeito passivo da relação estar ainda a
cumprir pontualmente as suas obrigações, ou seja, a realizar as suas prestações
nos exactos momentos em que se vão vencendo.
Como também já acima aludimos, o interesse processual releva-se essencial-
mente do lado do autor e a sua falta determina o indeferimento liminar da pe-

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tição inicial ou a absolvição do réu da instância, consoante o momento em que


a falta for detectada. Todavia, do lado do réu, uma vez citado, poderá subsistir
o seu interesse no prosseguimento da acção, daí que o artigo 296.º condicione
a desistência da instância quando requerida depois do oferecimento da con-
testação à aceitação do réu.
Entendeu aqui o legislador deixar ao arbítrio do réu decidir se se satisfaz com
a mera absolvição da instância ou se prefere que a acção prossiga até julga-
mento final de mérito para, em definitivo, afastar a possibilidade de poder a
vir ser novamente importunado com o mesmo assunto pela mesma pessoa.

2.5. Preterição do Tribunal Arbitral


No uso da liberdade contratual que norteia as relações jurídicas privadas, as
partes, por várias razões, nomeadamente, mas sem se limitar, por procurarem
maior celeridade e melhor adequação dos critérios a utilizar à natureza da re-
lação que desenvolvem, o que pode resultar, por exemplo, na possibilidade de
recorrerem à equidade, podem julgar conveniente que os litígios que eventual-
mente surgirem no decurso da relação sejam julgados por tribunais arbitrais,
em detrimento do tradicional recurso aos tribunais estaduais.
Se assim entenderem, o mecanismo de que dispõem para viabilizar a sua pre-
tensão é a celebração de uma convenção de arbitragem, ou seja, de um negó-
cio jurídico bilateral por via do qual exprimem a vontade comum de subtrair
a resolução de um conflito de interesses aos tribunais estaduais diferindo tal
competência a um tribunal arbitral, ad hoc ou institucionalizado.
Na generalidade dos casos, a convenção de arbitragem aparece inserida den-
tro do contrato que estabelece o conjunto de direitos e deveres subjacentes à
relação que as partes desenvolvem, mas nada impede que seja firmada num
instrumento separado. O que é relevante para que seja celebrada de forma
eficaz e válida é que sejam observados os requisitos formais e substanciais
estabelecidos pela Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), Lei n.º 16/03, de 25
de Julho.

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No que concerne aos requisitos formais, o artigo 3.º da LAV estabelece que a
convenção deve ser celebrada por escrito, considerando como tal a convenção
inserida em qualquer documento assinado pelas partes ou qualquer corres-
pondência trocada entre elas de que reste prova por escrito.
Quanto aos requisitos substanciais, o artigo 1.º da LAV consagra que só po-
dem celebrar a convenção de arbitragem aqueles que dispuserem de capaci-
dade contratual e o seu conteúdo só pode incidir sobre direitos ou relações
jurídicas disponíveis, e por essa mesma razão arbitráveis.
Logo, os menores, os interditos ou inabilitados, ainda que por intermédio dos
seus representantes, não podem celebrar convenções de arbitragem e o Es-
tado e as demais pessoas colectivas públicas têm a sua capacidade contratual
limitada, porquanto só podem celebrar convenções de arbitragem para dirimir
questões respeitantes às relações de direito privado e nos casos de contratos
administrativos, sem prejuízo dos casos especialmente estabelecidos por lei.
A montante, a LAV considera não arbitráveis os litígios respeitantes a direitos
ou relações jurídicas indisponíveis, colocando fora do âmbito da convenção
de arbitragem, por exemplo, as relações de filiação, os direitos de personalida-
de e os direitos morais de autor.
É importante referir aqui que o artigo 2.º da LAV distingue duas espécies
de convenção de arbitragem, a cláusula compromissória e o compromisso
arbitral. A cláusula compromissória é a convenção segundo a qual as partes
se obrigam a dirimir através de árbitros os litígios que venham a decorrer de
uma determinada relação jurídica contratual ou extra-contratual, ao passo que
o compromisso arbitral é a convenção segundo a qual as partes se obrigam a
dirimir através de árbitros um litígio actual, quer ele se encontre ou não afecto
a um Tribunal Judicial.
No caso da cláusula compromissória, o eventual futuro litígio funciona como
uma condição suspensiva da possibilidade de uma das partes promover a
constituição do tribunal arbitral.

98
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Havendo uma convenção de arbitragem celebrada de harmonia com a lei e


com a vontade das partes, verificados os condicionalismos contratados, as
partes são obrigadas a submeter o litígio ao tribunal arbitral, sob pena de esta-
rem a violar o negócio jurídico que firmaram.
Ocorrendo a violação da convenção, essa é invocável perante os tribunais
estaduais configurando a excepção dilatória da preterição do tribunal arbitral
que, nos termos das disposições combinadas da alínea e) do n.º 1 do artigo
288.º e da alínea h) do n.º 1 do artigo 494.º, ambos do CPC, gera a absolvição
do réu e consequente extinção da instância.
Entretanto, se a convenção de arbitragem for celebrada extrajudicialmente
na pendência da acção, por força do preceituado na alínea b) do artigo 287.º,
configurará uma causa de extinção da instância.

2.6. Patrocínio Judiciário. Noção, Constituição Obrigatória


de Advogado e Consequências da Falta ou Irregularida-
de do Mandato
2.6.1. Breves Notas sobre a Assistência Judiciária e Sobre a Defesa Pú-
blica
Essencialmente por duas ordens de razão, sendo uma de cariz psicológico e
outra de cariz técnico, não se aconselha que sejam as próprias partes litigantes
a conduzirem os processos judiciais, ou seja, a praticarem os actos processuais
necessários para a defesa das suas pretensões.
A luta processual desperta nas partes emoções que as privam da serenidade
de espírito necessária para a melhor ponderação na escolha dos meios e das
estratégias mais adequadas para assegurar uma defesa eficaz. Num outro pla-
no, na generalidade dos casos, as partes não possuem conhecimentos técnico-
jurídicos necessários para a exacta valoração das razões que lhes assistem face
ao direito aplicável, justamente por não possuírem formação neste ramo de
saber, o Direito.

99
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Face ao supra exposto, o mais aconselhável é que a condução e a orientação


técnica dos processos sejam deixadas a cargo dos profissionais do foro, que o
fazem exercendo o patrocínio judiciário. Portanto, o patrocínio judiciário con-
siste na assistência técnica jurídica que os profissionais do foro, advogados e
advogados estagiários, prestam às partes na condução do processo, praticando
os actos jurídico-processuais necessários para a defesa das pretensões dos seus
representados.
O patrocínio judiciário, qual tale acaba de ser caracterizado, não deve ser con-
fundido com a assistência técnica que é prestada aos advogados durante a
produção da prova e a discussão da causa quando no processo se suscitem
questões de natureza técnica para as quais o advogado não tenha a necessária
preparação, como por exemplo questões relativas ao domínio da Engenharia
Civil ou do domínio da Biomedicina – artigo 42.º do CPC.
Os advogados são habilitados a representarem as partes nos processos, como
se disse, praticando em nome e por conta delas os actos necessários à defesa
das pretensões dos seus representados, por via do mandato judicial que lhes
é conferido.
As partes podem conferir mandato judicial aos advogados por via de um con-
trato que celebram ou por via de uma procuração que outorgam, sendo a
procuração um negócio jurídico unilateral realizado pela parte que a outorga.
Estes dois primeiros instrumentos para a concessão do mandato judicial po-
dem ser lavrados por instrumento público ou por documento particular, mas
neste segundo caso com intervenção notarial, mais concretamente, por via do
reconhecimento notarial da assinatura das partes ou da parte.
A jusante, o mandato judicial também pode ser conferido por declaração ver-
bal da parte no auto de qualquer diligência que se pratique no processo, como
se pode conferir no artigo 35.º do CPC.
Conferido mandato ao advogado, os poderes forenses nele compreendidos,
em regra, apenas o habilitam a representar o mandante, portanto, a parte que
outorgou a procuração, em todos os actos e termos do processo, presumindo-
se incluídos nesses poderes gerais o poder de substabelecer o mandato a um
outro advogado – artigo 36.º e n.º 1 do artigo 37.º.

100
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para que o advogado possa, em nome e no interesse do seu representado,


confessar acção, transigir sobre o objecto e desistir do pedido ou da instância,
nos termos do n.º 2 do artigo 37.º, é necessário que lhe tenha sido outorgada
uma procuração com poderes especiais para o efeito, sendo que esta mesma
procuração deve individualizar a causa e autorizar expressamente a prática de
tais actos.
Excepcionalmente, isto é, nos casos em que não há tempo suficiente para, por
via dos instrumentos a que aludimos, se possa conferir mandato ao advogado,
portanto, em casos de urgência, a lei permite que o patrocínio judiciário seja
exercido a título de gestão de negócio – artigo 41.º.
Quando o patrocínio é exercido nesse circunstancialismo, a validade dos actos
praticados pelo advogado fica condicionada à posterior ratificação do repre-
sentado e, na eventualidade de este os não ratificar, o advogado gestor será
condenado nas custas que provocou e na reparação do dano que possa ter
causado à parte contrária.
É imperioso referir que não obstante as razões que aconselham que a con-
dução dos processos seja feita por profissionais do foro, a lei não obriga as
partes a serem representadas por advogados em todas as acções. Na sequência
da não generalização desta obrigação, o patrocínio judiciário só se reveste da
natureza de pressuposto processual nos casos elencados na norma do artigo
32.º do CPC, que são justamente os casos em que o legislador optou por esta-
belecer a obrigação de representação das partes por advogado.
Temos assim que é obrigatória a constituição de advogado nas acções em que
seja admissível o recurso ordinário das decisões nelas proferidas, nas causas
em que seja sempre admissível recurso independentemente do valor, como
exemplo nas acções de despejo, artigo 980.º do CPC, e nos recursos e nas
causas propostas nos tribunais superiores. No que aos inventários se refere,
só é obrigatória a constituição de advogado para se suscitarem ou discutirem
questões de direito, como resulta do n.º 3 do artigo 32.º.
Sendo obrigatória a constituição de advogado, a sua falta gera os efeitos nor-
mais da falta de um pressuposto processual. Contudo, por razões de economia
processual, a lei permite que antes de se extraírem as consequências legais da

101
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

respectiva falta seja concedida a parte faltosa a possibilidade de sanar o vício,


o que é feito mediante um despacho (convite) a fixar prazo para o efeito –
artigo 33.º
Se decorrido o prazo fixado a parte se mantiver inadimplente, tratando-se do
autor, o réu é absolvido da instância e se a falta respeitar ao réu a defesa fica
sem efeito.
Concatenado com o tema do patrocínio judiciário, embora com um âmbito
mais alargado, está o tema da assistência judiciária. A propósito, dispõe o ar-
tigo 29.º da CR que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais,
não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
Como resulta do conhecimento geral, para pôr em funcionamento o sistema
de administração da justiça, o Estado necessariamente incorre em despesas,
daí que para suportar essas mesmas despesas, em regra, cobre uma taxa –
taxa de justiça – aos beneficiários deste serviço. Os profissionais do foro,
que como também é consabido são profissionais liberais, para prestarem o
patrocínio judiciário a que nos referimos nos parágrafos precedentes cobram
honorários aos seus constituintes.
Da conjugação destes dois factores, se não fosse a intervenção do Estado nos
termos que a seguir explicitaremos, resultaria a exclusão dos cidadãos econo-
micamente menos capazes do acesso ao direito e aos tribunais.
Para evitar o cenário acabado de admitir, que é inconcebível num Estado de
direito, o legislador ordinário, por intermédio do Decreto-Lei n.º 15/95 de
10 Novembro, curou de materializar o princípio constitucional plasmado no
referido artigo 29.º da CR, que entretanto transitou da Lei Constitucional de
1992 (conforme artigo 36.º).
O Decreto-Lei n.º 15/95 instituiu o Sistema Nacional de Assistência Judiciá-
ria, cujo objectivo, com base no seu artigo 1.º, consiste em providenciar para
que a justiça não seja denegada a ninguém por insuficiência de meios econó-
micos, sendo que a operacionalidade deste sistema constitui uma responsa-
bilidade conjunta do Estado e das instituições representativas da profissão
forense, máxime, da Ordem de Advogados de Angola.

102
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No âmbito da assistência judiciária se compreende, por um lado, a dispensa


total ou parcial do pagamento dos preparos e das custas (taxa de justiça) por
parte dos cidadãos com insuficiência económica e, por outro lado, a possibili-
dade de obterem patrocínio judiciário gratuito. Quanto ao patrocínio judiciá-
rio, é assegurado por advogados indigitados pela Ordem e que são por esta
remunerados por intermédio dos recursos que o Estado aloca para o efeito.
Nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 15/95 beneficiam de assistên-
cia judiciária os cidadãos que estiverem a receber alimentos por necessidade
económica, que reunirem as condições exigidas para atribuição de quaisquer
subsídios em razão da sua carência de rendimentos e que tiverem rendimentos
mensais provenientes do trabalho iguais ou inferiores a três vezes o salário
mínimo nacional.
Com a entrada em vigor da Constituição da República de 2010, que sobre o
tema programaticamente consagra o instituto da Defesa Pública, no plano da
reforma do judiciário actualmente em curso, a discussão tem passado por se
decidir se se mantém o actual modelo de assistência judiciária, que tem tradi-
ção firme nos países que integram a família jurídica romano-germânica, ou se
adopta o modelo anglo-saxónico, onde a assistência judiciária fica a cargo de
um órgão da administração pública (Instituto Público) que contrata profissio-
nais do foro que em exclusivo se dedicam a esta tarefa.

2.7. A Competência. Noção e Figuras Afins


Dispõe o artigo 174.º da CR que os tribunais são órgãos de soberania com
competência de administrar a justiça, nomeadamente dirimindo os conflitos
de interesses públicos ou privados e assegurando a defesa dos direitos e inte-
resses legalmente protegidos.
Esta função constitucional, tendo em conta o princípio da trilogia de poderes
sobre o qual assenta a organização do Estado angolano, correspondente ao
poder jurisdicional que é genericamente exercido por todos os tribunais que
integram a estrutura judiciária do país.

103
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Por conseguinte, é necessário que haja critérios que permitam a repartição


deste poder jurisdicional, portanto, de julgar os conflitos, entre os diversos
tribunais existentes. Assim, a repartição do poder de jurisdicional entre os
tribunais, que nos conduz ao âmbito da competência, é feita por intermédio
das regras ou normas sobre a competência – artigos 61.º e seguintes do CPC.
A competência traduz, assim, a parcela do poder jurisdicional que, com base
nos critérios legalmente consagrados, é atribuída a cada um dos tribunais que
integram a estrutura judiciária. No entanto, esta noção de competência reflec-
te a perspectiva da competência abstracta dos tribunais, como bem ensina o
Professor Antunes VarelaXXXI.
Na perspectiva concreta, ainda no alinhamento do pensamento do citado Pro-
fessor, competência significa que um determinado tribunal tem poder para
julgar uma acção individualizada, ou seja, que a acção cabe dentro da esfera da
competência abstracta do tribunal.
Se o conceito de competência deriva do conceito de jurisdição, este entendi-
do como o poder abstractamente reconhecido aos tribunais de administrar a
justiça, nos termos que já acima explicitámos, temos que o segundo conceito
é de natureza polissémica.
Interpretando o artigo 115.º do CPC, concluiremos que jurisdição pode ainda
traduzir o espaço de intervenção dos diversos órgãos da administração do Es-
tado, bem como o espaço de intervenção dos tribunais que sejam de espécie
diferente.
Concretizando, se tivermos um órgão do poder Executivo, por exemplo, o
Governo Provincial de Luanda, e um órgão do poder Judiciário, o Tribunal
Provincial de Luanda, a reclamarem poderes para conhecer da mesma ques-
tão, teremos patente um conflito de jurisdição, no caso um conflito positivo.
Também haverá um conflito de jurisdição se tribunais de espécie diferente,
por exemplo, o Tribunal Constitucional e o Tribunal Supremo, reclamarem
poderes para julgar a mesma questão. Se a contradição se colocar no plano de
tribunais da mesma espécie, tratar-se-á não já de um conflito de jurisdição mas
sim de um conflito de competências.

104
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A distinção acabada de estabelecer reveste-se de importância prática na me-


dida em que, atendendo ao plano ou ao nível em que o conflito positivo ou
negativo se coloca, a lei elege um órgão diferente para o dirimir.
Assim, com base na organização judiciária traçada pela Lei n.º 18/88, em
conjugação comos artigos 71.º e 72.º do CPC, temos que os conflitos de com-
petência são resolvidos pela Câmara do Cível e do Administrativo do Tribunal
Supremo (conforme alínea d) do artigo 19.º da Lei n.º 18/88), ao passo que
os conflitos de jurisdição são dirimidos pelo Plenário do Tribunal Supremo,
conforme reza a alínea c) do artigo 15.º da mesma lei.
Já com base na Lei n.º 2/15, que como se sabe traça uma organização judi-
ciária que progressivamente irá substituir a estabelecida pela Lei n.º 18/88, a
responsabilidade para dirimir os conflitos de competência é atribuída ao Ple-
nário do Tribunal da Relação, como se lê no artigo 21.º da Lei n.º 1/16 de 10
de Fevereiro (Lei Orgânica dos Tribunais da Relação), mantendo-se o Plenário
do Supremo com a missão de dirimir os conflitos de jurisdição.
O projecto do CPC ocupa-se desta matéria nos artigos 113.º e seguintes. No
essencial, propõe a manutenção da competência para dirimir os conflitos de
competência no Tribunal da Relação que exerça jurisdição sobre as autori-
dades em conflito e a competência para dirimir os conflitos de jurisdição no
Tribunal Supremo. A par disso, estabelece um procedimento bastante simpli-
ficado para o incidente de dedução desses conflitos, conferindo-lhe carácter
urgente e reconhecendo legitimidade para o suscitar ao juiz da causa, oficiosa-
mente, e ao MP e às partes – artigos 115.º, 116.º e 117.º.

2.7.1. Modalidades da Competência: Competência Internacional e


Competência Interna
A resolução de conflitos de interesses advenientes de relações jurídicas pluri-
localizadas, entendidas como sendo as relações que no seu desenvolvimento
mantêm contacto com mais do que um ordenamento jurídico, pressupõe a
prévia determinação da competência internacional dos tribunais angolanos
face aos tribunais dos demais estados.

105
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A questão aqui consiste em saber qual dos tribunais dos estados, com os quais
a relação jurídica manteve contacto, serão abstractamente competentes para
julgar as acções que se mostrarem necessárias para a composição dos litígios.
Para realização deste desiderato, o CPC, no seu artigo 65.º, estabelece quatro
princípios ou critérios para a determinação da competência internacional dos
tribunais angolanos, nomeadamente, o critério da coincidência, da causalida-
de, da reciprocidade e o da necessidade. Antes de avançarmos na análise do
conteúdo de cada um dos critérios elencados, convém esclarecer que, por
força do consagrado no artigo 13.º da CR, os critérios previstos no artigo 65.º
do CPC só são aplicáveis quando não existir um tratado ou acordo interna-
cional de que o Estado angolano seja parte, por um lado, e, por outro lado, os
critérios consagrados naquele normativo não são de verificação cumulativa,
ou seja, basta que se verifique um deles para que os tribunais angolanos se
considerem competentes internacionalmente.
Ademais, não se deve confundir a questão da determinação da competência
internacional dos tribunais angolanos com a questão da eleição ou determi-
nação da lei materialmente competente para resolução do conflito, caindo a
segunda questão no âmbito do Direito Internacional Privado. Em termos prá-
ticos, pode suceder que, com base na aplicação de um dos critérios previstos
no artigo 65.º, os tribunais angolanos sejam competentes para julgar a acção,
mas a lei material aplicável ao conflito seja a de um outro país com a qual a
relação manteve contacto.
Regressando ao artigo 65.º, encontramos consagrado na alínea a) do n.º 1 o
critério da coincidência, nos termos do qual os tribunais angolanos são inter-
nacionalmente competentes quando, segundo as regras da competência ter-
ritorial estabelecidas pela lei angolana, a acção deve ser proposta em Angola.

106
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Por conseguinte, o legislador fez coincidir a competência internacional dos


tribunais angolanos com a competência interna em razão do território, que
vem regulada nos artigos 73.º e seguintes do CPC. Assim sendo, não obstante
os elementos de conexão que a relação que está na base da acção tenha com
outras ordens jurídicas, sempre que da aplicação das regras sobre a competên-
cia territorial resultar que a acção deva ser instaurada em Angola, os tribunais
angolanos serão competentes no plano internacional.
Por exemplo, se uma empresa namibiana vinculada à Endiama E.P subcon-
tratar uma empresa sul-africana para que esta forneça material de exploração
mineira para as actividades diamantíferas na Lunda Sul, caso a empresa sul-
-africana viole as obrigações que assumiu, por aplicação da regra contida no
artigo 74.º do CPC, sobre a competência territorial dos tribunais angolanos
em acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações ou a indemniza-
ção pelo não cumprimento, o Tribunal Provincial da Lunda Sul, lugar do cum-
primento da obrigação, no caso, a entrega do material de exploração mineira,
é o territorialmente competente para a julgar acção. Nesse circunstancialismo,
por força do invocado princípio da coincidência, os tribunais angolanos são
internacionalmente competentes.
Na alínea b) do n.º 1 do artigo em análise, portanto, o artigo 65.º do CPC,
está contido o princípio da causalidade. Segundo este princípio, para que os
tribunais angolanos sejam internacionalmente competentes para julgar uma
acção basta que o facto ou um dos factos, nas situações em que a causa de
pedir seja complexa, que fundamenta(m) o pedido que se formule ao tribunal
tenha(m) ocorrido em território angolano. Por hipótese, se uma empresa con-
golesa democrática, que ao abrigo de um projecto de investimento privado,
explora madeira na floresta do Maiombe, em Cabinda, se obriga a fornecer
madeira a uma empresa do Congo Brazzaville e a segunda reclama por repa-
ração de prejuízos decorrentes de fornecimento de 10 toneladas de madeira
deteriorada, basta que o factor que determinou a deterioração da madeira se
tenha verificado em Angola, por exemplo, mau acondicionamento da madeira
no camião que a transportou e chuva intensa na região do Belize, para que os
tribunais angolanos sejam competentes internacionalmente.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No plano doutrinário, este princípio tem sido objecto de críticas pelo facto de,
nos casos em que a causa de pedir seja complexa, o facto ocorrido em Angola
seja o menos relevante de potenciar situações de algum exagero, atribuindo
competência internacional aos tribunais angolanos com base num elemento
de conexão em nada relevante na justa apreciação da causaXXXII.
Prosseguindo, na alínea c) do artigo que nos ocupa está consagrado o prin-
cípio da reciprocidade, nos termos do qual os tribunais angolanos são com-
petentes internacionalmente quando, sendo réu um estrangeiro e o autor um
angolano, o angolano possa ser demandado perante os tribunais do Estado
a que pertence o réu. Portanto, com base neste princípio, concede-se aos ci-
dadãos angolanos a possibilidade de demandarem estrangeiros sempre que,
invertidos os papéis na relação material controvertida, os angolanos possam
ser demandados no estrangeiro.
Como se vê, a racionalidade subjacente a esta norma assenta mais em conside-
rações de natureza política, protecção dos cidadãos nacionais face aos estados
estrangeiros, do que em valorações estritamente jurídicas e/ou de viabilidade
processual. Por ser pacífico este entendimento, de jure condendo defende-se a
eliminação deste princípio ou critério atributivo da competência internacional
dos tribunais angolanos, até porque a referenciada protecção dos cidadãos na-
cionais pode ser efectuada eficazmente com base no princípio da necessidade
desde que correctamente interpretado.
Neste alinhamento, o projecto do CPC aponta para a revogação da actual
alínea do c) do n.º 1 do artigo 65.º e densifica o conteúdo do princípio da
necessidade na alínea c) do futuro artigo 66.º, de modo a incorporar a ideia
da reciprocidade. Para tanto, avança-se com a seguinte proposta de redacção:
«os tribunais angolanos são internacionalmente competentes quando o direito
invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em
território angolano ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na pro-
positura da acção no estrangeiro, desde que exista um elemento ponderoso de
conexão pessoal ou real entre o objecto do litígio e a ordem jurídica angolana».
Regressando ao direito vigente, temos consagrado o princípio da necessidade
na alínea d) do n.º 1 do artigo 65.º do CPC que à letra refere que os tribunais

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

angolanos são internacionalmente competentes quando não puder o direito


tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunal angolano,
desde que entre a acção a propor e o território angolano exista qualquer ele-
mento ponderoso de conexão pessoal ou real.
Por esta via, procura-se assegurar protecção judiciária naquelas situações em
que, havendo um elemento de conexão entre a relação jurídica controvertida
e a ordem jurídica angolana, nenhum dos tribunais do estado ou estados com
a qual a relação manteve contacto reclama pela competência para a julgar a
acção dela decorrente. Por exemplo, um angolano pretende exigir de outro
angolano o cumprimento de uma obrigação decorrente de um contrato ce-
lebrado e executado na Zâmbia, mas os tribunais zambianos não se julgam
competentes para julgar a acção. Aqui, atento ao elemento de conexão pessoal
existente – a nacionalidade das partes – os tribunais angolanos são chamados
a intervir.
Não podemos abandonar este tema sem referir a proposta que o legislador
técnico traz à colação no artigo 67.º do projecto do CPC. Aí, abraçando uma
solução actualmente contida na Lei n.º 10/86, de 15 de Setembro (Lei que
altera o artigo 99.º do CPC), é proposta a competência internacional exclusiva
dos tribunais angolanos em matérias, entre outras, de direitos reais sobre imó-
veis e de arrendamentos de imóveis situados em território angolano e em ma-
téria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Angola.

2.7.2. Competência Interna


Definida a competência internacional dos tribunais angolanos ou não se colo-
cando o problema pelo facto de a relação material controvertida a compor se
ter desenvolvido exclusivamente dentro dos limites do território nacional, im-
põe-se determinar qual dos tribunais que integram a estrutura (organização)
judiciária do país em concreto será o competente para a acção.
A determinação da competência interna dos tribunais angolanos é feita com
base em quatro ordens de razão, nomeadamente: (i) a competência em razão
da matéria; (ii) a competência em razão da hierarquia; (iii) a competência em
razão do valor; e (iv) a competência em razão do território.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.7.3. Competência em Razão da Matéria


Para compreensão do modo de determinação da competência dos tribunais
angolanos em razão da matéria, torna-se imperioso o domínio da organização
judiciária do país. Como não podia deixar de ser, o ponto de partida para a
análise deste tema é o artigo 176.º da CR.
O artigo 176.º da CR, no seu n.º 1, dispõe que os tribunais superiores na
República de Angola são o Tribunal Constitucional, o Tribunal Supremo, o
Tribunal de Contas e o Supremo Tribunal Militar. Já nos n.os 2 e 3, o mesmo
artigo vem dizer que o sistema de organização e funcionamento dos tribunais
compreende uma jurisdição comum, encabeçada pelo Tribunal Supremo e
integrada igualmente por tribunais da relação e outros, e que pode ser criada
uma jurisdição administrativa, fiscal e aduaneira autónoma encabeçada por
um tribunal superior.
A ideia a reter aqui é a de que a CR programaticamente traça uma organização
judiciária assente no princípio da especialização, pondo de um lado os tribunais
de jurisdição comum, que são os que mais interessam para o processo civil,
e, por outro lado, os tribunais de jurisdição especializada, onde temos a nível
superior os Tribunais Constitucional, de Contas e o Supremo Tribunal Militar.
A complexidade, a vastidão e a sensibilidade de determinadas matérias jurídi-
cas aconselha a que o seu tratamento esteja a cargo de um corpo de magistra-
dos especializados que a elas exclusivamente se dedicam, aparecendo, assim,
o Tribunal Constitucional a ocupar-se das matérias de natureza jurídico-cons-
titucional, o Tribunal de Contas a ocupar-se da fiscalização da legalidade das
finanças públicas e do julgamento das contas que a lei sujeitar à sua jurisdição
e o Supremo Tribunal Militar que é o órgão superior da hierarquia dos tribu-
nais militares – artigos 180.º, 182.º e 183.º, ambos da CR.
No que concerne à jurisdição comum, que como se disse acima constitui o
nosso metier, nos termos dos artigos 66.º e 67.º do CPC são tribunais com ple-
nitude de jurisdição e a sua competência material é determinada por exclusão
de partes, isto é, sempre que a lei não submeter a apreciação de determinada
matéria a um tribunal de jurisdição especializada serão os tribunais de jurisdi-
ção comum os competentes.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A organização dos tribunais de jurisdição comum, actualmente, mas com carác-


ter transitório, está subordinada a dois regimes, o estabelecido pela Lei n.º 18/88
(Lei do Sistema Unificado da Justiça) e o estabelecido pela Lei n.º 2/15.º (Lei da
Organização e do Funcionamento dos Tribunais de Jurisdição Comum) – que,
como já foi dito noutro lugar, há-de revogar na totalidade a Lei n.º 18/88.
Com base na Lei n.º 18/88, a jurisdição comum tem no topo o Tribunal Su-
premo, com jurisdição alargada a todo território nacional, ao nível intermédio
os tribunais provinciais, cuja jurisdição tendencialmente se circunscreve nos
limites da circunscrição administrativa (província) em que o tribunal tenha a
sua sede e na base os tribunais municipais, havendo também aqui coincidência
entre a jurisdição do tribunal e os limites da sede do município em que o tri-
bunal em causa tenha a sede.
Resulta da organização da Lei n.º 18/88 que a plenitude de jurisdição em pri-
meira instância compete aos tribunais provinciais e que estes são em regra de
competência genérica, sendo que os tribunais municipais apenas conhecem as
causas que a lei submeter à sua apreciação, isto sem prejuízo das competências
próprias do Tribunal Supremo.
No entanto, os tribunais provinciais internamente e de acordo com a necessi-
dade do movimento processual, repartem ou podem repartir a sua competên-
cia por salas especializadas, aparecendo, assim, a Sala do Cível e Administra-
tivo, a Sala da Família, a Sala dos Crimes Comuns, a Sala do Trabalho, a Sala
das Questões Marítimas, a Sala do Contencioso Fiscal e Aduaneiro e, mais
recentemente, a Sala do Julgado de Menores.
Quando o movimento processual não justificar a divisão da orgânica interna
dos tribunais provinciais em salas especializadas por matérias, estes funcio-
nam com salas únicas de competência genérica, competindo aos mesmos juí-
zes o conhecimento de todas as questões que são levadas ao crivo do tribunal,
com todos os inconvenientes que daí possam resultar, visto que é muito difícil
para os juízes terem o desejado domínio de todas as matérias jurídicas, dada a
reconhecida vastidão dos ramos de direito.
A Lei n.º 2/15 começa por abandonar o princípio da coincidência entre a
organização judiciária e a organização administrativa do país, subjacente ao

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

mapa judiciário estabelecido pela Lei n.º 18/88, e em sua substituição introduz
o princípio da proximidade da justiça ao cidadão, que se consubstancia num
corolário do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva – n.º 5 do
artigo 29.º da CR.
Nesta esteira, e com vista essencialmente à repartição do poder jurisdicional
pelos tribunais que com base nesta Lei passam a integrar a organização judi-
ciária, começa por dividir o território nacional em regiões judiciais e provin-
ciais judiciais, sendo que as provinciais judiciais, por sua vez, se desdobram em
comarcas – artigo 20.º
Temos assim que o país passa a contar com cinco regiões judiciais, cujos li-
mites geográficos determinam a jurisdição dos tribunais da Relação e que as
províncias judiciais correspondem às províncias da divisão política-adminis-
trativa.
Cada província judicial conta com o número de comarcas estabelecido no
mapa III anexo à Lei, realçando-se neste tema o facto de a jurisdição de uma
comarca poder abarcar o território de um ou mais municípios da mesma pro-
víncia – artigos 22.º e 23.º.
Dividido o território nacional, a Lei consagra uma organização judiciária co-
mum que tem no topo o Tribunal Supremo, ao nível intermédio os Tribunais
da Relação e na base os Tribunais de Comarca. Os Tribunais da Relação são,
em regra, os tribunais de segunda instância e os Tribunais de Comarca os de
primeira instância, recuperando o Tribunal Supremo a sua vocação natural de
tribunal de revistaXXXIII– artigo 24.º.
Na questão específica da competência em razão da matéria, esta Lei atribui a
plenitude da jurisdição em primeira instância aos tribunais de comarca e esta-
belece como regra a sua competência genérica, querendo significar que estes
conhecem todos os processos relativos a todas as causas não atribuídas por lei
a outros tribunais, entenda-se, de jurisdição especializada – artigo 49.º.
Sem prejuízo da aludida competência genérica, internamente, à semelhança do
que já acontece com os actuais tribunais provinciais, os tribunais de comarca
estruturam-se em salas especializadas em razão da matéria. No âmbito desta
especialização, são criadas a Sala do Cível e Administrativo, a Sala das Ques-

112
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

tões Criminais, a Sala da Família, Menores e Sucessões, a Sala do Trabalho, a


Sala do Comércio, Propriedade Intelectual e Industrial, a Sala das Questões
Marítimas, a Sala do Contencioso Fiscal e Aduaneiro e a Sala de Execução de
Penas, cujas competências vêm discriminadas do artigo 50.º ao artigo 60.º.
Para finalizar, incentivado pelo espírito de harmonização do sistema, o legisla-
dor técnico, em sede do projecto do CPC, propõe o artigo 72,º sob a epígrafe
Tribunais e Salas de Competência Especializada, em que se limita a dizer que
as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da
matéria, são da competência dos tribunais e das salas dotadas de competência
especializada.
Sem descurar futuras leis que sobre a matéria possam vigorar, não se come-
terá nenhum pecado se afirmamos aqui que o legislador teve essencialmente
em conta as Salas Especializadas que introduziu na organização judiciária a
coberto da Lei n.º 2/15.

2.7.4. Competência em Razão da Hierarquia


Como fizemos referência no ponto anterior, a organização judiciária do país
comporta tribunais de jurisdição comum a par de tribunais de jurisdição es-
pecializada. Dentro de cada categoria de tribunais, entre os comuns e os espe-
cializados, podemos encontrar um modelo ou estrutura organizativa assente
na hierarquia.
No que aos tribunais de jurisdição comum diz respeito, temos na base da
estrutura os Tribunais de Comarca, no plano imediatamente superior os Tri-
bunais da Relação e no topo o Tribunal Supremo.
Antes de prosseguirmos, convém deixar claro que a hierarquia enquanto mo-
delo de organização judiciária reveste-se características distintas e é vocacio-
nada para a realização de fins diversos da hierarquia enquanto modelo de
organização administrativa.

113
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Como modelo de organização administrativa, a hierarquia caracteriza-se pela


existência de poderes de direcção por parte dos superiores hierárquicos e pe-
los concomitantes deveres de subordinação por banda dos inferiores, o que
não se verifica no plano do judiciário.
Ora, face ao princípio da independência dos tribunais, previsto no artigo 175.º
da CR, os juízes dos tribunais inferiores no exercício das suas funções não es-
tão sujeitos ao poder de direcção dos juízes dos tribunais superiores, devendo
apenas actuar de acordo com os ditames da lei e da sua consciência.
Por conseguinte, a hierarquia judiciária releva apenas no que tange ao po-
der que, em sede da apreciação dos recursos, os tribunais superiores têm de
revogarem ou confirmarem as decisões dos tribunais inferiores, nos termos
previstos nos artigos 70.º, 71.º e 72.º do CPC.
Contudo, ao interpretar as normas dos citados artigos 70.º, 71.º e 72.º, con-
soante a organização judiciária com a qual estivermos a lidar, dever-se-ão ter
em conta as modificações introduzidas pelas alíneas a) e f) do artigo 15.º,
alínea a) do artigo 19.º e alínea b) do artigo 31.º, ambos da Lei n.º 18/88, pelo
artigo 29.º da Lei n.º 2/15 e pelo artigo 28.º da Lei n.º 1/16, 10 de Fevereiro
(Lei Orgânica dos Tribunais da Relação).
A jusante do que se acaba de dizer, a hierarquia judiciária também é relevante
para efeito da determinação dos órgãos competentes para dirimir os conflitos
de jurisdição e de competência, nos termos já explicitados no ponto 2.7.
Também não é despicienda a competência que, por vezes, é originariamente
atribuída aos tribunais superiores para julgarem em primeira instância deter-
minadas espécies de acções, como, por exemplo, as acções de indeminização
propostas contra magistrados judiciais e do MP por virtude de actos pratica-
dos no exercício do cargo, bem como as acções de revisão e confirmação de
sentenças estrangeiras, como se pode confirmar nas alíneas e) e f) do artigo
19.º da Lei n.º 18/88 e nas alíneas c) e d) do artigo 28.º da Lei n.º 1/16.
Esta matéria, basicamente nos mesmos modos, é retomada pelo Projecto nos
artigos 68.º a 70.º.

114
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.7.5. Competência em Razão do Valor


Da competência em razão do valor se ocupam os artigos 68.º e 69.º do CPC,
tema que entretanto é concretizado a posteriori pela Lei n.º 18/88 e pela Lei
n.º 2/15.
Na análise que agora se impõe devemos distinguir, por um lado, a competência
externa, que é a que nos permite dividir o poder jurisdicional entre os diversos
tribunais, portanto, competência jurisdicional propriamente dita, e, por outro
lado, a competência interna ou funcional, que dentro de um mesmo tribunal
ajuda a determinar qual é o órgão que se ocupará do julgamento da causa.
Na perspectiva externa, o artigo 68.º do CPC nos diz que os tribunais inferio-
res conhecem das causas que a lei submete à sua apreciação até ao limite do
valor expressamente designado, e no enfiamento aparece a Lei n.º 18/88 que
na alínea a) do seu artigo 38.º estipula que compete aos Tribunais Municipais
preparar e julgar os processos de valor não superior a Kz 100.000,00 (cem mil
Kwanzas).
Em virtude da acentuada desvalorização da moeda nacional ocorrida entre
1988 a 2015, a Lei n.º 2/15, no seu artigo 99.º, actualizou a competência em
razão do valor dos Tribunais Municipais existentes no quadro da Lei n.º 18/88
para a quantia de Kz 10,000.000,00 (dez milhões de Kwanzas).
Aqui, devemos compreender que a competência em razão do valor se reveste
de importância sempre que, a par dos tribunais com plenitude de jurisdição
em primeira instância, a lei prever a existência de tribunais inferiores aos quais
atribui competência para julgar causas até um determinado valor, como ex-
pressamente se refere o artigo 99.º do CPC.
Contudo, é de referir que apesar de a Lei n.º 18/88 prever os Tribunais Munici-
pais com a antedita competência em razão do valor, do ponto de vista prático,
os tribunais municipais que chegaram a ser instituídos nunca exerceram a sua
competência cível, acabando os Tribunais Provinciais por se encarregarem de
julgar todas as causas cíveis independentemente do seu valor. Acreditamos nós
que apesar da actualização desta competência feita pela Lei n.º 2/15, tendo em
conta que para que os tribunais municipais possam efectivamente julgar acções
cíveis de valor igual ou inferior a Kz 10.000.000,00 (dez milhões de Kwanzas) é

115
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

necessário um prévio ajustamento da sua orgânica interna e que se está a viver


uma fase transitória que conduzirá necessariamente à extinção desses tribunais,
no plano prático tal competência não chegará a ser exercitada.
Já numa perspectiva interna, introduzida no nosso ordenamento jurídico pela
Lei n.º 2/15, a competência em razão do valor determina que nas acções cujo
valor seja superior ao dobro da alçada do Tribunal da Relação, a matéria de
facto seja julgada por um tribunal colectivo, constituído pelo Juiz Titular do
processo, que a ele preside, e por dois juízes de Direito. Se o valor da acção
não for superior ao dobro da alçada da Relação, tanto a matéria de facto como
a matéria de Direito são julgadas por juiz singular, passando portanto a singu-
laridade a ser a regra quanto à composição do Tribunal – artigo 45.º.

2.7.6. Competência em Razão do Território


No plano interno, os diversos tribunais que integram a organização judiciária
comum repartem o poder jurisdicional com base em áreas geográficas (cir-
cunscrições) que são especificamente atribuídas a cada um deles, daí resultan-
do a competência territorial de cada tribunal.
A competência territorial ou em razão do território é uma competência sub-
jectiva, porquanto determina a competência concreta de cada um dos tribu-
nais e não a competência de uma categoria de tribunais da mesma espécie e da
mesma hierarquia, por exemplo, os tribunais provinciais.
Além da atribuição de uma circunscrição judiciária, para determinação da
competência territorial dos tribunais, é decisiva a conexão que a causa a julgar
tenha com a circunscrição onde está situada a sede do tribunal.
Para o efeito, e como já acima ficou dito, à luz da Lei n.º 18/88 temos uma
organização judiciária do país que quase coincide com a organização admi-
nistrativa. Desta sorte, o país está dividido em 19 circunscrições judiciárias
(províncias) que, com excepção da Província de Benguela, os respectivos li-
mites geográficos são os mesmos das respectivas circunscrições da divisão
político-administrativa.

116
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Temos assim que a jurisdição dos tribunais provinciais, ou seja, a sua com-
petência territorial, se estende aos limites geográficos da província onde o
tribunal tenha a sua sede, sucedendo o mesmo relativamente aos tribunais
municipais.
Quanto ao Tribunal Supremo, a sua jurisdição, como não podia deixar de ser,
é alargada a todo o território nacional.
Voltando-nos para a Lei n.º 2/15, verificamos que para o mesmo fim, isto é,
para repartição territorial da jurisdição, o legislador começou por dividir o país
em regiões judiciais e províncias judiciais.
Neste ínterim, foram criadas cinco regiões judiciais cujos limites geográficos
determinam a jurisdição dos tribunais da Relação, conforme melhor se pode
divisar no Mapa I, anexo àquela lei. Prosseguindo, o legislador determinou
que as províncias judiciais correspondem às províncias da divisão política-ad-
ministrativa do país e que cada província agrega as comarcas da sua circuns-
crição territorial, nos exactos termos espelhados no Mapa II.
À semelhança da Lei n.º 18/88, a Lei n.º 2/15 mantem a jurisdição do Tribu-
nal Supremo alargada a todo o território nacional.
Compreendida que está a divisão judiciária do país, chegou o momento de
percebermos a conjugação que a lei de processo faz entre a circunscrição em
que determinado tribunal tem a sua sede e o elemento de conexão decisivo
para determinação da respectiva competência territorial.
Sobre esta questão, a regra é a que vem consagrada nos artigos 85.º e 86.º
do CPC, segundo a qual nos casos não previstos em disposições especiais é
competente territorialmente o tribunal em cuja circunscrição o réu tenha o seu
domicílio. Se, entretanto, o réu não tiver residência habitual ou for incerto ou
incapaz, deve ser demandado no tribunal do domicílio do autor, ocorrendo
nestes casos a substituição do elemento de conexão domicílio do réu pelo
domicílio do autor, sendo que esta substituição também se verifica quando o
réu seja o Estado.

117
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Se o réu for uma pessoa colectiva ou sociedade, a regra impõe que seja de-
mandado no tribunal da sede da administração principal ou no da sede da
sucursal, agência, filial ou delegação, conforme a acção seja dirigida contra
uma ou contra outra.
Nos casos em que haja pluralidades de réus, isto é, mais do que um réu, de-
vem ser todos demandados no tribunal onde estiverem domiciliados o maior
número, mas se for igual o número nos diferentes domicílios caberá ao autor
escolher qualquer um deles, como reza o n.º 1 do artigo 87.º do CPC.
A jusante da regra geral que acabamos de analisar, no artigo 73.º e seguintes
o CPC estabelece uma série de elementos de conexão que em determinadas
matérias são elegíveis para a fixação da competência territorial dos tribunais.
A partida, o 73.º consagra a regra do foro real ou da situação dos bens, segun-
do a qual devem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções rela-
tivas a direitos reais sobre imóveis, as acções para arbitramento, de despejo, as
de preferência sobre imóveis e ainda as de reforço e substituição de hipotecas.
Esta regra, além ter um alcance prático considerável, é de natureza imperativa
e está fortemente concatenada com o disposto no artigo 99.º da Lei n.º 10/86,
de 15 de Setembro, que atribui competência internacional exclusiva aos tribu-
nais angolanos para o julgamento de acções em que sejam discutidos direitos
sobre imóveis situados no território nacional.
No artigo 74.º vem estipulado o foro obrigacional, nos termos do qual a acção
destinada a exigir o cumprimento de obrigações ou a indemnização pelo não
cumprimento será proposta no tribunal do lugar em que, por lei ou por con-
venção escrita, a respectiva obrigação deva ser cumprida. Esta regra só opera
no âmbito da responsabilidade civil contratual, já em matéria da responsabili-
dade civil extracontratual, por força do disposto n.º 2 do artigo 74.º, o tribunal
territorialmente competente é aquele que está situado na circunscrição em que
o facto ilícito ocorreu.
Sobre este tópico, o Projecto do CPC, no que à responsabilidade civil contra-
tual diz respeito, sugere a alteração da regra da competência territorial do tri-
bunal do lugar em que, por lei ou convenção, a obrigação devia ser cumprida
pela regra da competência do tribunal do domicílio do réu. Porém, quando o

118
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

réu seja uma pessoa colectiva ou tenha domicílio no estrangeiro, concede-se


ao autor a possibilidade de optar pelo tribunal do lugar onde a obrigação devia
ser cumprida – conforme artigo 75.º do Projecto.
O mérito do proposto no artigo 75.º do Projecto radica em procurar sujeitar
a questão da determinação da competência territorial em sede da matéria da
responsabilidade civil contratual a um regime mais próximo à regra geralXXXIV,
por um lado, e, por outro lado, permitir que quando o autor seja uma pessoa
colectiva possa optar por um tribunal com menos tráfico jurídico em que ten-
dencialmente obterá a decisão final da causa em menos tempo, com todas as
vantagens advenientes para a sua razão social.
Para as acções de divórcio é competente territorialmente o tribunal do domi-
cílio ou da residência do autor, estabelecendo assim o artigo 75.º do CPC para
essa matéria o foro do autor. A regra do foro do autor é retomada no artigo
76.º do Projecto, mas com a particularidade de referir expressamente a sua
aplicabilidade às acções de reconhecimento de união de facto.
No que aos inventários se reporta (foro hereditário), dispõe o artigo 77.º do
CPC que o tribunal competente para o inventário e para a habilitação de uma
pessoa como sucessora por morte de outra é o tribunal do lugar da abertura
da sucessão, que nos termos do artigo 2031.º Código Civil é o lugar do último
domicílio do autor da sucessão (de cuius).
Quanto aos procedimentos cautelares, tratando-se de arresto ou de arrola-
mento, podem ser requeridos quer no tribunal onde deva ser proposta a acção
principal respectiva quer no tribunal do lugar onde os bens se encontrem; tra-
tando-se de embargo de obra nova, é competente o tribunal do lugar da obra.
Para os outros procedimentos cautelares é competente o tribunal em que deva
ser proposta a respectiva acção principal, para o qual os autos das providên-
cias devem ser remetidos para serem apensados aos autos da acção principal
– conforme artigo 83.º do CPC.
Relativamente às execuções, o tribunal competente para a execução fundada
em sentença é o tribunal de 1.ª instância onde correu o processo declarativo,
sendo que os autos da execução tramitam por apenso ao processo declarativo
de que resultou a decisão a executar – artigo 90.º do CPC. Sobre esta questão, o

119
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Projecto do CPC prevendo a existência de Salas de Competência Especializada,


no caso, para execuções, como se deixa expresso no artigo 43.º da Lei n.º 2/15,
impõe que quando a competência para execução seja diferida por lei a uma sala
especializada para esta deve ser remetida, com carácter de urgência, cópia da
sentença e do requerimento inicial da execução e dos documentos que o acom-
panham, para viabilizar a execução da decisão nos melhores prazos.
Fundando-se a execução num título executivo não judicial, deve ser instaurada
no tribunal do lugar do cumprimento da obrigação, nos casos de execução
para o pagamento de quantia certa, no tribunal do lugar onde a coisa se en-
contre, tratando-se de execução para entrega de coisa certa e no tribunal do
lugar da situação dos bens onerados, na hipótese de execução por dívida com
garantia real – artigo 94.º do CPC.
De uma maneira geral, o Projecto retoma a matéria da competência territo-
rial para as execuções nos mesmos moldes do CPC. Contudo, é de realçar a
proposta substituição da regra da competência territorial do tribunal do lugar
do cumprimento da obrigação pela competência do tribunal do domicílio do
executado, nos casos de execução fundada em título extra-judicial – artigo 95.º
do Projecto.

2.7.7. Extensão e Modificação da Competência


No artigo 96.º do CPC encontramos hipóteses em que a competência in-
terna dos tribunais determinada de acordo com as regras precedentes pode
conhecer extensões que permitem a determinado tribunal julgar questões que
sobrevêm no decurso de uma acção, mas que se fossem resolvidas em acções
especificamente movidas para o seu conhecimento carecia de competência
para as julgar.
O n.º 1 do artigo em causa prevê que o tribunal competente para a acção é
também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das
questões que o réu suscite como meio de defesa. Ora, é justamente do conheci-
mento dessas questões e matérias, portanto, das questões incidentais à questão
que constitui o objecto da causa e das matérias que o réu pode levantar para sus-
tentar a sua defesa, que podem resultar as extensões da competência do tribunal.

120
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Exemplificando, se A move contra B uma acção de responsabilidade civil fun-


dada no não cumprimento de uma obrigação pecuniária que nos termos do
contrato escrito firmado pelas partes deveria ter sido cumprida em Viana, a
referida acção deve corre no Tribunal Provincial de Luanda, que é o territo-
rialmente competente por aplicação da regra do artigo 74.º CPC.
Entretanto, se no decurso da acção, B que tem residência habitual no Bengo
falecer na sua residência, ao Tribunal Provincial de Luanda assistirá compe-
tência para julgar o incidente de habilitação que, nos termos do artigo 371.º do
CPC, será necessário lançar mão para habilitar os sucessores de B a intervirem
na acção. Todavia, se a questão da habilitação dos sucessores de B fosse colo-
cada em acção específica, inventário orfanológico obrigatório ou facultativo,
por imposição da regra consagrada no artigo 77.º, o tribunal territorialmente
competente seria o Tribunal Provincial do Bengo.
Mais, se na mesma acção que A moveu contra B, o segundo em sede da sua
defesa (contestação) deduzir pedido reconvencional contra A., alegando por
hipótese que ao abrigo do mesmo contrato A assumiu obrigação de pagar em
sua residência sita no Bengo em data determinada certa quantia, mas que não
cumpriu a obrigação e por isso deve ser condenado a pagar a dívida ou, em
alternativa, considerar-se extinta a sua obrigação por compensação, ao Tribu-
nal Provincial de Luanda também assiste competência para julgar a matéria da
reconvenção. Porém, se o problema fosse colocado em acção especificamente
movida, o tribunal territorialmente competente também seria o Tribunal do
Bengo, por força do disposto no já citado artigo 74.º.
Contudo, as decisões que o tribunal profere no âmbito do conhecimento de
questões incidentais apenas têm força obrigatória dentro do respectivo pro-
cesso (caso julgado formal), o que significa que num outro processo envol-
vendo as mesmas partes no mesmo tribunal ou em tribunal diferente podem
ter um sentido decisório diverso.
Todavia, caso as partes pretendam que as referidas decisões constituam um
caso julgado material, isto é, que tenham força vinculativa obrigatória dentro
e fora do processo, obstando assim a sua apreciação num outro processo en-
volvendo as mesmas partes, é-lhes facultada a possibilidade de requererem o

121
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

julgamento com essa amplitude, mas tal pretensão só é viável se o tribunal em


causa for competente internacionalmente e em razão da matéria e da hierar-
quia – n.º 2 do artigo 96.º. A racionalidade desta solução busca-se na ideia da
economia e da celeridade processuais.
Agora, para que possa conhecer as questões que o réu suscitar em sede de re-
convenção, mesmo falecendo-lhe competência territorial, é imperioso possuir
competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, como se
lê no artigo 98.º do CPC.
A par das questões incidentais e do conhecimento das matérias suscitadas em
sede da defesa do réu, temos o tema das questões prejudiciais, que é objecto
de um tratamento diferente. O tratamento diferente dado pelo legislador tem
a ver com o facto de a especificidade das questões que aqui nos ocupam acon-
selhar o seu tratamento preferencial por tribunais especializados que garantem
maior probabilidade de acerto nas decisões.
Logo, as considerações de economia e celeridade processual que presidem às
soluções encontradas para os casos do conhecimento das questões incidentais
e das suscitadas no contexto da defesa do réu, aqui dão lugar a salvaguarda do
interesse do maior acerto ou perfeição da decisão, como bem ensina o Profes-
sor Antunes VarelaXXXV.
Assim, nos termos do artigo 97.º do CPC, quando o conhecimento do objec-
to da acção depender da decisão de uma questão que seja da competência do
tribunal criminal ou do tribunal administrativo, o juiz pode e deve sobrestar
(suspender) na decisão até que o tribunal competente se pronuncie.
A dependência entre o conhecimento do objecto da acção e a decisão da questão
da competência de outro tribunal (questão prejudicial) existirá sempre que a so-
lução dada à segunda seja susceptível de definir o sentido decisório da primeira.
Mas se a acção penal ou administrativa não for exercida no prazo de um mês
ou se o respectivo processo estiver parado, por negligência das partes, durante
o mesmo prazo, a lei reconhece ao juiz da causa competência para julgar a
questão prejudicial, mas com a particularidade de que a decisão que tomar
apenas produz efeitos dentro do processo, ou seja, constitui tão-somente um
caso julgado formal.

122
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para além dos casos de extensão ou prorrogação de competência, é de ter em


atenção os casos de modificação da competência, o que nos conduz à análise
dos pactos atributivos e privativos de jurisdição bem como à análise dos pac-
tos de competência.
Dos pactos privativos e atributivos de jurisdição ocupa-se o artigo 99.º do CPC.
Porém, antes de passarmos para a sua análise, é importante clarificar que os
pactos de jurisdição, nos termos em que são admissíveis, modificam as regras
de determinação da competência internacional dos tribunais angolanos. Porque
assim é, só se podem celebrar tais pactos quando a relação ou situação jurídica
controvertida que se pretende ver apreciada jurisdicionalmente tenha mantido
contacto com mais de uma ordem jurídica, portanto, seja plurilocalizada.
Quanto aos pactos privativos de jurisdição, o n.º 1 do artigo 99.º como regra
impõe a sua não admissibilidade (validade), nos casos em que os tribunais
angolanos, nos termos do artigo 65.º do CPC, tenham competência interna-
cional.
No entanto, se os contratantes (pactuantes) forem estrangeiros e se tratar de
uma obrigação que deva ser cumprida no estrangeiro e não se refira a bens
sitos em Angola, excepcionalmente são admitidos os pactos privativos de ju-
risdição. Neste particular, atendendo ao disposto na Lei n.º 10/86, de 15 de
Setembro, que como já acima se disse atribui competência internacional exclu-
siva aos tribunais angolanos para o julgamento de acções em que se discutam
direitos sobre imóveis ou sobre arrendamento de imóveis sitos em Angola,
comparativamente ao regulado no CPC, ficou ainda mais restringido o espaço
para a admissibilidade dos pactos privativos de jurisdição.
Já no que se reporta aos pactos atributivos de jurisdição, a regra é a da sua
admissibilidade quando por via deles se atribua competência internacional aos
tribunais angolanos nos casos em que sem a convenção eles a não teriam –
n.º 2 do artigo 99.º.
A lei é omissa quanto aos seus requisitos formais de validade, pelo que somos
de opinião que, com as devidas adaptações, devem ser observados os requi-
sitos de forma previstos para os pactos de competência, de que nos ocupare-
mos a seguir.

123
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No que aos pactos de competência diz respeito, a lei começa por impor a ine-
ficácia da vontade das partes para o pretenso afastamento das regras da com-
petência em razão da matéria e da hierarquia, por entender que estas procuram
a realização de interesses de cariz marcadamente público. Mas já permite o
afastamento por convenção das partes das regras sobre a determinação da
competência interna em razão do valor e do território – n.º 1 do artigo 100.º
A validade dos pactos de competência, quando admissíveis, fica subordinada
à observância de determinados pressupostos ou requisitos, nomeadamente:
(i) o respeito da forma do contrato em que está inserto, que deve ser necessa-
riamente a forma escrita; (ii) a designação das questões a que se refere; e (iii) a
designação do tribunal que passa a ser o competente.
É importante deixar explícito que a competência fundada na estipulação das
partes é tão obrigatória quanto a fundada na lei, como se pode confirmar no
n.º 3 do artigo 100.º do CPC.
Nesta matéria da modificação das regras sobre a competência dos tribunais, o
Projecto do CPC sugere alterações assinaláveis. Desde já, quanto aos pactos
privativos e atributivos de jurisdição que regula no artigo 99.º, contrariamente
ao que actualmente sucede com o CPC, começa por esclarecer que só têm
lugar nas hipóteses de relações materiais controvertidas plurilocalizadas, isto
é, que mantiverem conexão com mais de uma ordem jurídica.
É também de ter em atenção o facto de o Projecto permitir que a designa-
ção convencional de competência internacional possa ser feita exclusivamente
para uma jurisdição estrangeira ou, em alternativa, com a dos tribunais ango-
lanos – n.º 2 do artigo 99.º do Projecto.
O Projecto contém um elenco de requisitos formais e substanciais de validade
desses pactos muito mais enriquecido, isto em relação aos consagrados no arti-
go 99.º do CPC. Resulta do que acaba de se dizer que a validade desses pactos
fica condicionada ao facto de: (i) não incidirem sobre um litígio respeitante a
direitos indisponíveis; (ii) a atribuição de competência ser aceite pelo tribunal
designado; (iii) ser justificada por um interesse sério das partes ou de uma delas;

124
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

(iv) não recair sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais angolanos,
como é o caso das acções em que discutam direitos sobre imóveis; e (v) resultar
de acordo escrito ou confirmado por escrito.
De notar que o conceito de acordo escrito que se pretende introduzir é bas-
tante flexível, abarcando não só a forma tradicional de contrato assinado pelas
partes, mais também a troca de cartas, mensagens electrónicas ou outros meios
de comunicação de que fica prova escrita – n.º 4 do artigo 99.º do Projecto.
Relativamente aos pactos de competência, o Projecto no essencial submete-
-os aos mesmos requisitos formais e substanciais de validade dos pactos de
jurisdição. Nesta sede, a principal alteração a registar consiste no facto de a
lei proibir, a par da competência em razão da matéria e da hierarquia, o afas-
tamento por vontade das partes das regras sobre a competência em razão do
valor – artigo 100.º do Projecto.

2.7.8. Violação das Regras de Competência. Regime da Incompetência


Relativa e Regime da Incompetência Absoluta
No esquema da nossa lei processual, a violação das normas sobre a determi-
nação da competência dos tribunais não está sujeita às mesmas consequências.
Aqui, consoante a natureza pública ou privada dos interesses subjacentes à
norma violada, as consequências jurídicas decorrentes são mais ou menos
gravosas.
Nessa conformidade, temos que a violação das normas sobre a competência
internacional e da competência em razão da hierarquia e em razão da matéria
geram o vício da incompetência absoluta do tribunal, porque essas normas
procuram satisfazer o interesse público da boa administração da justiça – arti-
go 101.º do CPC. Mas no caso da determinação competência internacional, se
estiver apenas em causa a violação de um pacto privativo de jurisdição, o vício
decorrente não é o da incompetência absoluta, mas sim da incompetência
relativa, uma vez que os pactos privativos de jurisdição procuram a materiali-
zação dos interesses privados dos pactuantes.

125
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Já a violação das regras sobre a competência fundada no valor da causa e em


razão do território gera o vício da incompetência relativa do tribunal, pelas
mesmas razões que referimos a propósito da violação dos pactos privativos de
jurisdição – artigo 108.º do CPC.
No que tange à incompetência absoluta, dada a gravidade da falta cometida,
a lei permite que o vício seja arguido por qualquer das partes, autor e réu,
mas impõe o seu conhecimento oficioso pelo tribunal em qualquer estado
do processo enquanto não houver sentença transitada em julgado – n.º 1 do
artigo 102.º. Logo, podemos concluir que o vício da incompetência absoluta,
se estiver pendente recurso com efeito suspensivo, pode inclusive ser arguido
em segunda instância, ou seja, no tribunal competente para o julgamento do
recurso entretanto interposto.
Todavia, nos casos em que a competência seja de um tribunal materialmente
especializado, cuja institucionalização é permitida à luz do n.º 3 e do n.º 4 artigo
176.º da CR, mas a acção tiver sido proposta perante um tribunal comum (tribu-
nal provincial ou de comarca), a incompetência só pode ser arguida pelas partes
ou suscitada oficiosamente pelo tribunal até ao momento de ser proferido o
despacho saneador. Nessa situação, atendendo ao facto de aos tribunais comuns
assistir a plenitude da jurisdição, nos termos dos artigos 66.º e 67.º do CPC, o
legislador optou por se ter o vício por sanado se até à prolação do saneador o
problema não tiver sido levantado por nenhum dos sujeitos processuais.
Relativamente ao momento do seu conhecimento, se uma das partes arguir
o vício antes de proferido, o despacho saneador pode decidir-se sobre ele
imediatamente ou reservar-se a decisão para esse despacho, mas se o vício
for arguido depois de proferido, o saneador deve ser decidido imediatamente
– n.º 1 do artigo 103.º. O conhecimento do vício em sede da sentença final,
nos termos das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 103.º e do artigo
510.º, ambas do CPC, só pode ocorrer se no momento em que for proferido
o despacho saneador os autos não contiverem elementos de prova suficientes
para a sua decisão, sendo portanto ainda necessária a realização da instrução
e discussão da causa.

126
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Contudo, independentemente da arguição do vício por uma das partes antes


do despacho saneador, no momento da sua prolação, o juiz está obrigado a
certificar-se de que o tribunal é competente internacionalmente e em razão da
matéria e da hierarquia, o que equivale a dizer que deve certificar-se de que não
se verifica o vício da incompetência absoluta – artigo 104.º.
Quanto aos efeitos, temos que se a incompetência for verificada no momento
da prolação do despacho liminar determina o indeferimento liminar da peti-
ção inicial, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 474.º, mas se só for detec-
tada depois do despacho liminar determina a absolvição do réu da instância,
como resulta da conjugação do disposto no n.º 2 do artigo 493.º e na alínea f)
do n.º 1 do artigo 494.º, ambos do CPC.
Para encerrar o tema da incompetência absoluta, devemos referir que a deci-
são que sobre o assunto se tome, embora transite em julgado, não tem valor
algum fora do processo em que foi proferida, salvo se em sede do recurso o
Tribunal Supremo apreciar a questão e determinar qual é o tribunal compe-
tente em razão da matéria ou da hierarquia – artigos 106.º e 107.º do CPC.
Centrando-nos agora no vício da incompetência relativa, começamos por cons-
tatar que, ao contrário da incompetência absoluta, este vício só pode ser arguido
pelo réu e até ao prazo que for fixado para a contestação ou para apresentação
de outro de meio de defesa que ao réu seja lícito deduzir – n.º 1 do artigo 109.º.
Se passado o prazo para dedução da sua defesa o réu não arguir o vício, este
considera-se sanado, e compreende-se que assim seja uma vez que as normas
sobre a competência em razão do território e do valor prosseguem interesses
privados das partes, com maior pendor para o interesse do réu em ser deman-
dado num tribunal em que a organização e a gestão da sua defesa lhe acarre-
tem um menor dispêndio de tempo e de recursos.
O requerimento para arguição do vício da incompetência relativa deve ser
autuado por apenso aos autos, e do ponto de vista da sua tramitação, mutatis
mutandis, seguem-se os termos previstos para os incidentes da instância (arti-
gos 302.º a 304.º do CPC), pelo que arguido o vício, até à sua decisão, de facto
nos deparamos com os trâmites de um incidente da instância inominado, ou
seja, regulado fora do respectivo capítulo.

127
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

O incidente que a arguição do vício da incompetência relativa configura em


regra não suspende o andamento regular do processo, mas se os articulados
findarem antes do julgamento do incidente, nos dizeres da lei, da excepção,
os termos da causa ficam suspensos até que seja definitivamente decidida a
questão da incompetência – artigo 110.º.
Julgada procedente a excepção da incompetência relativa do tribunal, por força
das disposições conjugadas do n.º 3 do artigo 111.º, no 2, in fine, do artigo 493.º
e da alínea f), in fine, do n.º 1 do artigo 494.º, ambas do CPC, o processo deve
ser remetido para o tribunal competente, onde seguirá a sua normal tramitação.
No plano do direito a constituir, o Projecto do CPC, no que a incompetência
absoluta se refere vem acrescentar ao leque de normas sobre a determinação
da competência dos tribunais cuja violação gera este vício a preterição de tri-
bunal arbitral, voluntário ou necessário – alínea b) do artigo 101.º do Projecto.
Esta solução vem reflectir a importância que cada vez mais é reconhecida à
arbitragem como meio extra-judicial de resolução ou composição de litígios.
Uma outra inovação é a que vem apontada no n.º 2 do artigo 102.º do Pro-
jecto. Nesta norma, propõe-se que a violação das regras de competência em
razão da matéria que apenas respeitem aos tribunais de jurisdição comum, só
pode ser arguida ou oficiosamente conhecida até ser proferido despacho sa-
neador ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final.
Tem-se em vista nesses casos as hipóteses de a acção ter sido proposta, por
exemplo, na Sala do Cível do Tribunal Provincial de Luanda quando devia ter
sido proposta na Sala do Trabalho. Por estar em causa a violação de regra de
competência em razão da matéria respeitante a um tribunal comum, no caso o
Tribunal Provincial de Luanda, se a questão não for levantada nos horizontes
descritos no parágrafo anterior, o vício considera-se sanado.
Em relação à incompetência relativa, o Projecto começa por adicionar aos
seus fundamentos a violação dos pactos de competência, como se dispõem
no artigo 107.º

128
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No que respeita à legitimidade para a arguição do vício, o Projecto traça um


regime substancialmente diferenciado do regulado no CPC, que se pode ca-
racterizar como ecléctico.
Da interpretação a contrario sensu do 109.º do Projecto, somos a concluir que o
legislador técnico propôs situações taxativas em que o conhecimento do vício
deve ser feito oficiosamente pelo tribunal e que em todas as hipóteses que não
se enquadrarem na previsão daquela norma será necessária a prévia arguição
do réu dentro do prazo que lhe assiste para dedução da sua defesa, ao abrigo
do artigo 108.º do Projecto.
Sempre que os autos contiverem elementos de prova suficientes, o Projecto
propõe que o conhecimento oficioso da incompetência relativa deve ocorrer
quando esteja em causa a violação de regras sobre a competência nas causas a
que se refere o artigo 74.º, que estipula o foro da situação dos bens, nas causas
compreendidas na primeira parte do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 75.º, que deter-
mina a competência para o cumprimento de obrigações, e nas causas a que se
referem os artigos 94.º, 95.º e 100.º, nomeadamente, as execuções fundadas
em sentença estrangeira, as execuções para entrega de coisa certa ou por dívi-
da com garantia real e a violação de pactos de competência.
A jusante, o artigo 109.º indica que o conhecimento oficioso do vício deve
ocorrer nos processos cuja decisão não seja procedida de citação do requeri-
do, nas causas que por lei devam decorrer como dependência de outro proces-
so e, a montante, aponta que a incompetência do tribunal em razão do valor
deve ser sempre de conhecimento oficioso, seja qual for a acção em que se
suscite – confrontar alíneas b) e c) e n.º 2.
Nos casos de conhecimento oficioso da excepção, o juiz deve suscitar e de-
cidir a questão da incompetência até ao despacho saneador ou neste despa-
cho, mas se não houver despacho saneador a questão pode ser suscitada até à
prolação do primeiro despacho subsequente ao termo dos articulados (n.º 3
do artigo 109.º do Projecto). Ultrapassados os timings propostos nesta norma
sem que se suscite o vício, este deve ser dado por sanado, em nosso entender.

129
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Uma última mais não menos importante inovação sobre o tema prende-se
com o facto de, no que à tramitação diz respeito, a arguição da incompetência
relativa deixar de ter natureza incidental, isto é, de incidente da instância e,
consequentemente, propor-se à expurgação do efeito suspensivo residual que
no regime actual do CPC se pode verificar nas hipóteses cobertas pelo n.º 2
do artigo 110.º.
Assim, mesmo que a incompetência tenha sido arguida pelo réu, o autor pode
e deve responder no articulado subsequente da acção, mas se a tramitação da
acção não comportar mais nenhum articulado, poderá fazê-lo em articulado
próprio no prazo de dez (10) dias, sendo certo que o réu e o autor devem
oferecer as suas provas com o articulado da arguição ou da resposta – n.º 2 e
3 do artigo 108.º do Projecto.
Em relação à consequência, julgada procedente a excepção, à semelhança do
que está consagrado no CPC, o processo deve ser remetido para o tribunal
competente, onde seguirá a sua normal tramitação.

130
III PARTE
DINÂMICA DA RELAÇÃO JURÍDICA
PROCESSUAL
O Formalismo do Processo Declarativo Ordinário

1. Fases do Processo Declarativo Ordinário


No esquema traçado pela lei e assumido pela doutrina de forma quase unâni-
meXXXVI, do ponto de vista analítico, a tramitação do processo declarativo na
sua forma ordinária é divisível em cinco fases ou ciclos, comportando cada
uma deles actos processuais e objectivos específicos.
Radiografado o processo declarativo ordinário, da sua morfologia logicamen-
te, divisamos as seguintes fases: (i) dos articulados; (ii) do saneamento e da
condensação do processo, ou do julgamento antecipado da lide; (iii) da instru-
ção; (iv) da discussão e julgamento da causa; e (v) da sentença final.
Referimos que a divisão analítica do processo declarativo ordinário em cinco
fases tem uma base lógica e não cronológica, porque na sua tramitação pude-
mos assistir ao encadeamento e interpenetração de actos pertencentes a uma
fase noutra, por um lado, e que, por outro lado, pode suceder que o processo
termine sem que necessariamente se verifiquem todas as fases enunciadas.
Por exemplo, no âmbito da fase dos articulados, por imposição do artigo 523.º
do CPC, as partes devem apresentar com os articulados os documentos des-
tinados a fazer prova dos fundamentos da acção, sendo que a junção ou apre-
sentação de documentos constitui um acto probatório e, por isso, no plano
lógico respeitante à fase da instrução.

131
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Ademais, a acção pode terminar antes da sentença por força da desistência do


autor ou da transacção (acordo) que as partes efectuem no seu decurso (artigo
293.º), ou ainda pode-se verificar uma supressão da fase do saneamento e da
condensação e da fase de instrução, por desnecessidade, decorrente do facto
de o réu regularmente citado para a acção não a ter contestado, o que implica
a confissão de todos os factos invocados pelo autor, como melhor veremos
em sede própria – artigo 484.º.
Em suma, a ocorrência de circunstâncias anómalas, como as referenciadas a
título meramente exemplificativo nos dois últimos parágrafos, pode implicar
que o processo em concreto observe uma tramitação diferente da tramitação
tipo pré-definida por lei para as acções declarativas comuns na sua forma
ordinária.
Porque reservamos a análise dos actos sistemáticos praticáveis em cada uma
das fases, bem como dos correlativos princípios, para descrição casuística a
fazer, de momento iremos centrar-nos a estabelecer os objectivos específicos
prosseguidos em cada uma delas.
Neste prisma, a fase dos articulados constitui a fase introdutória do processo
e destina-se à apresentação do conflito de interesses ao tribunal (juízo) e a
delimitar o objecto do processo.
O objecto do processo é formado pelas pretensões das partes e pelo conjun-
to de razões de facto e de direito que invocam como fundamento das suas
respectivas pretensões. Todavia, a invocação das razões de facto, ou seja, das
ocorrências da vida social subjacentes à relação material controvertida, com-
parativamente à invocação das razões de direito, se reveste de maior impor-
tância, dado que na decorrência do preceituado no artigo 664.º do CPC, no
julgamento da causa, em regra, o juiz só se pode socorrer dos factos alegados
pelas partes, mas pelo contrário não está sujeito às alegações das partes no que
toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
As peças processuais por via das quais as partes introduzem o conflito de
interesses em juízo, delimitando o objecto do processo, denominam-se de
articulados, e ganham esta designação porque, com base no artigo 151.º do
CPC, nas acções, nos respectivos incidentes e nos procedimentos cautelares,

132
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

é obrigatória a dedução por artigos dos factos susceptíveis de serem levados à


especificação ou ao questionário.
A segunda fase, a do saneamento e da condensação do processo ou do julga-
mento antecipado da lide, abrange as finalidades que, de seguida, passamos
a indicar, mas é de ter em conta que a materialização de umas pode tornar
desnecessárias as outras.
a) Julgamento antecipado da lide, que deve ocorrer quando o processo con-
tiver elementos de prova suficientes paradecidir já nesta fase quer sobre
os pressupostos processuais quer sobre o mérito da causa;
b) Saneamento, se não for viável o julgamento antecipado, o juiz deve ve-
rificar a regularidade ou não da formação do processo, corrigindo todas
as irregularidades formais sanáveis (excepções dilatórias) e retirando do
processo (expurgando) todas as questões desnecessárias ou inúteis, se o
processo houver de prosseguir;
c) Condensação – saneado o processo, o juiz deve fixar as questões de fac-
to essenciais à decisão da causa, determinando por consequência entre
as questões de facto aquelas que se mostram controvertidas e, por isso,
ainda careçam de prova, que integra no questionário, e as já assentes
(provadas), que integra na especificação.
A terceira fase, a da instrução, destina-se à produção ou recolha dos elementos
de prova sobre os factos que, interessando à decisão da causa, não tenham
sido dados por assentes na fase anterior e inicia-se com a notificação que,
depois de fixado o questionário, a secretaria faz às partes para apresentarem o
rol de testemunhas e requererem quaisquer outros meios de prova de que se
pretendam se socorrer – artigo 512.º.
A quarta fase, a da discussão e julgamento da causa, desdobra-se em três ci-
clos processuais: (i) discussão ou debates orais sobre a matéria de facto, o que
inclui a apresentação prévia das pretensões das partes pelos respectivos patro-
nos; (ii) julgamento da matéria de facto; e (iii) discussão da matéria de direito.

133
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A quinta e última fase, da sentença, ocorre depois do julgamento da matéria


de facto e por via dela é proferida a decisão final da causa, aplicando-se o di-
reito aos factos provados.,

2. Fase dos Articulados. Noção e Enumeração


O artigo 151.º do CPC define articulados como sendo as peças processuais
escritas em que as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e for-
mulam os pedidos correspondentes.
Como já acima referimos, para facilitar a selecção entre a matéria de facto
aquela que carece de prova e a já assente, os articulados, por força do disposto
no n.º 2 do artigo 151.º, devem ser deduzidos por artigos, isto é, por intermé-
dio de preposições gramaticais seguidas e numeradas, qual tale sucede com os
textos legislativos.
Para além do que ficou dito no parágrafo precedente, os articulados devem
ser redigidos em língua portuguesa (artigo 139.º), assinados pela parte ou pelo
mandatário judicial quando o patrocínio judiciário seja obrigatório e devem
ser apresentados em duplicados, juntando-se tantos duplicados quantas as
pessoas a quem sejam opostos e que vivam em economia separada, salvo se
forem representadas pelo mesmo mandatário – artigo 152.º.
Os articulados que não que sejam acompanhados dos duplicados devidos não
devem ser recebidos pela secretaria, mas se a falta respeitar a petição inicial
esta deve ser recebida e o juiz marcará prazo para o autor os apresentar, sob
pena do seu indeferimento.
Além dos duplicados destinados a serem entregues à contraparte(s), deve-se
ainda juntar mais um exemplar de cada articulado para ser arquivado e servir
de base à reforma do processo em caso de descaminho – n.º 3 do artigo 152.º.
Analisada a tramitação da acção declarativa comum ordinária, constatamos
que, em regra, as partes podem produzir quatro (4) articulados, nomeadamen-
te, a petição inicial, a contestação, a réplica e a tréplica.

134
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Apresentada a petição inicial e não havendo razões para a secretaria a rejeitar


(artigo 213.º e 477.º do CPC) ou para indeferi-la liminarmente o réu é citado
para contestar. Recebida a contestação, independentemente do seu conteúdo,
esta é notificada à contraparte (autor) que pode responder por intermédio da
réplica, sendo que o réu pode opor-se à réplica por via da tréplica.
Como se vê, por imposição do princípio da igualdade processual das partes, a
lei concede a cada litigante a faculdade de produzir dois articulados, concreta-
mente, petição inicial e réplica para o autor e contestação e tréplica para o réu.
Mas se o réu em sede da tréplica deduzir algum pedido contra o autor ou se
se tratar de acção de simples apreciação negativa, a tréplica o autor pode ainda
responder por via da resposta à tréplica, que vem regulada no artigo 504.º do
CPC.
Fora da fase dos articulados, a título excepcional, a lei permite a apresentação
dos chamados articulados supervenientes, que se destinam a trazer para aos
autos factos ocorridos depois da apresentação do último articulado da parte,
superveniência objectiva, ou factos que, embora tenham ocorrido antes da
apresentação do último articulado, deles a parte só tomou conhecimento num
momento posterior, superveniência subjectiva – artigo 506.º.
Comparativamente ao regime actual, o Projecto caminha para uma acentuada
redução do número de articulados que, em regra, as partes poderão apresentar
no contexto da acção ordinária, que, caso a proposta vingue, deixarão de ser
quatro e passarão para dois – petição inicial e contestação.
De acordo com o Projecto, só será admissível a apresentação da réplica se,
na contestação, o réu deduzir uma excepção dilatória ou peremptória ou se
formular pedido reconvencional, casos em que o autor poderá replicar, mas
cingindo-se a réplica na resposta as excepções e/ou a matéria da reconvenção
– artigo 487.º do Projecto.
Admitida a réplica, nos termos prescritos no artigo 487.º do Projecto, e se
nesta for alterada a causa de pedir ou o pedido ou se o autor tiver deduzido
alguma excepção, ao réu também será admitido responder a réplica por via da
tréplica, mas cingindo a sua resposta à matéria da modificação e/ou da excep-
ção – artigo 488.º do Projecto.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.1. Petição Inicial. Conteúdo e Forma Externa


Por força do princípio do dispositivo, a acção não pode nascer por iniciativa
do juiz, sendo necessário que o titular do direito subjectivo ou da situação
jurídica violada ou ameada de violação requeira ao tribunal o meio de tutela
jurisdicional adequado à reparação do seu direito.
O instrumento processual de que o titular do direito violado dispõe para re-
querer a sobredita tutela jurisdicional é justamente a petição inicial, portanto,
a petição inicial constitui a peça processual escrita pela qual o autor propõe a
acção, alegando os fundamentos de facto e de direito e formulando o corres-
pectivo pedido ou pedidos (pretensão de tutela jurisdicional, ou seja, o efeito
jurídico pretendido) contra o réu.
Com base no artigo 467.º do CPC, a petição inicial é estruturada em quatro
partes, intróito ou cabeçalho, narração, conclusão e elementos complementa-
res, distinguindo-se entre esses indicadores os relativos à forma externa e os
relativos ao conteúdo interno ou substancial da petição.
No cabeçalho ou intróito, o autor deve começar por indicar ou designar o tri-
bunal para onde a acção é proposta, o que em termos práticos implica a deter-
minação da competência do tribunal, seguindo-se a identificação das partes,
que deve ser feita através da indicação dos seus nomes completos, estado civil,
residência, profissão e local de trabalho – alínea a) do artigo 467.º.
Ainda em sede do cabeçalho, o autor deve indicar a forma do processo, co-
mum ou especial, e na primeira hipótese referir se se trata de processo ordiná-
rio sumário ou sumaríssimo – alínea b) do artigo 467.º.
Após o intróito, segue-se a parte substancial da petição, isto é, a narração.
Neste momento, o autor deve expor de forma articulada os factos da vida real
que sustentam o efeito jurídico por si pretendido com a acção, mas também
deve expor as razões de direito sobre as quais assenta a sua pretensão, sendo
que o somatório dos factos e das razões de direito invocadas constituem a
causa de pedir, ou seja, os fundamentos do(s) pedido(s) – alínea c) do 467.º.
Não é demais referir que na causa de pedir, formada nos termos expressos
no parágrafo anterior, a narração dos factos sobreleva a invocação das razões

136
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

de direito, visto que no julgamento da acção em princípio o tribunal está su-


jeito às alegações das partes no que concerne à matéria de facto, o que já não
sucede quanto à matéria de direito, daí que, não obstante, seja de incentivar
a não invocação das razões de direito, que não gera qualquer irregularidade
processual, contrariamente à falta de indicação dos factos, como mais adiante
verificaremos.
Finda a narração, segue-se a conclusão, que consiste no requerimento da tutela
jurisdicional pretendida pelo autor, isto é, na formulação concreta do pedido
– alínea d) do artigo 467.º.
Para terminar a petição, por imposição da lei, o autor deve indicar alguns ele-
mentos complementares, nomeadamente, o valor da causa (alínea e) do artigo
467.º), a menção dos documentos destinados a fazer prova dos factos que
integram a causa de pedir (artigo 523.º) e, finalmente, a assinatura da parte
ou do mandatário, consoante seja ou não obrigatório o patrocínio judiciário.
A indicação do valor da causa é essencial para a determinação da forma do
processo, da admissibilidade ou inadmissibilidade de recurso ordinário da de-
cisão que se venha a tomar e para a quantificação do valor das custas judiciais.
Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/15 a questão da determinação
da competência em razão do valor já não merece a atenção que lhe era dispen-
sada, pois, como já ficou acima dito, deixando de existir tribunais inferiores
aos de comarca, a questão da competência em razão do valor passou a ser
uma questão de competência funcional e não de competência jurisdicional, ou
seja, releva apenas para saber dentro da orgânica de um mesmo tribunal qual
é órgão competente para julgar a acção, tribunal colectivo ou tribunal singular.
Mas, mesmo em sede da organização judiciária traçada pela Lei n.º 18/88, este
tema também não tem repercussão prática nenhuma, visto que os tribunais
municipais nunca chegaram a exercer a sua jurisdição cível.
Ao iniciarmos a abordagem deste ponto dissemos que na estrutura da pe-
tição inicial devemos distinguir entre elementos internos ou substanciais e
elementos externos, cabendo agora acrescentar que são também diferentes as
consequências jurídico-processuais que derivam da não observância de uns e
de outros.

137
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Se a petição contiver deficiências a nível dos seus elementos internos que não
possam ser corrigidas é inepta, sendo que a ineptidão da petição, determinan-
do a nulidade de todo o processo (n.º 1 do artigo 193.º), é uma das causas do
seu indeferimento liminar – alínea a) do n.º 1 do artigo 467.º).
A petição inicial é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido
ou da causa de pedir, quando o pedido esteja em contradição com a causa de
pedir ou quando se cumulem pedidos substancialmente incompatíveis – n.º 2
do artigo 193.º.
Já as deficiências a nível dos elementos externos, como sejam, a incorrecta
identificação das partes, a falta de assinatura da parte ou do mandatário, a
incorrecta indicação do valor da causa ou da forma do processo, em princípio
conduzem à correcção oficiosa do tribunal ou ao convite ao autor para que
efectue a necessária correcção – n.º 3 do artigo 474.º e n.º 1 do artigo 477.º.
No que se refere aos elementos da petição inicial, as inovações que o Projecto
traz à guisa prendem-se com facto de, em sede do cabeçalho, passar a ser exi-
gida a indicação do domicílio profissional do mandatário judicial e a indicação
do respectivo número de telefone e do e-mail, bem como do número de iden-
tificação fiscal – alínea b) do n.º 1 do artigo 457.º do Projecto.
Essas referências passam a ser obrigatórias para conferir praticabilidade à
ideia do reforço do princípio da cooperação que enforma toda a filosofia do
Projecto.
A par da junção dos documentos destinados à prova dos factos que consti-
tuem a causa de pedir, o Projecto passa exigir a apresentação imediata do rol
de testemunha e o requerimento dos demais meios de prova de que o autor
queira lançar mão, para além de impor a junção à petição do documento com-
provativo do prévio pagamento da taxa de justiça devida, salvo nos casos em
que a parte haja requerido o benefício da concessão de assistência judiciária
– n.os 2 e 3 do artigo 457.º do Projecto.

138
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.2. Entrega da Petição na Secretaria. Momento da


Propositura da Acção
Elaborada a petição inicial, esta deve ser remetida a juízo e a entrada da peti-
ção na secretaria do tribunal competente para o julgamento da causa marca o
início da instância, como se infere da leitura do n.º 1 do artigo 267.º do CPC.
Dada a importância do acto da propositura da acção, assente sobretudo no
facto de interromper o prazo de caducidade que eventualmente possa estar
sujeito o direito de propor a acção, nos termos do artigo 298.º do Código Ci-
vil, recebida a petição pela secretaria esta deve ser objecto de registo em livro
próprio, para além de se atestar o recebimento por via de um termo oposto
num dos exemplares da petição que deve ser entregue ao autor, vulgarmente
denominado por protocolo.
No entanto, relativamente ao réu, o acto da propositura da acção, materializa-
do pela aludida recepção da petição pela secretaria, só produz efeitos a partir
do momento da sua citação, altura em que a instância deve ser considerada
completa, resultando esta inferência da interpretação conjugada do n.º 1 do
artigo 228.º e do n.º 2 do artigo 267.º.
É de salientar que quanto ao acto de propositura da acção, para além da forma
tradicional da entrega física da petição inicial na secretaria do tribunal compe-
tente, o Projecto propõe outras, nomeadamente: (i) a remessa da petição ao
tribunal por via de correio registado, valendo como data da prática do acto
processual a da efectivação do respectivo registo postal; e (ii) o envio por
transmissão electrónica de dados ou de telecópia, valendo como data da prá-
tica do acto a data do registo por automação no respectivo aparelho receptor
– artigo 145.º do Projecto. No entanto, essas formas de propositura da acção
carecerão de regulamentação a efectuar em diploma próprio.

2.3. Recusa da Petição pela Secretaria


Nos casos em que a petição inicial apresente deficiências formais, ou seja, a ní-
vel dos elementos externos, a secretaria deve recusar o seu recebimento. Sobre
o assunto, devemos entender por elementos externos da petição aqueles cuja

139
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

apreciação não implique a valoração do seu conteúdo, onde podemos incluir


a identificação incorrecta da entidade para qual a petição é dirigida, a falta de
assinatura ou a falta de indicação do valor da causa – artigo 213.º e primeira
parte do n.º 1 do artigo 477.º.
Se a secretaria recusar a recepção da petição fora dos parâmetros legais, do
respectivo acto de recusa cabe recurso hierárquico para o juiz, mas se a recusa
proceder já do juiz que preside à distribuição, caberá recuso de agravo.

2.4. Distribuição. Noção e Finalidade


Recebida a petição, porque entretanto não se constatou nenhuma deficiência
susceptível de justificar a sua recusa, deve ser apresentada à distribuição.
Entende-se por distribuição o acto processual de secretaria por intermédio do
qual se reparte com igualdade o serviço do tribunal, designando a secção da
Sala do Tribunal em que o processo há-de correr, bem como o juiz da causa
quando a secção tiver mais de um juiz – artigo 209.º do CPC:
Nos termos do artigo 214.º, a distribuição deve ser feita duas vezes por sema-
na, as segundas e quintas-feiras, e deve ser presidida pelo Juiz Presidente do
Tribunal Provincial ou de Comarca, consoante o caso.
Em termos práticos, depois de classificados os papéis de acordo com as catego-
rias discriminadas no artigo 222.º, a distribuição é feita por sorteio por meio de
esferas numeradas, entrando numa urna os números correspondentes aos papéis
e noutra os números das secções que estejam por preencher na respectiva espécie
e tirando-se as esferas, uma a uma, de cada urna, alternadamente – artigo 216.º.

2.5. Conclusão do Processo ao Juiz. Atitudes Possíveis do


Juiz da Causa
Feita a distribuição, a petição é remetida para a secção designada aonde o
processo há-de correr e, aí chegada, é autuada com os documentos que a
acompanham, formando-se, assim, os autos, ou seja, o conjunto de papéis que
traduzem o processo na sua dimensão material.

140
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A autuação representa, por conseguinte, uma operação material por via da


qual são juntas em folhas numeradas e cosidas a fio todas as peças processuais
e documentos relativos ao processo, formando um caderno designado por
autos que viabiliza a movimentação do processo sem se correr o risco do ex-
travio de documentos. Na perspectiva do Projecto, que como se sabe prevê a
tramitação electrónica dos processos, a autuação também poderá ser feita de
forma automática, com recurso aos meios tecnológicos que estiverem dispo-
níveis para o efeito.
Concluída a autuação e achando-se pagos os preparos iniciais devidos nos
termos da respectiva legislação, ao abrigo do disposto no artigo 166.º do CPC,
o processo deve ser concluso ao juiz para despacho, podendo nesse despacho,
consoante as circunstâncias, o juiz tomar uma das seguintes atitudes: (a) in-
deferir liminarmente a petição; (b) convidar o autor a completar ou corrigir a
petição; e (c) ordenar a citação do réu.

2.5.1. Indeferimento Liminar da Petição Inicial


Nos termos do artigo 474.º do CPC, há lugar ao indeferimento liminar da
petição inicial quando se reconheça que é inepta, quando se constate a falta de
um pressuposto processual de que o tribunal possa conhecer oficiosamente,
quando a acção for proposta fora de tempo nas hipóteses em que a caducida-
de é de conhecimento oficioso, ou quando, por outro motivo, for evidente que
a pretensão do autor não pode proceder.
Como já acima se disse, a petição inicial é inepta quando falte ou seja inin-
teligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando o pedido esteja
em contradição com a causa de pedir ou quando se cumulem pedidos subs-
tancialmente incompatíveis, gerando esta a nulidade consequencial de todo o
processo – artigo 193.º.

141
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No rol de causas processuais que fundamentam o indeferimento da petição


inicial enquadra-se a irregularidade insanável da forma de processo, como re-
sulta da interpretação do n.º 3 do artigo 474.º. Lê-se nesta norma que se a for-
ma de processo escolhida pelo autor não corresponder à natureza ou ao valor
da acção, mandar-se-á seguir a forma adequada; mas quando, por qualquer
razão, não possa ser utilizada para essa forma a petição é indeferida.
A par das excepções dilatórias, incluindo a da caducidade do direito de acção,
a evidência da falta de fundamentos da pretensão do autor, que, como se
compreende, pressupõe uma apreciação antecipada do mérito da causa, pode
fundamentar o indeferimento liminar da petição inicial, como se infere da
parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 474.º.
Mas, se se concluir que só parte do pedido formulado pelo autor é que é ma-
nifestamente improcedente e, por isso, a acção deve prosseguir para o conhe-
cimento da outra parte do pedido, a lei não permite o indeferimento parcial da
petição, salvo se dele resultar a exclusão (absolvição) de alguns dos réus – n.º 2
do artigo 474.º.
Portanto, constatada uma das causas de indeferimento liminar acima referen-
ciadas, a instância, com base nas disposições conjugadas da alínea a) do artigo
287.º e do artigo 474.º, em princípio deve ser extinta.
Afirmamos que a instância, em princípio, deve ser extinta porque a consumação
do efeito extintivo fica, em parte, condicionado à atitude que o autor venha a
tomar no momento em que é notificado do despacho liminar de indeferimento.
Notificado do despacho, o autor pode simplesmente com ele se conformar
e nada fazer, hipótese em que se concretiza a extinção da instância, mas sem
prejuízo de quando assim entender, poder mover uma nova acção em que
tendencialmente corrigirá as insuficiências que determinaram o indeferimento
liminar da petição inicial na instância anterior.
Mas pode suceder que o autor, aceitando o despacho, todavia não abre mão
dos efeitos decorrentes da proposição da acção. Nessas circunstâncias, a lei
concede-lhe a possibilidade de, no prazo de cinco dias, apresentar nova pe-
tição inicial com a correcção dos vícios que determinaram o indeferimento,
quando esses vícios sejam sanáveis – artigo 476.º.

142
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Se assim se proceder, a acção considera-se proposta na data em que a primeira pe-


tição tenha dado entrada na secretaria, aproveitando, deste modo, o autor a propo-
situra tempestiva da acção, a distribuição já efectuada e o pagamento do preparo
já realizado. Aqui, pode-se dizer que o indeferimento liminar não materializando a
extinção da instância, determina apenas uma momentânea interrupção.
Caso o autor notificado do despacho de indeferimento liminar não se con-
forme com o seu teor, assiste-lhe o direito de, independentemente do valor
da causa e do fundamento do despacho, no prazo de oito dias, contados a
partir da data da notificação do despacho, interpor recurso de agravo – n.º 1
do artigo 475.º.
Dada a gravidade das consequências que podem decorrer do indeferimento limi-
nar, o legislador optou por subtrair desse despacho a causa de irrecorribilidade que
decorre da relação entre o valor da acção e a alçada do tribunal – n.º 1 do 678.º.
Admitido o recurso, não obstante o facto de a relação processual até esta fase
apenas se estabelecer entre o autor e o tribunal, a lei manda que seja citado o
réu tanto para os termos da acção como para os termos do recurso – n.º 3 do
artigo 475.º. Sobre esta solução legal, refere o Professor Antunes Varela que,
embora o conflito suscitado pelo indeferimento da petição e pela discordância
do autor respeite formalmente apenas à relação estabelecida entre o tribunal e
o requerente, substancialmente, também interessa ao réu, razão pela qual deve
ser citadoXXXVII.
Tramitados os autos do recurso, se a decisão final mantiver o despacho recor-
rido, ou seja, confirmar o indeferimento da petição, o autor, ao abrigo do n.º 1
do artigo 476.º, pode ainda no prazo de cinco dias apresentar nova petição cor-
rigida, tudo se passando como se tivesse usado desta faculdade na altura em que
foi notificado inicialmente do indeferimento. O legislador, iluminado pela ideia
da economia processual, procura com esta solução potenciar o aproveitamento
máximo dos actos processuais já praticados pelo autor.
Revogado o despacho de indeferimento liminar em sede do recurso e ordenada
a baixa do processo, o juiz de primeira instância deve notificar o réu para contes-
tar, prosseguindo a acção os seus termos normais – n.º 4 do artigo 475.º.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

À luz do Projecto, nos termos das disposições conjugadas dos seus artigos
229.º e 466.º, 492.º, 493.º e 494.º, na fase dos articulados, em regra, o juiz não
toma contacto com o processo, ocorrendo este contacto pela primeira vez já
na fase do saneamento.
Decorre desta opção que, salvo nos casos excepcionais em que a citação deve
ser precedida de despacho do juiz (n.º 4 do artigo 229.º do Projecto) ou quan-
do a secretaria na sua análise julgue que se verifica a falta de um pressuposto
processual insanável e de conhecimento oficioso, hipótese em que está obri-
gada a submeter o processo ao juiz para decisão (n.º 3 do artigo 229.º e n.º 4
do artigo 230.º do Projecto), em regra, não há lugar a despacho liminar, tanto
o despacho liminar negativo (indeferimento liminar) como o despacho liminar
positivo (despacho de citação).
Mas nos casos em que há obrigatoriedade de prévio despacho de citação, tam-
bém há espaço para ocorrência do indeferimento liminar, aplicando-se nessas
situações o regime traçado no artigo 492.º do Projecto.
No regime projectado, incumbe à secretaria do tribunal promover oficiosa-
mente e em regra sem necessidade de despacho prévio do juiz as diligências
necessárias à citação do réu (n.os 1 e 2 do artigo 229.º do Projecto).

2.5.2. Despacho de Correcção


Se não ocorrer nenhum dos casos que nos termos do n.º 1 do artigo 474.º po-
dem conduzir ao indeferimento liminar, mas a petição não possa ser recebida
por falta de requisitos legais ou por não vir acompanhada de determinados
documentos ou ainda apresente irregularidades ou deficiências que sejam sus-
ceptíveis de comprometer o seu êxito, o juiz deve convidar o autor a comple-
tá-la ou corrigi-la – n.º 1 do artigo 477.º.
De entre os requisitos legais da petição inicial cuja falta pode determinar o des-
pacho de correcção, podemos citar a falta de indicação do valor da causa (n.º
3 do artigo 314.º), a falta de assinatura, a não dedução articulada da matéria de
facto (artigo 151.º), a não indicação da forma de processo (alínea b) do n.º 1 do
artigo 467.º) e a não identificação ou identificação incompleta das partes.

144
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No que concerne aos documentos que, por força da lei, devem acompanhar a
petição (artigos 280.º e 281.º), salientamos os documentos de prova do cumpri-
mento das obrigações fiscais e do direito invocado nas acções em que se alegue
a propriedade ou posse de determinado prédio ou que tenham por fundamento
actos relativos ao exercício de indústria ou de profissão sujeita a imposto.
Como deficiências que podem comprometer o êxito da acção, indica-se, a
título meramente exemplificativo, a falta de autorização ou de consentimento
quando este seja exigido por lei, como sucede quando um representante de
uma sociedade mova uma acção sem que para tal esteja autorizado ou um dos
cônjuges mova uma acção em que esteja em causa um bem comum sem o
consentimento do outro.
Formulado o convite e tratando-se dos casos de falta de requisitos legais ou de
falta de determinados documentos, pode suceder o seguinte: ou o autor cor-
responde ao convite e preenche os requisitos em falta ou junta os documentos
requeridos, hipótese em que deve ser ordenada a citação do réu prosseguindo
a acção o seu curso normal (n.º 1 do artigo 478.º) ou o autor não adere ao
convite, portanto, não preenche os requisitos legais em falta nem junta os do-
cumentos solicitados, sendo que nessa hipótese a petição deve ser indeferida
(n.º 3 do artigo 314.º).
Se se tratar das situações em que constatando-se irregularidades ou deficiên-
cias da petição o autor reagir ao convite corrigindo-as, de duas uma; ou os es-
clarecimentos prestados fazem concluir que falta um pressuposto processual
ou que a acção é manifestamente improcedente, conclusão que conduzirá ao
indeferimento da petição, ou autor não presta esclarecimentos e a dúvida per-
siste, hipótese em que deve preferencialmente ser ordenada a citação do réu,
deferindo-se o esclarecimento da dúvida para a instrução da causa.
Apesar de não resultar expressamente do texto do Projecto, da interpretação
conjugada das normas dos n.os 1, 2, 3 do artigo 229.º e do n.º 4 do artigo 230.º,
defendemos que pode ser exarado despacho de correcção da petição em vez
de se protelar o conhecimento das questões que o podiam determinar para o
despacho saneador, solução que caso vingasse nos parece que seria contrapro-
ducente.

145
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.5.3. Despacho de Citação


Não havendo razões para indeferir liminarmente a petição nem para que seja
ordenado o seu aperfeiçoamento, o juiz, quando o processo lhe for concluso
e achando-se pago o preparo inicial devido, por despacho, está vinculado a
ordenar a citação do réu – n.º 1 do artigo 478.º do CPC.
No entanto, a requerimento fundamentado do autor, a citação pode ocorrer
antes mesmo de o processo ser distribuído.
A citação é um acto processual da autoria da secretaria judicial por intermédio
do qual se dá a conhecer ao réu de que foi proposta contra ele determinada
acção e é chamado ao processo para se defender – artigo 228.º.
Se nos termos do n.º 1 do artigo 267.º a acção se considera proposta (pen-
dente) com a recepção da petição inicial na secretaria do tribunal, ela apenas
se completa com a citação do réu e só a partir deste acto é que produz efeitos
sobre ele, como expressamente resulta do n.º 2 do antedito artigo.
A citação quando é feita pelo oficial de diligências na própria pessoa do réu ou
na pessoa do seu representante, quando a lei expressamente o permita ou tiver
constituído mandatário com poderes especiais para a receber, diz-se pessoal
(n.º 1 do artigo 233.º). A citação pessoal, sob pena de nulidade (artigo 195.º),
deve ser feita pela secretaria em estrita observância das formalidades prescri-
tas no artigo 242.º, onde se destaca a entrega de duplicado da petição ao réu,
a indicação do dia até ao qual pode oferecer a defesa e a cominação em que
incorre se não a oferecer.
Quando o réu se encontre em parte incerta ou acção seja movida contra pes-
soas incertas, a citação pessoal dá lugar à citação edital (artigo 247.º). Para ma-
terialização da citação edital, quer seja motivada pela impossibilidade prática
de contactar o réu quer seja pela incerteza das pessoas a citar, a secretaria deve
afixar editais em determinados lugares, incluindo na porta do tribunal, e fazer
publicar anúncios no jornal mais lido da localidade em que se situar a sede do
tribunal – artigo 248.º.
Realizada a citação por uma das duas modalidades a que aludimos nos dois
últimos parágrafos, dela decorrem efeitos materiais e processuais. Entre os

146
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

efeitos materiais da citação referenciamos a cessação da boa-fé do possuidor


– alínea a) do artigo 481.º do CPC, a interrupção da prescrição, sendo o réu
devedor e estando a correr em seu benefício um prazo prescricional (artigo
323.º do CC) e a constituição do devedor em mora nas obrigações sem prazo
certo, porquanto que estas vencem com a citação que funciona como interpe-
lação (artigos 662.º e 805.º do CC).
Como efeitos processuais, temos a estabilização dos elementos essenciais da
instância – alínea b) do artigo 481.º e artigo 268.º, ambos do CPC – e a inibi-
ção do réu em propor contra o autor a mesma acção, ou seja, nova acção para
a apreciação da mesma questão jurídica – alínea c) do artigo 481.º.
Como o despacho que ordena a citação não é objecto de notificação ao réu,
uma vez citado, a lei concede-lhe a faculdade, caso não esteja conformado
com o seu teor, por achar que existem fundamentos que podiam conduzir
ao indeferimento da petição, dele recorrer por via de agravo – n.º 1 do artigo
479.º.
Tendo em conta que nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 479.º, o despacho
de citação não constitui caso julgado relativamente às questões que podiam
conduzir ao indeferimento da petição, é injustificada, em nossa opinião, a fa-
culdade concedida ao réu de dele agravar, uma vez que o réu pode sempre sus-
citar as referidas questões em sede da contestação, que entretanto são sempre
objecto de apreciação no âmbito do despacho saneador.
Como já ficou no dito no ponto 2.5.1, à luz do Projecto a citação em regra
não é precedida de despacho do juiz (despacho liminar positivo ou de citação),
competindo à secretaria do tribunal promover oficiosamente as diligências
que se mostrarem necessárias à efectivação da citação do réu.
A par do que se disse no parágrafo precedente, merecem a nossa atenção as
inovações avançadas no artigo 227.º do Projecto no que concerne aos pro-
cedimentos para efectivação da citação pessoal. Neste particular, procurando
minorar as dificuldades que actualmente se têm verificado para a concretização
da citação pessoal e que, em muito, têm contribuído para a diagnosticada falta
de celeridade processual, o legislador propõe a realização deste acto mediante
entrega ao citando de carta registada com aviso de recepção ou certificação

147
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

da recusa de recebimento, para além de também admitir a citação por trans-


missão electrónica de dados, nos termos a definir em diploma regulamentar.

2.6. Contestação. Conceito e Forma Externa


A contestação é a peça processual escrita por intermédio da qual o réu cha-
mado ao processo para se defender responde à petição inicial. Em regra, o réu
utiliza a contestação para se opor (contrariar) a pretensão do autor tomando
posição contrária perante cada um dos factos invocados na petição inicial,
mas, como mais adiante se verá, esta peça também pode servir para o réu de-
duzir um pedido autónomo contra o autor.
Por força do artigo 488.º do CPC, na contestação o réu deve individualizar a
acção e expor separadamente os factos, as razões de direito e as conclusões
da defesa, ou seja, o réu está obrigado a invocar os factos essenciais concretos
que sustentam a sua oposição à pretensão do autor, bem como as normas ju-
rídicas cujos factos sejam subsumíveis, devendo concluir com a indicação do
efeito jurídico resultante da defesa apresentada.
À semelhança da petição inicial, a contestação deve ser deduzida por artigos,
isto é, os factos e as razões de direito de que o réu lançar mão devem ser
discriminados mediante proposições gramaticais numeradas, sob a forma de
artigos – n.º 2 do artigo 151.º do CPC.
Na perspectiva da sua forma, a contestação elaborada em obediência ao des-
crito nos dois últimos parágrafos qualifica-se como contestação articulada.
No entanto, a par da contestação articulada existe a contestação por simples
negação, que a lei expressamente proíbe no n.º 3 do artigo 490.º e a contesta-
ção por mera junção de documentos.
A lei não admite a contestação por simples negação, que se concretizaria me-
diante negação geral ou indiscriminada de todos os factos narrados na petição,
para compelir o réu a participar no processo da descoberta da verdade, que
cada vez mais em processo civil se pretende que seja a mais próxima da ver-
dade material.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Justamente por esta razão, a lei faz mais do que simplesmente não permitir a
contestação por simples negação, impõe ao réu o ónus de tomar posição de-
finida perante cada um dos factos articulados pelo autor na petição, sob pena
de serem admitidos (provados) por acordo – n.º 1 do artigo 490.º.
Quanto à contestação por mera junção de documentos, desacompanhada de
qualquer alegação escrita sobre os factos que o respectivo documento reporta,
não encontramos na lei qualquer referência sobre ela. Mas, ainda assim, é uma
modalidade de contestação que se deve considerar admissível, visto que a jun-
ção do documento pode constituir um médio capaz de contradizer um facto
articulado pelo autor e por essa razão não ser lícito ao tribunal não a levar em
consideração.
Por exemplo, se numa acção de reivindicação de propriedade o réu regular-
mente citado não apresentar contestação articulada, mas se se limitar a juntar
aos autos a certidão da escritura pública de compra e venda e a certidão de re-
gisto do imóvel do qual o autor alega ser proprietário, ao tribunal, atendendo
a força probatória dos documentos que o réu carreou aos autos, não será lícito
ignorar a contrariedade dos factos daí resultantes e extrair as competentes
consequências legais que, salvo eventual demonstração da falsidade dos do-
cumentos em causa, passariam necessariamente pela improcedência da acção.
Regressando à contestação articulada, no contexto do Projecto do CPC uma
nota se impõe; a jusante da actual exigência de exposição separada das razões
de facto e de direito com base nas quais o réu se opõe à pretensão do autor, no
artigo 475.º faz-se impender sobre o réu também a necessidade de especificar
separadamente as excepções que eventualmente deduza.
Com esta exigência o que se pretende é evitar a actual tendência de, por ve-
zes, serem apresentadas contestações prolixas, ou seja, em que se misturam
na mesma peça e sem qualquer elemento de diferenciação matérias relativas
à defesa por excepção e à defesa por impugnação e ainda aspectos relativos
à reconvenção, o que dificulta o exercício do contraditório e a própria tarefa
do saneamento e condensação do processo a desenvolver pelo tribunal em
momento próprio.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.7. Modalidades da Contestação. Contestação Defesa


e Contestação Reconvenção
Sendo, como ficou dito no ponto 2.6, a contestação o meio processual para
o réu chamado ao processo para se defender responder à petição inicial, a
verdade é que do ponto de vista do seu conteúdo a contestação pode não se
limitar a realizar a função defensiva.
Para além de servir para o réu, querendo, opor-se ao aludido na petição inicial
na contestação, o réu pode deduzir pedidos autónomos contra o autor, ou
seja, para além de defender-se poderá contra-atacar. Esta dupla função que se
reconhece a este articulado permite-nos distinguir duas modalidades de con-
testação, a contestação-defesa e a contestação-reconvenção.
Na contestação defesa, o réu limita-se a contradizer, directa ou indirectamen-
te, a pretensão do autor, sendo que como a seguir melhor explicitaremos esta
modalidade de contestação contém duas variantes, a contestação-defesa por
impugnação e a contestação-defesa por excepção.
Antes de continuarmos com a análise da contestação defesa, aproveitamos
para esclarecer que a contestação-reconvenção caracteriza-se pelo facto de
o réu, como que assumindo o papel de autor, formular pedidos autónomos
contra o autor distintos dos simples pedidos de improcedência da acção ou de
não conhecimento do mérito desta, que são típicos da contestação-defesa. Os
pedidos que o réu formula contra o autor a lei denomina de pedidos recon-
vencionais, daí resultando a qualificação desta modalidade de contestação, isto
é, a contestação-reconvenção.
Na verdade, por via da reconvenção ao réu é concedida a possibilidade de
exercitar o seu direito de acção contra o autor e, uma vez exercido, tudo se
passa como que se tivéssemos uma segunda relação processual na mesma
acção, ou seja, na acção originariamente proposta pelo autor. Esta solução
assenta essencialmente na ideia da economia processual, não representando
todavia um ónus para o réu, o que equivale a dizer que, se assim o entender,
para obter o efeito jurídico por si pretendido, poderá sempre mover uma ac-
ção distinta contra o autor.

150
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Contudo, para que possa ser admitida a reconvenção é necessário que sejam
observados determinados requisitos, sendo uns de natureza substantiva e ou-
tros de natureza adjectiva.
No plano substantivo, o que se exige é a verificação de uma conexão objectiva
entre o pedido inicial, entenda-se, o formulado pelo autor, e o pedido recon-
vencional.
Com referência ao n.º 2 do artigo 274.º do CPC temos três categorias de si-
tuações em que se constata a exigida conexão objectiva e, por conseguinte, a
reconvenção é admissível, nomeadamente: (i) quando o pedido do réu emerge
do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa; (ii) quando o
réu se propõe obter a compensação ou tornar efectivo o direito a benfeitorias
ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe seja pedida; ou (iii) quando o pe-
dido do réu tende a conseguir em seu benefício o mesmo efeito jurídico que
o autor se propõe obter.
No plano adjectivo ou processual, para admissibilidade da reconvenção exi-
ge-se à partida que o tribunal tenha competência absoluta para conhecer o
pedido reconvencional, isto é, que seja competente em razão da matéria, da
hierarquia e da nacionalidade (artigo 98.º).
A montante, é necessário que ao pedido reconvencional corresponda a mes-
ma forma de processo que observa o pedido do autor, salvo se a diversidade
das formas de processo provier apenas do diverso valor dos pedidos – n.º 3
do artigo 274.º. Nesta conformidade, por exemplo, admite-se a reconvenção
se ao pedido do autor corresponder processo comum ordinário de declaração
e ao pedido do réu processo comum sumário de declaração, e vice-versa, mas
já não é admissível a reconvenção se ao pedido do autor corresponder uma
forma especial de processo e ao do réu processo comum.
Sobre esta última questão, o Projecto do CPC, no n.º 2 do seu artigo 32.º, con-
sagrou expressamente o princípio da adequação formal, concedendo ao juiz
poderes para adequar a tramitação dos processos quando havendo diversidade
entre as formas de processo correspondente a cada um dos pedidos estas não
sejam manifestamente incompatíveis e que a apreciação conjunta dos pedidos
se mostre necessária a justa composição do litígio.

151
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No enfiamento deste princípio, respeitados os condicionalismos do citado


n.º 2 do artigo 32.º, o Projecto também permite ao juiz autorizar a recon-
venção mesmo que haja diversidade de forma de processo que não decorra
apenas da diversidade do valor dos pedidos – n.º 3 do artigo 271.º do Projecto,
in fine.
De regresso à contestação da defesa, esta será por impugnação quando o réu
contradisser, negar, directamente os factos articulados pelo autor ou, não os
negando, todavia, contradisser os efeitos jurídicos que deles o autor pretende
extrair – como resulta da primeira parte do n.º 2 do artigo 487.º do CPC. Na
segunda hipótese da contestação defesa, o que efectivamente o réu faz é uma
qualificação jurídica dos factos essenciais assentes distinta da feita pelo autor,
o que determina a divergência dos efeitos jurídicos que lhes atribui.
Elucidando, se numa acção de divórcio o autor alegar que a mulher o tem hu-
milhado sistematicamente perante os seus familiares e pedir a dissolução do
vínculo conjugal com fundamento na violação reiterada do dever de respeito
para com o cônjuge, a mulher defender-se-á por impugnação se negar os fac-
tos que lhe são imputados, ou seja, afirmar que nunca se comportou perante
os familiares do marido da forma alegada por este; mas também defender-se-á
por impugnação se não negar as alegações do marido mas, no entanto, afirmar
que o comportamento que tem adoptado não se reveste de gravidade que pos-
sa justificar o pedido de divórcio, visto que simplesmente tem feito pequenas
queixas sobre as saídas nocturnas do marido.
No que se refere à contestação da defesa por excepção, há que distinguir a de-
fesa por excepção dilatória da defesa por excepção peremptória, sendo certo
que o ponto de partida para a diferenciação que se impõe tem a ver com o fac-
to de as excepções dilatórias operarem no âmbito adjectivo, ou seja, da própria
relação jurídica processual (instância) ao passo que as excepções peremptórias
operam no âmbito substantivo (do mérito da causa).
Dito isto, o réu lança mão da contestação defesa por excepção dilatória quan-
do invoca factos susceptíveis de obstar o conhecimento do mérito da causa,
cujo juízo de procedência determina a absolvição do réu da instância ou a
remessa do processo para outro tribunal – n.º 2 do artigo 493.º.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Em termos práticos, o réu defende-se por excepção dilatória sempre que ale-
gar irregularidades processuais que, não podendo ser sanadas, como aponta o
n.º 2 do artigo 494.º, impedem o tribunal de julgar o mérito da causa. Entre
o leque de excepções dilatórias, mas nelas não se resumindo, enquadramos
as discriminadas no artigo 494.º, nomeadamente, a falta de personalidade ou
de capacidade judiciária de alguma das partes; a ilegitimidade de qualquer das
partes; a falta de autorização ou de deliberação que o autor devesse obter; a
falta de constituição de advogado por parte do autor nos processos a que se
refere o n.º 1 do artigo 32.º; a falta, insuficiência ou irregularidade de mandato
judicial por parte do mandatário que propôs a acção; a incompetência abso-
luta ou relativa do tribunal, a litispendência; a preterição do tribunal arbitral;
a coligação de autores ou réus quando entre os pedidos não exista a conexão
exigida no artigo 30.º e a falta de pagamento de custas na acção anterior.
Ressalvada a incompetência relativa do tribunal, a preterição do tribunal arbi-
tral voluntário e a falta de pagamento de custas das partes, as demais excep-
ções dilatórias a que se refere o artigo 494.º são de conhecimento oficioso do
tribunal, como resulta do disposto no artigo 495.º.
No tema das excepções dilatórias, o Projecto do CPC no leque indicativo das
excepções dessa natureza, artigo 480.º, elimina a falta de pagamento de custas
relativas à acção anterior, solução que está concatenada com a eliminação da
falta de pagamento de preparos iniciais como causa de extinção da instância,
como se pode conferir no n.º 1 do artigo 277.º e no artigo 280.º.
A solução proposta corresponde à orientação definida pelo Tribunal Consti-
tucional nos termos da qual o não julgamento do mérito de uma causa com
fundamento na não observância de preceitos legais de natureza tributária viola
o princípio constitucional do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efecti-
vaXXXVIII.
Haverá lugar à defesa por excepção peremptória quando o réu, não contradi-
zendo os factos invocados pelo autor, todavia alegar factos impeditivos, ex-
tintivos ou modificativos do efeito jurídico pretendido pelo autor, cujo juízo
de procedência determina a absolvição total ou parcial do pedido – n.º 3 do
artigo 493.º.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Por exemplo, numa acção declarativa de condenação o réu não nega que cele-
brou contrato de compra e venda de uma viatura com o autor e que não pagou
o preço acordado, mas afirma que a sua obrigação se extinguiu por compensa-
ção com um crédito que detinha sobre o autor em virtude de um contrato de
mútuo que os vinculava ou que a eventual dívida prescreveu.
Contrariamente ao CPC, o Projecto eliminou a enumeração exemplificativa
das excepções peremptórias, que actualmente encontramos no artigo 496.º do
Código, mas impôs a regra do conhecimento oficioso das excepções peremp-
tórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado
– artigo 482.º do Projecto. Por força desta regra, a título meramente exem-
plificativo, temos que o tribunal só pode conhecer da excepção peremptória
da prescrição, caso o interessado a tenha invocado, porque assim resulta do
estabelecido no artigo 303.º do CC, ao passo que as excepções peremptórias
que se consubstanciem em nulidades dos respectivos negócios jurídicos são
de conhecimento oficioso – artigo 286.º do CC.
Importa também salientar que o Projecto passou a classificar o caso julgado
como excepção dilatória, conforme se lê na alínea i) do n.º 1 do seu artigo
480.º.

2.8. O Princípio da Concentração da Defesa na Contestação


Impõe o n.º 1 do artigo 489.º do CPC que o réu deve invocar todos os meios
de defesa de que se queira socorrer, entre os directos e os indirectos, em sede
da contestação, sob pena de precludir o direito de os invocar, nisso consistin-
do o princípio da concentração da defesa na contestação.
Por conseguinte, é na contestação que o réu deve invocar os factos susceptí-
veis de obstar o conhecimento do mérito da causa, isto é, as excepções dila-
tórias, como também é na contestação que o réu está obrigado a invocar os
factos modificativos ou extintivos que sustentam a sua oposição ao pedido do
autor. Neste particular, ensina o Professor João de Matos Antunes Varela que,
contrariamente ao Código de 1876, que consagrava o princípio da liberdade
das deduções, o CPC, inspirado no princípio basilar da boa-fé, consagra o
princípio da preclusão das deduçõesXXXIX.

154
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Em termos práticos, é na contestação que o réu deve apresentar os funda-


mentos da sua defesa, tanto por excepção como por impugnação; se deixar
de invocar algum dos factos de que se podia socorrer, salvo se se tratar de um
facto que seja de conhecimento oficioso, em princípio perde a possibilidade
de invocá-lo a posteriori. Não tendo sido invocado tempestivamente o facto,
isto é, em sede de contestação, e não se tratando de facto que seja de conhe-
cimento oficioso, o tribunal não pode socorrer-se dele para decidir, sob pena
de nulidade da sentença por excesso de pronúncia – alínea d) n.º 1 do artigo
668.º.
Solução contrária à que se acaba de expor revelar-se-ia contra a tendência
actual de traçar esquemas processuais que permitem o julgamento das acções
no menor espaço de tempo possível, pois concederiam ao réu a possibilidade
de, de acordo com as suas conveniências, ir suscitando ao longo do processo
questões para apreciação e por essa via retardar a decisão final.
Sem prejuízo do princípio da concentração dos meios de defesa na contes-
tação, justificável pelas razões que expressamos nos dois últimos parágrafos,
a lei abre brechas para a apresentação de meios de defesa antes e depois da
contestação, que todavia devem ser tidos como caracterizando situações de
excepção – n.º 2 do artigo 489.º.
Antes da apresentação da contestação, por exemplo, a lei permite que por via
de reclamação, a apresentar no prazo de cinco dias contados a partir da data da
citação, seja arguida a nulidade do acto de citação (defesa antecipada) – artigos
153.º e 198.º.
Mas também a lei prevê meios de defesa de que o réu pode lançar mão em
momento posterior ao da apresentação da contestação, como, por exemplo,
a dedução do incidente de suspeição do juiz (artigo 123.º) e do incidente da
incompetência absoluta do tribunal (artigo 102.º), configurando os dois casos
hipóteses de defesa diferida.
Enquadra-se ainda no âmbito da defesa diferida a invocação, por intermédio
de articulados supervenientes, de factos objectiva e subjectivamente superve-
nientes, nos termos regulados pelo artigo 506.º.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.9. Ónus de Impugnação. Noção e Origem


Por imposição do artigo 490.º do CPC, mais precisamente, do seu n.º 1, na
contestação, sob pena da sua admissão por acordo, o réu deve tomar posição
definida sobre cada um dos factos invocados pelo autor na petição inicial para
sustentar a sua pretensão.
Tomar posição definida sobre cada um dos factos alegados na petição implica
posicionar-se claramente e concludentemente sobre a sua aceitação como ve-
rídicos ou então repudiá-los.
No entanto, o cumprimento deste ónus pode não passar necessariamente pela
impugnação separada de cada um dos factos alegados, sendo suficiente que o
réu torne explicita a controvérsia entre os factos. Porém, como também já foi
referido no ponto 2.6., a lei não permite a contestação por simples negação,
daí que para que se considere que o réu cumpriu com o ónus de impugnação
especificada, para além de negar ou repudiar determinados factos, terá neces-
sariamente de fundamentar a sua negação.
Na génese do ónus de impugnação especificada, que também é extensivo ao
autor, como a seguir demonstraremos, está o dever das partes cooperarem
para a descoberta da verdade e dessa forma potenciarem a realização da justiça
do caso concreto. A este respeito, é pacífico o entendimento de que sendo as
partes que melhor domínio têm sobre a factualidade controvertida, sobre elas
impende o dever ético-jurídico de esclarecerem o máximo possível o tribunal
sobre a verificação ou não verificação dos factos essenciais que alegam para
fundamentar as respectivas pretensões.
Justamente por esta razão, a lei, relativamente aos factos pessoais, portanto, de
que as partes têm conhecimento, e aos factos de que devam ter conhecimento,
isto é, que sejam cognoscíveis, porque existe a obrigação legal de os conhecer,
faz equivaler a simples declaração de desconhecimento a confissão e, quanto
aos demais factos, a respectiva declaração de desconhecimento equivale a im-
pugnação – n.º 2 do artigo 490.º.
Da interpretação do artigo 505.º, que estabelece que a falta de um dos articu-
lados ou a falta de impugnação, em qualquer deles, dos novos factos alegados
pela parte contrária no articulado anterior tem o efeito previsto no artigo

156
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

490.º, portanto, implica a confissão dos factos não impugnados, conclui-se


que o ónus de impugnação especificada recai sobre os dois sujeitos proces-
suais, autor e réu, e não apenas ao réu como incorrectamente por vezes se tem
entendido.
O ónus de impugnação especificada, tal qual o caracterizamos, comporta algu-
mas excepções legalmente consagradas. À partida, não é aplicável ao MP nem
aos advogados oficiosos, como resulta do n.º 4 do artigo 490.º.
Esta primeira excepção é fundamentada pelo facto de que, actuando o MP em
defesa do Estado, de ausentes ou de incapazes não lhe ser exigível o mesmo
domínio dos factos que normalmente os mandatários livremente constituídos
pelas partes têm, argumento de razão que se considere válido para os advoga-
dos oficiosos.
A jusante desta situação, temos que não se consideram provados os factos não
impugnados desde que estejam em manifesta oposição com a defesa conside-
rada no seu todo, sobre eles não seja admitida a confissão ou se só puderem
ser provados por documento escrito – n.º 1 do artigo 490.º.
Para ilustrar a primeira hipótese do parágrafo anterior, vejamos uma situação
em que na petição inicial de uma acção de divórcio litigioso a autora alega que
o réu, portanto, o seu marido, há dois anos que vem mantendo uma relação
amorosa com a senhora Estrela do Mar; na sua contestação, o réu nada refere
sobre a relação amorosa invocada pela autora, mas afirma sistematicamente
que desde o início do seu casamento, que entretanto já perdura há mais de dez
anos, nunca teve qualquer outra relação afectiva. Aqui, apesar de não ter im-
pugnado concretamente o facto alegado pela autora, este não pode ser dado
por admitido por acordo, porque se mostra em manifesta contradição com
toda a linha da defesa do réu.
Entre os factos que não admitem confissão, enquadramos os relativos a direi-
tos indisponíveis e os factos impossíveis ou notoriamente inexistentes, artigo
354.º do Código Civil, e como exemplo de facto vinculado à prova por docu-
mento, no caso, por escritura pública, temos a celebração de um contrato de
compra e venda de bens imóveis – artigo 875.º do CC.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.10. Falta de Contestação e Seus Efeitos. A Revelia


Operante e a Revelia Inoperante
Se o réu citado regularmente não contestar ou não intervir de qualquer outra
forma no processo, por exemplo, deduzindo o incidente de nomeação à acção
de um terceiro, entra em situação de revelia. Também incorrerá em revelia se
após a sua citação o réu se limitar a constituir mandatário e a juntar a respec-
tiva procuração aos autos.
Consoante a atitude do réu após a sua citação, a lei traça um percurso distinto
para extrair as consequências legais da falta de contestação. Se o réu se man-
tiver em absoluto silêncio, ou seja, não contestar e não intervier de qualquer
outra forma no processo (revelia absoluta), a lei impõe ao tribunal o dever de
oficiosamente verificar se a citação foi feita em observância das formalidades
legais e, em caso negativo, manda repetir a citação – artigo 483.º.
Se for mandada repetir a citação, obviamente o réu poderá apresentar contes-
tação nos vinte dias subsequentes à nova citação, mas se o tribunal não verifi-
car nenhuma irregularidade o réu entra imediatamente em revelia.
Nas hipóteses em que após a citação o réu não contesta, mas todavia não se
remete a um absoluto silêncio, por exemplo, junta procuração aos autos (re-
velia relativa), porque há certeza de que a propositura da acção chegou ao seu
pleno conhecimento, também entra imediatamente em revelia.
Independentemente do percurso seguido até que o réu entre em revelia, o
facto é que nem sempre a situação em que o réu se coloca produz as mesmas
consequências, portanto, temos situações em que a revelia produz os seus
efeitos normais, revelia operante, e temos situações em que a revelia não pro-
duz os seus efeitos, revelia inoperante.
A revelia é operante quando a falta de contestação implicar a confissão, por
acordo, dos factos articulados pelo autor na petição inicial – n.º 1 do artigo
484.º.
No processo declarativo comum ordinário, a par do efeito imediato da re-
velia, ou seja, a confissão dos factos articulados pelo autor, temos um efeito
mediato, que consiste no encurtamento significativo da marcha do processo,

158
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

visto que desaparecem, porque se tornam desnecessárias, as subsequentes fa-


ses do saneamento e condensação e da instrução do processo. Assentes por
confissão todos os factos articulados pelo autor, passamos da petição inicial
directamente para a discussão escrita da matéria de direito, alegações escritas,
sendo para o efeito o processo facultado para exame, pelo prazo de oito dias,
primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu – n.º 2 do artigo
484.º.
Contudo, o facto de se darem por assentes os factos articulados pelo autor
não determina necessariamente a condenação do réu no pedido formulado,
visto que nesta forma de processo há uma cominação semiplena, o que signi-
fica que o tribunal, afinal, julga a acção de acordo com o Direito aplicável. Em
termos práticos, na maior parte dos casos o réu acabará por ser condenado no
pedido, mas pode suceder que, por conhecimento de uma excepção dilatória
ou peremptória de que lhe é lícito conhecer oficiosamente, o tribunal absolva
o réu da instância ou o absolva total ou parcialmente do pedido.
Contrariamente ao processo declarativo comum ordinário, no processo de-
clarativo comum sumário e sumaríssimo, a revelia operante produz efeito co-
minatório pleno, isto é, se o réu não contestar a acção, assentes por confissão
os factos articulados pelo autor, o réu é condenado imediatamente no pedido
– n.º 2 do artigo 784.º e n.º 1 do artigo 794.º.
A revelia será inoperante nas situações em que, não obstante o réu ter sido
regularmente citado e ainda assim não contestar, não se consideram confessa-
dos os factos articulados pelo autor.
A primeira dessas situações ocorre quando, havendo vários réus, algum deles
contestar relativamente aos factos que o contestante impugnar – alínea c) do
artigo 485.º. Aqui, o que a lei pretende evitar é que num mesmo processo
determinados factos sejam julgados provados, porque algum dos réus não os
contestou, mas em relação ao réu que os tenha contestado sejam tidos por
não provados.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Contudo, a situação que o legislador evitou em sede do processo declarativo


ordinário é susceptível de se verificar no contexto dos processos sumário e
sumaríssimo, visto que a norma da alínea c) do artigo 485.º, por força do dis-
posto no n.º 2 do artigo 784.º e do n.º 1 do artigo 795.º, não lhes é extensiva.
A segunda situação é a relativa aos casos em que um dos réus for uma pessoa
colectiva ou for um incapaz e a causa estiver no âmbito da sua incapacidade –
alínea b) do artigo 485.º.
Porém, no alinhamento do entendimento dominante na doutrinaXL, na ex-
pressão pessoa colectiva apenas se enquadram as associações e fundações que
não tenham fins lucrativos, dela se excluindo, por conseguinte, as sociedades
comerciais.
Em terceiro lugar, a revelia é inoperante quando a vontade das partes for ine-
ficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter, o que é
o mesmo que dizer que a revelia não produz o seu efeito imediato, confissão
dos factos, no terreno dos direitos indisponíveis – alínea c) do artigo 485.º.
Por último, a revelia também não opera quando se tratar de factos para cuja
prova a lei exija documento escrito, nos termos estabelecidos na alínea d) do
artigo 485.º.
Sobre o tema dos efeitos da revelia o Projecto do CPC apresenta no essencial
duas inovações: (i) no artigo 472.º começa por eliminar do leque das situações
de revelia inoperante os casos das pessoas colectivas, por modernamente se
entender que não há razões suficientemente fortes para justificar o tratamento
diferenciando que até aqui beneficiam, quer se tratem de pessoas colectivas sem
fim lucrativos quer se tratem de pessoas colectivas com fins lucrativos; (ii) no
processo sumário propõe a extinção do efeito cominatório pleno, desta vez por
se entender que potencia situações de manifesta injustiça, na medida em que
pode conduzir a condenação do réu no pedido, mesmo nas situações em que
aplicando-se correctamente o direito aos factos se chegaria à absolvição do réu.
Chegamos à conclusão da proposta de extinção do efeito cominatório pleno
no processo sumário por interpretação ao contrário do artigo 760.º do Pro-
jecto, sendo oportuno lembrar que o Projecto aponta para extinção da forma
sumaríssima.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

2.11. Réplica. Noção e Conteúdo


No esquema da acção declarativa comum ordinária, sempre que o réu con-
teste, o autor pode responder a contestação com a réplica, sendo por isso um
articulado de verificação normal.
Assim sendo, a réplica é o articulado por via do qual o autor responde à con-
testação e, a jusante, serve para o autor deduzir toda a sua defesa quanto à
matéria da reconvenção, mas não pode contrapor o pedido reconvencional do
réu com nova reconvenção – n.º 1 do artigo 502.º.
Além das funções que lhe foram apontadas no parágrafo anterior, no caso
específico das acções de simples apreciação negativa, a réplica serve ainda
para o autor impugnar os factos constitutivos que o réu tenha alegado e para
alegar os factos impeditivos ou extintivos do direito invocado pelo réu – n.º 2
do artigo 502.º.
E compreende-se que assim seja, porquanto, na petição inicial desse género
de acções o autor começa por invocar factos que demonstram a não verifica-
ção do direito que o réu se arroga, e este último, na contestação, contrapõe
invocando factos constitutivos do direito que o autor afirma que ele não ti-
tula. Invocados factos constitutivos na contestação, por força do princípio
da igualdade processual das partes, em sede da réplica é concedida ao autor a
possibilidade de contrapô-los mediante a invocação de factos impeditivos ou
extintivos.
Considerando o disposto no artigo 505.º, relativamente aos novos factos invo-
cados na contestação e que não estejam em manifesta oposição com os factos
invocados na petição inicial, é aplicável o ónus de impugnação especificada
nos termos regulados pelo artigo 490.º, a que já aludimos no ponto 2.9.
Acessoriamente, a réplica pode servir para o autor modificar o pedido ou cau-
sa de pedir, nos termos estabelecidos no artigo 273.º. Não obstante a citação
do réu tornar estáveis os elementos objectivos da instância, como resulta da
interpretação conjugada dos artigos 268.º e 481.º alínea b), mesmo na falta de
acordo o autor pode modificar unilateralmente esses elementos da causa.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Desde logo, é só na réplica que o autor pode alterar ou ampliar a causa de


pedir, salvo se a alteração ou ampliação for consequência da confissão feita
pelo réu e aceite pelo autor, hipótese em que poderá fazê-lo a posteriori – n.º 1
do artigo 273.º.
Por exemplo, numa acção de despejo, o autor na petição inicial sustenta o seu
pedido na falta de pagamento de rendas por um período de seis meses, mas
em sede da réplica adita o facto de o réu não estar a usar de forma prudente
o locado e, por esta razão, o imóvel se encontrar em avançado estado de de-
gradação.
Quanto ao pedido, pode sempre ser alterado ou ampliado na réplica, porquan-
to o réu pode responder a esta modificação em sede da tréplica; além disso, o
autor pode em qualquer momento reduzir o pedido, equivalendo esta a redu-
ção à desistência parcial do pedido – n.º 2 do artigo 273.º, n.º 1 do artigo 295.º.
Mas se a ampliação do pedido for consequência ou desenvolvimento do pe-
dido primitivo, entenda-se, inicial, esta pode ocorrer até ao encerramento da
discussão em primeira instância.
Tratando a lei separadamente, a questão da alteração ou ampliação da causa
de pedir e do pedido, doutrinariamente se tem colocado a questão de saber se
é ou não admissível a alteração simultânea dos dois elementos objectivos da
causa, questão que não tem respaldo directo na lei.
Sobre o assunto, entende-se com relativa unanimidade que só é possível a
ampliação simultânea da causa de pedir e do pedido, que potencialmente gera
uma substituição do objecto inicial da lide, nos casos em que haja uma clara
conexão entre o objecto inicial da acção e o objecto modificado, como melhor
ensina o Professor Remédio MarquesXLI.
À semelhança dos demais articulados, a réplica deve ser elaborada com sub-
missão à técnica de dedução por artigos de cada um dos factos nela invocados,
susceptíveis de integrarem a especificação ou o questionário, e apresentada
dentro do prazo de oito dias, contados a partir da data em que for ou se con-
siderar notificada a apresentação da contestação – n.º 3 do artigo 502.º.

162
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No entanto, se tiver sido deduzido pedido reconvencional ou se se tratar de


uma acção de simples apreciação negativa, o prazo para a apresentação da
réplica é de vinte (20) dias, que também se contam a partir da data em que
for ou se considerar notificada a contestação. Nessas situações, justifica-se o
alargamento do prazo de oito (8) para vinte (20) dias porque a réplica desem-
penha funções em muito semelhantes a função da contestação.
Em sede do Projecto do CPC, a réplica aparece regulada no artigo 487.º,
apontando-se como primeira sugestão de alteração o facto de ela deixar de
ser um articulado de verificação normal e passar a ser um articulado eventual.
Por conseguinte, a réplica só será admissível, caso a proposta vingue, se for
deduzida alguma excepção ou se for deduzido algum pedido reconvencional.
Em qualquer das duas hipóteses, o seu conteúdo deve cingir-se à resposta da
excepção suscitada, quer se trate de excepção dilatória quer se trate de excep-
ção peremptória, ou a oposição ao pedido reconvencional, não sendo lícito ao
autor servir-se dela para reconvir da reconvenção.
A jusante, a réplica conservará a sua função de, no âmbito das acções de sim-
ples apreciação negativa, servir para o autor impugnar os factos constitutivos
que o réu tenha alegado e para alegar os factos impeditivos ou extintivos do
direito invocado pelo réu – n.º 2 do artigo 487.º do Projecto.
No que tange aos prazos, a proposta vai no sentido de a réplica passar a ser
apresentada no prazo de dez (10) dias, contados a partir da notificação da
apresentação da contestação, mas, havendo reconvenção ou se tratando de
acção de simples apreciação negativa, pelas mesmas razões subjacentes à solu-
ção actualmente em vigor, propõe-se o alargamento do prazo para apresenta-
ção da réplica para trinta (30) dias, que é o prazo previsto para a apresentação
da contestação – n.º 3 do artigo 487.º do Projecto.

2.12. Tréplica. Noção e Conteúdo e Resposta à Tréplica


A tréplica é o articulado por via do qual o réu responde à réplica, como se lê
no n.º 1 do artigo 503.º. Logo, do enunciado da norma legal citada infere-se
que a tréplica, à semelhança da réplica, é um articulado de verificação normal.

163
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Portanto, tendo o autor replicado, por imposição dos princípios do contradi-


tório e da igualdade processual das partes, ao réu é concedida a possibilidade
de responder por via da tréplica. Se não o fizer, relativamente aos novos factos
que o autor possa ter invocado na réplica e que não se mostrem em oposição
com a defesa considerada no seu todo, poderão ser julgados assentes por
acordo, o que equivale a dizer que no contexto da tréplica sobre o réu recaí o
ónus de impugnação especificada – artigos 490.º e 505.º.
Ademais, o que ficou dito quanto à forma de elaboração da réplica é aplicável,
com as devidas adaptações, à tréplica.
Todavia, deve-se ter particular atenção ao facto de, sendo o prazo para apre-
sentação da tréplica de oito dias, a réplica não é notificada ao réu, começando
a correr o prazo para a apresentação da tréplica imediatamente a seguir ao
termo do prazo para o oferecimento da réplica – n.º 2 do artigo 503.º.
A solução legal implícita ao n.º 2 do artigo 503.º, em nossa opinião, é injusta,
porque exige um esforço processual adicional ao réu que, entretanto, não é
exigido ao autor, tendo em conta que o prazo do autor para replicar apenas se
inicia depois de este ser notificado da contestação.
Preocupado com a necessidade de garantir a igualdade das partes, no caso mate-
rializada pela ideia de conceder a cada uma delas dois articulados para a susten-
tação das suas pretensões, para as acções de simples apreciação negativa ou nos
casos em que se formule pedido reconvencional, pelas razões que a seguir ex-
plicaremos, o legislador consagrou um quinto articulado – a resposta à treplica.
Nos termos do artigo 504.º, nos casos referidos no parágrafo anterior, a res-
posta à tréplica serve para o autor responder à matéria da reconvenção deduzi-
da pelo réu na tréplica ou para invocar factos impeditivos ou extintivos do di-
reito invocado pelo réu, tratando-se de acções de simples apreciação negativa.
A bondade da admissibilidade deste articulado radica no entendimento de que
nessas hipóteses os factos essenciais constitutivos do direito de que o réu se
arroga apenas são invocados em sede da contestação, que para esse fim fun-
ciona como se fosse uma verdadeira petição inicial.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Partindo deste pressuposto, para que efectivamente cada uma das partes possa
produzir dois articulados e assim assegurar-se a igualdade de meios, impõe-se
a admissibilidade da resposta à treplica, que realizará uma função semelhante
a que na generalidade dos casos é realizada pela própria tréplica
Virando-nos para o Projecto, começamos por constatar que o que se pretende
é que este articulado passe a ser de verificação eventual, admitindo-o apenas
se houver réplica e nesta for alterada a causa de pedir ou o pedido ou ainda
quando em sede da réplica o autor tiver deduzido alguma excepção ou recon-
vindo – n.º 1 do artigo 488.º do Projecto.
Em síntese, na filosofia do Projecto, quando seja de admitir a tréplica, esta
passa a ter por função a impugnação da modificação da causa de pedir ou
do pedido ou ainda responder às excepções que o autor, em sede da réplica,
tenha levantado relativamente ao pedido reconvencional do réu, obviamente
formulado na contestação.
Em sintonia com o que avança para a réplica, o Projecto aponta para o alarga-
mento do prazo para a apresentação da tréplica dos actuais oito (8) dias para
dez (10) dias, mas com a feliz inovação de que a contagem deste prazo só se
inicia a partir da notificação da réplica ao réu – n.º 2 do artigo 488.º.
Por último, é de apontar a supressão no Projecto da admissibilidade de um
quinto articulado, ou seja, a resposta à tréplica.

2.13. Articulados Supervenientes. Condições da Sua


Admissão
Inspirado em certa medida pelo princípio da verdade material, que cada vez
mais e dentro dos limites que lhe são impostos pela própria natureza dos
direitos subjectivos materiais inerentes às relações jurídicas privadas, vem ga-
nhando espaço no processo civil o artigo 663.º do CPC que exige que a sen-
tença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou
extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção
de modo que a decisão corresponda à situação que existir no momento do
encerramento da discussão.

165
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Ora, a dinâmica da vida social pode levar a que entre o momento do ofereci-
mento do último articulado e o momento do encerramento da discussão ocor-
ram novos ou cheguem ao conhecimento das partes factos anteriormente veri-
ficados que, desde que sejam susceptíveis de influir na decisão segundo o direito
material aplicável, isto é, se tiverem repercussão na existência e no conteúdo da
relação material controvertida, devem ser atendidos – n.º 2 do artigo 663.º.
Para invocar esses factos essenciais, a lei concede à parte interessada a faculda-
de de deduzi-los em articulado posterior ou em novo articulado, mas sempre
até ao encerramento da discussão da causa – n.º 1 do artigo 506.º.
O facto será deduzido em articulado posterior quando ocorra ou se chegue
ao conhecimento da parte depois de apresentado o articulado em que em
princípio devia invocá-lo, mas antes de terminada a fase dos articulados; se
ocorrer ou chegar ao conhecimento da parte depois de encerrada a fase dos
articulados, será invocado em novo articulado.
Da interpretação do artigo 506.º concluímos que cabem no âmbito da sua
previsão quer os factos objectivamente supervenientes, portanto, os ocorridos
depois da apresentação do articulado em que era pertinente a sua invoca-
ção, como os subjectivamente supervenientes, ou seja, os verificados antes da
apresentação do articulado em que deviam ser invocados mas que só chega-
ram ao domínio da parte em momento posterior.
Em qualquer uma das duas hipóteses, superveniência objectiva ou subjectiva,
o articulado por via do qual se invocar o facto deverá ser apresentado no pra-
zo de dez dias, contados a partir da data da verificação do facto ou da data do
seu conhecimento, respectivamente, sendo que com o articulado devem ser
oferecidas todas as provas de que a parte se queira socorrer para a prova da
factualidade invocada – n.º 3 do artigo 506.º.
Apresentado o articulado, a lei prevê como causas da sua eventual rejeição a
extemporaneidade ou a sua manifesta impertinência, esta última entendida
como traduzindo a falta de interesse dos factos para a boa decisão da causa;
se o articulado for admitido, a parte contrária é notificada para, no prazo de
cinco (5) dias, responder, devendo com a resposta oferecer todas as provas de
que se queira valer.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Se no momento em que se invocarem factos supervenientes ainda não estive-


rem elaborados a especificação e o questionário, os factos que se mostrarem
relevantes para a decisão da causa são incluídos nestas peças processuais, no
caso contrário, isto é, se já estiverem elaborados a especificação e o questio-
nário, os factos são aditados às peças e contra o despacho de aditamento não
cabe reclamação, mas cabe agravo que subirá no final com o recurso que se
interpuser da decisão final – n.º 4 do artigo 506.º.
Este tema, que em sede do Projecto é regulado nos artigos 490.º e 491.º, tem
como principal proposta de inovação o facto de passar-se a exigir a culpa da
parte como pressuposto da rejeição do articulado superveniente com fun-
damento na sua apresentação extemporânea, procurando assim potenciar ao
máximo a utilização deste instrumento processual para a realização de uma
justiça o mais próximo possível da realidade.
Paralelamente ao referido no parágrafo anterior, há ainda a salientar que, con-
trariamente ao regime actual, que não concede às partes a faculdade de recla-
marem contra o despacho de aditamento de factos supervenientes à especifi-
cação e ao questionário, no n.º 5 do artigo 490.º do Projecto aponta-se para
a sujeição deste despacho para o regime das reclamações contra a selecção da
matéria de facto em sede do despacho saneador, regulado no n.º 2 do artigo
495.º do Projecto.

3. Fase do Julgamento Antecipado da Lide e do


Saneamento e da Condensação do Processo
Concluída a fase dos articulados em que os protagonistas são as partes, ou
melhor, os seus, mandatários, começa a fase do julgamento antecipado da lide
e do saneamento e da condensação do processo, fase em que o papel activo
no processo passa das partes para o juiz da causa.

167
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Do ponto de vista das finalidades ou objectivos desta fase, pode-se dizer que
são essencialmente duas: (i) pôr termo ao processo, o que poder ser feito por
via do julgamento antecipado da lide (causa), quer se trate do julgamento de
questões processuais quer se trate do julgamento do mérito da causa; e (ii)
caso não ocorra o julgamento antecipado, fixar os termos essenciais da causa.
Concluída a fase introdutória, portanto, já no âmbito da fase do julgamento
antecipado da lide e da condensação do processo, nos termos que a seguir ex-
plicitaremos, o juiz exarará despacho saneador com os seguintes fins: (i) julgar
as excepções dilatórias cuja procedência, como sabe, conduz à absolvição da
instância; (ii) julgar as excepções peremptórias, cuja procedência conduz à ab-
solvição do pedido; e (iii) apreciar directamente o(s) pedido(s), se se verificam
os condicionalismos que a lei estabelece para o efeito.
Portanto, como facilmente se percebe, na hipótese de, no conhecimento (jul-
gamento) das questões referidas no parágrafo precedente, o juiz concluir que
procede uma excepção dilatória ou peremptória suscitada pelas partes ou que
seja do seu conhecimento oficioso, ou ainda se conhecer directamente do pe-
dido, acção termina sem que se observem as subsequentes fase do processo,
particularmente a fase da discussão e julgamento da causa em que, por via da
sentença, normalmente deveria ocorrer o julgamento da causa, daí falar-se em
julgamento antecipado em contraposição ao julgamento normal, entenda-se,
o que é feito por intermédio da sentença.
Caso não se concretize o julgamento antecipado, por ser ter concluído que
não há qualquer obstáculo ao surgimento do poder-dever de apreciar o mérito
da causa, mas também o processo ainda não contém elementos probatórios
que podem viabilizar o julgamento imediato do mérito da causa, o processo
há-de seguir a sua normal tramitação.
Para tanto, impõe-se nesta fase fixar os termos essenciais da causa, ou seja,
deve ser fixado de forma rigorosa o objecto do processo. Para atingir este de-
siderato, o juiz tem de ser capaz de, em primeira instância, sanear o processo,
o que significa que deve retirar (expurgar) indirectamente do processo todas
as questões de facto que se revelem inúteis para a decisão da causa e decidir
todas as questões que, sendo úteis, possam já ser apreciadas e julgadas.

168
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A eliminação do processo das questões inúteis materializa-se por via da sua


não referência nas peças fundamentais que a posteriori serão produzidas e que
servirão de base para a instrução e para o julgamento da causa.
As questões úteis cujo conhecimento se impõe traduzem-se na apreciação das
irregularidades processuais supríveis, portanto, cuja decisão não conduz ne-
cessariamente ao termo do processo por via da absolvição do réu da instância,
como por exemplo, a irregularidade de representação – artigo 40.º do CPC.
A par do saneamento do processo, que dever ser feito nos termos aludidos
nos três últimos parágrafos, a fixação do objecto do processo pressupõe tam-
bém a necessidade da sua condensação. Condensar o processo é eleger entre
os factos que as partes alegaram para sustentação das suas pretensões e que
se mostraram efectivamente relevantes para decisão da causa, razão pela qual
passaram no crivo inicial do saneamento, aqueles que já estão devidamente
provados, que são descritos numa peça processual denominada de especifica-
ção e aqueles que ainda carecem de ser provados, que integram o questionário.
Para a realização das finalidades desta fase do processo, recorde-se, o julga-
mento antecipado da lide ou o saneamento e a condensação do processo, a lei
coloca à disposição do juiz quatro meios, a saber, a audiência preparatória, o
despacho saneador e a especificação e o questionário.

3.1. Audiência Preparatória. Formalidades Preliminares


e Actos da Audiência
Nos termos do n.º 1 artigo 508.º do CPC, findo os articulados, se ao juiz se
afigurar possível conhecer imediatamenteo pedido ou do pedido reconvencio-
nal, está vinculado a marcar audiência preparatória, o que significa que nestas
situações a audiência é de realização obrigatória e o seu escopo consiste na
discussão do pedido.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para além da discussão do pedido, a audiência preparatória pode servir para


tentar conciliar as partes ou ainda para discutir qualquer excepção dilatória ou
peremptória que tenha sido suscitada, mas nesses casos a sua realização é de
carácter facultativo, isto é, compete ao juiz aferir da oportunidade ou não da
sua marcação.
No despacho que marcar a audiência, o juiz deve declarar o respectivo fim,
mas este despacho, com referência ao disposto no n.º 4 do artigo 508.º, não
constitui caso julgado sobre a possibilidade de conhecimento imediato do
pedido.
Com esta solução, o legislador pretendeu evitar que nas situações em que
após a realização da audiência o juiz concluísse que o seu prognóstico quanto
à possibilidade do julgamento imediato do mérito da acção era precipitado,
estivesse, ainda assim, obrigado a decidir, pois certamente a decisão que viesse
a ser tomada nessas circunstâncias não seria a mais adequada.
A indicação do objectivo ou fim da audiência preparatória no despacho que a
marcar é de importância capital, uma vez que só com o conhecimento anteci-
pado do que se pretende é que os mandatários das partes conseguem prepara-
se convenientemente para a audiência e por essa via ser potenciado o alcance
dos respectivos objectivos.
A audiência é designada por preparatória porque se destina à preparação do
despacho saneador e nela são discutidas pelos mandatários das partes as ques-
tões que depois serão objecto de apreciação no âmbito do despacho saneador.
A jusante, a designação de audiência preparatória permite distingui-la da au-
diência final, esta última destinada à instrução, discussão e ao julgamento da
matéria de facto.
Nos termos do n.º 1 do artigo 509.º do CPC, na audiência preparatória o pri-
meiro acto a realizar-se é a tentativa de conciliação. Nos dizeres da lei, aberta
a audiência o juiz procurará conciliar as partes tendo em vista uma solução de
equidade.
Aqui, considerando, por um lado, a incerteza que ainda pode pairar na mente
das partes sobre aprova da matéria de facto que alegam para sustentar as res-
pectivas pretensões e, por outro lado, o eventual desajuste da norma jurídica

170
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

aplicável à busca da melhor justiça do caso concreto, dada a generalidade e a


abstracção a ela intrínseca, o legislador privilegiou soluções assentes em juízo
de equidade.
Por conseguinte, no exercício dos seus poderes de direcção da audiência, com-
petirá ao juiz da causa fazer sucessivas aproximações dos pontos de vista das
partes, de modo a viabilizar a busca de uma solução razoável para o litígio, so-
lução que, como ficou implícito no que se referiu nos dois últimos parágrafos,
poderá não assentar em juízo estrito de legalidade.
No entanto, no exercício de tentar conciliar as partes, o juiz deve evitar pres-
sionar excessivamente e impor-lhes soluções que ele possa eventualmente
considerar mais adequadas ao caso, sendo que a sua actuação se deve carac-
terizar como sendo a de um facilitador do diálogo, mostrando as vantagens
decorrentes de uma solução auto-compositiva.
Se, durante a audiência, não se chegar a acordo ou se não for possível a realiza-
ção do exercício conciliatório por ausência de uma das partes ou do respectivo
mandatário com poderes especiais para transigir, apesar de terem sido regu-
larmente notificados, sem prejuízo da multa cabível aos faltosos, o juiz poderá
realizar a tentativa de conciliação em qualquer outra fase do processo, como
resulta da interpretação conjugada do n.º 2 do artigo 508.º e do n.os 3 e 4 do
artigo 509.º, ambos do CPC.
O que a lei não permite é que as partes sejam convocadas exclusivamente para
esse fim, o conciliatório, mais do que uma vez.
Não havendo acordo, a audiência prossegue para a realização dos demais ob-
jectivos e/ou finalidades indicadas no despacho que a marcou. Se tiver sido
marcada para discutir o pedido, o juiz deve dar a palavra primeiro ao advogado
do autor e depois ao advogado do réu.
Tratando-se da discussão de excepções ou se estiver em causa uma acção de
simples apreciação negativa, toma a palavra primeiro o advogado do réu e se-
guidamente o advogado do autor, como se lê no n.º 2 do artigo 509.º.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

O juiz deve dirigir a discussão de modo que as questões sejam tratadas pelos
advogados pela ordem que devam ser resolvidas no despacho saneador, po-
dendo cada um dos advogados usar da palavra duas vezes.
Sobre este tema, no quadro do Projecto do CPC a primeira consideração a
fazer tem a ver com o facto de se abandonar a designação de audiência prepa-
ratória e se abraçar a designação de audiência preliminarXLII.
Não obstante ser inegável a maior intervenção das partes nesta audiência,
como corolário da ideia do reforço do princípio da cooperação que é transver-
sal a todas as soluções do Projecto, do ponto de vista funcional grande parte
das finalidades da audiência preparatória mantiveram-se, mas acrescentaram-
se algumas.
Na decorrência deste facto, sobreveio a necessidade de se proceder a alguns
ajustes estruturais que a seguir passamos a descrever. Nesse conspecto, à luz
do Projecto, a audiência preliminar passa a ser de convocação obrigatória
quando o juiz no despacho saneador pretender conhecer do pedido ou de
alguma excepção peremptória, sancionando a não convocação da audiência
com a nulidade do despacho saneador – n.º 3 do artigo 492.º do Projecto.
Fora dessas hipóteses, o juiz, findo os articulados, pode marcar a audiência
preliminar para: (i) realizar a tentativa de conciliação; (ii) facultar às partes a
discussão de facto e de direito nos casos em que ao juiz cumpra apreciar ex-
cepções dilatórias; (iii) discutir as posições das partes com vista à delimitação
dos termos do litígio e providenciar pelo suprimento das excepções dilatórias;
(iv) providenciar o suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição
da matéria de facto; e (v) seleccionar após debate a matéria de facto relevante
que considere assente e a que constitui a base instrutória da causa.
Do cardápio apresentado no parágrafo anterior, comparativamente ao regime
do CPC, cumpre-nos salientar as hipóteses consagradas nas alíneas c) e e) do
n.º 1 do artigo 492.º.
No primeiro caso, como resultado do reforço dos princípios da cooperação
e do inquisitório, vemos as partes a participarem activamente na delimitação
dos termos do litígio, ou seja, na avaliação de entre os factos por elas invoca-
dos aqueles que se revelam essenciais para decisão da causa, finalidade que é

172
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

viabilizada mediante a discussão desenvolvida pelas partes sobre as suas res-


pectivas posições. No enfiamento, ao juiz se reconhecem poderes inquisitó-
rios, isto é, oficiosos, para suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição
da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência
dos debates.
Para melhor compreensão da bondade de algumas das soluções propostas, é
importante referir que, entre outras ideias norteadoras do Projecto, este foi
perspectivado para cada vez mais se privilegiarem as decisões sobre o mérito
das causas em detrimentos das decisões de carácter adjectivo.
Assim, ainda a coberto da alínea c) do n.º 1 do artigo 492.º em conjugação
com o n.º 2 do artigo 260.º, se concedem ao juiz poderes para suprir oficiosa-
mente a falta de pressupostos processuais sanáveis, determinando a realização
dos actos processuais necessários para a regularização da instância e, quando
estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidar as par-
tes a praticar os actos que se impuserem para a respectiva efectivação.
No segundo caso, ao abrigo do consagrado na alínea e) do n.º 1 do artigo
em análise, nas acções contestadas, as partes são chamadas, outra vez por
via de debates, para participar na selecção dos factos eleitos como essenciais
para decisão da causa aqueles que se consideram assentes, isto é, provados, e
aqueles que estão por provar e, por isso, devem integrar o questionário – base
instrutória.
O debate a desenvolver pelas partes consistirá na análise crítica da prova já
disponível no processo nesta fase, indicando, na perspectiva de cada uma de-
las, quais os factos que se devem considerar assentes e os que carecem ainda
de serem provados.
No regime actual, a selecção da base instrutória é feita exclusivamente pelo
juiz, ou seja, sem qualquer intervenção das partes, o que lhes tem motivado a
normalmente discordarem com a organização que o juiz dá à especificação e
ao questionário e, consequentemente, a impugnarem o respectivo despacho
saneador.
Como a lei actual concede a possibilidade de as partes impugnarem o despa-
cho saneador que integra a especificação e o questionário por via de reclama-

173
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

ção e de recurso de agravo, sendo que o agravo quando interposto imediata-


mente e com efeito suspensivo, na prática temos verificado que este é um dos
momentos cuja gestão contribui significativamente para a falta de celeridade
na conclusão dos processos.
Para eliminar este constrangimento à celeridade processual, o Projecto propõe
a participação activa das partes na selecção da base instrutória mas, em contra-
partida, limita a faculdade de impugnação do despacho saneador que integra a
especificação e o questionário, tema que retomaremos em sede da análise do
respectivo despacho.
Ao abordar as inovações que a audiência preliminar traz à colação, não pode
passar despercebido o facto de Projecto orientar que o despacho saneador, em
regra, seja ditado para a acta durante a audiência, e só quando a complexidade
das questões a resolver o exigir é que será proferido por escrito e no prazo
máximo de 15 dias, como decorre da interpretação da alínea d) do n.º 1 do
artigo 492.º e do n.º 2 do artigo 494.º.

3.2. Despacho Saneador. Funções


Findos os articulados ou realizada a audiência preparatória que não tenha pos-
to fim à acção pela conciliação das partes, no prazo de quinze (15) dias, o juiz
deve proferir despacho saneador, como resulta do corpo do n.º 1 do artigo
510.º do CPC. O prazo para a prolação do despacho, na primeira hipótese,
conta-se a partir da data da conclusão do processo ao juiz e, na segunda, a
partir da data da realização da audiência preparatória.
Analisado na íntegra o conteúdo do artigo 510.º, impõe-se concluir que o
despacho saneador, com excepção da conciliação das partes, é o veículo pelo
qual se realizam todos os objectivos ou funções da fase do saneamento e da
condensação do processo.
Nesse conspecto, dispõe a alínea a) do n.º 1 que a audiência preparatória deve
começar por conhecer, pela ordem designada pelo artigo 288.º, das excepções
que podem conduzir à absolvição da instância bem como das nulidades, mes-
mo que estas não tenham por efeito anular todo processo.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Antes de continuarmos, no que concerne à ordem do conhecimento das ex-


cepções dilatórias, abrimos aqui parêntesis para remeter para o que foi dito no
ponto 2 relativamente ao abandono do dogma da prioridade.
Ao apreciar as excepções dilatórias, se o juiz se confrontar com a falta de um
pressuposto processual sanável, por exemplo, a irregularidade de represen-
tação, diligenciará no sentido de corrigir a situação e potenciar o seguimen-
to normal da acção, sendo que, nesses casos, a par das situações em que as
excepções invocadas sejam consideradas improcedentes e da apreciação das
nulidades do segundo grau, ou seja, aqueles cuja procedência não determina
necessariamente a nulidade de todo o processo (artigo 201.º do CPC), o des-
pacho saneador realiza a função de saneamento.
Mas, se o juiz concluir pela procedência de alguma das excepções dilatórias
e consequente absolvição do réu da instância, estará patente o julgamento
antecipado da lide, que como se sabe também consiste num dos objectivos
desta fase, pese embora o facto de se tratar de um julgamento de carácter
meramente formal.
Não ocorrendo o julgamento antecipado da lide, subsequentemente, e como
refere a alínea b), o despacho saneador deve decidir se procede alguma das
excepções peremptórias, como, por exemplo, a prescrição ou a extinção de
uma obrigação por compensação.
O julgamento das excepções peremptórias pode consistir na apreciação de
questões exclusivamente de direito, ou ainda em questões de facto ou de facto
e de direito. Se se tratar da apreciação de uma questão de direito, o juiz só deve
decidir se dispuser de elementos que lhe permitam fazê-lo com a necessária
segurança, o que quer significar o conhecimento dos factos que interessam à
interpretação e aplicação da norma eleita, como resulta da interpretação con-
jugada da alínea b) do n.º 1 e dos n.os 2 e 3 do artigo 510.º.
Tratando-se de uma questão de facto ou de facto e de direito, o que a lei exige
para a viabilização do julgamento da excepção peremptória que estiver em
causa é que o processo contenha elementos de prova suficientes para ser to-
mada uma decisão conscienciosa, isto é, devidamente fundamentada.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Julgando procedente alguma excepção peremptória, o despacho saneador


consubstanciará um julgamento antecipado do mérito da causa, visto que, do
ponto de vista dos efeitos, a lei concede o mesmo tratamento ao despacho
que julgue procedente uma excepção peremptória e ao despacho que conheça
directamente do pedido, atribuindo-lhes o valor de sentença e, como tal, são
designados (despacho saneador sentença) – n.º 4 do artigo 510.º.
Em termos práticos, o despacho saneador sentença, uma vez transitado em
julgado, tem força obrigatória dentro e fora do processo (artigos 671.º e 673.º)
e é impugnável por via do recurso de apelação (n.º 2 do artigo 691.º).
Se entretanto julgar improcedente a excepção ou as excepções peremptórias
invocadas, a função do despacho será essencialmente de cariz saneador, na
medida em que o processo em princípio observará os seus termos subsequen-
tes.
Quando não proceder nenhuma excepção peremptória e/ou não se tenha
invocado nenhuma e também não subsista alguma que seja de conhecimento
oficioso, verificados os condicionalismos analisados à propósito da apreciação
das excepções peremptórias, o juiz pode conhecer directamente do pedido
condenando ou absolvendo o réu total ou parcialmente – alínea c) do n.º 1 do
artigo 510.º.
Como se compreende, nesta hipótese, a do conhecimento directo do pedido,
o despacho compreenderá o julgamento antecipado do mérito da causa.
Voltando ao tema na perspectiva do que nos é proposto pelo Projecto, prima
facie e como já foi referido no ponto precedente, há a salientar que tenden-
cialmente é privilegiada a forma oral para a prolação do despacho saneador,
que entretanto deve ser ditado para a acta da audiência preliminar em que for
proferido.
Findos os articulados ou realizada audiência preliminar que não puser termo
ao processo por via da conciliação das partes, refere o artigo 495.º do Projecto
que no prazo de quinze (15) dias deve ser proferido despacho saneador. O
prazo de quinze (15) dias só é tomado em consideração quando a comple-
xidade das questões a resolver impeça a prolação do despacho oralmente no
decurso da audiência preliminar.

176
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No que às suas funções se refere, à semelhança do que sucede no regime


actualmente vigente, torna-se imperioso concluir que o despacho saneador,
excluída a conciliação das partes, concentra todos os objectivos da fase do
saneamento e da condensação do processo, pelo que, no geral, remetemos
para o que ficou dito no momento em que analisamos o artigo 510.º do CPC.
Porém, da comparação do artigo 510.º do CPC e do artigo 494.º do Projecto,
alguns pontos merecem particular atenção. À partida, na alínea b) do n.º 1 do
artigo 494.º, contrariamente ao que sucede no regime actual, abandona-se a
expressão decidir se procede alguma excepção peremptória e fala-se em co-
nhecer de alguma excepção peremptória, resolvendo assim a discussão ainda
patente na doutrina de qual seria o tratamento a conceder ao despacho sanea-
dor que julgasse improcedente uma excepção peremptória.
A jusante, a alínea de que agora nos ocupamos também dá solução a querela
doutrinária sobre a admissibilidade ou não do julgamento parcial do pedido
no âmbito do despacho saneador, quando refere expressamente ao conheci-
mento total ou parcial do pedido sempre que o estado do processo o permitir.
Nota de destaque deve também ser dada ao facto de no n.º 3 do artigo 494.º
do Projecto clarificar-se que, relativamente ao julgamento das excepções di-
latórias e das nulidades processuais, o despacho saneador só constituir caso
julgado sobre as questões concretamente apreciadas. Por conseguinte, quando
o juiz se pronuncie de forma genérica, como exemplo, não existem quais-
quer excepções ou nulidades de que cumpra conhecer, justamente porque não
ocorre o julgamento concreto e individualizado dessas questões, o despacho
saneador não constitui caso julgado e, portanto, será legítimo o julgamento
dessas questões noutro momento, máxime, no da prolação da sentença.
Uma última nota tem a ver com que fica dito no n.º 4 do artigo 494.º do Pro-
jecto. Neste lugar, com bastante acerto, se diz que não cabe recurso da decisão
do juiz que por falta de elementos relegue para final a decisão da matéria que
lhe cumpra conhecer.
Não há recursos destas decisões por não serem definitivas e com esta solu-
ção legal retirar-se inquestionavelmente do sistema um meio que permitiria às
partes utilizarem o direito de recurso com propósitos meramente dilatórios.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

3.3. Especificação e Questionário.


Noção, Conteúdo e Regime
Quando o despacho saneador não puser termo à causa, para além da função
do saneamento que lhe está implícita, subsiste a necessidade de condensar os
termos do processo. Na verdade, esta segunda função de fixar os termos es-
senciais da causa, isto é, de seleccionar entre os factos invocados pelas partes
àqueles que são efectivamente relevantes para a sua decisão, é materializada
por duas peças processuais estruturalmente e funcionalmente distintas do des-
pacho saneador mas que nele são incorporadas, que são justamente a especi-
ficação e o questionário.
Num primeiro momento, por via da especificação e do questionário, o juiz
começará por expurgar do processo os factos que, tendo sido invocados pelas
partes, não se revestem de nenhuma importância para a justa decisão da causa,
segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Esta retirada de factos não relevantes do processo é feita de modo indirecto,
visto que daí em diante o juiz não fará mais qualquer referência a esses factos,
limitando a sua abordagem aos factos essenciais invocados pelas partes. Deve-
mos entender por factos essenciais os factos constitutivos do direito alegado
pelo autor e os factos modificativos ou extintivos desse mesmo direito que o
réu alegue em sua defesa.
A limitação dos poderes de cognição do juiz aos factos essenciais invocados
pelas partes está concatenada com a necessidade de imparcialidade que deve
presidir à actuação do julgador, por um lado, e, por outro lado, é uma con-
sequência directa do princípio do dispositivo, na sua nuance que concede a
disponibilidade objectiva do processo às partes.
Nessa conformidade, mesmo quando o juiz da causa decida usar da faculdade
que lhe é reconhecida pela alínea f) do n.º 2 do artigo 650.º do CPC de aditar
quesitos ao questionário no decurso da audiência de discussão e julgamento,
por considerá-los indispensáveis para a boa decisão da causa, estes só podem
incidir sobre factos que tenham sido alegados (articulados) pelas partes, como
resulta da imposição da segunda parte do artigo 664.º

178
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Todavia, não se deve perder de vista a possibilidade de, independentemente


de invocação, o juiz poder lançar mão dos factos notórios e dos factos revela-
dores de má-fé processual, nos termos consagrados nos artigos 514.º e 665.º
do CPC.
A par desses factos, constitui entendimento relativamente pacífico que é legí-
timo ao tribunal socorrer-se de factos instrumentais mesmo que tão tenham
sido objecto de alegação das partes, entendo-se como instrumentais os factos
de que o tribunal toma conhecimento no exercício da sua função e que aju-
dam na formação da convicção da verificação ou não dos factos essenciais,
mas que de per si não constituem nem extinguem ou modificam o(s) direito(s)
que as partes reclamam.
Antes de nos atermos ao tratamento de cada uma destas peças processuais,
convém deixar claro que quer numa quer na outra não há lugar à abordagem
de questões de direito e, caso o juiz se refira às questões de direito nessas
peças, as mesmas devem ser consideradas não escritas – n.º 3 do artigo 646.º
do CPC.
Em termos práticos, a separação da matéria de facto da matéria de direito
nem sempre se revela uma tarefa fácil, visto que nos seus articulados as partes
frequentemente misturam as questões de facto com as questões de direito.
As questões de facto devem corresponder às ocorrências concretas da vida
real e aos acontecimentos do foro interno da vida das pessoas, que são sus-
ceptíveis de serem consideradas falsas ou verdadeiras, ao passo que a matéria
de direito respeita à aplicação das normas jurídicas aos factos.
Seja como for, o julgador deve estar suficientemente preparado para realizar
com a qualidade desejada esta actividade, uma vez que a lei remete para um
momento posterior e para um órgão distinto a emissão de juízos de valor de-
correntes da aplicação da lei aos factosXLIII.
Dito isto, o n.º 1 do artigo 511.º do CPC impõe que se o processo houver
de prosseguir no despacho saneador, o juiz deve seleccionar entre os factos
essenciais articulados pelas partes, e por isso relevantes para a decisão, aqueles
que se acham provados (assentes) por confissão, acordo das partes ou por
prova documental, que integra na peça processual denominada de especifi-

179
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

cação. A especificação deve ser elaborada concretizando os factos provados


com subordinação a números, apesar de a letra da lei apenas estabelecer esta
exigência expressamente relativamente ao questionário.
A matéria de facto especificada, por força do disposto no n.º 2 do artigo 653.º
do CPC (in fine), é retirada do escrutínio do tribunal colectivo no momento em
que procede o julgamento da matéria de facto.
Por sua vez, os factos essenciais que ainda careçam de prova são agrupados
no questionário sobre a forma de quesitos, clarificando, sobre a forma de per-
guntas subordinadas a números.
Esses factos, como dispõe o artigo 513.º do CPC, constituirão a base de toda
a actividade de instrução e fixam os limites do poder jurisdicional do tribunal
colectivo, como decorre do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 653.º
do CPC.
Precisando, toda a actividade probatória que a posteriori se desenvolve só pode
incidir sobre factos integrados no questionário e, concluída a instrução, o
acórdão do tribunal colectivo julga a matéria de facto, declarando entre os
factos quesitados os que considera provados e os que considera não provados,
sendo que relativamente aos primeiros deve indicar os meios de prova sobre
os quais assentou o seu juízo conclusivo.
O tema da selecção da matéria de facto, em sede do Projecto, é tratado no
artigo 495.º. Aqui, no que de momento é relevante, é retomada na íntegra a
doutrina do n.º 1 do artigo 511.º do CPC e que acabamos de analisar, razão
pela qual se reitera tudo quanto ficou dito.

3.4. Reclamação Contra a Organização da Especificação


e do Questionário
Dado o papel fundamental que a especificação e o questionário desempe-
nham na formação dos termos essenciais da causa e, consequentemente, na
sua instrução, discussão e julgamento, a lei concede às partes a faculdade de
sindicarem a actuação do julgador na elaboração destas peças processuais.

180
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Os mecanismos de que as partes dispõem para sindicar a actividade do jul-


gador são a reclamação e o recurso de agravo, como a seguir explicitaremos.
Com base no n.º 2 do artigo 511.º, notificadas do despacho saneador que in-
tegre a especificação e o questionário, caso as partes ou uma delas não se con-
forme(m) com a organização que o juiz lhes conceder pode, no prazo geral de
cinco (5) dias (153.º do CPC), impugná-las por via de reclamação.
Esta reclamação deve ser apresentada em duplicado e pode ter como fun-
damento a deficiência, o excesso, a complexidade ou a obscuridade da espe-
cificação e/ou do questionário. Não obstante o texto da norma do n.º 2 do
artigo 511.º dela não fazer referência expressa, a contradição entre a matéria
especificada e a matéria quesitada, a jusante, é também aceite na prática como
fundamento bastante para a reclamação.
Haverá deficiência quando o juiz omitir um facto invocado que deveria ser
especificado, porque reunida prova bastante para o efeito, ou omitir um facto
controvertido que por se revelar essencial deveria constar do questionário.
Falar-se-á de excesso da especificação quando o juiz considerar como prova-
do um facto que tenha sido eficazmente impugnado pelo contraparte e que
relativamente ao mesmo no processo não conste elementos de prova que o
permitam julgar como assente, ao passo que estaremos perante excesso do
questionário quando tenha sido quesitado um facto essencial não articulado
ou, tendo sido articulado, não seja relevante para a boa decisão da causa.
Tratar-se-á de obscuridade quando o quesito estiver elaborado de uma forma
em que o entendimento do seu verdadeiro sentido potencie o surgimento de
acentuadas dúvidas.
Apresentada tempestivamente a reclamação, a secretaria deve notificar a parte
contrária para responder no prazo de cinco (5) dias, entregando-lhe para o
efeito o respectivo duplicado e, findo o prazo para a resposta, cumpre ao juiz
decidir diferindo ou indeferindo a reclamação – n.os 2 e 3 do artigo 511.º.
No caso de diferimento da reclamação devem ser feitos os aditamentos que se
impuserem à especificação e/ou ao questionário.

181
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Do despacho que recaia sobre a reclamação contra a organização da especi-


ficação e do questionário, cabe recurso de agravo a interpor no prazo de oito
(8) dias, contados a partir da data da notificação do despacho (artigo 685.º do
CPC), cujo conhecimento, actualmente, por força da organização judiciária
decorrente da Lei n.º 18/88 é da competência do Tribunal Supremo.
No entanto, quando se efectivar a organização aprovada pela Lei n.º 2/15,
entendemos que o conhecimento deste agravo passará a ser da competência
da Relação, repristinando-se a norma do n.º 4 do artigo 511.º do CPC e, por
via de consequência, deixará de caber recurso para o Supremo.
Se não houver reclamação, o prazo para eventual interposição do recurso con-
tar-se-á a partir da notificação que, por força do n.º 3 do artigo em análise, a
secretaria está vinculada a fazer, dando nota às partes de que não foi apresen-
tada nenhuma reclamação.
No que respeita à impugnação do despacho saneador que integre a especifi-
cação e o questionário, considerando a maior participação das partes na defi-
nição dos termos essenciais da causa, que decorre das faculdades que lhes são
reconhecidas no contexto da audiência preliminar, por um lado, e, por outro
lado, na preocupação de simplificação dos termos do processo (acção) subja-
cente a toda sua filosofia, o Projecto eliminou a possibilidade de se recorrer do
despacho que recaia sobre a reclamação contra a organização da especificação
e do questionário – n.os 2 e 3 do artigo 495.º.
Também pesou para a projectada eliminação do recurso o reforço dos pode-
res oficiosos do juiz para providenciar o regular andamento da acção, tal qual
resulta da combinação das disposições do artigo 264.º, n.º 4 do artigo 496.º e
alínea f) do n.º 2 artigo 624.º, todas do Projecto.
Esta solução representa ou poderá representar um grande ganho no que à
redução do tempo médio de pendência dos processos diz respeito, conside-
rando que actualmente temos constatado que neste momento, com ou sem
razão justificativa, o réu normalmente recorre e porque o respectivo agravo
sob imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (artigos 734.º,
736.º e 740.º, ambos do CPC), potencia-se assim um atraso na prolação da
decisão final de pelo menos um ano.

182
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Mas ao propor a supressão do agravo do despacho que incida sobre a recla-


mação contra a organização da especificação e do questionário, o legislador
técnico não se colocou à margem da necessidade de se sindicar a actuação do
juiz nesta fase decisiva do processo.
Ponderados os pró e os contras, o que o legislador vem propor é tão-somente
de ferir para momento posterior este exercício de fiscalização, permitindo a
impugnação do despacho proferido sobre a reclamação apenas com o recurso
que vier a ser interposto da decisão final – n.º 3 do artigo 495.º do Projecto.

4. Fase da Instrução. Noções Gerais e Função


De acordo com a sistematização adoptada pelo CPC, a fase da instrução co-
meça com a notificação que, depois de transitado em julgado o despacho sa-
neador que não tenha posto termo à causa, e por isso integra o questionário, a
secretaria deve oficiosamente fazer às partes para apresentarem o rol de teste-
munhas e requererem quaisquer outros meios de prova de que se pretendam
valer para a demonstração dos factos por si alegados – n.º 1 do artigo 512.º.
Se começa com a notificação referida no parágrafo anterior termina com a in-
quirição das testemunhas arroladas pelas partes na audiência final, nos dizeres
da lei, na audiência de discussão e julgamento da causa – alínea d) do n.º 3 do
artigo 652.º do CPC.
No entanto, antes de prosseguirmos convém reiterar que existem actos de ins-
trução que podem ocorrer fora do timing referido nos dois últimos parágrafos
e que, formalmente, nem sempre na tramitação da acção se verifica a fase de
instrução.
Na primeira hipótese, concretamente, a de actos de instrução que se realizam
antes do início formal da respectiva fase, prima facie temos o caso da prova
documental que, nos termos do artigo 523.º do CPC, deve ser apresentada
com o articulado em que se aleguem os factos cuja verificação se pretende
demonstrar.

183
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

A par da prova documental em que a lei privilegia a sua junção aos autos ainda
na fase introdutória da lide, portanto, na fase dos articulados, temos as situa-
ções em que é permitida a produção antecipada da prova, inclusive antes de a
acção ter sido proposta.
Assim, havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o
depoimento de certas pessoas, que podem ser as próprias partes ou testemu-
nhas, ou a verificação de certos factos por meio de arbitramento ou inspecção,
pode o depoimento, o arbitramento ou a inspecção realizarem-se antecipada-
mente – artigo 520.º.
Do enunciando do artigo 520.º conclui-se que só há possibilidade de pro-
dução antecipada da prova nos casos de depoimentos de pessoas, de prova
pericial (arbitramento) e de prova por inspecção, sendo que o requerente da
prova antecipada na sua petição deve justificar sumariamente a necessidade da
antecipação e mencionar com precisão os factos sobre os quais há-de recair –
n.º 1 do artigo 521.º.
Na segunda hipótese, isto é, a da não verificação da fase de instrução, por um
lado, temos as diversas situações em que o despacho saneador põe termo à
causa, seja por absolvição do réu da instância seja por conhecimento directo
do pedido, e, por outro lado, as situações de revelia operante, como já escalpe-
lizamos no ponto 2.10 (falta de contestação e seus efeitos).
Aqui chegados, é momento para clarificar que a fase da instrução probatória é
funcionalmente dirigida à produção ou recolha dos meios de prova destinados
à demonstração da verificação dos factos quesitados, significando isso que a
instrução probatória se consubstancia na actividade a desenvolver pelas partes
e pelo tribunal para a demonstração da realidade dos factos que constituem o
objecto da causa.

184
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

4.1. A Prova. Objecto e Conceito


A actividade instrutória que as partes e o tribunal desenvolvem, que abarca a
recolha dos meios de prova, a respectiva produção e valoração do resultado,
tem por objecto os factos essenciais invocados que, mostrando-se controver-
tidos, estejam integrados no questionário – artigo 520.º.
Contudo, a limitação do objecto da actividade instrutória aos factos constan-
tes do questionário não prejudica a possibilidade da produção antecipada da
prova antes de a acção ser proposta, respeitados os pressupostos definidos no
artigo 520.º, nem a junção (recolha) da prova documental aos autos que deve
ocorrer preferencialmente na fase dos articulados – artigo 523.º.
O que é categórico é que ficam excluídos do objecto da prova os factos no-
tórios e os factos instrumentais (artigo 514.º), bem como os factos admitidos
por acordo como consequência da sua não impugnação (n.º 1 do artigo 490.º).
Face ao conteúdo da primeira parte da norma do artigo 664.º, torna-se mister
concluir que a matéria de direito também não pode ser objecto de prova, as-
sistindo ao juiz total liberdade na selecção, interpretação e aplicação das regras
de direito para as quais os factos que constituem o objecto da acção sejam
subsumíveis.
Ao analisarmos as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 495.º e do artigo
497.º, ambos do Projecto, concluímos que em relação ao objecto da prova o
legislador perspectivou a manutenção do princípio da limitação da actividade
instrutória aos factos essenciais integrados no questionário. Sobre o tema,
existe uma corrente doutrinária que baseando-se numa filosofia de reforço
dos poderes inquisitórios do juiz defende um esquema de base instrutória
alargada, ou seja, que não restrinja o objecto da prova aos factos integrados no
questionário, como sucede, por exemplo, em sede do processo laboral.
Apesar de comungarmos da ideia de, cada vez mais e dentro dos condicio-
nalismos decorrentes da própria natureza das relações jurídico-privadas, se
procurar aproximar a justiça civil à verdade material, pensamos que no actual
estágio de desenvolvimento do sistema de administração de justiça é mais
sensata a opção abraçada pelo Projecto.

185
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

É que num sistema de base instrutória alargada, se os julgadores não esti-


verem devidamente capacitados técnica e deontologicamente, facilmente se
verificariam cenários que viabilizariam a sustentação de decisões com factos
não alegados e que, por essa razão, beliscariam o princípio da imparcialidade
do julgador, que é fundamental para a credibilização de qualquer sistema de
administração da justiça.
Compreendido que está que a actividade instrutória tem por objecto a prova
dos factos quesitados, cumpre-nos então a tarefa de densificar o conteúdo do
vocábulo prova.
A este propósito, o artigo 341.º do CC diz-nos que a prova tem por função a
demonstração da realidade dos factos.
Porém, é preciso ter em conta o facto de o termo comportar uma diversi-
dade semântica, podendo, consoante as circunstâncias em que é empregue,
significar a actividade que os sujeitos processuais realizam em juízo para a
demonstração da realidade dos factos que alegam (actividade instrutória ou
probatória), como referir-se aos elementos objectivos aptos a efectivarem tal
demonstração, portanto, aos meios de prova – por exemplo prova documental
ou testemunhal.
Há ainda uma terceira via em que o termo significa o resultado da actividade
instrutória, sendo que, neste prisma, a prova significará a convicção que se cria
no espírito do julgador sobre a realidade de um facto.
Não se trata aqui, como sucede no âmbito das ciências da natureza, da de-
monstração da certeza absoluta e irrefutável da verificação de um determina-
do facto, sendo apenas necessário a criação da certeza relativa ou subjectiva do
julgador. Verificar-se-á a certeza subjectiva quando o julgador for persuadido
de que determinado facto ocorreu.
Apesar do que se acaba de dizer, o grau de convicção que é necessário criar
no espírito do julgador não se deve confundir com os meros juízos de vero-
similhança, ou seja, da demonstração da probabilidade séria da verificação de
um facto, prova sumária, que é exigida em sede dos procedimentos cautelares,
como ficou referido na parte geral desta obra – ponto 2.4.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

4.2. Classificação Legal e Doutrinal das Provas


A classificação legal das provas foi feita pelo legislador, tendo em conta essen-
cialmente os meios de que as partes podem lançar mão para criar a convicção
do julgador sobre a verificação dos factos que sustentam as suas pretensões.
Para esse efeito, impõe-se revisitarmos o lugar próprio do CC do qual resulta
o cardápio que a seguir passamos a apresentar.
Assim sendo, temos a prova por presunções, entendidas como as ilações que
a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhe-
cido (artigo 349.º do CC); a prova por confissão (artigo 352.º do CC); a prova
documental (artigo 362.º do CC); a prova pericial (artigo 388.º e 389.º do CC);
a prova por inspecção (artigo 390.º e 391.º do CC); a prova testemunhal (ar-
tigo 392.º do CC); a jusante da prova por apresentação de coisas móveis ou
imóveis (artigo 518.º do CPC).
Não obstante o menu de meios de provas que a lei disponibiliza, no alinha-
mento com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 655.º do CPC),
segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e responde, entenda-
se, responde aos quesitos, segundo a convicção que tenha formado acerca de
cada facto, o nosso sistema processual adoptou o regime da prova livre.
Num regime de prova livre, que se contrapõe ao sistema ou regime de prova
legal, é admitido como meio de prova tudo quanto se mostre capaz de de-
monstrar a existência dos factos essenciais relevantes para a boa decisão da
causa.
Mas, ainda assim, não se deve perder de vista os casos em que a prova, isto é,
os meios de prova não são livremente admissíveis, ou porque para prova de
determinados factos a lei impõe a utilização de um meio específico ou porque
a lei não permite a utilização de certos meios.
A título meramente exemplificativo, temos o caso do direito de propriedade
de bens imóveis que só pode ser provado por documento celebrado por escri-
tura pública (artigo 875.º do CC e n.º 2 do artigo 655.º do CPC) e também a
inadmissibilidade de prova testemunhal relativamente aos factos que estejam
plenamente provados por documentos – n.º 2 do artigo 393.º do CC.

187
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

No plano doutrinário, tem-se distinguido a prova pré-constituída da prova


constituenda, a prova imediata (directa) da prova mediata e a prova real da
prova pessoal.
Prova pré-constituída é aquela cuja formação é anterior a necessidade da sua
apresentação em juízo e, quando seja formada antes da pendência da acção,
logicamente a sua produção não pressupõe qualquer actividade preparatória,
constituindo exemplo acabado a prova documental.
Já a prova constituenda é aquela cuja formação ocorre depois de surgir no
processo a necessidade da sua apresentação, como é o caso da prova testemu-
nhal, pericial e por inspecção.
A prova imediata é aquela que coloca directamente o elemento ou meio que
representa o facto cuja demonstração se pretende ao alcance da percepção do
juiz, como é o caso do depoimento de uma testemunha que tenha assistido a
ocorrência de um facto e dos documentos.
A prova mediata é aquela que traz ao conhecimento do juiz um mero indí-
cio do facto, visto que apenas coloca ao alcance da percepção psicológica do
julgador elementos (meios) que lhe permitem extrair ilações sobre o facto a
provar, por exemplo, o depoimento de uma testemunha não ocular, isto é, que
ouviu dizer que determinado facto ocorreu e a prova por presunções.
Por último, a prova pessoal é aquela cujo elemento (meio) que se utiliza para
formar a convicção do julgador sobre determinado facto é uma pessoa, no-
meadamente, a testemunha ao depor, a parte ao confessar e o perito ao emitir
o seu parecer.
Prova real, por sua vez, é aquela que tem por objecto uma coisa, nomeada-
mente, o imóvel sobre o qual incide a inspecção ou o documento cuja falsida-
de se averigua.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

4.3. Distinção entre Direito Probatório Material e Direito


Probatório Formal
Ao conjunto de normas e princípios reguladores da prova dá-se o nome de
direito probatório. Porém, em função do objectivo específico da sua regu-
lamentação, doutrinariamente distingue-se o direito probatório material do
direito probatório formal.
Nessa conformidade, por um lado temos o conjunto de normas que relativa-
mente ao regime jurídico da prova disciplinam matérias de natureza substantiva,
como sejam, a questão da repartição do ónus da prova e a questão da admissi-
bilidade dos meios de prova e da respectiva força probatória que, conformando
o direito probatório material, estão contidas no CC – artigo 341.º e seguinte.
Não constituindo nossa intenção fazer aqui grandes desenvolvimentos so-
bre o direito probatório material ou substantivo, porque entendemos que o
respectivo estudo cabe no âmbito da teoria geral do direito civil, dada a sua
particular conexão com a actividade processual das partes no que à fase de
instrução diz respeito, julgamos oportuno deixar algumas notas sobre o tema
da repartição do ónus da prova.
Neste particular, o critério legal vem consagrado no artigo 342.º do CC. Com
base nessa norma, àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos
constitutivos do direito por si alegado, ao passo que a prova dos factos impedi-
tivos, modificativos ou extintivos cabe àquele contra quem a invocação é feita.
Dito doutro modo, ao autor cabe fazer prova dos factos constitutivos do direi-
to cujo reconhecimento e/ou reparação reclama jurisdicionalmente e ao réu
cabe fazer prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito
reclamado pelo autor, dada a natureza dialéctica do processo.
Por exemplo, numa acção declarativa de condenação ao autor caberá a prova
dos factos constitutivos do direito de crédito, contrato ou outro negócio jurí-
dico que constitui a fonte da obrigação do réu e a data do vencimento da obri-
gação, para além da não realização da correspectiva prestação por banda do
réu, ao passo que ao réu caberá a prova dos factos extintivos, nomeadamente,
mas sem se limitar, a extinção da obrigação por compensação com um outro
crédito que o réu detinha contra o autor.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Sem embargo do critério geral de repartição do ónus da prova que acabamos


de referenciar, não se deve deixar de considerar as situações que, com base em
considerações de ordem prática, a lei traça nos desvios àquele critério, confi-
gurando situações de inversão do ónus da prova.
Nesse leque de situações, entre outros casos, chamamos a atenção para as ac-
ções de simples apreciação negativa em que, pretendendo o autor a declaração
da inexistência de um direito, competirá ao réu a prova dos factos constituti-
vos deste mesmo direito e para as acções que devam ser proposta dentro de
certo prazo a contar da data em que o autor dele teve conhecimento, cabendo
nesta segunda hipótese ao réu a prova de que o prazo já decorreu – artigo
343.º do CC, n.os 1 e 2.
Por outro lado, encontramos um conjunto de normas que disciplinam o modo
como as provas são requeridas, produzidas e assumidas em juízo, tendo em
vista a necessidade da demonstração dos factos relevantes para a decisão da
causa, que consubstanciam o denominado direito probatório formal ou adjec-
tivo e que estão contidas no CPC – artigo 512.º e seguintes.
Aqui, especial relevo deve ser concedido ao esquema do denominado pro-
cedimento probatório, ou seja, a sequência de actos processuais destinados à
utilização em juízo dos diversos meios de prova legalmente admissíveis.
Feita uma leitura transversal das pertinentes normas do CPC, é possível des-
cortinar no procedimento probatório o momento do requerimento da prova,
a que genericamente se refere o artigo 512.º e especificamente, entre outros,
o artigo 552.º, o momento da admissão da prova; artigos 543.º e 554.º, o
momento da produção da prova, por exemplo, a prestação de depoimento de
testemunha arrolada por uma das partes e o momento da assunção da prova,
que no caso da prova testemunhal se traduz na transcrição do depoimento em
acta e consequente incorporação no processo.
No que concerne ao procedimento probatório, o Projecto do CPC contém
algumas propostas que dado o reflexo que poderão ter na gestão dos proces-
sos estamos compelidos a não encerrar este tema sem fazermos uma breve
referência sobre elas.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Em primeira instância, destacamos a simplificação do regime da prova peri-


cial, particularizando o facto de se propor o fim da existência de procedimen-
tos distintos para exames e vistoria, que nos termos actuais dizem respeito à
perícia que incide sobre bens móveis ou imóveis, e para a avaliação, que ac-
tualmente se reporta à perícia que tem por finalidade a determinação do valor
de bens ou de direitos.
O Projecto, no artigo 552.º e seguintes, aponta para um procedimento único
e mais simplificado que privilegia a perícia feita por um único perito, sem pre-
juízo de, por iniciativa do juiz ou por requerimento das partes, poder ser feita
por um colégio de peritos.
Outra proposta que cumpre salientar é a que tem a ver com a possibilidade
de as testemunhas deporem através de tele ou videoconferência, salvo nas
situações previstas nas diversas alíneas do artigo 592.º onde se destaca a im-
possibilidade de prestação de depoimentos por um dos dois meios referidos
no caso de produção antecipada de prova e no caso de se ter arrolado como
testemunha uma das entidades enumeradas no artigo 595.º, por exemplo, o
Presidente da República e o Vice-Presidente, que gozam da prerrogativa de
serem inqueridos nas respectivas residências ou locais de serviço.
Por último, e ainda dentro do esforço de transportar para o processo as fa-
cilidades concedidas pelas tecnologias de informação, é de ter em conta a
faculdade de as partes poderem ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2
do artigo 620.º do Projecto requerer a gravação da audiência final, tema a que
voltaremos em momento próprio.

4.4. Princípios do Direito Probatório Formal. Princípio


do Inquisitório e Princípio da Audiência Contraditória
Na decorrência do princípio do dispositivo, afirmamos acima que no julga-
mento dos casos que lhe são submetidos, o tribunal só se pode socorrer dos
factos essenciais que tenham sido alegados pelas partes – artigo 664.º do CPC.
Mas, fixada a base instrutória, ou seja, os factos essenciais que tendo sido
alegados ainda se afigurem controvertidos e por essa razão estão vertidos no

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

questionário, relativamente a esses ao tribunal é reconhecido poder bastante


para, mesmo sem o requerimento das partes, realizar as diligências que se
mostrarem necessárias para a sua comprovação.
Resulta do que acaba de se referir que no que concerne à actividade probatória
vigora o princípio da oficiosidade ou inquisitório, significando que ao tribunal,
adentro do objecto da lide delimitado pelas partes, é lícito realizar oficiosa-
mente todas as diligências que julgar necessárias para a descoberta da verdade.
Fora do campo dos factos essenciais alegados os poderes inquisitórios do
tribunal estendem-se à realização de diligências destinadas a comprovação da
verificação dos factos instrumentais, para além dos factos notórios e dos fac-
tos reveladores da má-fé.
A ideia da admissibilidade da realização oficiosa de diligências de instrução
é justificada pelo carácter público do processo, pretendendo com esse ex-
pediente aproximar tanto quanto possível a justiça cível à verdade material
e, consequentemente, potenciar a diminuição de situações de injustiça que
podem resultar da assunção absoluta do princípio da verdade formal qual tale
foi concebido no auge da ideologia liberal.
No CPC, a consagração geral do princípio do inquisitório no que à instrução
processual se refere encontramo-la no n.º 3 do artigo 264.º, onde se lê que o
juiz tem o poder de realizar ou ordenar oficiosamente as diligências que con-
siderar necessárias para o apuramento da verdade quanto aos factos de que
lhe é lícito conhecer.
Como corolário da ideia geral expressa no n.º 3 do artigo 264.º, em vários ou-
tros preceitos e a propósito dos diversos meios de prova, o código confere ao
juiz poderes para ordenar oficiosamente diligências de instrução. Exemplifica-
tivamente, citamos os casos do artigo 535.º, que confere ao tribunal poderes
oficiosos para requisitar informações ou documentos e o artigo 612.º que lhe
reconhece competência para ordenar a realização oficiosa de inspecção judicial.
Este poder oficioso reconhecido ao tribunal de realizar diligências de instru-
ção faz recair às partes e a terceiros, quer se trate de entidades públicas ou pri-
vadas, o correspectivo dever geral de cooperação, que se revela fundamental
para conferir utilidade prática ao poder do tribunal.

192
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Assim, nos termos do artigo 519.º, todas as pessoas, sejam ou não partes na
causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade,
dever cujo cumprimento se materializa, respondendo ao que lhes for pergun-
tado e submetendo-se às inspecções necessárias ou facultando o que lhes for
requisitado.
Dada a sua importância, a lei sanciona a sua violação com a condenação em
multa, nos termos das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 519.º do CPC
e do artigo 140.º Código das Custas Judiciais (CCJ), sem prejuízo da faculdade
de se lançar mão aos meios coercitivos que possam viabilizar a realização dos
objectivos que se pretendem alcançar com a diligência.
No entanto, é legítima a recusa do cumprimento do dever de cooperação
quando a sua obediência importar a violação do sigilo profissional ou causar
grave dano à honra e consideração da própria pessoa ou de seu descendente
ou ascendente.
No que diz respeito à violação do segredo profissional, na interpretação do ar-
tigo 519.º, precisamente, do seu n.º 3, deve ser tida em conta a regulamentação
que sobre a matéria é feita nos estatutos das diversas classes de profissionais,
nomeadamente, mas sem se limitar, nos Estatutos da Ordem dos Advogados e
dos Médicos e na Lei das Instituições Financeiras, no que à banca diz respeito.
O segundo princípio estruturante desta fase processual, o da audiência con-
traditória, vem plasmado no artigo 517.º do CPC. Segundo o seu enunciado,
as provas não são admitidas nem produzidas sem a audiência contraditória da
parte a quem hajam de ser oposta.
Este princípio, por um lado visa conferir às partes meios para acautelarem os
seus interesses nesta fase determinante do processo, conferindo-lhes a pos-
sibilidade de fiscalizarem a actividade desenvolvida pela contraparte, e por
outro lado traduz-se num veículo para concretizar a realização do interesse
público da descoberta da verdade, evitando a manipulação dos meios de prova
carreados aos autos.
A aplicação prática deste princípio, relativamente às provas pré-constituídas,
impõe que a contraparte seja notificada para querendo impugnar tanto a sua
admissão como a respectiva força probatória e no que se refere às provas

193
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

constituendas impõe a notificação da contraparte para todos os actos de pre-


paração e produção da prova.

5. Fase da Discussão e Julgamento da Causa. Função


Específica
Como já tivemos a oportunidade de referir, na dinâmica do processo, os actos
de instrução se dispersam-se pelas várias fases da tramitação do processo,
resultando desta constatação que a fase de instrução só se pode delimitar no
plano lógico e não no plano cronológico.
Dito isto, em termos práticos geralmente sucede que os últimos actos de ins-
trução, nomeadamente, o depoimento das partes, dos peritos e a inquirição de
testemunhas se realizam já no âmbito da audiência final, comum e incorrecta-
mente denominada de audiência de discussão e julgamento da causa.
Referimos que a designação comum da audiência é incorrecta justamente pelo
facto de nela também se realizarem actos que não corporizam a discussão da
causa, por um lado, e por outro lado o julgamento final, isto é, da matéria de
direito, ocorrer já fora do seu âmbito, pelo que consideremos que a designação
que se reveste de maior acerto é de audiência final.
Por conseguinte, terminada a instrução da causa, repetimos, cujos últimos
actos ocorrem no âmbito da audiência de discussão e julgamento (audiência
final), se inicia o ciclo da discussão da causa.
Neste tema, a lei dá um tratamento diferenciado a discussão da matéria de
facto e a discussão da matéria de direito.
A discussão da matéria de facto, que por força dos princípios da imediação
e da concentração se realiza logo a seguir à conclusão da instrução, vem re-
gulada na alínea e) do n.º 3 e no n.º 5 do artigo 652.º do CPC, e consiste nos
debate que os advogados das partes realizam para, com base nos elementos
probatórios constantes dos autos, cada uma das partes procurar demonstrar
entre os factos quesitados àqueles que devem ser considerados provados e
àqueles que devem ser tidos por não provados.

194
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Concretizando, os advogados devem fazer perante o tribunal uma análise crí-


tica e fundamentada dos elementos probatórios, procurando persuadir o tri-
bunal sobre a verificação dos factos que com base nos critérios de repartição
do ónus da prova cabe a cada uma delas comprovar.
Salvo nas acções de simples apreciação negativa, nos debates usa da palavra
primeiro o advogado do autor e depois o advogado do réu, podendo cada um
deles responder o outro uma única vez.
A lei não fixa um limite temporal dentro do qual cada um dos advogados
pode usar da palavra, ficando desta forma ao arbítrio do juiz a monitorização
deste aspecto. No entanto, cada um dos advogados pode ser interrompido
pelo juiz ou pelo outro advogado, mas nesta segunda hipótese só com o seu
consentimento.
Do esquema traçado pela lei, resulta que visando potenciar as vantagens de-
correntes dos sistemas de instrução oral, nomeadamente, o contacto directo
entre o julgador e os meios de prova no momento da sua produção, a par da
maior celeridade na actividade probatória, conclui-se que a discussão da maté-
ria de facto é sempre feita de forma oral.
Discutida e julgada a matéria de facto, julgamento que actualmente é efectiva-
do pelo tribunal colectivo nos termos que mais adiante detalharemos, ainda
no contexto da audiência de discussão e julgamento (audiência final), abre-se
um outro ciclo, o ciclo da discussão do aspecto jurídico da causa, isto é, da
matéria de direito.
Contrariamente ao que sucede com a discussão da matéria de facto, a lei im-
põe que, em regra, a discussão da matéria de direito seja feita de forma escrita,
só permitindo a sua discussão oral quando as partes tenham nisso acordado,
como resulta da interpretação conjugada do n.º 5 do artigo 653.º e do artigo
657.º, ambos do CPC.
Se as partes acordarem na discussão oral esta é feita logo a seguir ao julgamen-
to da matéria de facto e perante o juiz a quem caiba lavrar a sentença final e,
quanto ao procedimento, deve ser observado o mesmo que presidiu a discus-
são da matéria de facto.

195
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Não havendo acordo para que a discussão seja feita de forma oral, a secretaria
facultará o processo para exame aos advogados, pelo prazo de oito (8) dias
para cada um deles, para alegarem por escrito.
Nas suas alegações, os advogados devem definir a posição dos seus consti-
tuintes em face do direito aplicável, ou seja, na perspectiva dos interesses dos
seus representados interpretarão e aplicarão a lei aos factos e indicarão aquele
que deve ser o sentido decisório.
Quanto a este tema, em termos do perspectivado pela reforma começamos
por apontar a forma mais elaborada como na alínea e) do n.º 1 e no n.º 3 do
artigo 626.º do Projecto é regulada a discussão da matéria de facto.
Para evitar as dificuldades interpretativas que se têm verificado actualmente na
distinção entre os debates introdutórios que ao abrigo do n.º 2 do artigo 652.º
do CPC devem ser realizados no início da audiência de discussão e julgamento
da causa (audiência final) e a discussão da matéria de facto propriamente dita,
o Projecto, no citado artigo 626.º, sugere o abandono do termo debate e a sua
substituição pelo vocábulo alegações, mais concretamente, alegações orais.
Mais do que a mera substituição de vocábulos, o Projecto indica como é que
no contexto da discussão deve ser feita a análise crítica dos elementos proba-
tórios de que o processo dispuser após a conclusão da instrução.
Quanto à discussão da matéria de direito, há a destacar a inversão da regra da
discussão escrita para a regra da discussão oral. Aqui, o legislador, atendendo
fundamentalmente ao que, na prática, se tem observado nos tribunais ango-
lanos, sem contudo deixar de ter em conta outras razões que sobre a matéria
se têm defendido no plano teóricoXLIV, no n.º 5 do artigo 627.º do Projecto se
propõe que em regra a discussão do aspecto jurídico seja feita de forma oral
perante o juiz a quem caiba lavrar a sentença final e logo após ao julgamento
da matéria de facto.
No seguimento, a discussão escrita fica reservada para os casos em que as
partes tenham acordado neste sentido e, se assim for, durante a audiência
final o juiz deve ordenar que o advogado do autor no prazo de dez (10) dias
apresente as suas alegações, sendo que o advogado do réu goza de igual prazo
para contra-alegar, devendo para o efeito a secretaria facultar o processo aos

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

advogados para exame – sem prejuízo de a consulta poder ser feita por meio
electrónico, conforme o que se dispuser em legislação própria.

5.2. Formalidades Preparatórias da Audiência de Discussão


e Julgamento (Audiência Final)
A denominação de audiência de discussão e julgamento da causa generalizou-
se pelo facto de ser esta a epígrafe do capítulo iv do título ii (do processo
ordinário) do livro iii (do processo) do CPC. Não obstante a denominação
vulgar, em algumas situações, como é o caso do n.º 1 do artigo 647.º, a lei usa
a denominação mais acertada, ou seja, audiência final.
A denominação de audiência final busca o seu acerto, para além das razões já
invocadas no ponto anterior, porque permite distingui-la da audiência prepa-
ratória que, como sabemos, pode ocorrer na fase do saneamento e da conden-
sação do processo.
Na audiência de discussão e julgamento (audiência final), por força das dis-
posições conjugadas do n.º 1 do artigo 646.º do CPC e do artigo 28.º da Lei
n.º 18/88, intervém um tribunal colectivo composto por um Juiz de Direito e
dois Assessores Populares, ao qual compete julgar a matéria de facto como a
seguir verificaremos.
Contudo, tão logo comece a ser implementada a organização judiciária traçada
pela Lei n.º 2/15,em regra, intervirá nessa audiência um juiz singular, ficando
a intervenção do tribunal colectivo, que entretanto passará a ser composto
por três juízes de Direito, reservada aos casos excepcionais que também serão
objecto da nossa análise no ponto seguinte.
Face à multiplicidade de actos que nela se praticam, como sejam, actos de
instrução, a discussão da matéria de facto e o seu julgamento e a eventual dis-
cussão do aspecto jurídico da causa, para potenciar a sua realização exitosa é
necessário que seja cuidadosamente preparada.
Nessa conformidade, findas as diligências de produção de prova que não pos-
sam deixar de ter lugar antes da audiência, o juiz designará o dia para a sua
realização mas, até a conclusão do processo para este efeito, a qualquer dos

197
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

advogados é lícito requerer exame do processo e, uma vez requerido, o juiz


está vinculado a conceder o processo para exame dentro de um prazo a fixar
entre cinco (5) a dez (10) dias – artigo 647.º.
Portanto, tendo sido requerido exame do processo para preparação da audiên-
cia por parte dos advogados das partes, só depois de expirado o prazo que
para o efeito lhes tiver sido concedido pelo juiz é que é designada a data para
a realização da audiência.
Como na audiência intervém um tribunal colectivo cuja composição já aludi-
mos, subsiste a necessidade de, à semelhança do que se reconhece aos advo-
gados das partes, conceder aos Assessores Populares ou aos Juízes Adjuntos,
a possibilidade de com vista à boa preparação da audiência tomarem contacto
com o processo antes da sua realização. Para atingir este desiderato, antes da
realização da audiência o processo deve ir com vista por cinco (5) dias a cada
um dos Assessores Populares ou Juízes Adjuntos, salvo se o juiz da causa,
dada a sua simplicidade, decidir pela dispensa dos vistos – artigo 648.º.
Se a matéria de facto que será objecto da actividade a desenvolver na audiência
se revestir de especial complexidade técnica, que escape ao conhecimento dos
operadores do Direito, máxime, dos juízes, pode o juiz da causa designar um
técnico capaz de auxiliar o tribunal no entendimento da factualidade, prestan-
do os esclarecimentos que se mostrarem necessários – artigo 649.º.
Chegado o dia marcado para a realização da audiência, esta só poderá ser
adiada se: (i) não for possível constituir tribunal colectivo, nos termos das mo-
dificações introduzidas pela Lei n.º 2/15 quando este haja de intervir; (ii) se
faltar alguma pessoa que tenha sido convocada e de que se não prescinda; (iii)
se tiver sido oferecido documento que a parte contrária não possa examinar
no próprio acto; e (iv) se por motivo ponderoso e inesperado faltar algum dos
advogados – n.º 1 do artigo 651.º.
É de notar que a falta de uma pessoa convocada e o oferecimento de docu-
mento que a parte contrária não pode examinar no acto, entenda-se, na au-
diência, só determina o seu adiamento se o tribunal considerar que há grave
inconveniente em que a audiência prossiga sem a presença dessa pessoa ou
sem a resposta sobre o documento.

198
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Não ocorrendo nenhuma causa susceptível de determinar o adiamento, a au-


diência em princípio deve começar com uma exposição introdutória que cada
um dos advogados das partes faz ou pode fazer relativamente à pretensão do
seu constituinte, bem como dos respectivos fundamentos n.º 2 do artigo 652.º.
Aqui, salvo nas acções de simples apreciação negativa, primeiro é dada a pala-
vra ao advogado do autor e depois ao advogado do réu. Porém, na prática fo-
rense temos vindo a observar que os advogados raras vezes usam desta facul-
dade, o que determina o começo da audiência pelas diligências de instrução.
Por conseguinte, constatamos que grande parte do tempo da audiência é con-
sumido com a produção da prova, iniciando com a exibição de reproduções
cinematográficas ou de registos fonográficos, se tiverem sido carreados aos
autos, e passando pelos esclarecimentos verbais prestados pelos peritos quan-
do solicitados pelo tribunal – alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 652.º.
Subsequentemente, a atenção recai para a prova constituenda, nomeadamen-
te, com a recolha dos depoimentos das partes e com a inquirição de testemu-
nhas – alíneas a) e d) do n.º 3 do artigo 652.º.
Terminada a produção da prova segue-se o ciclo dos debates, concretamente,
da discussão da matéria de facto e da discussão da matéria de direito. Assim,
para evitarmos a queda em lugares comuns, sobre este tema remetemos para
o que ficou dito no ponto anterior.
Mas, a remissão acabada de fazer não dispensa a tarefa de olharmos para o que
sobre o tema nos é proposto pelo Projecto. Aqui, iluminado pelas soluções
consagradas na Lei n.º 2/15, no seu artigo 620.º, o Projecto aponta no sentido
de em regra intervir na audiência de discussão e julgamento (audiência final)
um juiz singular, ao qual competirá tanto o julgamento da matéria de facto
como o julgamento final, isto é, do aspecto jurídico da causa.
A intervenção do tribunal colectivo, que será composto exclusivamente por
juízes de Direito, ocorrerá apenas nas causas cujo valor seja superior ao dobro
da alçada do tribunal de relação mas, mesmo nessas causas, não se admitirá a
intervenção do tribunal colectivo se (i) toda a prova produzida antes do início
da audiência tiver sido reduzida a escrito ou (ii) alguma das partes requerer a
gravação da audiência.

199
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Como consequência directa e lógica da limitação do espaço de intervenção do


tribunal colectivo, só haverá lugar à remessa do processo com vista aos adjun-
tos quando este tiver de intervir – artigo 622.º do Projecto.
No que tange as causas de adiamento da audiência, pensamos ser vantajosa a
solução que nos é proposta na alínea c) do n.º 1 conjugada com o n.º 3 do arti-
go 625.º do Projecto. Resulta da interpretação destas normas que o adiamento
da audiência com fundamento na falta de um dos advogados só deve ocorrer
quando o juiz tenha marcado a audiência sem prévio acordo dos mandatários,
como privilegia o artigo 151.º do Projecto.
Fora desta hipótese, a audiência não é adiada por causa da ausência de um dos
advogados, mas os depoimentos, as informações e os esclarecimentos que
nela se prestarem são gravados e, se assim o entender, o advogado faltoso,
após a audição dos respectivos registos, pode requerer a renovação de alguma
das provas produzidas se, entretanto, provar que não compareceu por motivo
ponderoso.
Não temos dúvidas de que esta solução, se correctamente aplicada, contribui-
rá significativamente para redução dos índices elevadíssimos de adiamento de
audiências com os reflexos daí decorrentes para excessivo tempo de pendên-
cia dos processos.
Por último, por considerar que na prática quase nunca os advogados têm es-
tado a usar desta faculdade e por também entender que as partes que até esta
fase final do processo se mantiveram firmes as posições relativamente ao lití-
gio não estarão muito disponíveis para exercícios conciliatórios, o legislador
propõe a supressão da possibilidade de audiência começar com a exposição
introdutória dos advogados sobre a pretensão dos seus constituintes e não a
substituiu com a realização de uma tentativa de conciliação, como aconteceu
na reforma operada em outros ordenamentos da nossa família jurídica – con-
frontar artigo 626.º Projecto.

200
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

5.3. O Julgamento. Distinção Entre o Julgamento


da Matéria de Facto e o Julgamento da Matéria
de Direito. O Julgamento da Matéria de Facto: Regra
do Julgamento e a Subordinação ao Questionário
O julgamento constitui a fase destinada à decisão final da causa. No entanto,
a decisão final da causa materializa-se em dois momentos distintos, sendo que
num primeiro momento é decidida, portanto, julgada, a matéria de facto e
num segundo momento é julgada a matéria de direito.
Como já tivemos oportunidade de referir acima, o julgamento da matéria de
facto é feito por um tribunal colectivo e dentro da audiência de discussão e
julgamento (audiência final), ao passo que o julgamento da matéria de direito
é feito por um juiz singular, o Presidente do colectivo que julgou a matéria
de facto (o juiz da causa) e depois de terminada a audiência, precisamente, no
momento em que elaborar a sentença final.
Convém também lembrar que com a materialização da organização judiciária
traçada pela Lei n.º 2/15, o julgamento da matéria de facto, em regra, passará
a ser feito por um juiz singular, ficando a intervenção do colégio a circunscre-
ver-se aos casos excepcionais.
Antes de prosseguirmos, é de salientar que a não observância da competên-
cia orgânica que referimos nos dois últimos parágrafos, entendida como a
repartição de competência dentro de órgãos diferentes do mesmo tribunal, é
sancionada por lei.
Assim, ao abrigo do n.º 2 do artigo 646.º do CPC, se as questões de facto
forem julgadas pelo juiz singular quando o devam ser pelo tribunal colectivo
será anulado o julgamento, ocorrendo este anulamento em sede do recurso
que eventualmente se venha a interpor ou ainda na primeira instância a reque-
rimento de qualquer uma das partes.
Temos assim que encerrada a discussão da causa, o tribunal colectivo ou juiz
singular deve recolher-se à sala de conferências para decidir, isto é, julgar a
matéria de facto, suspendendo-se assim a audiência pelo tempo necessário.

201
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

O julgamento da matéria de facto traduz-se nas respostas que o tribunal dá


aos factos essenciais controvertidos integrados no questionário, nomeada-
mente, considerando-os provados, parcialmente provados ou não provados.
Se as respostas do tribunal colectivo ou singular no contexto do julgamento
da matéria de facto incidirem sobre questões de direito, devem ser tidas por
não escritas, o mesmo sucedendo quando recaiam sobre factos que só podem
ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por
documentos quer por acordo ou confissão das partes – n.º 3 do artigo 646.º
do CPC.
Quando a matéria de facto é julgada pelo tribunal colectivo, competirá ao
Presidente lavrar o respectivo acórdão e a deliberação é tomada por maioria,
podendo qualquer um dos membros do colégio assinar vencido quanto a qual-
quer resposta.
Ao responder aos factos quesitados o tribunal está vinculado ao dever de
fundamentação, o que equivale a dizer que não basta considerar determinado
facto como provado ou parcialmente provado, sendo necessária a indicação
do meio de prova sobre o qual assentou o juízo de valor do tribunal, ou seja,
que determinou a convicção do julgador – n.º 2 do artigo 653.º do CPC.
No caso de meios de prova que não se revistam de especial força probatória,
além da sua concretização ou indicação, a boa técnica exige dos julgadores ou
julgador que faça uma análise crítica da prova, especificando as razões justifi-
cativas que determinaram as opções.
Por exemplo, se numa acção declarativa de condenação as testemunhas do
autor afirmam que o réu pediu de empréstimo Kz 20.000,00 (vinte milhões
de Kwanzas) e assumiu a obrigação de devolver o dinheiro no prazo de dois
meses e as testemunhas do réu afirmam que o autor doou a quantia que recla-
ma em juízo, o tribunal terá de justificar porque é que considerou provada a
alegação do autor em detrimento da alegação do réu.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Notificado o acórdão ou despacho que julgou a matéria de facto às partes,


notificação que é feita mediante a leitura do acórdão ou do despacho pelo
presidente tão logo a audiência é retomada, é este facultado para exame a cada
um dos advogados que, de seguida, podem dele reclamar com fundamento na
deficiência, obscuridade ou contradição entre as respostas.
Esta reclamação deve ser apresentada imediatamente e da decisão que sobre
ela incidir não é admissível nova reclamação – n.º 4 do citado artigo 653.º.
Nesta temática, ressalvada a referência expressa do julgamento da matéria de
facto pelo juiz singular, solução que como também já dissemos é importada
da Lei n.º 2/15 e da melhor redacção que é concedida a forma de efectivação
do dever de motivação, o Projecto em nada mais se afasta do que está consa-
grado no CPC.

5.4. Princípio da Imediação e Plena Participação dos Juízes


Na formação da convicção do julgador ou julgadores sobre a verificação dos
factos que sustentam as pretensões das partes concorrem aspectos objectivos,
mas também aspectos subjectivos.
Porque assim é, o nosso sistema processual é traçado de forma a viabilizar o
contacto directo entre quem decide a matéria de facto e os diversos meios de
prova, destacando-se aqui o contacto com as provas pessoais, ou seja, com as
testemunhas, com as partes e com os peritos.
Ao observar a testemunha no momento em que esta presta o seu depoimento,
os juízes ou juiz captam uma série de elementos subjectivos que lhes ajudam a
formar a sua convicção sobre a veracidade ou não do que está a ser afirmado.
A forma mais ou menos segura como a testemunha responde as questões que
lhe são colocadas, as eventuais falhas de memória e/ou as contradições que se
verificam no decurso do depoimento, certamente são factores que concorrem
na formação da convicção de quem decide.
Para potenciar o aproveitamento desses factores, guiada pelo princípio da
imediação, a lei estabelece que os depoimentos das partes e a inquirição das
testemunhas, bem como a recolha dos esclarecimentos dos peritos sejam fei-

203
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

tos na audiência final e perante os juízes ou juiz encarregue de julgar a matéria


de facto – n.º 2 do artigo 652.º do CPC.
Concatenado com o princípio da imediação está o princípio da plenitude da
assistência, nos termos do qual só podem intervir no julgamento da matéria
de facto os juízes que tenham assistido a todas as diligências de instrução e
discussão da causa praticados na audiência final – n.º 1 do artigo 654.º.
Dado o papel decisivo da ideia da plenitude da assistência dos juízes no aprovei-
tamento das vantagens que são reconhecidas ao contacto directo entre o julgador
e os meios de prova, o que é o mesmo que dizer a ideia da imediação, se durante
audiência final falecer ou se impossibilitar permanentemente algum dos juízes ou
o juiz, a lei manda repetir todos os actos já praticados mas, se se tratar de impossi-
bilidade temporária, interrompe-se a audiência pelo tempo indispensável, salvo se
as circunstâncias aconselharem a repetição dos actos – n.º 2 do artigo 654.º.
Pelas mesmas razões, no caso de transferência, aposentação ou promoção do
juiz este deve concluir o julgamento já iniciado, ressalvando-se o caso de apo-
sentação fundada na incapacidade física, moral ou profissional para o exercí-
cio do cargo.
Nesta matéria, de jure condendo, o Projecto aponta no sentido de que nas situa-
ções de falecimento ou de impossibilidade temporária dos juízes apenas se
repetirem os actos ou diligências que não tenham sido reduzidas a escrito ou
gravadas, como se lê no seu artigo 628.º.
Com esta solução o que se pretende é buscar um ponto de equilíbrio entre a
necessidade do aproveitamento das vantagens subjacentes aos princípios da
imediação e da plenitude da assistência e as vantagens inerentes ao não retar-
damento excessivo da decisão da causa – princípio da celeridade processual.

5.5. Princípio da Concentração e o Princípio


da Continuidade da Audiência
É pacífica a constatação de que a capacidade da memória humana para a con-
servação da informação que armazena é limitada. Sendo assim, para que o
tempo não dilua as impressões que os julgadores vão tirando no momento

204
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

da produção da prova, o princípio da concentração induz-nos a, tendencial-


mente, concentrar todas as diligências de instrução, discussão e julgamento da
matéria de facto na audiência final.
Mas, por si só, de nada adiantaria a concentração desses actos e diligências na
audiência final se não existisse um indicador no sentido de a audiência decor-
rer no menor espaço temporal possível.
Concretizando, é sabido que na audiência final são realizados vários actos e
diligências e que nem sempre é possível efectuá-las numa única sessão, por
limitação de tempo. Ainda assim, a lei privilegia a ideia da continuidade da
audiência, só permitindo a sua interrupção por motivos de força maior ou em
caso de absoluta necessidade – n.º 1 do artigo 656.º.
Por exemplo, se aberta a audiência à audição das testemunhas do autor se pro-
longar para além das 19 horas, será legítima a sua interrupção para continuar
tão logo seja possível, preferencialmente no dia imediatamente a seguir.
Respeitados os condicionalismos decorrentes da gestão da agenda dos juízes e
do funcionamento do tribunal, devemos retirar do princípio da continuidade da
audiência a conclusão de que, não sendo possível concluí-la num único dia, os
intervalos entre as várias sessões da audiência devem ser os mais curtos possí-
veis e que os julgamentos já iniciados têm prioridade relativamente aos marca-
dos para datas posteriores, como resulta da boa interpretação do artigo 656.º.

5.6. Princípio da Livre Apreciação da Prova


No julgamento da matéria de facto, como já acima referimos, o tribunal, singu-
lar ou colectivo, está vinculado ao dever de fundamentação cujo cumprimento
passa pela concretização e pela análise crítica dos meios de prova decisivos
para a formação da sua convicção sobre a verificação dos factos essenciais
alegados pelas partes.
Nessa tarefa de motivação da decisão, como dispõe o n.º 1 do artigo 655.º,
o tribunal aprecia livremente as provas e responde segundo a convicção que
formar acerca de cada um dos factos quesitados, nisso consistindo o princípio
da livre apreciação da prova.

205
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Persistindo dúvidas sobre a verificação do facto cuja realidade se procura de-


monstrar, o tribunal deve decidir contra a parte sobre a qual recai o ónus da
prova, nos termos do artigo 516.º do CPC.
Em termos práticos, com excepção dos casos em que a lei atribui força proba-
tória especial a determinado meio, o tribunal não está vinculado ao resultado
da prova, formando a convicção sobre a verificação ou não do facto que com
ele se procura provar com base no seu livre e prudente arbítrio, liberdade essa
que todavia não prejudica o dever de fundamentação.
Entre os casos excepcionais de prova vinculada ou legal, temos a prova por
confissão judicial escrita e a prova por documentos autênticos. A confissão
judicial escrita, como decorre do n.º 1 do artigo 358.º CC tem força probatória
plena contra o confitente e, por isso, só pode ser elidida pela prova de facto
contrário ao confessado, ou seja, não é suficiente a criação de dúvida no espí-
rito do julgador sobre a existência ou não do facto.
Os documentos autênticos, como resulta do artigo 371.º do CC, fazem prova
plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial pú-
blico e a sua força probatória só pode ser elidida com base na sua falsidade, o
que, obviamente, pressupõe a arguição do necessário incidente de falsidade,
n.º 1 do artigo 372.º do CC e artigo 360.º e seguintes do CPC, ou se a falsi-
dade for evidente em face dos sinais exteriores do documento, caso em que
o tribunal pode declará-lo falso oficiosamente – n.º 3 do artigo 372.º do CC.

6. A Sentença Final. Objecto e Requisitos


A designação de sentença cabe ao acto pelo qual o juiz decide a causa princi-
pal ou algum incidente que apresente, segundo a lei, a figura de uma causa, ao
passo que entende-se por despacho o acto pelo qual o juiz resolve qualquer
problema relativo à relação processual.

206
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Porém, esta diferença entre sentença e despacho não obedece a um critério


absolutamente rígido, na medida em que, por vezes, encontramos despachos
que podem decidir a causa principal – máxime, despacho saneador sentença,
alínea c) do n.º 1 do artigo 510.º – e também podemos encontrar sentenças
susceptíveis de decidirem a causa com base num problema de natureza pro-
cessual.
A propósito desta última questão, e com base no estabelecido no artigo 288.º,
as sentenças classificam-se em sentenças de mérito e sentenças de forma,
sendo que as primeiras se pronunciam sobre o fundo da causa, julgando-a
procedente ou improcedente, e as segundas apenas se debruçam sobre vícios
de natureza processual – não se pronunciando sobre o fundo da causa por
inexistência dos necessários pressupostos processuais.
Já a designação de acórdão, nos termos da segunda parte do n.º 2 do artigo
156.º do CPC, é reservada para as decisões dos tribunais colectivos que, na
primeira instância, são integrados pelo Juiz de Direito e pelos Assessores Po-
pulares, mas que como início da implementação da orgânica definida pela Lei
n.º 2/15, quando haja de intervir, será exclusivamente composto por juízes de
direito.
A triologia que acabamos de analisar impõe-se acrescer uma quarta espécie,
que é a das resoluções e que se traduzem nas decisões finais proferidas em
sede dos processos de jurisdição voluntária – artigo 1411.º.
Essas decisões diferenciam-se das outras pelo facto de, com fundamento na
alteração superveniente das circunstâncias em que se fundaram, poderem ser
alteradas pelo próprio tribunal que as proferiu.
Concluída que está a descrição das espécies que integram a categoria pro-
cessual das decisões judiciais, passamos de seguida à análise dos respectivos
requisitos formais e substanciais. Nesta senda, cingiremos a nossa análise aos
requisitos da sentença na medida em que estes, com as devidas adaptações,
são extensivos às outras espécies de decisões.
Dos requisitos externos e internos da sentença tratam os artigos 157.º e 158.º.
Quanto aos requisitos externos, com base no artigo 157.º, divisamos os se-
guintes: (i) parte decisória necessariamente manuscrita pelo juiz., (ii) rubrica

207
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

das folhas dactilografadas – nomeadamente, as relativas ao relatório e à fun-


damentação –; (iii) ressalva de todas as emendas feitas no texto; e (iv) data e
assinatura do juiz.
A montante dos requisitos acabados de discriminar, deve-se ter em conta a
necessidade de reproduzir em acta as sentenças proferidas oralmente, bem
como o registo das sentenças finais em livros especiais.
O artigo 158.º ocupa-se dos requisitos internos, que se reconduzem ao dever
de fundamentação. O dever de fundamentação, apesar de não ter consagração
directa na CR, dentro do esquema organizacional específico aos Estados de
Direito, representa uma garantia adicional dos administrados, porquanto per-
mite a fiscalização do exercício do poder jurisdicional.
Com a imposição do dever de fundamentação, os magistrados são obrigados
a descrever o exercício intelectual que desenvolvem e, por essa via, tanto as
partes envolvidas num litígio concreto como a opinião pública em geral, têm
a possibilidade de avaliar a menor ou maior eficácia da função jurisdicional do
Estado.
O dever de fundamentação das decisões judiciais comporta duas vertentes,
concretamente, a fundamentação de facto e a fundamentação de direito.
Quanto à fundamentação de facto, o juiz deve indicar os factos que considera
provados e os que julga não provados, bem como discriminar os meios pro-
batórios que lhe permitiram chegar a tal juízo de valor - n.º 2 do artigo 653.º.
Mas, mais do que indicar os factos e os respectivos elementos probatórios
que os sustentam, o juiz deve reconstituir todo inter-intelectual por si desen-
volvido até chegar às conclusões, o que pressupõe a realização de uma análise
crítica dos meios probatórios de que se socorreu.
Na prática, sobre essa matéria, existe uma tendência de os julgadores se limi-
tarem a aderir a fundamentação de uma das partes. Esta prática, para além
de não ter qualquer respaldo na lei, é de todo condenável, na medida em que
colide com os propósitos que determinaram a instituição do dever de funda-
mentação a que acima aludimos e, no limite, pode pôr em causa a desejada
imparcialidade do juiz no julgamento da causa.

208
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Num esforço para se eliminar esta má tendência no cumprimento do dever de


fundamentação, no n.º 2 do artigo 154.º do Projecto consagra-se a proibição
expressa da fundamentação por simples adesão aos fundamentos alegados
por uma das partes, salvo quando excepcionalmente a lei o permitir.
Porém, relativamente às acções sumárias e sumaríssimas não contestadas, ve-
rifica-se uma excepção ao pressuposto do cumprimento do dever de funda-
mentação da matéria de facto. Aqui, como se sabe, a falta de contestação
implica o efeito cominatório pleno e, porque assim é, admite-se que nessas
circunstâncias o julgador possa limitar a sua fundamentação à aderência aos
factos invocados na petição inicial – artigos 464.º e 784.º, n.º 2.
Já quanto à fundamentação de direito, o juiz deve indicar, interpretar e aplicar
as normas jurídicas aos factos da causa, isto é, deve proceder ao enquadra-
mento jurídico do problema decidendo.
Ao indicar a norma, o juiz estará eleger o preceito do ordenamento jurídico
que se mostra apto para a regulamentação do problema sub judice e, após a
conclusão desta tarefa, caberá ao juiz a obrigação de fixar o verdadeiro sentido
e alcance da norma, obrigação que será cumprida com recurso aos cânones
interpretativos que a hermenêutica jurídica coloca à disposição do julgador. A
este propósito, convém referir que o julgador deverá socorrer-se não só dos
cânones interpretativos tradicionais, isto é, dos critérios de resolução integra-
dos nas normas positivas, mas de todos que possam conduzir à realização
concreta da justiça.
Porém, ao mobilizar critérios de resolução diversos dos pré-objectivados pelo
sistema, o julgador deve ter como catalisador as exigências da consciência
jurídica dominante, pelo que não poderá chegar a uma conclusão que fira o
senso comum de justiça.
Interpretada a norma, caberá então ao juiz a tarefa de extrair as consequências
jurídicas para o caso concreto, isto é, aplicar a norma ao caso mediante a indi-
vidualização do problema.
Contudo, e ao contrário do que o esquema de exposição possa fazer crer, do
ponto de vista dinâmico não há uma completa separação da actividade intelec-
tual conducente ao cumprimento do dever de fundamentação da matéria de

209
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

facto e ao dever de fundamentação da matéria de direito. Mesmo a selecção da


matéria de facto, tarefa que, como vimos, se insere no âmbito da fundamentação
fáctica, é sempre feita tendo em atenção as várias soluções plausíveis de direito.
Na busca da justiça do caso, o juiz deve constantemente contrapor os factos
ao direito e no âmbito dessa dialéctica ensaiar a solução mais justa para o pro-
blema que reclama por apreciação jurisdicional.

6.1. Estrutura da Sentença. Questões a Resolver


De harmonia com o disposto no artigo 659.º, a estrutura da sentença compor-
ta três partes distintas: (i) relatório;(ii) fundamentos; e (iii) decisão.
O relatório começa com a identificação das partes, seguindo-se uma exposi-
ção concisa do pedido e dos seus fundamentos, o que também deve ser feito
em relação aos fundamentos e às conclusões da defesa.
Na prática, assistimos a uma tendência para, os juízes, em vez de sintetiza-
rem os fundamentos da acção, se limitarem a transcrever a petição inicial e
a contestação. Esta tendência, para além de não ter qualquer cobertura legal,
representa um mau serviço prestado à causa da administração da justiça, na
medida em que é susceptível de tornar a sentença uma peça de leitura difícil.
Posteriormente, mas ainda no âmbito do relatório, indicar-se-á de forma resu-
mida as ocorrências cujo registo possa oferecer interesse para o conhecimento
do litígio e concluir-se-á com a descrição da causa qual tale emergiu da discus-
são final, o que implica que se fixe com precisão as questões cuja resolução
se impõe.
Ao relatório segue-se a fundamentação ou motivação, fase que, como referi-
mos supra, subdivide-se em fundamentação de facto e fundamentação de di-
reito. Assim, e para evitarmos a queda em lugares comuns, quanto à estrutura
desta fase da elaboração da sentença, remetemos-vos para tudo quanto sobre
o ficou dito.
A sentença termina com a decisão, por via da qual se soluciona a questão sub
judice, ou seja, se compõe o litígio mediante a declaração do efeito jurídico que,
segundo o entendimento do tribunal, cabe ao caso concreto.

210
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Por vezes, pode suceder que, sem prejuízo da sua unidade formal, a sentença
contenha mais de uma decisão e, se assim for, para efeitos de determinação do
objecto do recurso, a sentença é divisível à proporção das várias decisões nela
contidas, podendo a parte vencida impugnar todas ou algumas das referidas
decisões – n.º 2, artigo 684.º.
Na parte final da sentença, imediatamente a seguir a decisão, o tribunal deve
pronunciar-se sobre as custas, condenando, nos termos da respectiva legisla-
ção, a parte que por elas for responsável.
Na descrição das fases da elaboração da sentença, entre outras coisas, refe-
rimos que em sede do relatório o juiz deve fixar o objecto da lide. Fixado o
objecto da lide, o que significa determinar as questões que carecem de apre-
ciação jurisdicional, importa, então, estabelecer uma ordem de prioridade para
o necessário conhecimento.
A resposta a esta questão consta do n.º 1 do artigo 660.º, onde se lê que a
sentença conhece em primeiro lugar e pela ordem estabelecida no artigo 288.º
as questões que possam conduzir à absolvição da instância. Logo, se por qual-
quer razão, em sede do despacho saneador, o juiz não proceder ao julgamento
dos pressupostos processuais, na prolação da sentença, deverá dar prioridade
ao julgamento dessas questões em observância estrita a ordem de procedência
estabelecida no artigo 288.º.
No que respeita à ordem do julgamento dos pressupostos processuais impos-
ta pelo artigo 288.º, é de referir que a sua rigorosa observância é susceptível
de determinar soluções que, do ponto de vista de justiça efectiva, se revelem
contraproducentes. Nessa conformidade, e para minorar esse risco, o critério
aconselhável é o da procedência lógica dos pressupostos processuais, o que dá
uma maior mobilidade ao julgador face ao caso concreto.
Sobre esta questão, a par da necessidade de se modificar o critério que preside
ao estabelecimento da ordem do conhecimento dos pressupostos processuais,
também ganha fóruns de urgência a reflexão sobre o problema da própria
procedência do julgamento das questões de forma em relação às questões de
fundo.

211
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Aqui, o problema que se coloca é o de saber se o princípio do julgamento pré-


vio das questões de forma é absoluto, ou se, em determinadas circunstâncias,
é legítimo abstrair-se do julgamento dessas questões e passar-se directamente
para o julgamento de mérito.
Do ponto de vista doutrinário, o problema levantado conduz-nos à teoria do
abandono do “dogma da prioridade”, teoria esta que traça a orientação segun-
do a qual, nas hipóteses em que falta um pressuposto processual destinado a
proteger interesses das partes (por contraposição aos pressupostos proces-
suais destinados a proteger interesses públicos), e não existindo nenhum obs-
táculo para a apreciação do mérito da causa, sendo que, se proferida decisão
de mérito, será favorável a parte cujos interesses o pressuposto em causa de-
fende, deve ser deixado de parte o julgamento do pressuposto e proferir-se
directamente uma decisão de mérito.
Se atendermos às necessidades socioeconómicas específicas a esta fase da
globalização, resultará pacífica a conclusão de que, cada vez mais, em sede
do processo cível, à semelhança do processo penal, dever-se-á dar espaço de
actuação ao princípio da verdade material – em substituição do princípio da
verdade formal.
Partindo deste pressuposto, dúvidas não subsistirão de que o caminho ideal
é o que nos é indicado pela teoria acima citada, daí que no n.º 1 do artigo
634.º do Projecto se propõe começando-se na sentença pelo conhecimento
das questões processuais, portanto, as que são susceptíveis de determinar a
absolvição da instância, o respectivo conhecimento deve todavia ser feito pela
ordem imposta pela sua precedência lógica.
Resolvidas as questões de forma, passar-se-á então ao conhecimento das
questões de fundo. Em relação a essas, e com base no disposto no n.º 2 do
artigo 660.º, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham sub-
metido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada
pela solução dada a outras e não poderá ocupar-se de questões que não foram
suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou se impuser o conhecimen-
to oficioso de outras.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Entre as questões cuja solução se mostra prejudicada pela decisão dada a ou-
tras, enquadramos o caso dos pedidos subsidiários. Por exemplo, se A pede a
condenação de B na restituição de uma coisa e, no caso de a respectiva coisa
estiver absolutamente deteriorada, o pagamento do equivalente em dinheiro,
procedendo o pedido primário, o tribunal não deverá pronunciar-se sobre o
pedido subsidiário.
As questões de conhecimento oficioso reconduzem-nos às excepções pe-
remptórias de que o Tribunal pode oficiosamente conhecer, por exemplo, o
caso julgado – artigo 500.º, bem como os factos acessórios ou instrumentais,
ou seja, aqueles de que o tribunal toma conhecimento no e por causa do
exercício da sua actividade e que sejam susceptíveis de ajudar a formação da
convicção do julgador mas, por si sois, não determinam o destino da lide.

6.2. Limites da Condenação e Relação Entre a Actividade


das Partes e a Actividade do Juiz
Sobre esta questão, e em obediência ao artigo 661.º, o juiz, na prolação da sen-
tença, deve respeitar duas espécies de limites, nomeadamente, o limite quanti-
tativo e o limite qualitativo.
No que respeita ao limite quantitativo, o juiz está impedido de condenar em
quantidade superior a pedida, pelo que, se numa acção declarativa de conde-
nação A pedir a condenação de R no pagamento de uma dívida no valor de
Kz 100.000,00 (cem mil Kwanzas), o Tribunal não poderá condenar R a pagar
Kz 105.000, 00 (cento e cinco mil Kwanzas), ainda que seja este o valor que
resulta da prova carreada aos autos.
O limite qualitativo impede o juiz de condenar em objecto diverso do objecto pe-
dido. Assim, se numa acção de reivindicação de propriedade A pedir a condenação
de R no reconhecimento do seu direito de propriedade relativo a um imóvel que
possui na cidade de Benguela, e consequente restituição da posse, o Tribunal não
poderá condenar no reconhecimento e restituição da posse de um imóvel que A
possua na cidade do Lobito, ainda que este último esteja também ocupado por
R e que tenha o mesmo valor de mercado do imóvel sito na cidade de Benguela.

213
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para determinar os contornos efectivos dos limites quantitativos e qualitativos


da sentença, atender-se-á ao pedido formulado na sua globalidade e não às
várias parcelas em que o mesmo se pode decompor e que não correspondam
a pedidos autónomos. Nessa conformidade, na hipótese de ocorrer um erro
aritmético ao proceder-se a soma das parcelas, não configurará uma violação
ao limite quantitativo se A fixar um valor global de Kz 100.000,00 (cem mil
Kwanzas) quando da soma das parcelas resultar a quantia de Kz 105.000,00
(cento e cinco mil Kwanzas).
Se no momento da elaboração da sentença o processo não contiver elementos
que permitam a fixação do objecto ou da quantidade, e porque por força do
princípio da proibição da denegação da justiça o Tribunal não pode limitar-se
a absolver R ou a condená-lo arbitrariamente, este deverá condenar no que se
liquidar em execução de sentença, sem prejuízo da condenação imediata na
parte que já seja líquida – n.º 2 do artigo 661.º.
Nesses casos, no momento da execução da sentença, se a liquidação da obri-
gação depender de simples cálculo aritmético, o exequente fixará a quantia que
o executado é obrigado a pagar no requerimento inicial e, no caso contrário,
na tramitação da acção executiva será enxertado o necessário incidente de
liquidação – artigos 805.º e 806.º e seguintes.
Tanto os limites quantitativos como os limites qualitativos representam coro-
lários do princípio do dispositivo.
A relação entre a actividade das partes e a actividade do juiz, a que alude o
artigo 664.º, deve ser encarada sob uma dupla perspectiva. Por um lado temos
uma relação respeitante à matéria de direito e, por outro lado, temos uma re-
lação respeitante à matéria de facto.
Quanto à matéria de direito, dispõe o artigo 664.º que o juiz não está sujeito às
alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e à aplicação das
regras de direito, o que equivale a dizer que nos três momentos em que o juiz
desenvolve a actividade de valoração jurídica do problema dicidendo actua
com plena liberdade.

214
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Porque assim é, pode suceder que o juiz julgue uma acção como procedente
ou improcedente, socorrendo-se de uma argumentação jurídica distinta da
que as partes lançaram mão para sustentar as suas pretensões.
Sendo os juízes independentes no exercício das suas funções, devendo apenas
obediência à lei e à sua consciência, não teria qualquer sentido uma opção
legal que vinculasse os julgadores aos fundamentos de direito aduzidos pelas
partes. De resto, os magistrados judiciais são profissionais de direito e, por
essa mesma razão, deles se espera que tenham suficiente domínio do direito
que os permita ajuizar com acerto os problemas que são submetidos à sua
apreciação.
Sem pretender cercear a liberdade de actuação dos juízes, no que à matéria de
direito diz respeito, o princípio do contraditório aconselha que, sempre que
o Tribunal propender para a resolução do caso sub judice com base em fun-
damentação jurídica diferente da avançada pelas partes, deverá, previamente,
fixar prazo para as partes se pronunciarem. Desta forma, evitar-se-á que as
partes sejam surpreendidas com uma argumentação que só poderão contrariar
em sede de recurso, caso a respectiva decisão admita impugnação por essa via.
Ao contrário da matéria de direito, em sede da matéria de facto, a relação en-
tre os juízes e as partes é presidida pelo princípio do dispositivo. Aqui, o juiz
só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sendo esses os factos
constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos das pretensões por elas
formuladas, ou seja, os factos essenciais.
Porém, a título excepcional, a lei permite que o juiz, no exercício da actividade
jurisdicional, se socorra de alguns factos independentemente de não terem
sido alegados pelas partes – artigos 514.º e 665.º.
Enquadramos neste leque os factos notórios, entendendo-se como tal aqueles
que são do conhecimento público e, por isso, prescindirem de prova, os factos
de que o Tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas fun-
ções e os factos reveladores de uso reprovável do processo.
Segundo Fernando Amâncio Ferreira, entre os factos de que o Tribunal tem
conhecimento por virtude do exercício das suas funções, há que distinguir os
factos acessórios dos factos complementares.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Factos acessórios ou instrumentais são aqueles de que o Tribunal toma conhe-


cimento no decorrer da sua actividade, mas deles não depende a procedência
ou improcedência da acção, ajudando, todavia, a formar a convicção do julga-
dor sobre a verificação ou não dos factos essenciais. Outrossim, serão factos
complementares, aqueles de que o Tribunal toma conhecimento por virtude
do exercício das suas funções e que se mostram relevantes para a procedên-
cia ou improcedência das pretensões, mas não à viabilidade da acção ou da
excepção.

6.3. Noção de Caso Julgado. Caso Julgado Material e Caso


Julgado Formal
O instituto do caso julgado tem subjacentes os valores da certeza e da segu-
rança jurídica, que são fundamentais para a realização da almejada paz social
que constitui um dos fins mediatos do processo civil, como se sabe.
Assim, a ideia de caso julgado pressupõe, pelo menos em regra, a imodificabi-
lidade das decisões que o tribunal profere sobre todas as questões controver-
tidas que lhe são submetidas para apreciação.
Afirmamos que o caso julgado em regra determina a imodificabilidade das
decisões proferidas pelo tribunal porque, em circunstâncias excepcionais, a lei
permite a modificação de decisões já transitadas em julgado por via dos recur-
sos extraordinários, máxime, o recurso de revisão e o recurso de oposição de
terceiro, por entender que, nesses casos, os valores que se procuram realizar
são superiores aos defendidos pelo instituto do caso julgado, nomeadamente,
a realização da justiça material.
Ao estabelecer um momento a partir do qual a parte vencedora pode contar
definitivamente com o direito que lhe foi reconhecido por via judicial, a lei
propícia aos particulares o sentimento de segurança necessário para se alcan-
çar a paz social.
Pelas razões expostas, diz-se que a sentença faz caso julgado quando a deci-
são ou decisões nela contidas se tornam imodificáveis, sendo que o marco
que a lei elegeu para que a decisão transite em julgado é a insusceptibilidade

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

de impugnação por via de recurso ordinário e/ou de reclamação, como vem


expresso no artigo 677.º do CPC.
Logo, se a decisão proferida pelo tribunal admitir recurso ordinário transitará
em julgado se decorridos oito (8) dias a contar da data da sua notificação às
partes nenhuma delas interpuser recurso; se não admitir recurso ordinário,
a decisão transitará em julgado depois de decorridos cinco (5) dias, que é o
prazo ordinário para dedução de eventual reclamação.
Se a decisão que transitar em julgado respeitar a questões de natureza me-
ramente processual formar-se-á caso julgado formal, e se respeitar à relação
material controvertida formar-se-á caso julgado material ou substancial.
O caso julgado material, nos termos do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, tem
força obrigatória dentro e fora do processo e, por essa razão, impede que o
mesmo ou outro tribunal possa decidir novamente e de forma diferente a
mesma relação material controvertida.
Já o caso julgado formal só tem força obrigatória dentro do processo, artigo
672.º do CPC, e apenas obsta que o mesmo juiz e na mesma acção altere uma
decisão por si anteriormente proferida, mas não impede que numa outra ac-
ção a mesma questão processual seja decidida de modo diverso.
No plano da sistematização, o CPC, artigo 496.º, integra o caso julgado no
âmbito das excepções peremptórias, cujo juízo de procedência, como é do
nosso domínio, determina a absolvição total ou parcial do pedido.
Contudo, no rigor da análise conceptual, quando o tribunal julga procedente a
excepção do julgado, não entra na apreciação do mérito da causa proposta em
segundo lugar, ou seja, depois do trânsito em julgado da decisão proferida em
acção anterior, pelo que no plano do direito a constituir dever-se-á integrar o
caso julgado no leque das excepções dilatórias.
É justamente isso que o Projecto faz na alínea i) do n.º 1 do artigo 480.º, quan-
do propõe que a par da litispendência o caso julgado passe a ser tratado como
excepção dilatória, daí se extraindo as consequências próprias decorrentes da
procedência das excepções do género.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

6.4. Limites do Caso Julgado. Limites Subjectivos


e Objectivos
Em última instância a excepção do caso julgado tem por fim evitar que o tri-
bunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão
anterior. Assim, para que se possa falar em caso julgado, é necessário que haja
repetição de uma causa.
Partindo deste pressuposto, no n.º 1 do artigo 498.º do CPC estabelece-se que
há repetição de uma causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quan-
to aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. Por conseguinte, da análise desta
norma buscamos os limites subjectivos e os limites objectivos do caso julgado.
Assim, havendo uma acção anteriormente julgada que opunha João Canda
à Maria Cafeca, para apreciação da mesma questão, não pode Maria Cafeca,
depois de transitada em julgado a decisão da acção anterior, mover nova acção
contra João Canda.
Maria Cafeca está impedida de mover nova acção contra João Canda por força
do princípio da relatividade do caso julgado, segundo o qual a decisão tran-
sitada em julgado apenas vincula as partes da acção. A identidade de sujeito
ocorre quando as partes são as mesmas do ponto de vista da sua qualidade –
n.º 2 do artigo 498.º, mesmo que as suas posições se invertam, isto é, exerceu
o papel e passa a exercer o papel passivo.
Sem prejuízo da eficácia subjectiva relativa do caso julgado, a lei prevê situa-
ções em que o caso julgado produz efeitos erga ommes, como sucede nas ques-
tões relativas ao estado das pessoas quando a acção é proposta contra todos
os interessados directos e tenha havido oposição – artigo 674.º do CPC e nas
situações previstas na lei civil – conforme artigo 830.º do CC.
Do ponto vista objectivo, para que se concretize a repetição da causa exigível
para a verificação da excepção do caso julgado, é necessário que o pedido e
causa de pedir numa e noutra acção sejam as mesmas, ocorrendo a identidade
do pedido quando nas duas acções se pretenda obter o mesmo efeito jurídico
e a identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções
procede do mesmo facto jurídico – n.º 3 e 4 do artigo 498.º.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Apesar do que fica dito sobre a identidade do pedido e da causa de pedir, é de


notar que o caso julgado abrange apenas a parte decisória da sentença final e
não abrange os fundamentos de facto da sentença final e consequentemente
o raciocínio lógico seguido para se chegar ao julgamento.

6.5. Vícios e Reforma das Decisões Judiciais


A análise da questão dos vícios e da reforma das decisões judiciais impõe o
recurso ao que noutros lugares referimos a propósito dos requisitos das de-
cisões judiciais, bem como o entendimento do princípio do esgotamento do
poder jurisdicional do juiz da causa.
Esta imposição, por um lado, resulta do facto de ser da não observância dos
requisitos dessas decisões que decorrem os vícios ou irregularidades que im-
porta corrigir – sob pena de, em alguns casos, gerar-se a nulidade das decisões
– e, por outro lado, ser o princípio do esgotamento do poder jurisdicional o
veículo que nos permite determinar o órgão com competência para proceder
à(s) reforma(s) que se impuser.
Nos termos do artigo 666.º, proferida a sentença, fica imediatamente esgo-
tado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, entenda-se, da
resolução do problema que a causa pressupõe..
Porém, sem prejuízo da limitação dos poderes jurisdicionais do juiz da causa
decorrentes do princípio acabado de enunciar, este conserva a sua compe-
tência relativamente à apreciação das questões e incidentes que se suscitarem
depois da tomada da decisão. Desta sorte, competirá, por exemplo, ao juiz da
causa a admissão ou não do recurso que eventualmente se interponha, bem
como praticar os actos tendentes à viabilização da subida ou expedição do
recurso para o Tribunal superior.
Contudo, as razões que estão na base da solução legal consagrada no n.º 1 do
artigo 666.º permitem que, em algumas situações, seja lícito ao juiz da causa
modificar a decisão por si anteriormente tomada, sem que tal represente um
atentado aos valores cujo princípio visa salvaguardar – daí que o princípio a
que nos temos vindo a referir não seja um princípio absoluto.

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Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Essas situações, que traduzem as excepções ao princípio do esgotamento do


poder jurisdicional do juiz, vêm enumeradas no n.º 2 do artigo 666.º, nomea-
damente: (i) é permitido ao juiz rectificar erros materiais; (ii) suprir nulidades;
(iii) esclarecer dúvidas; e (iv) reformar as sentenças quanto a custas e multas.
São diferentes as razões que subjazem a cada uma das três excepções indica-
das. Assim, com base na apreciação casuística de cada uma delas e tendo em
consideração preocupações ligadas ao princípio da economia processual, o
legislador traçou para cada uma um regime de arguição específico.
Da rectificação de erros materiais ocupa-se o artigo 667.º e, aí, têm-se como
erros materiais: (i) a omissão dos nomes das partes, (ii) a omissão quanto às
custas, (iii) os erros de cálculo ou de escrita, e (iv) quaisquer outras inexacti-
dões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
O conceito de erro material não se reconduz à figura de erro de julgamento.
Aqui, o juiz procede a uma correcta interpretação dos factos e do direito, mas,
por qualquer razão, verifica-se uma divergência entre a vontade real do juiz,
que foi correctamente formada, e a vontade declarada. Por exemplo, numa
acção declarativa de condenação movida por Paulo contra Carlos, o juiz, cum-
pridos os formalismos legais e após a apreciação cuidada dos autos, julga a
acção procedente e condena Carlos (que apenas interveio no processo como
perito) no pagamento do valor reclamado por Paulo – quando em todas as
outras fases da sentença identificou correctamente R.
As situações do artigo 667.º, dada a sua configuração, encontram paralelo na
teoria do erro na declaração, consagrada no artigo 247.º do Código Civil –
pelo que, sempre que se mostre necessário a utilização daquele instituto pro-
cessual, dever-se-á ter em linha de conta os pressupostos deste outro instituto
do Direito Civil.
Porque se tratam de meros erros materiais, e não verdadeiros erros de julga-
mento, o legislador traçou um regime que impede a perpetuação da instância,
permitindo que, na hipótese de se verificarem tais situações, o próprio juiz da
causa as possas corrigir.

220
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Esta correcção pode resultar da própria iniciativa do juiz ou de requerimento


de qualquer das partes e, se nenhuma das partes recorrer da decisão, a rectifi-
cação pode ser feita a todo tempo – cabendo agravo do despacho que a fizer.
Agora, se for interposto recurso, a rectificação só pode ter lugar antes de os
autos serem expedidos para o Tribunal competente para a sua apreciação, po-
dendo, aí, as partes alegarem o que entendam relativamente à rectificação – n.º
2 do artigo 667.º recurso
Da nulidade das sentenças, cujo regime, por força do disposto no artigo 716.º,
é extensivo aos acórdãos, ocupa-se o artigo 668.º. Esta norma, sem avançar
qualquer definição, o que aliás não é função das leis, descreve taxativamente as
situações cuja verificação traduz a nulidade das decisões.
Assim, as sentenças são nulas quando: a) não contenham a assinatura do juiz;
b) não especifiquem os fundamentos de facto e de direito que justificam a
decisão; c) os seus fundamentos estejam em oposição com a decisão; d) o juiz
deixe de pronunciar-se sobre questões de que devesse apreciar ou conheça de
questões de que não podia tomar conhecimento e, e) condenem em quantida-
de superior ou em objecto diverso.
A omissão da assinatura, que como vimos configura um requisito externo da
sentença, cuja finalidade essencial é garantir a fidelidade deste acto jurídico,
é um vício relativamente simples e por isso também está sujeito a um regime
de suprimento fácil. Porque assim é, pode ser sempre arguida no Tribunal que
proferiu a decisão e o seu suprimento tanto pode ocorrer por iniciativa do juiz
ou de qualquer das partes – enquanto for possível colher a assinatura do juiz
que proferiu a decisão.
Como requisito interno da sentença referimos o dever de fundamentação,
imposto aos julgadores pelo artigo 158.º e que se subdivide em duas vertentes,
a fundamentação de facto e a fundamentação de direito. O não cumprimento
desse dever impossibilitaria a opinião pública de “fiscalizar” os critérios que
presidem a função jurisdicional do Estado e, além disso, retiraria aos Tribunais
superiores os meios de que dispõem para reapreciar a correcção ou incorrec-
ção das decisões dos Tribunais hierarquicamente inferiores.

221
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Para se evitar esses riscos, a lei sanciona a sua omissão com a nulidade do acto,
quer se trate da omissão dos fundamentos de facto como da omissão dos fun-
damentos de direito. Porém, sobre esta questão, só releva, para a produção da
nulidade, a omissão absoluta da fundamentação é não já uma fundamentação
incompleta e/ou deficiente. Uma motivação incompleta ou deficiente apenas
retira mérito científico à sentença e ao seu autor e, por não persuadir as par-
tes sobre o acerto dos argumentos de que o juiz se socorreu para produzir
a decisão, estas certamente dela recorrerão. Dadas as deficiências de que se
reveste uma sentença com essas características, interposto recurso, o Tribunal
competente para a respectiva apreciação certamente propenderá para a recti-
ficação do julgado.
Quanto ao seu regime de arguição, à semelhança das outras causas de nulidade
que a seguir analisaremos, a lei, em obediência aos princípios da economia e
da celeridade processuais, traçou um regime misto.
Desta forma, a nulidade decorrente da violação do dever de motivação só
pode ser arguida no Tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir re-
curso ordinário. No caso contrário, entre outros, o recurso a interpor, que
tanto poderá ser uma apelação ou um agravo, como adiante especificaremos,
deverá ter como fundamento esta violação.
A oposição entre a decisão e os fundamentos, contrariamente ao que invoca-
mos a propósito da rectificação dos erros materiais, não representa uma mera
contradição entre a vontade real e a vontade declarada. Neste caso, o proble-
ma (vício) reside no próprio processo de construção intelectual da sentença,
uma vez que, com base nos argumentos aduzidos pelo juiz, logicamente, a
decisão a tomar seria diferente da efectivamente tomada – não existindo, no
entanto, uma opção voluntária para o dissídio. Se, por hipótese, numa acção
de divórcio litigioso o marido sustentar o seu pedido no adultério reiterado da
mulher e na violação sistemática dos deveres de respeito e de cooperação, e o
juiz considerar os factos alegados provados, subsumindo-os na corresponden-
te norma do Código da Família, mas, todavia, julgar improcedente o pedido
formulado, configurar-se-ia aqui um caso em que os fundamentos avançados
deveriam levar uma decisão diversa, ou seja, à procedência do pedido.

222
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

As duas últimas causas de nulidade da sentença que o artigo 668.º refere são
corolários do princípio do dispositivo.. A primeira delas, isto é, o dever de o
juiz se pronunciar sobre todas as questões suscitadas pelas partes, e apenas de-
las, não implica que ele deva reproduzir na sentença todos os argumentos das
partes. O que é essencial aqui é a referência aos problemas levantados, o que
é diferente da argumentação para a sustentação da forma que as partes acham
que é a melhor para a resolução dos problemas. Portanto, se se pronunciar
sobre todas as questões suscitadas, não haverá campo de aplicação para esta
causa de nulidade pelo simples facto de, o juiz, no seu processo cognitivo, não
ter passeado por todos os argumentos das partes.
A última está relacionada com os limites quantitativos e qualitativos da sen-
tença, sendo que, na sua prolação, o juiz está impedido de condenar para lá
da quantidade pedida, bem como em objecto diverso do que lhe foi solicitado
– sob pena de nulidade.
Dito isto e para terminar este ponto, importa debruçarmo-nos sobre o escla-
recimento ou aclaração da sentença e a sua reforma quanto a custas e multa,
problema de que se ocupa o artigo 669.º.
A formação da vontade das partes de impugnarem uma determinada decisão
judicial pressupõe que elas tenham entendido o seu conteúdo e, no seguimen-
to desse entendimento, não se conformem com a decisão no seu todo ou com
alguma das partes em que ela possa eventualmente decompor-se.
Porém, por vezes sucede que, dada a forma como a sentença está redigida, as
partes não conseguem entender o pensamento do julgador que a decisão in-
corpora, ou seja, o sentido da decisão é ininteligível e, nesses casos, estaremos
então diante de uma decisão obscura.
Outras vezes, as partes conseguem perceber o pensamento do julgador, mas a
forma como o mesmo se encontra expresso é susceptível de comportar duas
ou mais interpretações, falando-se então de sentenças ambíguas.
Tanto a obscuridade como a ambiguidade da sentença constituem os funda-
mentos que podem sustentar o pedido do seu esclarecimento ou aclaração e,
caso seja feito, competirá sempre ao Tribunal que proferiu a decisão que se
mostra obscura ou ambígua esclarece-la e, a decisão que deferir o pedido de

223
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

esclarecimento, considerar-se-á complemento e parte integrante da sentença


–alínea a)do artigo 669.º e n.º 2 do artigo 670.º in fine.
Nas duas situações em que se pode verificar o esclarecimento da sentença,
como ensina Fernando Âmancio Ferreira, não se trata de impugnar o julga-
mento proferido pelo juiz nem de questionar a sua actividade, mas antes de
fazer corresponder a expressão formal da decisão ao que o juiz quis efectiva-
mente dizer ou fazer. Acrescenta ainda, este autor, que dada a amplitude da
redacção da alínea a) do artigo 669.º, a aclaração pode ser pedida tanto no que
se refere à decisão como aos seus fundamentos.
Já quanto às situações previstas na alínea b) do citado artigo 669.º, isto é, os
casos de reforma da sentença quanto a custas e/ou multa, o problema que
se levanta é efectivamente o do erro de julgamento. Neste âmbito, o juiz que
proceda a uma incorrecta aplicação ou interpretação das normas aplicáveis
e, consequentemente, a sua decisão revela-se ilegal e/ou injusta – daí que as
partes, por via da reclamação (reforma), pretendem que o Tribunal a substitua
por outra conforme a lei.
Este meio processual destina-se à impugnação de decisões judiciais que con-
denam injustamente a parte no pagamento das custas – em virtude do alu-
dido erro de julgamento – e não para impugnar o erro praticado no acto de
contagem das custas, que é um acto da autoria dos Serviços de Contadoria e,
por isso, não jurisdicional, consubstanciando-se num mero erro de cálculo.
O meio para impugnar o acto dos Serviços de Contadoria acabado referir é a
reclamação da conta prevista no CCJ.
Tratando-se de um verdadeiro erro de julgamento em matéria de custas, há
quem defenda que o meio processual que seria mais adequado para atacar es-
sas situações seria o recurso, por serem maiores as garantias de imparcialidade
neste segundo instituto processual. Sobre esta questão, entende o Professor
José Alberto dos Reis, que a possibilidade excepcional da reforma da sentença
quanto a custas e multa por parte do tribunal que proferiu a sentença explica-
se por se ter entendido que para casos tão simples convinha pôr à disposição
da parte prejudicada um meio rápido, económico e expedito para obter a re-
paração do erro.

224
(ENDNOTES)
I
Nos dizeres do Professor João de Matos Antunes Varela, in Manual de Processo Civil,
pág. 1, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, o direito civil é o
ramo de direito (público) funcionalmente destinado a integrar o direito civil.
II
Relativamente a essa questão, as tendências que têm presidido às reformas processuais
nas mais diversas latitudes apontam no sentido da máxima redução de normas adjec-
tivas cuja não observância seja susceptível de condicionar o direito subjectivo material
em disputa. Esta orientação tem como matriz a ideia da introdução do princípio da
verdade material no processo civil, em detrimento do princípio da verdade formal que,
assente na filosofia do liberalismo, inspirou as soluções legais dos vários códigos que
vigoraram no século XX, onde se enquadra o Código de Processo Civil actualmente
em vigor em Angola que, como se sabe, é de 1961.
III
Doravante, refere-se ao CPC qualquer citação de disposições legais não acompanhada
da menção do respectivo diploma.
IV
Dentre as situações que a título excepcional, é permitido aos particulares a defesa dos
seus direitos com recurso à própria força, destacam-se os institutos da acção directa,
estado de necessidade e da legítima defesa, todos regulados no Código Civil. Numa
outra perspectiva, é de ter em conta os sistemas alternativos de resolução de litígios,
nomeadamente, a arbitragem, a conciliação e mediação – sic n.º 4 do 174.º da CR e a
Lei n.º 16/03, de 25 de Julho (LAV).
V
O Estado intervém numa relação jurídica investido de poderes de autoridade quando
dispõe da prerrogativa de unilateralmente ditar soluções que vinculam os demais su-
jeitos da respectiva relação.
VI
Bronze, José Fernando, Lições de Introdução ao Direito, pág. 628, Coimbra Editora,
2002.
VII
Timbane, Tomas, Lições de Processo Civil I, pág. 66, Editora Escolar, 2010.
VIII
Nos termos do artigo 58.º da Lei Constitucional de 75, as leis e regulamentos que na
altura vigoravam, desde que não contrariasse o espírito da Constituição e do processo
revolucionário angolano, manter-se-iam em vigência.
IX
Para maiores desenvolvimentos, ver, entre outros, Antunes Varela, ob. cit., pág. 27 e se-
guintes.
X
Excepcionalmente, a Lei n.º 18/88 previa a possibilidade de, numa mesma provín-
cia, existir mais de um Tribunal Provincial, possibilidade esta que se concretizou na

225
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

Província de Benguela em que funcionaram dois tribunais, o Tribunal Provincial de


Benguela e o Tribunal Provincial do Lobito.
XI
Bronze, José Fernando, ob. cit..
XII
Antunes Varela, ob. cit., pág. 46.
XIII
Relativamente às acções pendentes, a regra é a da aplicação da lei vigente à data da
propositura da acção. Todavia, em sede da proposta do novo CPC, a comissão técni-
ca, com base nos fundamentos que sustentam a doutrina da aplicação imediata da lei
processual nova propõe uma alteração radical do regime do actual artigo 63.º do CPC,
apontando para a aplicação imediata da nova lei em detrimento da regra da perpetua-
ção da competência – veja-se o artigo 65.º do Projecto.
XIV
Confrontar Baptista, José João, Processo Civil I, Parte Geral e Processo Declarativo,
pág. 80, 8.ª Edição, Coimbra Editora.
XV
Remédio Marques, J.P, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, pág. 216, 3.ª Edi-
ção, Coimbra Editora, 2010.
XVI
Remédio Marques, JP, ob. cit., pág. 271.
XVII
Sobre o conceito de direito potestativo, consultar Mota Pinto, Carlos Alberto, in Teo-
ria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição Actualizada, pág. 169, Coimbra Editora, 1996.
XVIII
Antunes,Varela, oob. cit., pág. 67.
XIX
A organização judiciária que a Lei n.º 18/88 estabeleceu, entre outros, assentou sobre
o princípio da tendencial coincidência entre a organização administrativa do país e a
organização judiciária. Não obstante, na Província de Benguela, durante o período de
vigência da lei, a título excepcional funcionaram dois Tribunais Provinciais, o Tribunal
Provincial de Benguela e o Tribunal Provincial do Lobito.
XX
Diferentemente da Lei n.º 18/88, aqui o legislador abandonou o princípio da ten-
dencial coincidência entre a organização judiciária e a organização administrativa,
substituindo-lhe pelo princípio da proximidade da justiça ao cidadão. Na esteira deste
princípio, ao invés dos 19 tribunais de primeira instância e de jurisdição plena com
que o país contava na organização anterior, no auge da implementação do novo mapa
judiciário, passará a contar com 60 tribunais de primeira instância.
XXI
O valor da acção, para além de relevar para efeitos da determinação da forma de
processo, também se reveste de particular importância para a determinação das custas
judiciais que os cidadãos e as empresas devem pagar ao Estado como contrapartida do
serviço que lhes é prestado, nos termos da legislação específica.
XXII
Antunes,Varela, ob. cit., pág. 145.
XXIII
Remédio Marques, JP, ob. cit.

226
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

XXIV
Justifica-se o carácter excepcional do exercício do direito de defesa, invocando que,
dados os fins específicos que se pretendem atingir com esses meios processuais, o
respeito absoluto do contraditório por vezes pode-se mostrar contraproducente, na
medida em que a citação do réu pode servir de aviso ao infractor para acelerar os actos
para a consumação da violação do direito que se pretende acautelar.
XXV
A este leque, o Projecto, no seu artigo 381.º, acresce uma nova providência nominada,
a do arbitramento de reparação provisória. Esta providência, que opera em depen-
dência da acção de indemnização fundada em morte ou lesão corporal, permite aos
lesados requerer o arbitramento de quantia certa sob forma de renda mensal como re-
paração prévia do dano, quantia que entretanto será imputada na liquidação definitiva
do dano.
XXVI
Fora do capítulo dos incidentes da instância (capítulo III, artigo 302.º a 380.º), o le-
gislador, com o mesmo propósito de resolver questões conexas à questão principal,
traça tramitações paralelas à tramitação da acção principal que configuram verdadeiros
incidentes da instância inominados, como é o caso previsto para a arguição do vício da
incompetência relativa do tribunal, artigos 109.º a 111.º do CPC.
XXVII
Antunes Varela, ob. cit., pág. 105.
XXVIII
Antunes Varela, ob. cit., pág. 130.
XXIX
Para melhor desenvolvimento ver Remédio Marques, JP, ob. cit., pág. 377 e 378.
XXX
Remédio Marques, JP, ob. cit., pág. 393.
XXXI
Antunes Varela, ob. cit., pág. 195.
XXXII
Remédio Marques, JP, ob. cit., pág. 298.
XXXIII
Enquanto tribunal de revista, o Tribunal Supremo apenas se ocupa do julgamento de
questões de direito de grande complexidade técnica, ficando o julgamento da matéria
de facto em regra a cargo dos tribunais de comarca e dos tribunais da relação.
XXXIV
Actualmente estabelecia nos artigos 85.º e 86 do CPC o que, no contexto do Projecto,
correspondem aos artigos 86.º e 87.º.
XXXV
Antunes Varela, ob. cit., pág. 222.
XXXVI
Antunes Varela, ob. cit., pág. 260.
XXXVII
Antunes Varela, ob. cit., pág. 311.
XXXVIII
Ver por todos, Antunes Varela, ob. cit., pág. 349.
XL
No sistema português, o juiz antes de convocar a audiência preliminar pode profe-
rir despacho pré-saneador cujos objectivos, em nosso entender, são os mesmos que
se buscam na audiência. Face a esse entendimento, o legislador técnico optou por
não introduzir no texto do Projecto a figura do despacho pré-saneador, mas também

227
Manual De Processo Civil I & Perspectivas da Reforma

pesaram nesta opção as críticas que a doutrina vem fazendo no sentido da violação
por parte do Tribunal do princípio da imparcialidade, uma vez que com o despacho
pré-saneador aparece o juiz essencialmente a auxiliar o autor na elaboração da petição
inicial.
XLI
Sobre a questão da delimitação entre a matéria de facto e a matéria de direito, ver por
todos, Castanheira Neves, Questão-de-facto-Questão-de-direito, I, Coimbra, 1967,
pág. 15 e seguintes.
XLII
No plano teórico a distinção entre a discussão e julgamento da matéria de facto e a
discussão e julgamento da matéria de direito é artificial, pois que na prática as duas
actividades entroncam-se.

228

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